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PSICOLOGIA E TRABALHO HUMANO1


Milton Athayde*, Wladimir Ferreira de Souza* e Vladimir Athayde**2
Rio de Janeiro, UERJ, 2020

O texto pretende colaborar para compreender a dimensão psicológica


presente na vida e na profissão. Vamos iniciar nossa reflexão sobre uma
experiência absolutamente fundamental para vivermos: o TRABALHAR.

O que é viver, o que é trabalhar – que mundo é esse, o do trabalho? Ou


que mundos são esses, os do trabalho, considerando seu caráter complexo e
de múltiplas faces: seja trabalho enquanto produto, seja enquanto processo.
Então: o trabalhar pode se configurar em um produto técnico (como um
automóvel), ou um serviço (como uma psicoterapia, uma consultoria).
Precisamos indagar: quais as características destes produtos fabricados e
serviços prestados, como o trabalho se processa, como nele nos comportamos,
em que contextos organizacionais ele se dá, estabelecendo que relações (para
que, para quem, com quem?). Como ele vem acontecendo, em sua
historicidade, ao longo dos tempos, nas diferentes sociedades e na sociedade
atual? E no futuro, ele poderá ser diferente?

1. Trabalhar: uma experiência constitutiva e estruturante

A palavra trabalho é polissêmica, usada com diversas significações.


Trata-se de uma produção histórica e só na sociedade capitalista ela passou a
ser utilizada como uma categoria universal e fundadora de toda a vida social. E
o mais frequente hoje é que as pessoas considerem o trabalho como algo
evidente, óbvio, uma atividade social que se crê mensurável e passível de ser
objetivada.

A Psicologia – enquanto ciência & profissão – interroga, coloca em


análise, esta obviedade. Sim, pois não se trata de uma experiência simples,
banal, não obstante esteja sendo simplificada e banalizada e, com certa
frequência, até mesmo degradada. Na verdade, trata-se de nossa forma de

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Esta é uma versão atualizada do texto originalmente elaborado em 2014 como apostila, para uso em
aulas ministradas pelos autores.
2
* Docentes do Departamento de Psicologia Social e Institucional do IP/UERJ.
** Docente da FAETEC-RJ, Psicólogo da Prefeitura do RJ (CAPS).
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estar no mundo – consigo mesmo e com os outros –, uma experiência
vital, incontornável, constitutiva da espécie e estruturante da vida
psicológica. Ela é complexa (e muitas vezes complicada), uma potência
enigmática, exigindo muito cuidado de cada um de nós para não deixar decair
sua nobreza, gerando perda de sentido e adoecimento. Sendo assim, como
deixar de lado sua absoluta relevância no fazer científico e profissional em
Psicologia? Não se trata de uma questão pertinente apenas a uma “área”
profissional psi.

O mais frequente, no senso comum – e mesmo nas ciências sociais e


jurídicas – é que se considere como sinônimos TRABALHO e EMPREGO. Ao
perguntar a quem trabalha - “o você que faz?”, a resposta em geral remete a
que emprego a pessoa tem, que exerce. Nesta situação ela tem então um
contrato – formal (jurídico) ou informal (de palavra) – com alguém ou uma
organização, em que vende seu conhecimento, sua força de trabalho em troca
de uma remuneração, chamado SALÁRIO. Ou seja, trata-se neste caso do
regime de salariato, uma relação empregatícia juridicamente estabelecida entre
um trabalhador e aquele que o contrata (que se torna seu patrão). No Brasil, só
no século XX, esta relação virou Lei, o que se chama vulgarmente de “carteira
assinada” – a CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas), cujas leis foram
criadas e consolidadas no período de governo de Getúlio Vargas (1943). Estar
“empregado” passou a representar não só a sobrevivência, mas um modo
de estar socializado, de ter reconhecimento social, de ter prestígio intra e
extra grupal.

Como se pode então perceber, não foi sempre assim na vida da espécie
humana, nos diferentes tempos históricos, nas diferentes sociedades. E, ainda
hoje, essa dificuldade de entendimento continua presente, sendo ainda mais
presente quando se trata de trabalho doméstico. Só mais recentemente (2015)
é que foi assegurado mais precisamente que o serviço prestado por alguém na
casa de outro também é trabalho e deve ser juridicamente considerado
emprego. Não obstante persiste que o trabalho realizado por mulheres –
mães, esposas – no âmbito doméstico quase nunca é considerado
trabalho. Ele é naturalizado como uma atividade inerente ao ser da
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mulher, ao feminino. No caso do Brasil, esta determinação de gênero se
cruza com a degradante cultura escravista.

TRABALHO NÃO É SINÔNIMO DE EMPREGO!

A TROCA – SEMPRE DESIGUAL – ENTRE TRABALHO REALIZADO E


SALÁRIO PAGO FOI INVENTADA EM UM DETERMINADO MOMENTO DA
HISTÓRIA HUMANA

Encontramos na obra artística de Gonzaguinha uma música – Um Homem


Também Chora (Guerreiro Menino) – cantada também por Fagner, em cuja
letra ele diz:

Um homem se humilha E sem o seu trabalho


Se castram seu sonho O homem não tem honra Não dá pra ser feliz
Seu sonho é sua vida E sem a sua honra Não dá pra ser feliz!
E vida é trabalho Se morre, se mata

Claro, toda poesia permite várias interpretações, vamos ter a ousadia de


considerar que Gonzaguinha está falando muito mais de ter um emprego. A
vivência de felicidade, tranquilidade, não pode ser comprada no mercado, ela é
inventada, construída, experimentada, especialmente no plano psicológico, nas
relações humanas e sociais.

Então, na sociedade em que vivemos, sem emprego não somos nada??!!


Cabe a pergunta… E pode-se ainda constatar que sobreviver na situação de
desemprego dá muuuuito trabalho! Além da preocupação permanente com o
perigo de não entrar ou não voltar ao chamado “mercado de trabalho” (assim
como o risco do desemprego é, muitas vezes, o pesadelo de noite a noite dos
que estão empregados, mas com medo da demissão a qualquer momento).
Que paradoxo! Trata-se, por um lado, de desumanização, quando se impede
que um ser humano exercite esta experiência decisiva para sua própria
humanidade. Por outro lado, há que subsistir... e para isso muitas pessoas,
muitas vezes, são submetidas a experiências que destoam das conquistas
societárias.

Estamos convivendo também com a tendencial ampliação da chamada


“informalidade” (como dizem economistas, sociólogos e juristas), da
subcontratação, da “terceirização” (na prática, tornou-se forma de
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desregulamentação protetora do trabalho). O exemplo mais evidente de sua
banalização se tornou o que podemos denominar a “uberização” das relações
de trabalho” (que tal sermos todos “empreendedores”, “autônomos”, livres de
fiscalização? Para que fiscalização?). Os “uberizados” circulam hoje pelas ruas
pandêmicas do Brasil fazendo seus serviços de entrega, com suas bicicletas,
motos e automóveis, já anunciando-se sua obsolescência, com o uso dos
drones. Em outras palavras, o que está sendo imposto, na verdade, é a
precarização do trabalho, sua degradação.

Se no capitalismo que se instituiu nos “países do norte” (ou países


economicamente ricos, desenvolvidos do ponto de vista capitalista), com uma
forte regulação societária chamada “fordista”, o emprego assalariado formal
tornou-se a modalidade de trabalho dominante, a tendência vem sendo o
desmonte do que foi sendo estabelecido no pós-Segunda Guerra.

2. Trabalhar não necessariamente adoece, mas pode ser sim nocivo...

Outra figura da música popular – Ed Mota – na música Vamos dançar


(autoria dele com Rafael Cardoso) nos canta o seguinte:

Eu não nasci pra Já dirigi automóveis Vamos dançar lá na rua


trabalho, Já consumi capital Vamos dançar pra valer
Eu não nasci pra Já decidi que o dinheiro Vamos dançar enquanto
sofrer Não vai pagar, é tempo
não vai pagar Nos aplicar a viver!
A minha paz

Quando ele nos canta que não nasceu “pra trabalho”, pois não nasceu
“pra sofrer”, na verdade ele está se referindo a uma dada forma de trabalhar
que se caracteriza como pura exploração, dominação, trabalho nocivo a ser
mesmo recusado.

O TRABALHO NÃO FOI NEM SEMPRE TEM SIDO ESCRAVIDÃO,


ELE TEM SIM UMA DUPLA FACE:
PODE SER POSITIVO PARA A SAÚDE, PARA VIVER MELHOR
MAS PODE SER NOCIVO, GERAR SOFRIMENTO ADOECEDOR

Vital, constituinte da espécie e estruturante psíquico, trabalhar tem se


revelado na história humana, até aqui, uma como atividade contraditória,
paradoxal. Nas sociedades cujo modo de produção dominante é o doméstico
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– a sociedade dos “povos tradicionais”, como a dos indígenas brasileiros
“descobertos” pelos europeus –, o que denominamos experiência-trabalho não
tem / não tinha um único nome. E todas as atividades são / eram atravessadas
pelo sagrado, não visando acumulação de riqueza, evitando-se o caminho da
guerra entre classes e o poder de Estado.

Na Grécia antiga, para designar o que chamamos hoje de trabalho, fazia-


se uso de mais de um vocábulo:
• poïein – fazer/fabricar um objeto;
• prattein – fazer/agir e, sobretudo, agir sobre outrem;
• ergazesthai – dar conta de uma tarefa agrícola ou guerreira, “trabalhar”
no sentido mais concreto.

Outro conceito também então presente era o de technè. Naquela


sociedade o chamado trabalho “manual” era menosprezado. Distinções
também existiram na Roma Antiga, com os vocábulos opus, opera e labor.

No Ocidente, a condição humana trouxe as marcas da cultura judaica e


cristã. No caso da cristandade pode-se verificar um processo que não é
unívoco. Considerando o Velho Testamento, por um lado no Gênese pode-se
perceber um Deus ativo, trabalhador, que cria o mundo em 6 dias e repousa no
sétimo. Por outro, trabalho é entendido como castigo, condenação, penitência,
meio de expiação do “pecado original”. Com o desenvolvimento do
cristianismo, já na Idade Média percebe-se uma polarização: o trabalho
continuou visto como punição, porém pretendendo estar servindo à saúde do
corpo e da alma, como nos mosteiros medievais (e suas “regras monásticas”) –
dever-se-ia alternar trabalho manual com oração e limitar-se à satisfação das
necessidades básicas da comunidade (evitando a acumulação de riquezas). É
neste contexto da vida monástica que aparece, desde o século VI, o foco na
figura de uma fadiga patológica, a preguiça (um pecado: ociosidade, “mãe de
todos os vícios”), um “relaxamento da alma”, que só o trabalho e a oração
poderiam erradicar. Algo que no Brasil esteve presente quando da escravidão,
não só moralizando como também medicalizando, psiquiatrizando a recusa ao
trabalho violento e intensivo. Seja em relação aos nativos, seja em relação aos
africanos “importados” como força de trabalho escravo. Na Europa, trabalhar
passa a ser entendido como obrigação (para os pobres), codificado no Direito
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(na Inglaterra, o “Estatuto dos Trabalhadores”, de 1349). Institui-se a internação
dos “vagabundos” no chamado “Hospital Geral”, sua deportação para as
colônias (como o Brasil), até mesmo a pena de morte (que se tornou a regra,
no Brasil, frente aos que se recusavam à escravidão, seja indígenas, seja
povos transplantados da África).

No período chamado Renascimento, as fronteiras geográficas foram


ampliadas pelas navegações, assim como as descobertas científicas
ofereceram uma nova percepção do universo. A figura do Homem inverte a
figura de Deus, emergindo uma cultura chamada “humanista”, em que o
trabalho (inclusive o dito “manual”) passou a ser visto como expressão da força
do homem: cria-se a expressão “artes mecânicas”, ao lado das “artes liberais”.

Ao mesmo tempo, uma nova significação religiosa se acopla a esta lógica,


no interior da Reforma Protestante3, com uma nova moral do trabalho se
constituindo, pois dignificaria o homem. No entendimento de diversos
pesquisadores (como Max Weber) foi esta cultura que representou o “espírito
do capitalismo” (ascetismo burguês puritano, cujo enriquecimento aparece
como sinal de sua boa conduta no mundo, de sua predestinação) e deu base
para a emergência do modo de produção capitalista. Enfim, a positividade do
trabalho vem à cena.

Portanto, no decorrer da História:


ou trabalhar é um castigo, consequência do “pecado capital”...
ou trabalhar é expressão da força do homem. ele o dignifica no exercício
de uma profissão, para a qual tenha “vocação”.
ou...

Retomando o que dissemos, encontra-se em muitos textos uma visão


estreita desta história. Diz-se que a palavra trabalho, em latim, tem a mesma
base da palavra tortura: TRIPALIUM. Mas, para ser preciso, rigoroso,
importante referir que se trata de um instrumento de três pontas, usado na
agricultura e na veterinária, seja para ferrar ou tratar um animal de maior porte,
seja para ajudar em tratamentos de humanos e partos difíceis. Ok, também foi

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Reformulação doutrinal iniciada na Alemanha por Martinho Lutero, no século XVI, desenvolvendo-se
inicialmente pela Europa do norte, tendo como principal discípulo João Calvino (gerando o Calvinismo).
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usado para o castigo, a tortura. Enfim, esta última foi uma das possíveis
utilizações desta ferramenta. Mas é fundamental não esquecer que ela foi
usada também para ajudar nos partos difíceis, impossíveis mesmo, caso não
se usasse o tripalium...

Só a partir de um determinado momento histórico se configurou um


quadro em que um único vocábulo – trabalho – passou a designar
unitariamente um complexo e amplo conjunto de atividades. No caso do Brasil,
já se trabalhava, o trabalho não chegou com a invasão europeia e o projeto
colonial. Com ela tentou-se escravizar primeiro os naturais brasileiros. Mas, na
medida em que os “índios” se recusaram a passivamente fazer parte do
empreendimento colonial, foi então perpetrado um genocídio, neste processo
cometendo-se também o etnocídio (destruição da cultura de um povo). A
demanda de força de trabalho para o sucesso do projeto colonial foi em
seguida viabilizada pela criminosa “importação” de povos trazidos da África (os
“escravos negros”).

3. A questão, de fato, é: QUAL TRABALHO (para quem, para quê)?

Com este conhecimento que nos oferece a Psicologia histórica, não é


correto dizer que cada um de nós só trabalha em função da necessidade de
subsistir. Trabalha-se para existir. Trata-se, antes de mais nada, de uma
questão de desejo, de produção de sentido. Para a Psicologia, então, a
questão é: QUE TIPO DE TRABALHO?

É FALSA A IDÉIA DE QUE NÃO QUEREMOS TRABALHAR.


A QUESTÃO CORRETAMENTE COLOCADA É:
QUAL TRABALHO?
PARA QUÊ, PARA QUEM, ORGANIZADO SOB QUAIS
PRINCÍPIOS?

Do ponto de vista científico, o que veio a se configurar como espécie


humana foi se constituindo à medida que interferia no mundo e o alterava, o
transformava. E, neste mesmo movimento, se processava uma interferência no
seu próprio mundo interno – seja em sua constituição biológica, seja
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psicológica (em sua inteligência, seu pensamento, suas emoções). Neste curso
foi-se também criando valores, como: não matar, cuidar da cria, dos mais
velhos e doentes, por exemplo. Podemos então afirmar que o trabalho é uma
experiência humana constitutiva da espécie e organizadora do nosso sistema
psicológico. Ou seja, trata-se de uma relação dinâmica, de mútua interferência.
Não se trata apenas do humano interferindo na natureza (A→B). Trata-se de
homem e natureza em mútua interferência (A↔B), inclusive do humano em
sua própria “natureza”.

O TRABALHO É UMA EXPERIÊNCIA HUMANA

CONSTITUTIVA DA ESPÉCIE e

ORGANIZADORA DO NOSSO SISTEMA PSICOLÓGICO

CONCLUINDO:

Ao buscar uma formação universitária, cada um/a de vocês está querendo


viver em sociedade, conseguir um emprego em troca de um salário, ou
prestando um serviço psi remunerado, ou outras formas de “ganhar dinheiro”.
Mas sugerimos a pergunta: o que mais pode estar em jogo no esforço de
vocês? Qual sentido pode estar contido na busca deste curso de formação de
psicólogos, qual sentido pode vir a ter vossa profissionalização universitária?

Sim, é preciso cuidar da vida, da natureza, do trabalho, de si mesmo


e dos outros. Registramos também que se o trabalho não é necessariamente
adoecedor, não obstante ele pode se tornar. Então… muito cuidado! E há muito
o que cuidar.

Trouxemos para a conversa algumas músicas, como a Vamos dançar,


cantada pelo Ed Mota - “eu não nasci pra trabalho, eu não nasci pra sofrer”.
Nesta música se chama atenção para um tipo de trabalho indesejável, que só
se suporta porque, na sociedade em que vivemos, se precisa de dinheiro para
viver. Mas esse dinheiro pode não “pagar a conta”, cobrada através de um tipo
de sofrimento patogênico, adoecedor, que tira a saúde, a paz e o amor. Na
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língua que falamos, a gíria é uma curiosa invenção, ela se configura como
palavra expressão de caráter informal, que tem como riqueza uma amplitude
de significados presentes em cada palavra. Assim, lidando com a gíria,
podemos dizer que neste tipo de trabalho – nocivo – a vida “dançou”, tornando
impossível “dançar pra valer”, como se deseja.

Mas, como se diz na linguagem popular, é fundamental “não despejar no


ralo o bebê junto com a água, após o banho”! A experiência-trabalho tem se
apresentado na história humana de forma complexa, tendo ao menos uma
dupla face: estruturante ou desestruturante. O convite, nesta disciplina do curso
(PT&O I), é para melhor compreender tudo isso e poder colaborar para a
“festa” do trabalho. Mais uma vez usando a música, lembremos aquela de
Chico Buarque e Milton Nascimento, o “Cio da Terra”:

Debulhar o trigo Decepar a cana


Recolher cada bago do trigo Recolher a garapa da cana
Forjar no trigo o milagre do pão roubar da cana a doçura do mel
E se fartar de pão! Se lambuzar de mel!
Afagar a terra
Conhecer os desejos da terra
Cio da terra, a propícia estação
E fecundar o chão

Enfim:

É PRECISO CUIDAR DA VIDA, DA NATUREZA, DE SI E DOS OUTROS,

É PRECISO CUIDAR DO TRABALHO (e de quem trabalha)!

TAREFA DA PSICOLOGIA DO TRABALHO & ORGANIZACIONAL

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