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II O Problema do Aborto e a Doutrina do Direito

Efeito duplo *

Uma das razões pelas quais a maioria de nós se sente intrigada com o problema do aborto é que
queremos e não queremos atribuir ao nascituro os direitos que pertencem a adultos e crianças.
Quando pensamos num bebé prestes a nascer, parece absurdo pensar que os próximos minutos ou
até horas possam fazer uma diferença radical no seu estatuto; mas mesmo assim quando pensamos
na vida do feto, estamos cada vez mais relutantes em dizer que este é um ser humano e deve ser
tratado como tal. Sem dúvida, essa é a fonte mais profunda de nosso dilema, mas não é a única.
Pois nós também estamos confusos sobre a questão mais geral do que podemos ou não fazer
quando os interesses dos seres humanos entram em conflito. Nós temos intuições fortes quanto a
certos casos; dizendo, por exemplo, que está certo elevar o nível de educação no nosso país,
embora as estatísticas permitam prever que haverá um aumento na taxa de suicídio; que não esteja
certo matar um ser humano débil para ajudar na pesquisa do cancro.

Não é fácil, no entanto, ver os princípios envolvidos e uma maneira de lançar luz sobre a questão
do aborto é estabelecer paralelos que envolvam adultos ou crianças depois de nascer. Seremos
então capazes de isolar a questão dos “direitos iguais” de todos os homens e deve ser possível
avançar.

Evidentemente, não vou discutir todos os princípios que podem ser usados para decidir como agir
quando os interesses ou direitos dos seres humanos entram em conflito. O que quero fazer é olhar
para uma teoria em particular, conhecida como “doutrina do duplo efeito” invocado pelos
católicos em apoio dos seus pontos de vista sobre o aborto, mas que eles presumem que se devem
aplicar nos outros casos também.

Quando é usada no argumento do aborto, essa doutrina parece muitas vezes aos não-católicos um
sofisma completo. No último número da Oxford Review, o Professor Hart fez pouco caso dela.(1)
E, no entanto, esse princípio pareceu a alguns não-católicos, tal como aos católicos, constituir a
única defesa contra decisões que são inaceitáveis em outras matérias. Por isso ajudará a resolver
o nosso dilema sobre o aborto se a questão puder ser resolvida.

A doutrina do duplo efeito baseia-se na distinção entre o que um homem prevê como resultado
das suas ações voluntárias e o que, no sentido estrito, ele pretende. Um homem pretende, no
sentido mais estrito, tanto as coisas que visa como fins como as coisas que visa como meios para
os seus fins. Podemos lamentar estes últimos em si mesmos, mas, no entanto, desejá-los pelo bem
do fim; como por exemplo podemos ter a intenção de manter os loucos perigosos confinados pelo
bem da nossa segurança. Por outro lado, não se diz que o homem pretenda as consequências
previstas de suas ações voluntárias, de modo estrito ou direto, quando estas não são o fim para o
qual está orientado, nem os meios para esse fim. Se a palavra “intenção” deve ser aplicada nos
dois casos é claro que não importa: Bentham falou de “intenção oblíqua”, contrastando-a com a
“intenção direta” quanto a meios e fins e também podemos usar a sua terminologia. Todos devem
reconhecer que essa distinção pode ser feita, embora possa ser feita de várias maneiras diferentes,
e é esta distinção que é crucial para a doutrina do efeito duplo. As palavras “efeito duplo” referem-
se aos dois efeitos que uma ação pode produzir: a que se deseja e que se prevê, mas de nenhuma
maneira é desejada. Por “doutrina do duplo efeito”, quero dizer a tese de que às vezes é
permissível provocar com intenção oblíqua o que não se pretende diretamente. Portanto, a
distinção é considerada relevante para a decisão moral em certos casos difíceis. Diz-se, por
exemplo, que a operação da histerectomia envolve a morte do feto como consequência prevista,
mas não estrita ou diretamente pretendida, do ato do cirurgião, enquanto outras operações matam
a criança e resultam da intenção direta de tirar uma vida inocente, uma distinção que provocou
reações particularmente amargas por parte de não-católicos. Se tiver permissão para provocar a
morte da criança, porque importa como é feito? A doutrina do efeito duplo também é usada para
mostrar por que, num outro caso, onde a mulher em trabalho de parto pode morrer, a menos que
uma operação de craniotomia seja realizada, a intervenção não deve ser tolerada. Diz-se que
nestes casos não podemos operar, mas se deve deixar a mãe morrer. Prevemos a morte dela, mas
não a pretendemos diretamente, ao passo que esmagar o crânio da criança implicaria a intenção
direta de provocar a sua morte.

Esta última aplicação da doutrina foi invocada pelo professor Hart, alegando que a morte da
criança não é estritamente um meio de salvar a vida da mãe e deve logicamente ser tratado como
uma consequência indesejada, mas prevista, por aqueles que fazem uso da distinção entre intenção
direta e oblíqua. Interpretar a doutrina dessa maneira é perfeitamente razoável, dada a linguagem
usada; no entanto, isso retiraria o sentido a tudo desde o ponto de partida. Um determinado evento
pode ser desejado numa descrição, indesejável noutra, mas não podemos tratá-las como dois
eventos diferentes, um dos quais se deseja e o outro não. E mesmo se for argumentado que existem
aqui dois eventos diferentes - o esmagamento do crânio da criança e a sua morte - os dois estão
obviamente tão próximos que faz pouco sentido a aplicação da doutrina do duplo efeito. Para ver
como seria estranho aplicar o princípio assim, considere a história, bem conhecida dos filósofos,
do homem gordo preso na boca da caverna. Um grupo de brincalhões permitiu imprudentemente
que o homem gordo os liderasse quando saíssem da caverna, e este ficou preso, prendendo os
outros atrás dele. Obviamente, a coisa certa a fazer é sentar-se e esperar até que o homem gordo
fique magro; mas filósofos trataram de fazer com que as águas da corrente subissem dentro da
caverna para tornar o caso mais premente. Felizmente (felizmente?), o gruo preso levava com eles
dinamite com o qual podem tirar o gordo da boca da caverna. Ou usam a dinamite ou se afogam.
Num caso, o homem gordo, cuja cabeça está na caverna, afoga-se com eles; no outro são
resgatados em devido tempo. Problema: podem usar a dinamite ou não? Mais tarde,
encontraremos exemplos paralelos a este.

Aqui é apresentado para aliviar a tensão e porque servirá para mostrar quão ridícula é uma certa
versão da doutrina do efeito duplo. Suponhamos que os exploradores presos argumentassem que
a morte do gordo podia ser tomada como uma consequência meramente prevista, mas não
desejada do ato de o fazer explodir. (‘Não queríamos matá-lo... Apenas cortá-lo em peças
pequenas' ou mesmo ‘apenas queríamos projetá-lo para fora da caverna.') Creio que aqueles que
usam a doutrina do duplo efeito rejeitam corretamente tal sugestão, embora, é claro, tenham uma
dificuldade considerável em explicar onde deve ser traçada a linha. Qual deve ser o critério de
“proximidade” se dissermos que algo muito próximo do que estamos a visar diretamente deve ser
contado como se fosse parte do nosso objetivo?

Deixemos esta dificuldade de lado e voltemos aos argumentos a favor e contra a doutrina, supondo
que esta seja formulada da maneira considerada mais acertada pelos seus defensores, e por nós
mesmos, contornando as dificuldades através da consideração de casos razoavelmente claros de
intenção “direta” e “oblíqua”.

O primeiro ponto que deve ser esclarecido, para ser justo com a teoria, é que ninguém sugere que
não importa o resultado das ações, desde que se preveja mas não se pretenda estritamente o mal
que resulta da ação. Podemos pensar, por exemplo, no caso (real) de maus comerciantes
vendendo, para cozinhar, óleo que sabiam ser venenoso e, assim, matando várias pessoas
inocentes, comparando e confrontando com o de coveiros desempregados, desesperados por
clientes, que se apossam desse mesmo óleo e o vendem (ou talvez o tenham distribuído
secretamente) para criar encomendas de sepulturas. Estes últimos estritamente (ou diretamente)
pretendem as mortes que causam, enquanto os comerciantes poderiam dizer que não fazer parte
dos seus planos de que alguém morresse. Na moral, como na lei, os comerciantes seriam
considerados tão assassinos como os coveiros; nem os defensores da doutrina do duplo efeito são
força dos a dizer que há a mínimo de diferença entre estes em relação à sua torpeza moral. O que
comprometidos é com a tese de que às vezes faz diferença na “permissibilidade” de uma ação que
esta envolva danos a terceiros e que esse dano, embora previsto, não faça parte da intenção direta
do agente. Um fim como ganhar a vida claramente não é justificação, nem direta nem oblíqua,
para a intenção de causar a morte de pessoas inocentes, mas em certos casos justifica-se provocar
conscientemente o que não se poderia pretender diretamente.

Agora é o momento de dizer porque esta doutrina deve ser levada a sério, apesar de parecer um
tanto estranha, porque existem dificuldades quanto à distinção que propõe e porque parece levar
a uma conclusão “sofística” quando aplicada ao problema do aborto.

Agora é hora de dizer por que essa doutrina deve ser levada a sério, apesar de parecer um tanto
estranha, e haver dificuldades na distinção na qual está baseada, e que parecia levar a uma
conclusão sofística quando aplicada ao problema do aborto. A razão para a sua atratividade é que
os seus oponentes parecem estar implicados em visões bastante indefensáveis. Assim, a
controvérsia espalhou-se devido ao uso de exemplos como os seguintes. Suponha que um juiz ou
magistrado se depara com manifestantes exigindo que seja encontrado um culpado por um
determinado crime e ameaçando, de outra forma, vingar-se sangrentamente num grupo específico
da comunidade. O verdadeiro culpado é desconhecido, o juiz vê-se capaz de impedir o
derramamento de sangue apenas culpando uma pessoa inocente e executando-a. Ao lado deste
exemplo, refere-se outro em que um piloto cujo avião está prestes a cair tem que decidir se se
dirige de uma área mais habitada ou a uma menos habitada. Para fazer o paralelo o mais próximo
possível, pode-se supor que ele seja o condutor de um elétrico descontrolado que só pode dirigir-
se de um trilho para outro trilho; cinco homens estão a trabalhar num desses trilhos e um homem
no outro; qualquer um que esteja no trilho do elétrico em que este vai entrar será forçosamente
morto. No caso dos manifestantes, a multidão tem cinco reféns, de modo que em ambos os casos
a troca deveria ser a vida de um homem pela vida de cinco. A questão é por que dizemos, sem
hesitação, que o motorista deve dirigir-se para o trilho menos ocupado, enquanto a maioria de nós
ficaria horrorizada com a ideia de que o homem inocente podia ficar com as culpas. Pode-se
sugerir que a característica especial deste último caso é que envolve a corrupção da justiça, e isso
é, obviamente, muito importante. Mas se removermos essa característica especial, supondo que é
um indivíduo privado que mata uma pessoa inocente e faz passar outro por criminoso, ainda nos
encontramos horrorizados pela ideia. A doutrina do duplo efeito oferece-nos uma saída para a
dificuldade, insistindo que uma coisa é dirigir-se deliberadamente para alguém prevendo que se
vai matá-lo e outro é ver a morte dele como parte do próprio plano. Além disso, há um elemento
muito importante no qual se insiste. Na vida real, dificilmente seria certo que o homem no trilho
seria necessariamente morto. Talvez pudesse encontrar um ponto de apoio ao lado do túnel e
agarrar-se enquanto o veículo passava. O motorista do elétrico não sai e bata-lhe com força na
cabeça com um pé de cabra. O juiz, no entanto, precisa da morte do homem inocente para os seus
(“bons”) propósitos. Se a vítima for difícil de enforcar, ele tem de garantir que morra de outra
maneira. Escolher executá-lo é escolher que esse mal aconteça, e isso, portanto, implica uma
certeza na escolha entre o bem e o mal envolvidos. A distinção entre intenção direta e oblíqua é
crucial aqui, e é de grande importância num mundo incerto. No entanto, isso não é defender a
doutrina do duplo efeito. Pois a questão é se a diferença entre visar algo e apenas pretender
obliquamente algo é, em si mesma, relevante face às decisões morais que é preciso tomar; não é
uma questão de diferença de certeza entre o bem e o mal. Além disso, estamos particularmente
interessados na aplicação da doutrina do duplo efeito à questão do aborto, e ninguém pode negar
que, na medicina, às vezes há certezas quase tão completas que seria apenas uma fuga à realidade
falar do “resultado provável” desse curso de ação ou daquele. Não é, portanto, apenas por
interesse filosófico que devemos deixar de lado a incerteza e examinamos os exemplos para testar
a doutrina do efeito duplo. Por que não podemos confundir o caso do motorista com o do juiz?

Outro par de exemplos coloca um problema semelhante. Estamos prestes a dar um paciente uma
enorme dose de um determinado medicamento de que este precisa para salvar sua vida, mas há
de que há falta. Chegam, no entanto, cinco outros pacientes, cada um dos quais poderia ser salvo
por um quinto dessa dose. Lamentamos não poder aplicar todo o suprimento da droga num único
paciente, assim como dizemos que não poderíamos usar todos os recursos de uma enfermaria para
um indivíduo perigosamente doente quando as ambulâncias chegam com vítimas de um acidente
múltiplo. Sentimo-nos obrigados a deixar um homem morrer ao invés de muitos, se essa é a nossa
única escolha possível. Por que, então, não nos sentimos justificados ao decidir matar pessoas no
interesse da pesquisa do cancro ou para obter, digamos, órgãos de substituição para implantar em
quem precisa? Podemos supor, da mesma forma, que várias pessoas perigosamente doentes
podem só ser salvas se matarmos um determinado indivíduo e fizermos um soro com o seu corpo
morto (Esses exemplos não são fantasiosos, considerando as atuais controvérsias sobre o
prolongamento da vida de pacientes fatalmente doentes cujos olhos ou rins podem ser usados
para salvar outros). Por que não podemos argumentar como no caso do medicamento escasso ao
dos órgãos do corpo necessários para fins médicos? Mais uma vez, a doutrina do efeito duplo
apresenta uma explicação. Num caso, mas não no outro, visamos diretamente a morte de um
homem inocente.

Um argumento adicional sugere que, se a doutrina do efeito duplo for rejeitada, isso terá as
consequências de colocar-nos irremediavelmente sob o poder de homens maus. Suponha, por
exemplo, que algum tirano ameaça torturar cinco homens se nós não torturássemos um. Seria
nosso dever fazê-lo (supondo que acreditávamos na ameaça) porque não seria diferente de
escolher resgatar cinco homens dos seus torturadores, em vez de um? Se sim, quem quiser que
façamos algo que pensamos ser errado tem apenas que ameaçar que, caso contrário, ele próprio
fará algo que pensamos ser ainda pior. Um assassino louco, conhecido por cumprir suas
promessas, poderia obrigar-nos a matar um cidadão inocente para impedi-lo de matar dois. A
partir dessa conclusão, somos novamente resgatados pela doutrina do duplo efeito. Se recusarmos,
prevemos que um número maior de pessoas morrerá, mas não o pretendemos: é ele quem pretende
(quer dizer, estrita ou diretamente) a morte de pessoas inocentes; nós não.

Certa vez, pensei que esses argumentos a favor da doutrina do duplo efeito eram conclusivos, mas
agora penso que o problema deve ser resolvido de outra maneira. A intuição que devemos seguir
é que a força da doutrina parece estar na distinção entre fazer entre o que fazemos (considerado
com intenção direta) e o que permitimos (algo previsto ou obliquamente intencional). De facto, é
curioso que se tenda a discutir como se devêssemos ser responsabilizados pelo que permitimos
da mesma maneira como como somos responsáveis pelo que fazemos (4). No entanto, não é óbvio
que é isso que se deve discutir, uma vez que a distinção entre o que se faz e o que se deixa
acontecer não é a mesma coisa que a diferença entre intenção direta e oblíqua. Para o ver, basta
considerar que é possível deliberadamente permitir que algo aconteça, ou visando-o em si mesmo
ou como parte do plano para obter outra coisa. Portanto, uma pessoa pode querer que outra pessoa
morra e deliberadamente permitir que ela morra. Mas, mais uma vez, pode-se dizer que faz coisas
que não se fazem sem o visar, como o motorista que mataria o homem no trilho. Além disso, há
uma grande quantidade de coisas que se diz que são provocadas, em vez de feitas ou permitidas,
onde qualquer tipo das espécies de intenção pode existir. Por exemplo, é possível provocar a
morte de um homem, levando-o ao mar num barco com um furo, e a intenção de provocar a sua
morte pode ser direta ou oblíqua. Seja qual for a relação, ou falta de relação com a doutrina do
duplo efeito, vale a pena examinar a ideia de “permissibilidade” neste contexto. Deixarei de lado
o caso especial de “dar permissão”, que envolve a ideia de autoridade, e considero as duas
principais divisões nas quais os casos de permissão parecem cair. Em primeiro lugar, existe a
permissão daquele que é tolerar ou deixar de evitar. Para isso, precisamos de uma sequência de
raciocínio de alguém já em ação, e de alguma coisa que o agente poderia fazer para intervir. (O
agente deve poder intervir, mas não o faz.) Assim, por exemplo, poderia avisar uma pessoa, mas
permite que esta caia numa armadilha. Poderia alimentar um animal, mas permite que este morra
por falta de comida. Poderia fechar uma torneira aberta, mas permite que a água continue a correr.
Este é sentido de permitir que nos preocupa, mas o outro deve ser mencionado também. É o tipo
de permissão que é aproximadamente equivale a dar capacidade; a ideia base é a da remoção de
algum obstáculo que está, por assim dizer, a atrasar uma série de eventos. Alguém pode por
exemplo remover uma tampa e permitir que água flua; abrir uma porta e permitir que um animal
saia; ou dar a alguém dinheiro e permita que ele se aguente.

O primeiro tipo de permissão requer uma omissão, mas não há outra relação geral entre a omissão
e a permissão, no sentido de dar uma ordem ou ajudar à promoção do que outros fazem. Um ator
que não comparece numa performance geralmente estraga-a, em vez de permitir que seja
estragada. Menciono a distinção entre omissão e promoção, apenas para a deixar de lado.
Pensando no primeiro tipo de permissão (deixar de evitar), devemos perguntar se há alguma
diferença, do ponto de vista moral, entre o que se faz ou causa e o que apenas se permite. Parece
claro que há ocasiões em que uma é tão má quanto a outra, como é reconhecido tanto na moral
quanto na lei. Um homem pode assassinar o seu filho ou um parente idoso, deixando-os morrer
de fome ou dando-lhes veneno; pode ser condenado por assassinato em qualquer dos casos.
Noutros casos, contudo, faríamos uma distinção. A maioria de nós permite que as pessoas morram
de fome na Índia e na África, e certamente há algo errado ao permitir isso; mas seria absurdo, no
entanto, fingir que é apenas na lei que fazemos a distinção entre permitir que pessoas nos países
subdesenvolvidos morram de fome e enviar-lhes comida envenenada. Está estabelecida no nosso
sistema moral uma distinção entre o que devemos às pessoas sob a forma de ajuda e o que lhes
devemos sob a forma da “não-interferência”. Salmond, na sua obra Jurisprudence, expressou a
distinção entre as duas, como se segue.

Um direito positivo corresponde a um dever positivo, é seu direito em relação


àquele a quem cabe o dever que este faça algo positivo em favor da pessoa que
detém esse direito. Um direito negativo corresponde a um dever negativo, e é um
direito de que a pessoa em questão se abstenha de fazer algum ato que possa
prejudicar a outra. O primeiro é um direito a ser positivamente beneficiado; o
último é meramente um direito a não ser magoado. (5)

No que toca a direitos e deveres em geral, isto tem alguns defeitos, uma vez que nem todos os
direitos e deveres estão intimamente ligados ao conceito de “benefício” e “prejuízo”. Contudo,
para os nossos propósitos, terá de servir. Falemos, agora, de deveres negativos, quando pensamos
na obrigação de nos abstermos de fazer certas coisas, como matar ou roubar, e de dever positivo,
como tomar conta das crianças ou dos pais idosos. Será útil, contudo, alargar a noção de dever
positivo para além das coisas que são estritamente chamados “deveres”, incluindo alguns “atos
de caridade” nesta definição. Apenas devemos estes atos de uma forma um pouco “geral”, uma
vez que não se pode falar exatamente de deveres de caridade, mas não seguirei o uso normal aqui.

Vejamos agora se a distinção entre deveres positivos e negativos explicar porque vemos de forma
diferente a ação do condutor e a do juiz, a dos médicos que são detentores de um medicamento
raro e aqueles que se apropriam de um corpo para propósitos médicos, aqueles que preferem
salvar cinco homens da tortura em vez de um e aqueles que estão dispostos a torturar um homem
para salvar cinco. Em cada caso, temos um conflito de deveres, mas que tipo de deveres são estes?
Estamos, em cada caso, a “pesar” os deveres positivos contra positivos, negativos contra
negativos, ou uns contra os outros? Será o dever evitar fazer dano, ou, então, prestar auxílio?

O condutor encontra-se num conflito de deveres negativos, sendo que o seu dever é o de evitar
fazer dano a cinco pessoas, mas também tem o dever o evitar fazer dano a uma. Nestas
circunstâncias, não lhe é possível evitar as duas opções, parecendo claro que deverá provocar o
mínimo de dano que puder. O juiz, contudo, “pesa” o dever de não provocar dano e o dever de
prestar auxílio. Ele quer salvar as pessoas inocentes ameaçadas de morte, mas apenas o pode fazer
se ele mesmo provocar dano. Uma vez que ninguém, de uma forma geral, tem um dever de ajudar
as pessoas tao forte como de evitar fazer-lhes dano, não é possível argumentar que ele pode fazer
o mesmo que no caso do condutor do elétrico. É interessante o facto de que, mesmo quando existe
um dever rígido de prestar auxílio, tal ainda não “pesa” tanto como se um dever negativo estivesse
envolvido. Não é permitido, por exemplo, cometer homicídio para levar comida aos filhos
esfomeados. Se a escolha se prende entre provocar dano a um ou a muitos, parece haver apenas
um percurso racional de ação; se a escolha está entre ajudar alguém provocando dano a outros,
ou recusar-se a fazer dano e deixar de levar a ajuda, o problema está aberto à discussão. Assim,
não é inconsistente pensar que que o condutor deve virar para o trilho apenas com um homem,
ainda que o juiz (ou o seu equivalente) possa não matar a pessoa para acabar os protestos.
Vejamos, agora, o segundo par de exemplos, que dizem respeito, por um lado, à raridade de um
medicamento e, por outro, ao corpo necessário para salvar vidas. Mais uma vez, encontramos uma
diferença entre o dever de evitar o dano e o dever de prestar auxílio. No caso em que um homem
necessita de uma dose gigantesca do comprimido raro e não lha damos toda de modo a salvar
cinco homens, estamos a equilibrar “ajuda” contra “ajuda”. Mas, se considerarmos matar um
homem para que possamos usar o seu corpo de forma a salvar outras pessoas, estamos a pensar
em provocar-lhe dano para prestar auxílio a outros. Numa outra interessante variante do modelo,
podemos supor que, ao invés de o matar, podemos deixá-lo, deliberadamente, morrer. (Talvez
seja um mendigo a que estamos a pensar em dar comida, mas dizemos em vez disso “Não, os
médicos precisam de corpos para efetuarem pesquisas médicas”.) Aqui parece relevante que, ao
deixá-lo morrer, estamos orientados para a sua morte, mas talvez estejamos inclinados a ver isto
como uma violação do dever negativo em vez de um dever positivo. Caso isto esteja correto,
conseguimos ver porque não é sempre possível chegar a uma conclusão no caso do medicamento
raro.

Nos exemplos que envolvem a tortura de um ou cinco homens, o princípio parece ser o mesmo
do que os últimos. Se estamos a prestar ajuda (a salvar pessoas prestes a serem torturadas pelo
tirano), devemos, obviamente, salvar o grupo maior em vez do menor. Não segue, contudo, que
teríamos justificação para provocar o dano (ou arranjar uma outra pessoa para o fazer) de forma
a salvar as cinco pessoas. Podemos, então, recusar a ser obrigados a agir frente a ameaças de
homens maus. Evitar provocar dano é um dever mais rígido do que evitar provocar dano, se bem
que isto não quer dizer que o outro não seja também um dever rígido.
Até agora, as conclusões são as mesmas que aquelas a que poderíamos chegar seguindo a doutrina
do efeito duplo, mas noutros casos serão diferentes, e a vantagem parece estar do lado da
alternativa. Suponha, por exemplo, que estão cinco pacientes num hospital cujas vidas poderiam
ser salvas com a criação de um certo gás, mas que isto, inevitavelmente, liberta fumos letais para
a sala de um outro paciente que, por alguma razão, não se consegue mover. A sua morte, inútil
para nós, é um evidente efeito secundário, não sendo diretamente intencional. Porque é que este
caso é diferente do medicamento raro, se a questão é que previmos, mas não tínhamos intenção
de causar a morte a nenhum paciente? Ainda assim, é certamente diferente. Os familiares do
paciente gaseado ganhariam, caso processassem o hospital e a história fosse revelada. Podemos
achar particularmente revoltante o facto de que alguém ser usado como no caso em que foi morto,
ou deixado morrer, em vista a pesquisa médica, e o facto de o sentirmos usado pode até determinar
o que decidimos nalguns casos, mas o princípio parece pouco importante comparado com a
relutância de provocar tal dano de forma a prestar auxílio.

A minha conclusão é que a distinção entre a intenção direta e oblíqua tem um papel bastante
secundário para estabelecer o que fazer nestes casos, ao passo que a distinção entre evitar o dano
e prestar ajuda é deveras importante. Claro está, não afirmo que não haja outros princípios. Por
exemplo, faz claramente uma grande diferença se o nosso dever positivo é um dever rígido ou,
então, um ato generoso de caridade: alimentar as nossas crianças ou alimentar aqueles que vivem
em países distantes. Poderá também fazer a diferença se a pessoa que estiver prestes a sofrer for
alguém não envolvida na ameaçada ou, pelo contrário, se a sua presença constitui uma ameaça
para os outros. Em muitos casos, é-nos muito difícil averiguar o que dizer, e eu não tenho
argumentado de forma a chegar a uma conclusão geral do que se deve ou não fazer, seja qual for
o equilíbrio entre bem e mal, dizendo que nunca se deve provocar dano de forma a ajudar outros,
mesmo quando este dano constitui a morte. Apenas tentei mostrar que mesmo que rejeitemos a
doutrina do efeito duplo, não somos obrigados a concluir que o tamanho do mal deve ser sempre
o nosso guia.

Voltemos, agora, ao problema do aborto, levando a cabo o nosso plano de encontrar paralelos
envolvendo adultos ou crianças em vez daqueles que estão por nascer. Devemos dizer algo
primeiro sobre os diferentes aspetos em que o aborto pode ser considerado com base médica.

Em primeiro lugar, existe a situação na qual nada que se possa fazer irá salvar a vida da criança e
da mãe, mas em que a vida da mãe pode ser salva pela morte da criança. Este caso é paralelo ao
do homem gordo na boca da caverna, pronto a ser afogado com os outros se nada for feito. Uma
vez certos do resultado, como foi presumido, não há nenhum conflito de interesses sério aqui,
uma vez que o homem gordo irá perecer em qualquer dos casos, e é razoável que a ação que irá
salvar alguém seja levada a cabo. É uma grande objeção àqueles que discutem que a intenção
direta de matar alguém inocente não é justificável e que o decreto se aplicará até mesmo neste
caso. A doutrina Católica sobre o aborto irá entrar em conflito com a doutrina dos homens mais
razoáveis. Mais ainda, teríamos justificação para fazer a operação usando qualquer método, não
sendo nem uma necessária nem sequer uma boa justificação no caso especial da histerectomia
que a morte da criança não é diretamente intencional, mas uma consequência previsível do que
está feito. Que diferença faz saber como a morte será provocada?

Em segundo lugar, temos o caso em que é possível realizar uma operação que salvará a mãe e
matará a criança, ou matará a mãe e salvará a criança. Isto é paralelo ao caso dos marinheiros
naufragados que acreditavam que tinham de atirar alguém ao mar caso o seu barco não fosse
naufragar numa tempestade e, também, ao caso famoso de dois marinheiros, Dudley e Stephens,
que mataram e comeram o grumete quando se perderam no mar sem comida. Aqui, mais uma vez,
não há conflito de interesses no que toca à decisão para agir; apenas em decidir quem se vai salvar.
Mais uma vez, seria razoável agir, ainda que que devamos respeitar alguém que se absteve da
apavorante ação porque preferiu morrer em vez de fazer alguma coisa ou porque manteve uma
esperança para além dos limites do razoável. Na vida real, as certezas postuladas pelos filósofos
raramente existem, e Dudley e Stephens foram resgatados pouco após a sua refeição horrível. Não
obstante, se a certeza fosse absoluta, como pode ser no caso do aborto, parecer-nos-ia melhor
salvar um do que não salvar nenhum. Provavelmente devemos decidir a favor da mãe, quando
“pesamos” o valor da vida dela com o do bebé por nascer, mas é interessante que, alguns anos
mais tarde, decidamos de outra maneira.

O pior dilema ocorre no terceiro exemplo, em que para salvar a mãe se tem que matar a criança,
talvez esmagando-lhe o crânio, enquanto que, se não fizermos nada, a mãe morrerá, se bem que
a criança possa nascer de forma segura após a sua morte. Aqui, a doutrina do efeito duplo foi
invocada para mostrar que não devemos intervir, uma vez que a morte da criança seria diretamente
intencional, ao passo que a morte da mãe não. Num paralelo exato com os outros casos que não
envolvem o bebé por nascer, podemos dizer que a conclusão é correta, mesmo que a razão não o
seja. Suponhamos, por exemplo, que, mais tarde na vida, a presença de uma criança iria,
certamente, matar a mãe. Não pensaríamos, com certeza, que seria justificado livrarmo-nos dela
através de um processo que envolvesse a sua morte. Em geral, não pensamos que podemos matar
uma pessoa inocente para salvar outra, a não ser o cuidado especial que sentimos ser devido à
criança depois de nascer. O que estaríamos preparados a fazer quando muita gente está envolvida
é um outro assunto, e serve, provavelmente, de chave a uma visão bastante espalhada sobre o
aborto daqueles que levam muito a sério os direitos da criança por nascer. Provavelmente, sentem
que se pessoas suficientes estivessem envolvidas, alguém teria de ser sacrificado, e pensam na
vida mãe contra a vida da criança que ainda não nasceu como se fosse muitas contra uma. Mas,
claro, muitas outras pessoas não veem isto assim, de todo, e não sentido inclinação alguma para
concordar que o feto, ou criança por nascer, tem o estatuto normal de ser humano no que toca a
direitos. Não tenho discutido a favor ou contra estes pontos de vista, mas apenas tentado distinguir
algumas das correntes que nos estão a puxar para a frente e para trás. A natureza ligeira dos
exemplos não pretende causar ofensa.

Tradução elaborada por: Érica Lemos, Rui Sá e Sara Rodrigues (e revista em 4 de novembro).

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