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ACÓRDÃO Nº 54/2022

Processo n.º 421/20


2.ª Secção
Relatora: Conselheira Mariana Canotilho

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Juízo de Família e Menores de


Guimarães (Tribunal Judicial da Comarca de Braga), em que é recorrente o
Ministério Público e recorrido A., foi pelo primeiro interposto recurso de
constitucionalidade obrigatório ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do
artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, adiante designada por
LTC), da sentença proferida por aquele Tribunal, em processo de alteração da
regulação das responsabilidades parentais, em 18 de fevereiro de 2020 (fls. 56-
63).

2. No que releva para o presente, a decisão recorrida recusou a


aplicação da norma extraída do artigo 48.º, número 1, alíneas a), b) e c), do
Regime Geral do Processo Tutelar Cível (constante da Lei n.º 141/2015, com as
alterações introduzidas pela Lei n.º 24/2017 – doravante, RGPTC), em conjunto
com o disposto no artigo 738.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, com
fundamento na sua inconstitucionalidade. O tribunal a quo entendeu que tal
dimensão normativa contraria os comandos dos artigos 1.º, 13.º, 18.º e 26.º, n.º 1,
da Constituição da República Portuguesa (aludindo, ainda, a latere, ao artigo
63.º, n.º 3), «na medida em que de forma arbitrária e discriminatória o
legislador não diferencia os níveis de rendimento, não estabelecendo como limite
de aplicabilidade a preservação de montante equivalente ao I.A.S. [Indexante
dos Apoios Sociais], não cumprindo, assim e também, a obrigação de
diferenciação, quer quanto ao montante isento de desconto, quer, também,
quanto às diferentes naturezas de que uma pensão se pode revestir (sobretudo no
caso das de incapacidade), isentando-as, pelo menos, até o valor, do I.A.S.» (fls.
62, verso). Com isso, o juiz determinou a sua desaplicação in casu e ordenou a

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cessação de desconto da pensão de alimentos na pensão de invalidez auferida
pelo devedor e condenou o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores
(FGADM) a pagar a referida pensão de alimentos, sub-rogando-se o Fundo nos
direitos da criança-credora contra o progenitor-devedor.

3. Perante esta decisão, o representante do Ministério Público junto


do Tribunal a quo veio apresentar requerimento de interposição de recurso
obrigatório para o Tribunal Constitucional (fls. 64-70), que foi admitido (fls. 75).
Nesta sequência, subidos os autos e verificando-se que se encontravam
preenchidos os pressupostos processuais, as partes foram notificadas para
apresentar as suas alegações (fls. 78).

4. O Ministério Público apresentou alegações, postulando pelo


provimento do recurso e pela revogação da sentença, no seguinte sentido (fls. 80-
87):

«2. Do Objeto do Recurso

2.1 Questão Prévia:

Conforme claramente decorre da leitura da Decisão recorrida, a


norma aplicada pelo M.º Juiz ao caso em apreciação foi a da alínea c)
do n.° 1 do artigo 48° do Regime Geral do Processo Tutelar Cível
(RGTPC) em conjugação com o n.° 4 do artigo 738° do Código do
Processo Civil e não a alínea a) e b) do n.° 1 do referido artigo 48° do
RGTPC.

[…]

Ora, na fundamentação da sentença foram dados como provados os


seguintes factos: "Do processado resultam os seguintes factos com
relevo para esta decisão:

1- A criança B., nascida aos 29/11/2006, é filha de A. e de C..

2- A pensão mensal a título de alimentos devidos a menor está fixada


em 120 Euros, a atualizar anualmente de acordo com a taxa de
inflação.

3- A mãe da criança é reformada por invalidez, auferindo uma pensão


de 288,81 Euros. O pai, igualmente reformado por invalidez, aufere
uma pensão de 375,73 Euros, ou seja, tem uma capitação inferior ao
indexante aos apoios sociais (I.A.S.) - conforme informado pelo

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C.D.S.S. afls. 45A.

4- Não há ascendentes de 2 ° grau ou outros tios da criança em causa


que tenham, conhecidamente, capacidade económica de prestar
alimentos.

5- A criança reside em território nacional, Guimarães, vivendo em


economia doméstica com a mãe.

6 - A criança tem um rendimento mensal per capita inferior ao I.A.S.


(438,81 €, nos termos da Portaria n." 27/2020, de 31/01), 314,93
Euros (relatório do C.D.S.S. a fls. 38 e ss.). Não há outros factos
relevantes para a decisão incidental."

Face a estes factos a Decisão recorrida fundamentou de Direito pela


seguinte forma:

"O Direito

O progenitor aufere uma pensão de invalidez paga pelo Centro


Nacional de Pensões no montante de 375,37 Euros, pelo que, numa
interpretação literal da norma constante do art.º 48.°, n° 1, al. c), do
Regime Geral do Processo Tutelar Cível (R.G.P.T.C.), deveria, sem
mais, ser ordenado o desconto da quantia aqui devida a título de
pensão de alimentos a menor. No entanto, afigura-se-nos, ressalvado
o devido respeito por diferente e superior entendimento, que tal
norma padece de inconstitucionalidade por violar os princípios da
dignidade humana, o da igualdade e o da proporcionalidade (bem
como, no caso da al. c), o direito à proteção pelo sistema de
segurança social), constantes do disposto nos artigos 1.°, 13.° e 1.° (e
63.°) da Constituição Portuguesa (C.R.P.), motivo pelo qual
rejeitaremos a sua aplicação ao abrigo do disposto nos artigos 280.°,
n.° 1, al. a), e 204.2 da C.R.P. (o que em nada contende com o
princípio da separação de poderes...). De acordo com o texto da
norma constante do art.º 48.°, n.° 1, al. c), do R.G.P.T.C., "[quando a
pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as
quantias em dívida nos 10 dias seguintes ao vencimento, observa-se o
seguinte: [c) Se] for pessoa que receba rendas, pensões, subsídios,
comissões, percentagens, emolumentos, gratificações,
comparticipações ou rendimentos semelhantes, a dedução é feita
nessas prestações quando tiverem de ser pagas ou creditadas,
fazendo- se pra tal as requisições ou notificações necessárias e
ficando os notificados na situação de fiéis depositários".

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A norma em questão não estabelece na sua hipótese qualquer critério
de diferenciação para aplicação da sua estatuição: nem entre os
diferentes níveis de rendimento, estabelecendo um mínimo abaixo do
qual o desconto não pode ser ordenado, nem entre os diferentes tipos
de rendimento, não distinguido as pensões, sequer de incapacidade,
até ao montante do indexante dos apoios sociais. É uma norma
absoluta, sem qualquer limite ou exceção.

Os critérios de interpretação de uma norma constam do art.º 9.° do


Código Civil (C.C.), deles fazendo parte a unidade do sistema
jurídico, constando do art.° 10.° do C.C. a previsão de integração de
lacunas da lei, por analogia.

Não contendo a norma qualquer limite para os descontos a ordenar,


tem sido entendido na jurisprudência que se aplica o limite geral
constante do art.º 738.°, n.° 4, do Código de Processo Civil (C.P.C.) "
[o] disposto nos números anteriores não se aplica quando o crédito
exequendo for de alimentos, caso em que é impenhorável a quantia
equivalente à totalidade da pensão social do regime não
contributivo".

Segundo o disposto no art.º 18.° da Portaria n.- 28/2020, de 31/01, "


[o] quantitativo mensal das pensões de velhice do regime não
contributivo é fixado em (euro) 211,79". Antes da redação em vigor
do art.º 738. °, n.° 4, do C.P.C., o critério jurisprudencial considerava
impenhorável o valor do rendimento social de inserção (R.S.I.), como
critério de preservação do direito a uma subsistência minimamente
condigna ou a um mínimo de sobrevivência.

Chegados aqui, temos que, independentemente da natureza e do


montante do rendimento referido na hipótese da norma constante da
al. c) do n.° 1 do art.º 48.° do R.G.P.T.C., ou das necessidades básicas
da pessoa devedora de alimentos, seria deduzível qualquer quantia,
desde que preservada a de 211,79 Euros mensais, mesmo que se trate,
por exemplo, de uma pensão por incapacidade, como é o caso, e a
pessoa não tenha outros rendimentos (e seja incapaz para os obter),
ficando por isso com a quantia de 211,79 Euros para fazer face a
todas as suas despesas, incluindo as com alimentação e as de saúde
não comparticipadas; no caso concreto, ficaria com um pouco mais,
273,13 Euros."

Assim, as normas do disposto nas alíneas a) e b) do artigo 48° do


RGTPC não se podem considerar como ratio decidendi da Decisão

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recorrida, surgindo no decurso de toda a fundamentação como
elemento argumentativo da posição tomada pelo Tribunal, como
acontece, aliás, ao longo da sentença, relativamente às considerações
de (in) constitucionalidade, sobre normas de diversos regimes
contributivos e de impenhorabilidade, efetuadas pelo Tribunal. Não
pode, pois, este Tribunal Constitucional conhecer do objeto do
recurso no que respeita às normas das alíneas a) e b) do artigo 48° do
RGTPC.

2.2. Assim, e seguindo os termos da Decisão recorrida, podemos


considerar como único objeto do recurso a apreciação da
constitucionalidade da norma da alínea c) do n.° 1 do artigo 48°
do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (R.G.P.T.C.) em
conjugação com o n.° 4 do artigo 738.° do Código do Processo
Civil, quando interpretada no sentido de não diferenciar os níveis
do rendimento da pessoa judicialmente obrigada a prestar
alimentos e não estabelecer como limite mínimo de aplicabilidade
referencial para efeitos de penhorabilidade o montante
equivalente ao IAS. (Destacado no original).

[…]

3. Da apreciação do mérito do recurso

3.1 Da análise da sentença resulta ter o Tribunal decidido, para além


da recusa de aplicação das normas por inconstitucionalidade, manter
a cessação de desconto da pensão de alimentos na pensão de
invalidez auferida pelo devedor, no montante de 375,37 Euros, por
inferior ao I.A.S. e condenar o F.G.A.D.M. a pagar mensalmente a C.
a pensão de alimentos relativa à criança B., nascida aos 29/11/2006,
no montante mensal de 120 Euros, ficando o F.G.A.DM sub-rogado
nos direitos da criança contra o devedor, pai da criança, A..

Fundou o Tribunal a decisão relativa à condenação do F.G.A.D.M F,


na verificação dos requisitos exigidos pela Lei n.° 75/98, de 19 de
novembro, com as respetivas atualizações, designadamente o da
pessoa judicialmente obrigada a prestara alimentos não satisfazer as
quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 48° do RGPTC.

Da fundamentação da sentença recorrida não resulta que o Tribunal a

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quo tenha explicitamente ponderado a existência de um conflito entre
os direitos do pai, que está obrigado a prestar alimentos e os direitos
da criança beneficiária da prestação.

[…]

No caso do presente recurso, no entanto, podemos considerar que o


direito fundamental a uma existência condigna da criança que
beneficia da pensão de alimentos, se encontra suficientemente
garantido pela aplicação do regime do Fundo de Garantia de
Alimentos Devidos a Menores, criado pela Lei n.° 75/98, de 19 de
novembro e regulamentado pelo Decreto Lei n.° 164/99, de 13 de
maio. (cfr. neste mesmo sentido os já citados Acórdãos do Tribunal
Constitucional n.° 394/2014 e 306/2005).

3.2 Há, então, que apreciar se o critério referencial para cálculo do


valor mínimo para efeitos de penhorabilidade das pensões sociais,
previsto no n.° 4 do artigo 738° do Código do Processo Civil, quando
está em causa uma pensão de alimentos a crianças, nos termos da
alínea c) do artigo 48° do RGPTC, põe em causa o direito
fundamental a uma existência condigna do pai, ora devedor, assim
violando o princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado
artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa.

[…]

Por outro lado, nos termos do artigo 18° da Portaria n.° 28/2020, de
31 de janeiro, o quantitativo mensal do regime não contributivo é, à
data da sentença, de € 211,79. Ou seja, para efeitos de aplicação do n.
° 4 do citado artigo há que ter em atenção este valor. Por outro lado, o
valor do RSI (rendimento social de inserção) fixado para o ano de
2020 é de 189,66, enquanto o valor do IAS é de 438,81 (Portaria n.º
27/2020, de 31 de janeiro).

Ora, o valor da pensão de invalidez auferida pelo pai da criança,


devedor da pensão de alimentos judicialmente fixada, é de € 375,73.
A pensão de alimentos à criança foi judicialmente fixada em € 120
mensais. Se deduzirmos o valor da pensão de alimentos de € 120 na
pensão de invalidez auferida pelo pai, este ficaria com o montante de
€ 255,73. Assim, este valor é superior ao RSI. Como o é, igualmente
o valor de € 211,79, fixado com quantitativo mensal do regime
contributivo, relevante como limite de penhorabilidade previsto no n.
° 4 do artigo 738° do CPC.

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Contrariamente à sentença recorrida consideramos que o valor do
RSI foi considerado pelo Estado como valor que assegura as
condições mínimas de sobrevivência, E por isso é o mesmo
impenhorável.

O Indexante dos Apoios Sociais (IAS), criado pela Lei n.° 53-
B/2006, de 29 dezembro, traduz-se num indexante para efeitos de
uniformização legislativa de critérios de determinação, fixação,
cálculo e atualização dos apoios sociais e outras despesas e das
receitas da administração central do Estado, das Regiões Autónomas
e das autarquias locais, previstos em atos legislativos ou
regulamentares. Não se podendo confundir com a natureza intrínseca
da finalidade e dos objetivos dos diversificados apoios sociais e
demais contribuições sociais, como o RSI.

Como se refere no Acórdão n.° 394/2014, a discussão acerca da


intocabilidade de rendimentos decorrentes do recebimento de
pensões sociais tem girado em torno da impenhorabilidade parcial de
tais rendimentos, por força da aplicação do "princípio da dignidade
da pessoa humana" (cfr. artigo 1.º da CRP). Nesse sentido, o Tribunal
Constitucional já entendeu serem impenhoráveis as pensões sociais
que não excedam o salário mínimo nacional (cfr. Acórdão n.°
177/2002, disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acórdãos)
ou que não excedam o rendimento social de inserção (cfr. Acórdãos
n.° 66/2002 e n.° 509/2002). Contudo, a jurisprudência mais recente
deste Tribunal Constitucional vem defendendo ser o RSI o referencial
para definição das condições mínimas de sobrevivência, como
garantia constitucional do princípio da dignidade da pessoa humana.

[…]

Finalmente, há que ter em atenção que o legislador previu no n.° 6 do


artigo 738° do Código do Processo Civil a possibilidade de o Juiz
poder decidir, a requerimento do executado, ponderados o montante e
a natureza do crédito exequendo, bem como as necessidades do
mesmo e do seu agregado familiar, excecionalmente reduzir, por
período que considere razoável, a parte penhorável dos rendimentos e
mesmo, por período não superior a um ano, isentá-los de penhora. Ou
seja, sempre poderá o julgador socorrer-se de outros instrumentos
legais quando possam em causa situações que possam colocar em
causa a observância das mínimas condições de sobrevivência que

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assegurem a dignidades humana.

4. Em Conclusão:

4.1 A norma da alínea c) do n.° 1 do artigo 48° do Regime Geral do


Processo Tutelar Cível (R.G.P.T.C.) em conjugação com o n.° 4 do
artigo 738.° do Código do Processo Civil, quando interpretada no
sentido de não diferenciar os níveis do rendimento da pessoa
judicialmente obrigada a prestar alimentos e não estabelecer como
limite mínimo de aplicabilidade referencial para efeitos de
penhorabilidade o montante equivalente ao IAS , não é
inconstitucional, por não violar o princípio da dignidade humana
consagrado no artigo 1º da Constituição da República Portuguesa.

4.2. O Indexante dos Apoios Sociais (IAS), criado pela Lei n.° 53-
B/2006, de 29 dezembro, traduz-se num indexante para efeitos de
uniformização legislativa de critérios de determinação, fixação,
cálculo e atualização dos apoios sociais e outras despesas e das
receitas da administração central do Estado, das Regiões Autónomas
e das autarquias locais, previstos em atos legislativos ou
regulamentares.

4.3. Não se podendo confundir com a natureza intrínseca da


finalidade e dos objetivos dos diversificados apoios sociais e demais
contribuições sociais, como o RSI.

4.4. Muitos dos quais se consubstanciam em valores bem


inferiores.

4.5. Pelo que, o IAS não pode ser usado como referencial de
critério para definição do valor mínimo de subsistência e
sobrevivência.

4.6. O rendimento necessário para aferir das necessidades de


sobrevivência, deve ser definido em função do valor da garantia
constitucional do mínimo de existência.

4.7. O rendimento social de inserção (RSI) deve considerar-se

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como correspondendo ao mínimo necessário a assegurar a
sobrevivência, como garantia constitucional do princípio da
dignidade da pessoa humana.

4.8. O valor do RSI fixado para o ano de 2020 é de € 189,66,


enquanto o valor do IAS é de € 438,81 (Portaria 27/2020, de 31 de
janeiro).

4.9. O n.° 4 do artigo 378° do Código Civil estabelece como


impenhorável, em caso de alimentos, a quantia equivalente à
totalidade da pensão social do regime não contributivo, que nos
termos do artigo 18° da Portaria n.° 28/2020, de 3 Ide janeiro, é, de €
211,79, à data da sentença recorrida.

4.10. Ou seja, este valor é superior ao valor do Rendimento Social


de Inserção.

4.11. No caso dos presentes autos, o valor da pensão de invalidez


auferida pelo pai da criança, devedor da pensão de alimentos
judicialmente fixada, é de € 375,73.

4.12. A pensão de alimentos à criança foi judicialmente fixada em €


120 mensais.

4.13. Em caso de dedução do valor da pensão de alimentos de € 120


à pensão de invalidez auferida pelo pai, este ficaria com o
remanescente de € 255,73.

4.14. Valor que é, igualmente, superior ao do RSI.

4.15. Assim, por tudo o exposto, deve considerar-se como


constitucionalmente conforme da norma da alínea c) do n.° 1 do
artigo 48° do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (R.G.P.T.C.),
em conjugação com o n.° 4 do artigo 738.° do Código do Processo
Civil, quando interpretada no sentido de não diferenciar os níveis do

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rendimento da pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos e
não estabelecer como limite mínimo de aplicabilidade referencial
para efeitos de penhorabilidade o montante equivalente ao IAS.»

5. O recorrido, por sua vez, apresentou contra-alegações (fls. 96-102,


verso), invocando que:
« 1. Considera o Ministério Público, ora Recorrente, que a norma da
alínea c), do n. °1 do art.º 48.° do Regime Geral do Processo Tutelar
Cível (R.G.P.T.C) em conjugação com o n.° 4 do art.º 738° do
Código do Processo Civil, quando interpretada no sentido de não
diferenciar os níveis do rendimento da pessoa judicialmente obrigada
a prestar alimentos e não estabelecer como limite mínimo de
aplicabilidade referencial para efeitos de penhorabilidade o montante
equivalente ao I.A.S, não é inconstitucional, por não violar o
princípio da dignidade humana consagrado no art.º 1.° da
Constituição da República Portuguesa.

2. Considera, também, o Recorrente, que o Indexante dos Apoios


Sociais (IAS), criado peia Lei n.° 53-B/2006, não pode ser usado
como referencial do critério para definição do valor mínimo de
subsistência e sobrevivência.

3. Para o Recorrente, o rendimento social de inserção (RSI) deve


considerar-se como correspondendo ao mínimo necessário a
assegurar a sobrevivência, como garantia constitucional do princípio
da dignidade da pessoa humana.

4. Considera o Recorrente, novamente, que o n.° 4 do art.º 738°do


Código de Processo Civil estabelece como impenhorável, em caso de
alimentos, a quantia equivalente à totalidade da pensão social do
regime não contributivo, que nos termos do art.º 18.° da Portaria n.°
28/2020, de 31 de janeiro, é, de 211,79€, à data da sentença recorrida,
sendo este valor superior ao do RSI, podendo, portanto ser
penhorado.

5. Pretende o Recorrente que este Douto Tribunal revogue a sentença


de 18 de fevereiro de 2020, proferida no processo de Alteração da
Regulação das Responsabilidades Parentais n.° 4784/08.0TBGMR-
D, do Juízo de Família e Menores de Guimarães - Juiz 1, do Tribunal
Judicial da Comarca de Braga.

6. No entanto, e muito respeitosamente, o Recorrido considera


completamente erróneas e injustas as pretensões e considerações do
Recorrente.

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7. Ora, o valor do RSI fixado para o ano de 2020 é de 189,66€.

8. Nestes presentes autos, o Recorrido, aufere, como valor da pensão


de invalidez, 375,73€.

9. A pensão de alimentos à criança foi judicialmente fixada em 120€


mensais.

10. Em caso de dedução do valor da pensão de alimentos de 120€ à


pensão de invalidez auferida pelo Recorrido, este ficaria com o
remanescente de 255,73€, valor este que é superior ao do RSI.

11. Em caso de existir aplicabilidade do n.° 4, art.º 738.°, do Código


de Processo Civil, poderia ser penhorado ao Recorrido o valor da
pensão de alimentos.

12. Ora, o Recorrido é considerado inválido, tendo como único


rendimento a sua pensão de invalidez, sendo completamente incapaz
de obter outro tipo de rendimentos.

13. Acordando com o que M.º Juiz de Direito decidiu na sentença


aqui já referida, o art.º 48, n° 1, al. c), do Regime Geral do Processo
Tutelar Cível em conjugação com o n.° 4 do art.º 738.°, do Código do
Processo Civil é, efetivamente, inconstitucional.

14. O art.º 48.°, n.° 1, al. c), do R.G.P.T.C, em conjugação com o n. º


4 do art.º 738, do Código do Processo Civil, viola os princípios da
dignidade humana, o da igualdade e o da proporcionalidade, como
também viola o direito à proteção pelo sistema da Segurança Social,
constantes do disposto nos artigos 1.°, 13.°, 18.°, 26°, n.° 1 e63.°, n.°
3.

15. É verdade que a dignidade humana da criança, neste caso


concreto, também poderia estar em causa.

16. No entanto, a prestação de alimentos devida é suprida pelo Fundo


de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, tal como resulta da
sentença aqui já referida, por reunir os requisitos exigidos pela Lei n.
° 75/98, de 19 de novembro, garantindo assim a dignidade humana da
criança.

17. Considera, também, o M.º Juiz de Direito, na sua Douta


sentença, que o art.º 48.°, n.° 1, al. c), do R.G.P.T.C: "A norma em
questão não estabelece na sua hipótese qualquer critério de
diferenciação para aplicação da sua estatuição: nem entre os
diferentes níveis de rendimento, estabelecendo um mínimo abaixo do
qual o desconto não pode ser ordenando, nem entre os diferentes
tipos de rendimento, não distinguido as pensões, sequer de

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incapacidade, até ao montante do indexante dos apoios sociais. É
uma norma absoluta, sem qualquer limite ou exceção."

18. Na continuação do exposto no artigo anterior, ainda disse o M.º


Juiz de Direito o seguinte: "Não contendo a norma qualquer limite
para os descontos a ordenar, tem sido entendido na jurisprudência
que se aplica o limite geral constante do art.º 738°, n.° 4, do Código
de Processo Civil (...) Antes da redação em vigor do art.° 738°, n.° 4,
do C.P.C, o critério jurisprudencial considerava impenhorável o valor
do rendimento social de inserção (R.S.I), como critério da
preservação do direito a uma subsistência minimamente condigna ou
a um mínimo de sobrevivência

19. Sublinhe-se que o n.° 4.°, do art.º 738.°, do C.P.C, em conjunto


com o estabelecido no art.º 18.° da Portaria 28/2020, de 31 de janeiro
de 2020, dita que o quantitativo mensal das pensões de velhice do
regime não contributivo é fixado em 211,79€, sendo este o limite
geral para descontos presente na norma referida neste artigo.

[…]

33. Tendo em conta o exposto no artigo anterior, foi decidido, pelo


Douto Tribuna! Constitucional, o seguinte: "Julgar inconstitucional a
norma extraída do artigo 189.° n.° 1, alínea c), do Regime Jurídico da
Organização Tutelar de Menores, aprovado pelo Decreto-Lei n.°
314/78, de 27 de outubro, de acordo com a redação conferida pela
Lei n° 32/2003, de 22 de agosto, quando interpretada no sentido de
não se ter em consideração qualquer base mínima da pensão social
que possa ser afetada ao pagamento da prestação de alimentos a filho
menor, na medida em que prive o obrigado à prestação de alimentos
do mínimo indispensável à sua sobrevivência, por violação do
princípio da dignidade da pessoa humana, tal como previsto no artigo
1° da Constituição da República Portuguesa."

34. Ou seja, ficou bem patente aqui a inconstitucionalidade da norma


do n.° 4, do art.º 48°, do R.G.P.T.C (anteriormente, art.º 189.°, n.° 1,
alínea c), do Regime Jurídico da Organização Tutelar de Menores),
em conjugação com o n.° 4 do art.º 738.°, do Código do Processo
Civil.

35. Ora, quanto à capacidade de autossobrevivência e preservação da


dignidade do cidadão comum, façamos um exercício de logística.

36. Caso fosse considerado dedutível e penhorável os 120€ da


pensão de alimentos do menor, o Recorrido ficaria com 255,73€ -

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:
como exposto anteriormente nesta contra-alegação – para as suas
despesas, tendo em conta que o Recorrido aufere uma pensão de
invalidez, o que não lhe permite ter outro tipo de rendimentos.

37. Esses 255,73€ teriam de ser necessários para, não só, arrendar
uma casa.

38. Segundo dados recolhidos pelo Diário de Notícias, o preço médio


de arrendamento mais baixo em Portugal encontra-se no Distrito da
Guarda, sendo que ronda a média de 347,13€, no ano de 2018 (vide
https://www.dn.pt/pais/preco-medio-do-arrendamento-de-casas-
em~portugal-aumentou-37-em-2018-portal~10669659.html).

39. Mesmo que o Recorrido vivesse no Distrito da Guarda - que não


vive, sublinhe-se -, tendo em conta a renda média, e tendo em conta o
que o Recorrido aufere de pensão social de invalidez - 255,73€ só
com o pagamento da renda, já ficaria o Recorrido com um prejuízo
mensal de 91,74€.

40. A juntar a este valor da renda, fazendo uma média, com valores
exageradamente baixos, se o Recorrido despendesse 100€ para a sua
alimentação e 50€ para pagar as contas de luz e água, todos os meses
o Recorrido acabaria com um prejuízo mensal de 241,74€.

41. Face ao exposto nos últimos artigos, o Recorrido viveria


miseravelmente, longe dos mínimos da dignidade humana, caso lhe
fossem penhorados os 120€, ou se tivesse de pagar, efetivamente, a
prestação.

42. O Recorrido concorda com a sentença, achando não só


inconstitucional a norma aqui referida, como também que deve ser
considerado o I.A.S o mínimo dos mínimos da garantia da dignidade
humana.

43. Tal como o Recorrido concorda com a decisão do M.º Juiz de


Direito que, até ao valor do I.A.S, deve ser isento do desconto que
refere o art.º 48, n.° 1, al. c), do R.G.P.T.C.

44. O Recorrido considera que deve ser estabelecido como limite


mínimo de aplicabilidade referencial para efeitos de penhorabilidade
o montante equivalente ao I.A.S, pois este deve usado como
referencial de critério para definição do valor mínimo de subsistência
e sobrevivência.

45. Considera, por fim, o Recorrido que foram violados os seus


princípios de dignidade humana, de igualdade, de proporcionalidade,
bem como o direito à proteção pelo sistema de Segurança Social.

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:
46. Sendo assim, a sentença de 18 de fevereiro de 2020, proferida no
processo de Alteração da Regulação das Responsabilidades Parentais
n.° 4784/08.0TBGMR-D, deve-se manter, pois, e segundo o M. º Juiz
de Direito, "ao abrigo do disposto nos artigos 204.° e 280.°, n.°1, ai),
da C.R.P., recusamos a aplicação do disposto no art.º 48.°, n.°1, ai c)
e alíneas a) e b) - do R.G. P.T.C - lido conjuntamente com o disposto
no art.º 738°, n.°4, do C.P.C, (bem como com o disposto no art.º 23°
do Decreto-Lei n° 90/2017, de 28/07/2017, pelo qual o legislador
estatui a impenhorabilidade do R.S.I, independentemente de qualquer
valor) - na medida em que de forma arbitrária e discriminatória o
legislador não diferencia os níveis de rendimento, não estabelecendo
como limite de aplicabilidade a preservação de montante equivalente
ao I.A.S, não cumprindo, assim e também, a obrigação de
diferenciação, quer quanto ao montante isento de desconto, quer;
também, quanto às diferentes naturezas de que uma pensão se pode
revestir (sobretudo no caso das de incapacidade), isentando-as, pelo
menos, até ao valor do I.A.S, pelo que a norma, como se encontra
redigida, viola o disposto nos art.° 1°, 13°, 18° e 26°, n.° 1 ( e 63°, n.
° 3) da C.R.P.".

CONCLUSÕES

a) Pretende o Recorrente que este Douto Tribunal revogue a sentença


de 18 de fevereiro de 2020, proferida no processo de Alteração da
Regulação das Responsabilidades Parentais n.° 4784/08.0TBGMR-
D, do Juízo de Família e Menores de Guimarães - Juiz 1, do Tribunal
Judicial da Comarca de Braga.

b) Ora, o valor do RSI fixado para o ano de 2020 é de 189,66€.

c) Nestes presentes autos, o Recorrido, aufere, como valor da pensão


de invalidez, 375,73€ e a pensão de alimentos à criança foi
judicialmente fixada em 120€ mensais.

d) Em caso de dedução do valor da pensão de alimentos de 120€ à


pensão de invalidez auferida peio Recorrido, este ficaria com o
remanescente de 255,73€, valor este que é superior ao do RSI.

e) Em caso de existir aplicabilidade do n.° 4, art.° 738.°, do Código


de Processo Civil, poderia ser penhorado ao Recorrido o valor da
pensão de alimentos.

f) O Recorrido é considerado inválido, tendo como único rendimento


a sua pensão de invalidez, sendo completamente incapaz de obter
outro tipo de rendimentos.

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:
g) Pelo que se concorda com o M.º Juiz de Direito quando decidiu na
sentença aqui já referida, o art.º 48, n° 1, al. c), do Regime Geral do
Processo Tutelar Cível em conjugação com o n.° 4 do art.0 738.°, do
Código do Processo Civil é, efetivamente, inconstitucional.

h) O art.º 48.°, n.° 1, al. c), do R.G.P.T.C, em conjugação com o n.º 4


do art.º 738, do Código do Processo Civil, viola os princípios da
dignidade humana, o da igualdade e o da proporcionalidade, como
também viola o direito à proteção pelo sistema da Segurança Social,
constantes do disposto nos artigos 1.°, 13.°, 18.°, 26°, n.° 1 e 63.°, n.
°3.

[…]

u) Tendo ficado patente aqui a inconstitucionalidade da norma do n.°


4, do art.0 48°, do R.G.P.T.C (anteriormente, art.º 189.°, n.° 1, alínea
c), do Regime Jurídico da Organização Tutelar de Menores), em
conjugação com o n.° 4 do art.º 738.°, do Código do Processo Civil.

v) Quanto à capacidade de autossobrevivência e preservação da


dignidade do cidadão comum, façamos cálculos: caso fosse
considerado dedutível e penhorável os 120,00€ da pensão de
alimentos do menor, o Recorrido ficaria com 255,73€ para as suas
despesas, não tendo outro tipo de rendimentos; esses 255,73€ teriam
de ser necessários para, não só, arrendar uma casa, fixando-se a
média mais baixa de arrendamento em Portugal em 347,13€ no
distrito da Guarda, e tendo em conta o que o Recorrido aufere de
pensão social de invalidez - 255,73€ só com o pagamento da renda, já
ficaria o Recorrido com um prejuízo mensal e valor negativo de
-91,74€; a acrescer a estes valores, terão que ser contabilizadas as
despesas com alimentação e água luz e gás, sendo que com valores
exageradamente baixos, se o Recorrido despendesse 100€ para a sua
alimentação e 50€ para pagar as contas de gás, luz e água, todos os
meses o Recorrido acabaria com um prejuízo mensal e negativo de -
241,74€.

w) Desse modo, o Recorrido viveria miseravelmente, longe dos


mínimos da dignidade humana, caso lhe fossem penhorados os
120,00€, ou se tivesse de pagar, efetivamente, a prestação.

x) O Recorrido concorda com a sentença proferida n 1a instância,


achando não só inconstitucional a norma aqui referida, como também
que deve ser considerado o I.A.S o mínimo dos mínimos da garantia
da dignidade humana, bem como que, até ao valor do I.A.S, deve ser
isento do desconto que refere o art.º 48, n.° 1, al. c), do R.G.P.T.C.

y) Mais considera que deve ser estabelecido como limite mínimo de

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:
aplicabilidade referencial para efeitos de penhorabilidade o montante
equivalente ao I.A.S, pois este deve usado como referencial de
critério para definição do valor mínimo de subsistência e
sobrevivência.

z) Destarte, a sentença de 18 de fevereiro de 2020, proferida no


âmbito do processo de Alteração da Regulação das
Responsabilidades Parentais n.° 4784/Q8.0TBGMR-D, deverá
manter-se, pois caso não se mantenha, o Recorrido verá violados os
seus princípios de dignidade humana, de igualdade, de
proporcionalidade, bem como o direito à proteção pelo sistema de
Segurança Social.»

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

a) Delimitação do objeto do recurso

6. Preliminarmente, importa analisar a conformação do objeto do presente


recurso.
Conforme resulta das transcrições e destaques supra, a dimensão
normativa cuja aplicação foi recusada pela decisão recorrida foi delimitada pelo
Tribunal a quo como resultante da articulação do estatuído no artigo 48.º, n.º 1,
alínea c), do RGPTC com as alíneas a) e b) deste mesmo dispositivo. Verifica-se
a alusão às alíneas a) e b) por meio da simples leitura da sentença em apreço (v.g,
fls. 62, verso). Todavia, embora, de facto, esteja presente essa referência, deve
assinalar-se que a mesma é feita de forma marginal, tendo o juízo de origem
acrescentado o conjunto normativo das duas alíneas mencionadas como arrimo
secundário da sua fundamentação e decisão. De resto, toda a construção lógico-
jurídica da sentença recorrida aponta somente para o conteúdo da alínea c) do n.º
1 do artigo 48.º do RGPTC (v., por exemplo, fls. 59). Comprova-se esta ideia,
também, através da indicação, de natureza claramente adicional, no teor da
fórmula textual, das alíneas a) e b) entre travessões e, em especial, pela ausência
de repercussão concreta e objetiva do disposto em tais preceitos na ratio
decidendi adotada e, por consequência, na real solução do caso concreto.
Por esse motivo, como bem apontou o Ministério Público nas suas
alegações, as alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 48.º do RGPTC não integram,
verdadeiramente, o objeto do recurso; nestes termos, assiste-lhe razão quanto à
sua delimitação, que apenas inclui, nesta parte, a alínea c) do n.º 1 do artigo 48.º
do RGPTC. Assim sendo, a dimensão normativa cuja constitucionalidade ora
cumpre apreciar reporta-se à alínea c) do n.º 1 do artigo 48.º do RGPTC,

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:
conjugada com o n.º 4 do artigo 738.º do CPC, quando interpretada no sentido de
não estabelecer nenhuma diferenciação, fundada na natureza ou no montante dos
rendimentos da pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos, e de não
estabelecer como limite mínimo de aplicabilidade a preservação de montante
equivalente ao valor do IAS. No que respeita a esta interpretação normativa não
restam dúvidas de foi convocada para a resolução do caso e de que a sua
aplicação foi recusada, com fundamento na respetiva inconstitucionalidade.
As normas em apreciação têm o seguinte teor:

RGPTC
«Artigo 48.º
Meios de tornar efetiva a prestação de alimentos
1 - Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não
satisfizer as quantias em dívida nos 10 dias seguintes ao vencimento,
observa-se o seguinte:
[…]
c) Se for pessoa que receba rendas, pensões, subsídios, comissões,
percentagens, emolumentos, gratificações, comparticipações ou
rendimentos semelhantes, a dedução é feita nessas prestações quando
tiverem de ser pagas ou creditadas, fazendo-se para tal as requisições
ou notificações necessárias e ficando os notificados na situação de
fiéis depositários.»

CPC
«Artigo 738.º
Bens parcialmente penhoráveis
1 - São impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos,
salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de
qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente,
renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a
subsistência do executado.
2 - Para efeitos de apuramento da parte líquida das prestações
referidas no número anterior, apenas são considerados os descontos
legalmente obrigatórios.
3 - A impenhorabilidade prescrita no n.º 1 tem como limite máximo o
montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de
cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha
outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo
nacional.
4 - O disposto nos números anteriores não se aplica quando o crédito
exequendo for de alimentos, caso em que é impenhorável a quantia
equivalente à totalidade da pensão social do regime não
contributivo.»

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:
b) Enquadramento normativo e definição da questão de
inconstitucionalidade

7. Além do que acaba de se expor, relevam ainda para a compreensão do


objeto do presente recurso um conjunto de outras normas, cujo teor é
indispensável para situar corretamente a problemática tratada nos autos e lograr
perceber o raciocínio que justifica o juízo de inconstitucionalidade em que o
tribunal a quo se baseia para justificar a recusa de aplicação de normas a que
procedeu.
A sentença recorrida mobiliza “duas referências”, encontradas no quadro
do sistema jurídico português, a partir das quais constrói a sua fundamentação;
são elas o regime jurídico do rendimento social de inserção (RSI) e o montante
do indexante de apoios sociais (IAS).
O rendimento social de inserção é regulado pela Lei n.º 13/2003, de 21 de
maio, alterada, por último, pela Lei n.º 100/2019, de 6 de setembro. Nos termos
dos artigos 1.º e 2.º deste diploma, o RSI consiste numa prestação pecuniária, de
natureza transitória, variável em função do rendimento e da composição do
agregado familiar do requerente e calculada por aplicação de uma escala de
equivalência ao valor do rendimento social de inserção, e num programa de
inserção por forma a assegurar às pessoas e seus agregados familiares recursos
que contribuam para a satisfação das suas necessidades mínimas e para o
favorecimento de uma progressiva inserção social, laboral e comunitária. Ainda
segundo o artigo 1.º, esta prestação integra-se no subsistema de solidariedade,
que faz parte, à luz do disposto na atual Lei de Bases da Segurança Social (Lei
n.º 4/2007, de 6 de janeiro), do sistema de proteção social de cidadania, que tem
por objetivos garantir direitos básicos dos cidadãos e a igualdade de
oportunidades, bem como promover o bem-estar e a coesão sociais (artigos 26.º,
n.º 1, 28.º, 38.º, e 41.º, n.º 1 do mencionado diploma).
Com relevância para a presente questão de inconstitucionalidade, o artigo
23.º da Lei n.º 13/2003 estabelece a impenhorabilidade da prestação recebida a
título de rendimento social de inserção, salvo em situações de dívida por
pagamentos indevidos relativos à própria prestação de rendimento social de
inserção. Além disso, nos termos do artigo 31.º, n.º 1, da Portaria n.º 257/2012,
que estabelece as normas de execução da Lei n.º 13/2003, o valor atual do
rendimento social de inserção corresponde a 43,525 % do valor do IAS, ou seja,
189,66 Euros.
Quanto ao indexante dos apoios sociais, consta o seu regime jurídico da
Lei n.º 53-B/2006, de 29 de dezembro, alterada, por último, pelo Decreto-Lei n.º
16-A/2021, de 25 de fevereiro. O artigo 1.º, n.º 1, daquele diploma define-o como
o “referencial determinante da fixação, cálculo e atualização dos apoios e outras
despesas e das receitas da administração central do Estado, das Regiões
Autónomas e das autarquias locais, qualquer que seja a sua natureza, previstos

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:
em atos legislativos ou regulamentares”. Estatui ainda o artigo 4.º da mencionada
lei que o valor do IAS deve ser atualizado anualmente, levando em consideração
distintos indicadores económicos, designadamente, o crescimento real do produto
interno bruto (PIB) e a variação média dos últimos 12 meses do índice de preços
no consumidor (IPC), sem incluir a habitação. O valor atual do referido
indexante, constante da Portaria n.º 27/2020, de 31 de janeiro, é de 438,81 Euros.

8. A partir destes dois pressupostos, afirma a decisão recorrida que é lícito


“concluir que no sistema jurídico português o legislador considera como limiar
de subsistência o montante fixado por Portaria anual como IAS, o que acaba por
ser corroborado pela impenhorabilidade do RSI, mesmo que se trate de um
crédito de alimentos”, pelo que carece de sentido “que num mesmo sistema
jurídico se considere o limiar de sobrevivência que preserva a dignidade humana
como sendo, por um lado, o de 438,81 Euros (o IAS) e, por outro, o das pensões
do regime não contributivo, 211,79 Euros, porque, independentemente da
natureza do crédito, importa aferir, quanto ao devedor, o limite abaixo do qual os
meios de subsistência não podem ser afetados, sob pena de não se respeitar a
dignidade humana – que não é variável em função da natureza da dívida”.
No caso concreto, o tribunal a quo entendeu que o montante de que o ora
recorrido passa a dispor para fazer face às suas necessidades, após o pagamento
da pensão de alimentos à sua filha menor, não respeita o mencionado princípio da
dignidade da pessoa humana, bem como as disposições constitucionais relativas
ao princípio da igualdade e não discriminação, ao regime de restrições a direitos,
liberdades e garantias, ao direito fundamental à segurança social e à proteção dos
cidadãos com deficiência e na terceira idade. Funda este juízo de
inconstitucionalidade, no essencial, na premissa segundo a qual a solução
normativa ora em questão consubstancia um tratamento desigual de pessoas em
situação semelhante, ao definir diferentes limites de monetários mínimos
disponíveis, em função da natureza da dívida (creditória ou alimentícia), da fonte
do rendimento penhorável (RSI ou pensão, ainda que por invalidez), e da posição
na relação jurídica (como credor de uma prestação social ou devedor de pensão
de alimentos).
No fundo, o tribunal a quo entendeu que se assiste a uma “discriminação
da aferição do limiar da sobrevivência (que acautele a dignidade da pessoa
humana) de forma desproporcionalmente distinta para as pessoas que sejam
devedoras de alimentos relativamente às demais, sem que haja justificação cabal
para tal – até ao montante do indexante dos apoios sociais, limite a partir do
qual ninguém é considerado pela lei como necessitado de apoios sociais”. A
solução que resulta da interpretação conjugada das normas em apreciação não só
não assegura um rendimento mínimo disponível compatível com a dignidade da
pessoa humana, como viola o princípio da igualdade e o direito fundamental à
segurança social em situação de invalidez.

c) Jurisprudência constitucional relevante

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:
9. Para a análise da problemática que se apresenta ao Tribunal
Constitucional nos presentes autos, cabe ter presente o acervo jurisprudencial
anterior. Efetivamente, este Tribunal prolatou, já, uma série de decisões
relevantes, tanto no que respeita à questão da definição do mínimo existencial,
decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana, quanto à problemática,
mais específica, da penhorabilidade de rendimentos de pensões para o
cumprimento de obrigações de alimentos.
O caminho jurisprudencial de densificação do conteúdo do direito a um
mínimo de existência condigna, iniciado ainda na década de 1990 (vejam-se os
Acórdãos n.º 232/1991, n.º 349/1991, n.º 411/1993, n.º 318/1999, n.º 62/2002 e
n.º 177/2002, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), conheceu um
episódio importante, e clarificador, no Acórdão n.º 509/2002, onde se analisam
alterações ao regime jurídico do rendimento social de inserção. Aí se reforçou a
distinção “entre o reconhecimento de um direito a não ser privado do que se
considera essencial à conservação de um rendimento indispensável a uma
existência minimamente condigna, como aconteceu nos referidos arestos, e um
direito a exigir do Estado esse mínimo de existência condigna, designadamente
através de prestações”, tendo-se afirmado que “o princípio do respeito da
dignidade humana, proclamado logo no artigo 1.º da Constituição e decorrente,
igualmente, da ideia de Estado de direito democrático, consignado no seu artigo
2.º, e ainda aflorado no artigo 63.º, n.ºs 1 e 3, da mesma CRP, que garante a
todos o direito à segurança social e comete ao sistema de segurança social a
proteção dos cidadãos em todas as situações de falta ou diminuição de meios de
subsistência ou de capacidade para o trabalho, implica o reconhecimento do
direito ou da garantia a um mínimo de subsistência condigna”. Do mesmo passo,
reconheceu-se ao legislador ampla margem conformadora na matéria, sob
condição de assegurar sempre o mínimo indispensável, com um mínimo de
eficácia jurídica.
Estas premissas argumentativas constituíram a base para a fundamentação
de muitas decisões subsequentes, tendo este Tribunal procurado desenvolver
critérios operativos que permitam definir, com alguma clareza, como, e em que
termos, é parametricamente mobilizável o direito fundamental a uma existência
condigna. Assim, no Acórdão n.º 3/2010, sustentou-se que “quando esteja em
causa a própria subsistência mínima e, portanto, a existência socialmente
condigna, o direito à segurança social adquire uma urgência e uma força
vinculante que o tornam diretamente aplicável e o subtraem, em ampla medida,
ao poder de legislar”, explicando-se, porém, paralelamente, que essa seria uma
situação, em princípio, excecional.
Nos Acórdãos n.º 187/2013 e n.º 413/2014, tal linha argumentativa foi
retomada a propósito de normas que previam cortes nos subsídios de doença e de
desemprego. Assim, afirmou-se no primeiro destes arestos que “os limites
mínimos que o legislador fixa para essas prestações compensatórias, ainda que
não tenham por referência os critérios de fixação do salário mínimo nacional,

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não deixam de constituir a expressão de um mínimo de existência socialmente
adequado”, razão pela qual se decidiu pela inconstitucionalidade das disposições
normativas em causa, posto que estas não salvaguardavam “a possibilidade de a
redução do montante que resulta da sua aplicação vir a determinar o pagamento
de prestações inferiores àquele limite mínimo, não garantindo o grau de
concretização do direito que deveria entender-se como correspondendo, na
própria perspetiva do legislador, ao mínimo de sobrevivência de que o
beneficiário não pode ser privado”.

Nestes termos, resultam da jurisprudência constitucional sobre esta


temática várias premissas e critérios decisórios a levar em consideração nos
presentes autos, a saber:
i) Este Tribunal reconhece o direito fundamental a uma existência
condigna, fundado no respeito pela dignidade humana, constante dos artigos 1.º e
2.º da CRP, e no direito fundamental à segurança social, consagrado no artigo
63.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição;
ii) Tal direito combina, do ponto de vista estrutural, uma dimensão
negativa – que consiste no direito a não ser privado do que se considera essencial
à conservação de um rendimento indispensável a uma existência minimamente
condigna -, com uma dimensão positiva ou prestacional – correspondente ao
direito a exigir do Estado esse mínimo de existência condigna, designadamente
através de prestações; ou seja, o direito fundamental a uma existência condigna
inclui, incontornavelmente, o direito a dispor de uma quantia pecuniária mínima,
adequada a prover às necessidades básicas do ser humano;
iii) Quando esteja verdadeiramente em causa uma existência
socialmente condigna, em termos próximos da subsistência, o direito à segurança
social adquire uma urgência e uma força vinculante que o tornam diretamente
aplicável, reduzindo a margem de conformação do legislador;
iv) Contudo, e em regra, é muito significativa a amplitude da
liberdade conformadora do legislador, nesta matéria, no que respeita à definição
dos tipos de prestações sociais e respetivos regimes jurídicos, designadamente,
quanto às condições de atribuição e valor quantitativo.

10. Além das decisões acima assinaladas, cabe notar que o Tribunal
Constitucional conta com um conjunto relevante de decisões especificamente
relacionadas com a conformidade constitucional de distintas regras relativas à
penhorabilidade de rendimentos decorrentes do recebimento de pensões sociais
para o cumprimento de obrigações de alimentos; de facto, o tema não é novo na
jurisprudência do Tribunal Constitucional, destacando-se, a este respeito, os
Acórdãos n.º 306/2005, n.º 312/2007 e n.º 394/2014.
No Acórdão n.º 306/2005, foi apreciada a recusa de aplicação da norma
constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 189.º do (ora revogado) regime jurídico
da Organização Tutelar de Menores (aprovada pelo Decreto-Lei n.º 314/78, de 27
de outubro). Estava em causa a possibilidade de dedução de uma parcela da

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pensão social de invalidez de um progenitor, para satisfação da prestação de
alimentos devida a filhos menores. O tribunal a quo entendera, então, que a
pensão social recebida pelo requerido era de tal forma escassa, que a adjudicação
do necessário ao pagamento das prestações de alimentos vincendas colocaria em
iminente risco a sua subsistência, o que violaria a dignidade da pessoa humana,
tutelada no artigo 1.º da CRP.
O Tribunal Constitucional explicou, no Acórdão mencionado, que «o
dever de alimentos a cargo dos progenitores, um dos componentes em que se
desdobra o dever de assistência dos pais para com os filhos menores, não pode
reduzir-se a uma mera obrigação pecuniária, quando se trata de ponderação de
constitucionalidade dos meios ordenados a tornar efetivo o seu cumprimento.
Ainda que se conceba o vínculo de alimentos como estruturalmente obrigacional,
a natureza familiar (a sua génese e a sua função no âmbito da relação de família)
marca o seu regime em múltiplos aspetos». Fundando-se no caminho
argumentativo percorrido nos Acórdãos n.º 177/2002 e 96/2004 (cujo objeto
eram normas relativas ao instituto da penhora), o Acórdão n.º 306/2005 afirmou,
porém, que «nesta situação não bastará, porque não seria adequado à repartição
dos “custos do conflito” tal como ele, no plano constitucionalmente relevante, se
apresenta perante a norma em apreciação, proceder à simples transposição da
ponderação que foi feita e sumariamente se expôs quando estava em causa a
satisfação de uma dívida indiferenciada. E não é adequado porque o elemento
constitucional que aí foi decisivo (o princípio da dignidade da pessoa humana)
não pode aqui ser lançado a um só prato da balança, uma vez que a insatisfação
do direito a alimentos atinge diretamente as condições de vida do alimentando e,
ao menos no caso das crianças, comporta o risco de pôr em causa, sem que o
titular possa autonomamente procurar remédio, se não o próprio direito à vida,
pelo menos o direito a uma vida digna». Por esse motivo, o aresto afastou a
incidência do direito de propriedade privada, previsto no artigo 62.º da CRP,
como critério de solução do caso, dado que os direitos de crédito em geral não
equivalem à posição dos filhos, credores de alimentos.
Além disso, este Tribunal afastou, no caso, o critério de comparação com
o salário mínimo nacional, anteriormente mobilizado em ponderações de bens
relativas a penhora, por entender que não era o adequado «nesta situação em que
(na medida inversa da proteção ao devedor) também o princípio da dignidade da
pessoa do filho pode ser posto em causa pelo incumprimento, por parte do
progenitor, de uma obrigação integrante de um dever fundamental para com
aquele. Não é critério que neste domínio possa ser eleito, como regra geral, pelas
consequências incomportáveis no plano social e pelo significativo esvaziamento
do conteúdo do direito-dever consagrado no n.º 5 do artigo 36.º da Constituição
que implicaria. Basta pensar na hipótese de o progenitor que tem a guarda do
filho também não auferir rendimento superior ao salário mínimo nacional ou na
sua generalização ao universo das famílias em que nenhum dos pais aufere mais
do que o salário mínimo nacional».
Assim, e asseverando que «até que as necessidades básicas das crianças

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sejam satisfeitas, os pais não devem reter mais rendimento do que o requerido
para providenciar às suas necessidades de autossobrevivência», o Tribunal
identificou outro critério para o problema jusconstitucional em apreço, com vista
a preservar uma sobrevivência minimamente condigna à luz da «dimensão
negativa da garantia do mínimo de existência, isto é o reconhecimento de um
direito a não ser privado do que se considera essencial à conservação de um
rendimento indispensável», ao mesmo tempo em que recordou a potencial
intervenção do Estado, substituindo o pagamento devido pelo progenitor, em
virtude do art. 69.º, da CRP, através do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos
a Menores. Tal critério de limite de impenhorabilidade foi o montante do
rendimento social de inserção, uma vez que ele correspondia, na altura, de
acordo com a atuação do legislador, à garantia do mínimo de existência.
Examinando os valores vigentes à época, o Tribunal concluiu que o valor
de referência aplicável e suscetível de assegurar o mínimo necessário era de
146,00 euros. Ora, a quantia requerida a título de pagamento de alimentos
implicaria, naquele caso concreto, que o valor restante disponível – subtraindo-se
da pensão recebida o valor em causa – para o devedor arcar com os seus custos
de vida essenciais colocaria em risco a sua subsistência. Assim, o Tribunal
decidiu julgar inconstitucional a norma em questão, no sentido de permitir a
dedução, para satisfação de prestação alimentar a filho menor, de uma parcela da
pensão social de invalidez do progenitor que prive este do rendimento necessário
para satisfazer as suas necessidades essenciais.

11. Já no Acórdão n.º 312/2007, perante a mesma norma avaliada no


Acórdão n.º 306/2005, o Tribunal Constitucional chegou à conclusão oposta,
chegando a um juízo de não inconstitucionalidade, tendo em mente as específicas
premissas do caso decidendo. Na sua fundamentação, esta decisão remeteu para a
ideia de que o salário mínimo nacional não é a referência adequada para limitar o
pagamento da prestação de alimentos porque este «montante é calculado tendo
em conta as necessidades da família do executado, família cujas necessidades
compreendem a própria prestação de alimentos no caso em análise». Ou seja, nos
termos desta linha argumentativa, o que o salário mínimo acautela é a
subsistência familiar – mais ampla – e não a individual – mais restrita –, razão
pela qual ele não deve operar como patamar da existência pessoal condigna.
Em vez disso, o Tribunal entendeu, de novo, que a parcela de rendimento
intocável deve ser aferida com base no rendimento social de inserção. Dado que,
naquele caso, o valor restante disponível, depois de descontada a prestação de
alimentos, para o progenitor atender às suas necessidades essenciais (em
concreto, 301,68 euros) superava o valor do RSI, não se deu por demonstrada a
inconstitucionalidade da norma.
Finalmente, no Acórdão n.º 394/2014, o Tribunal Constitucional voltou a
apreciar uma recusa de aplicação da norma extraída do artigo 189º, n.º 1, alínea
c), do antigo Regime Jurídico da Organização Tutelar de Menores, quando
interpretada no sentido de não se ter em consideração qualquer base mínima da

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:
pensão social que possa ser afetada ao pagamento da prestação de alimentos a
filho menor.
Na senda dos acórdãos anteriores, o Tribunal partiu do pressuposto de que
o progenitor obrigado a alimentos não pode ser privado de qualquer
quantitativo que não exceda o valor do rendimento social de inserção e destacou
a importância do mecanismo do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a
Menores como forma de materializar o direito fundamental à existência condigna
do filho menor. Consequentemente, o Tribunal concluiu que, ao não ter em
consideração qualquer base mínima da pensão social que possa ser afetada ao
pagamento da prestação alimentar a filho menor, pondo em causa a existência
condigna do progenitor, a norma questionada ofendia o princípio da dignidade da
pessoa humana, consagrada no artigo 1.º da CRP.

Em síntese, neste âmbito, a posição constante e reiterada da


jurisprudência do Tribunal Constitucional tem sido no sentido de aferir se o
montante de rendimento ao dispor do devedor de alimentos, depois de calculado
o desconto da prestação devida, é suficiente para atender à sua existência
condigna, sendo usado como referência o valor atualizado do RSI. Nas situações
em que o quantum fique aquém de tal limite – legislativamente definido –,
constata-se a violação da Constituição; ao passo que, nas situações em que tal
limite seja respeitado, não se verifica ofensa aos parâmetros constitucionais.

d) Mérito

12. Analisada a jurisprudência do Tribunal Constitucional relevante para a


resolução da presente problemática, passemos à apreciação do mérito do recurso.
Para tal, cabe, antes de mais, densificar o teor dos parâmetros
constitucionais invocados, a fim de confirmar ou infirmar a compatibilidade em
relação a eles da norma atacada, resultante da conjugação do artigo 48.º, n.º 1, al.
c), do RGPTC e do artigo 738.º, n.º 4, do CPC, quando interpretada no sentido de
não estabelecer nenhuma diferenciação, fundada na natureza ou no montante dos
rendimentos da pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos, e de não
estabelecer como limite mínimo de aplicabilidade a preservação de montante
equivalente ao valor do IAS.
Como acima se explicou, o tribunal a quo mobilizou, para fundamentar a
recusa de aplicação de norma que levou a cabo, o princípio da dignidade da
pessoa humana (artigo 1.º da CRP), a igualdade em razão da situação económica
e da condição social (artigo 13.º, n.º 2, da CRP) e o direito à segurança social dos
cidadãos, nas situações de invalidez e de falta ou diminuição de meios de
subsistência ou de capacidade para o trabalho (artigo 63.º, n.º 3, da CRP). Da
articulação de tais normas constitucionais, extraiu aquele tribunal um comando
constitucional que impõe que seja assegurado, a todos, e tendo em consideração
os contornos específicos das circunstâncias da vida de cada um, um mínimo de
condições materiais que sustentem uma vida condigna. Mais concretamente, do

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:
que se trata, em face do objeto sob análise, é do direito a não ser privado de tais
condições, ou seja, um direito estruturalmente defensivo, implicando uma
abstenção por parte do Estado. In casu, esta dimensão negativa tem a
particularidade de estar em causa numa situação de facto em que o mesmo
direito, na sua dimensão positiva, ou prestacional, é também assegurado pelo
próprio Estado.
Efetivamente, no contexto do presente caso, e como decorre da
jurisprudência constitucional acima explanada, «apesar de estruturalmente
diversas, ambas as dimensões integram o conteúdo de um único direito
fundamental, axiologicamente incindível, a um mínimo de existência condigna,
com base no qual se pode afirmar, quer o dever estatal de não suprimir os meios
materiais necessários a uma existência condigna, quer o dever estatal de suprir a
carência de tais meios aí onde ela se verifique» (Gonçalo de Almeida Ribeiro,
Controlo judicial das restrições aos direitos sociais, Revista Eletrónica de
Direito Público, vol. 7, n.º 3, dezembro de 2020). Estando cumprida a dimensão
positiva do direito, questiona-se aqui em que termos pode esta ser reduzida – isto
é, cabe-nos determinar qual o limiar de atuação da dimensão negativa do direito
a uma existência condigna, que impõe ao Estado uma obrigação
jusconstitucional de abstenção de qualquer atuação passível de colocar a pessoa
em situação de carência dos meios indispensáveis à sua existência em condições
de dignidade.
Não é, naturalmente, fácil encontrar o sentido e o alcance concreto dessa
garantia dada pela Constituição da República Portuguesa; isto é, tendo por certo
que o direito a uma existência humana decente e provida encontra abrigo na Lei
Fundamental – conforme acima se procurou demonstrar com recurso à
jurisprudência constitucional –, a determinação concreta do limiar mínimo de
recursos materiais a partir do qual deve atuar a dimensão negativa, ou de
abstenção, já mencionada, não é uma operação despida de dúvidas, mais ainda
quando levada a cabo em sede jurisprudencial. Como vimos, a orientação
reiterada por este Tribunal tem sido no sentido de não fazer coincidir, em termos
absolutos, tal aferição com a garantia de graus mínimos de acesso - nas
comunidades contemporâneas, em geral, e na sociedade portuguesa, em
particular - a bens essenciais, corporizáveis (como a alimentação, habitação,
água, saneamento, ou energia), ou a bens (públicos) essenciais não
(necessariamente) corporizáveis (como a educação, cuidados de saúde, cultura),
na medida em que a sua fruição universal e igualitária deverá resultar do gozo
efetivo dos direitos fundamentais consagrados na CRP. No fundo, isso
corresponderia a fazer equivaler o conceito à ideia de mínimo social, a qual
abrange o direito de «todos os que, por si sós, por incapacidades próprias ou
razões circunstanciais, não disponham do necessário a uma sobrevivência
condigna» a aceder a tal, reconduzindo-se «a esse mínimo de prestações
materiais e de estruturação de estabelecimentos e serviços públicos essenciais [a]
todo o alcance jusfundamental, positivo e negativo, dos direitos sociais» (Jorge
Reis Novais, Direitos sociais: teoria jurídica dos direitos sociais enquanto

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direitos fundamentais, Coimbra, Coimbra Editora, 2010, p. 194).

13. Nestes termos, no plano doutrinal, têm sido têm sido apontados
arrimos específicos para o cotejo de uma igual dignidade social, coletivamente
considerada. Assim, sendo a dignidade humana «a trave mestra da sustentação e
da legitimação da República», ela ganha «um valor próprio e uma dimensão
normativa específicos», englobando todos os direitos fundamentais centrados nas
pessoas, sob o princípio da igualdade, que proíbe «qualquer diferenciação ou
qualquer pesagem» entre a dignidade dos indivíduos, de forma que o «projeto
espiritual» de cada um seja realizável. Trata-se de um bem autónomo, que
justifica o sistema de democracia política, social, económica e cultural na
construção de uma sociedade livre, justa e fraterna. Neste enquadramento, a
ordem constitucional consagra a solidariedade e a corresponsabilidade de todos
os membros da comunidade, «libertando as pessoas do medo da existência,
garantindo-lhe uma dimensão social-existencial minimamente digna». Cria-se,
assim, «uma sociedade justa, em termos de justiça distributiva e retributiva» (J.J.
Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa
Anotada, vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pp. 198 e seguintes).
Por outras palavras, «uma sociedade que respeita a dignidade da pessoa
humana é aquela em que as pessoas são reconhecidas como polos de liberdade,
são tratadas com justiça e apoiadas com solidariedade». Neste raciocínio, importa
sublinhar que «a dignidade da pessoa é dignidade da pessoa concreta, na sua vida
real e quotidiana; não é de um ser ideal e abstrato». Nesse sentido, ela é pessoal e
universal, exigindo «respeito pela autonomia, mas também preocupação em face
da vulnerabilidade». Esta preocupação dirige-se, muito especialmente, àqueles
«cuja dignidade mais facilmente poderá ser posta em causa» e, também por isso,
«exige condições económicas de vida capazes de assegurar a liberdade e bem-
estar», donde decorrem a atualização do salário mínimo nacional, as garantias
especiais do salário, a proteção pela segurança social em diversas circunstâncias,
etc.». Desse contexto, emerge o direito a uma existência condigna (Jorge
Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, vol. I, Coimbra,
2010, pp. 61 e seguintes).
Adicionalmente, convém distinguir as ideias de existência condigna (nas
suas variadas formulações terminológicas) e de subsistência vital. Relativamente
ao mínimo de existência digna, conforme se demonstrou supra, corresponde este
ao conceito de satisfação das necessidades individuais essenciais por meio de
um quantum financeiro recebido pelo visado. O conteúdo indisponível de tal
quantum tende a ser equiparado, como se explicou, segundo jurisprudência
consolidada, ao valor do RSI atualizado, pois este, entende-se, é o valor definido
pelo legislador democrático como o indispensável para a pessoa existir com
dignidade, num patamar mínimo.
De modo distinto, o conceito doutrinal de subsistência vital dispensa a
qualificação condigna, uma vez que o seu âmbito de proteção é mais reduzido do
que o anterior, isto é, a subsistência vital cobre, apenas, «uma proteção contra as

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ameaças à sobrevivência», tratando-se, portanto, da manifestação da mera
«existência fisiológica» (Jorge Reis Novais, Direitos sociais: teoria jurídica dos
direitos sociais enquanto direitos fundamentais, Coimbra, Coimbra Editora,
2010, pp. 195 e 196).
Importa, pois, realçar que a densificação do standard da dignidade
humana inscrita na Constituição da República Portuguesa, em virtude da
jurisprudência do Tribunal Constitucional, se afasta, claramente, de uma ideia
minimalista de salvaguarda de uma mera existência fisiológica. A CRP protege a
dignidade e, em consequência, a possibilidade de ser, condignamente, para lá do
simples existir, no plano físico. De facto, a dignidade humana que a Constituição
da República Portuguesa tutela compreende um conjunto de condições materiais
que sustentem uma vida digna, formado por todos e cada um dos direitos
fundamentais nela consagrados. Ou seja, de uma perspetiva sistémica, a vida
condigna de que fala a CRP não se resume à atribuição de prestações sociais
materiais e ao acesso a serviços públicos; a vida condigna protegida pela
Constituição inclui, por exemplo, os direitos de desenvolvimento da
personalidade, de participação política, de propriedade ou à vida familiar. A
dignidade consagrada na Constituição significa, pois, a realização de uma vida
decente e provida, em todas as esferas da existência pessoal e comunitária do ser
humano. É, pois, a partir dessa ideia, mais ampla, de dignidade, que devem ser
entendidos os standards jusconstitucionais que dela derivem, como é o caso do
mínimo de existência condigna, que nos ocupa no caso concreto.

14. Nesta senda, não pode negar-se que a densificação do conceito de


mínimo de existência digna a partir de um rendimento equivalente ao valor do
RSI – que assim se perspetiva como o adequado para cumprimento da garantia
constitucional da realização de uma vida digna - levanta perplexidades. Se, por
um lado, nada na Constituição permite afirmar indubitavelmente que deva ser
este o valor monetário referencial, vinculativo para o intérprete constitucional, a
verdade é que, por outro lado, para concretizar o sentido e o alcance da garantia
constitucional em questão, é imperioso levar em consideração que a CRP
determina que a dignidade humana deve ser o fundamento e objetivo último da
construção de uma sociedade em que as pessoas tenham condições económicas
que assegurem a sua liberdade e bem-estar, vivendo, do ponto de vista social e
existencial, sem receio de privações materiais essenciais.
Nestes termos, e retomando a análise do objeto do presente recurso,
revela-se difícil encontrar elementos de natureza jusconstitucional que imponham
um limite mínimo quantitativamente determinado – definido como o necessário
para levar uma vida decente e provida - como manifestação da dimensão
defensiva da dignidade. Não obstante, na lógica de internormatividade e de
integração progressiva dos níveis mais elevados de proteção que marca a
jusfundamentalidade da CRP, vêm em apoio da densificação material do
standard de realização de uma vida decente e provida as previsões da Carta
Social Europeia, no âmbito do Conselho da Europa, tal como interpretadas pelo

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Comité Europeu dos Direitos Sociais. Recorde-se, em particular, a decisão de
mérito deste Comité, de 7 de dezembro de 2012, em que se considerou que as
limitações e restrições de garantias (designadamente os cortes financeiros nos
valores percebidos a título de pensões), no domínio da segurança social, não
podem colocar os membros de uma sociedade numa situação de perda de
proteção efetiva contra riscos económicos e sociais (Reclamação n.º 77/2012,
Panhellenic Federation of Public Service Pensioners (POPS) v. Greece, pontos
63 e seguintes, disponível em: http://hudoc.esc.coe.int/eng/?i=cc-77-2012-
dmerits-em). Tal posição foi depois reiterada nas decisões das Reclamações n.º
78/2012, Pensioners’ Union of the Athens-Piraeus Electric Railways (I.S.A.P.) v.
Greece, n.º 79/2012, Panhellenic Federation of pensioners of the public
electricity corporation (POS-DEI) v. Greece e n.º 80/2012, Pensioner’s Union of
the Agricultural Bank of Greece (ATE) v. Greece. Nestas ocasiões, o Comité
recordou decisões anteriores, reafirmando que decorre dos standards impostos
pela Carta que o rendimento de determinadas categorias de sujeitos vulneráveis
não deve ser inferior ao limiar de pobreza, calculado segundo os critérios do
Eurostat (que situam, hoje, tal valor em 60 % da mediana nacional do rendimento
disponível equivalente, como pode comprovar-se em
https://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php?
title=Archive:Income_poverty_statistics/pt&oldid=293776).

15. Recorde-se, neste ponto, que o objeto do presente recurso é uma


norma cuja recusa de aplicação, por parte do tribunal a quo, assenta em duas
premissas essenciais: i) no facto de não estabelecer nenhuma diferenciação,
fundada na natureza ou no montante dos rendimentos da pessoa judicialmente
obrigada a prestar alimentos; ii) no facto de não estabelecer como limite mínimo
de aplicabilidade a preservação de montante equivalente ao valor do IAS. Nestes
termos, a desconformidade constitucional da norma questionada dever-se-ia, por
um lado, à circunstância de esta não tomar em consideração a origem dos
rendimentos do prestador de alimentos (não tratando de forma mais favorável os
rendimentos provindos de pensões sociais), nem o seu montante; e, por outro
lado, ao afastamento do valor do IAS como montante mínimo cuja salvaguarda é
necessária para assegurar o mínimo de existência condigna.
Tal raciocínio incorre em dois equívocos. Em primeiro lugar, não se vê
por que razão seria constitucionalmente exigível que o legislador diferenciasse as
regras jurídicas de determinação da prestação de alimentos a filho menor em
razão da natureza ou do montante dos rendimentos do progenitor. Toda a
teleologia da obrigação de alimentos deve, na verdade, centrar-se na criança,
cujas necessidades vitais os pais devem prover. Esta obrigação corresponde ao
cumprimento de um dever jurídico autónomo, como este Tribunal teve ocasião
de explicar no citado Acórdão n.º 306/2005: «Mesmo quando já tenha sido objeto
de acertamento judicial, isto é, quando corporizado, para o pai que não tem a
guarda, numa condenação a uma prestação pecuniária de montante e data de
vencimento determinados, do lado do progenitor inadimplente não está somente

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em causa satisfazer uma dívida, mas cumprir um dever que surge
constitucionalmente autonomizado como dever fundamental e de cujo feixe de
relações a prestação de alimentos é o elemento primordial. É o que diretamente
resulta de no n.º 5 do artigo 36.º da Constituição se dispor que os pais têm o
direito e o dever de educação e manutenção dos filhos.» Nestes termos, a origem
do rendimento dos pais não se afigura como elemento comparativo adequado a
estabelecer quaisquer distinções, posto que a natureza e a força vinculante do
dever fundamental em causa em nada são abaladas pelo facto de tais rendimentos
provirem de pensões, do trabalho, ou de outra fonte. Os pais de filhos menores
têm, face ao disposto na CRP, o dever de alocar parte desses rendimentos às suas
manutenção e educação, possibilitando-lhes um crescimento sadio e equilibrado,
e assegurando condições para que as crianças tenham uma existência digna,
atentas as especificidades e a vulnerabilidade inerente à sua condição.
Já no que respeita ao montante do rendimento dos progenitores, é verdade
que este poderia ser mobilizado como elemento de distinção entre um par
comparativo adequado. De facto, resulta evidente que o grau de sacrifício
imposto pelo pagamento de uma pensão de alimentos é tanto maior quanto menor
o rendimento disponível a priori (isto é, antes do pagamento da pensão) do
devedor, o que poderia fundamentar a adoção de regras jurídicas distintas, em
determinadas situações. Contudo, não se crê que este argumento possa atuar, no
caso, como critério valorativo autónomo, nem o tribunal a quo o fez,
efetivamente. A consideração do montante dos rendimentos do devedor de
alimentos é, pois, chamada à colação na consideração das imposições decorrentes
da dimensão defensiva do direito fundamental a um mínimo de existência
condigna, nos termos acima explicados. Ou seja, decorre, sem dúvidas, da
fundamentação exposta, que a retenção, a qualquer título, pelo Estado, de
rendimentos abaixo de um determinado limiar, em termos tais que não deixe à
pessoa meios disponíveis passíveis de lhe assegurar um mínimo de existência
com dignidade, viola o princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no
artigo 1.º da CRP. Por isso, resta verificar, qual standard materialmente
determinado, isto é, o valor específico constitucionalmente imposto, para que se
dê por respeitado o direito de não ser privado de condições materiais para uma
vida decente e provida.

16. Ora, resulta evidente que a Constituição não contém uma norma que
obrigue à fixação de um valor específico de referência a título de respeito pela
dignidade humana, cabendo ao legislador, na sua legítima margem de
conformação, encontrar o melhor caminho para a prover. Assim, neste caso, a
vinculação, quer do legislador, quer do intérprete constitucional, é ao parâmetro
substancial da dignidade, especificamente considerada, ou, em termos mais
rigorosos, ao standard de uma vida decente e provida. A determinação
quantitativa do mínimo monetário necessário e suficiente para tal, tanto na
dimensão negativa, quanto na dimensão positiva desse padrão jusfundamental,
não pode deixar de depender da intervenção do legislador, na medida em que lhe

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compete avaliar elementos concretos, como custos de alimentação, habitação,
saúde, educação, etc., que são variáveis de acordo com os ciclos económicos, e a
possibilidade de prestação, por parte do Estado, desses direitos-deveres
constitucionais.
Como se explicou, o Tribunal Constitucional tem tendencialmente feito
equivaler este valor mínimo necessário a uma existência condigna ao valor do
RSI, por ser essa a quantia que o Estado se compromete a assegurar a todos, do
ponto de vista prestacional, em caso de ausência de meios de subsistência. No
fundo, a lógica de tal equivalência é que o Estado não pode tirar mais do que o
mínimo que se propõe a dar a qualquer cidadão em situação de absoluta carência.
Contudo, na operação interpretativa efetuada pelo tribunal a quo rejeitou-se este
valor, substituindo-o pelo do IAS.
Ora, a verdade é que a escolha do valor do IAS por parte do intérprete se
afigura como arbitrária; como já se demonstrou, este indicador é definido como
referencial de cálculo não só de apoios sociais, como de outras despesas e
receitas da administração pública, não se afigurando clara, nem justificada, a sua
preferência como critério valorativo do mínimo de existência condigna, em
relação ao RSI. São compreensíveis as preocupações daquele tribunal quanto às
muitas dúvidas que se podem levantar sobre se o valor atualmente atribuído ao
RSI é, ainda hoje, adequado como garantia institucional da dignidade humana.
De facto, tal valor afasta-se significativamente do limiar de pobreza, critério
erigido pelo Comité Europeu dos Direitos Sociais como standard de
cumprimento dos deveres estaduais consagrados na Carta Social Europeia e que,
de acordo com os valores disponibilizados pelo INE e Eurostat, se situa, na
atualidade, aproximadamente em torno dos 540 euros mensais (e era, na
avaliação anterior, de cerca de 501 euros mensais). Este limite, aliás utilizado
pelo legislador democrático para a definição da condição de recursos para
atribuição de determinadas prestações sociais, como os Apoios Extraordinários
ao Rendimento dos Trabalhadores (veja-se o disposto no artigo 156.º da Lei do
Orçamento de Estado para 2021, Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro), teria
sido uma escolha mais adequada por parte do tribunal a quo, como critério
alternativo ao valor do RSI na determinação quantitativa do mínimo de existência
condigna.
Contudo, a afirmação, em sede jurisprudencial, da prevalência do valor
correspondente ao limiar de pobreza, em detrimento do valor do rendimento
social de inserção, nos termos em que cabe fazê-lo, no caso concreto, afigura-se
muito problemática, pese embora tudo o que até agora se disse. Efetivamente, e
desde logo, a determinação do limiar de pobreza exige a consideração de todas as
medidas e apoios sociais (monetários e sob forma de prestações materiais)
assegurados pelo Estado à pessoa, e do seu efeito cumulativo no agravamento ou
melhoramento das suas condições de vida.
Além disso, e por outro lado, não podemos esquecer que o problema
concretamente em causa é o da possibilidade de utilização de uma parcela do
rendimento de uma pensão de invalidez para pagamento da prestação de

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alimentos devida a filho menor; ou seja, da mobilização do rendimento
disponível do devedor para fazer face a uma despesa que sempre teria de
assegurar caso tivesse a menor a seu cargo. É, aliás, o que acontece, no caso que
nos ocupa, com a mãe da menor, cujos rendimentos, igualmente escassos e
igualmente provenientes de pensão de invalidez, têm que ser usados, em parcela
muito significativa, para fazer face às despesas com a criança. Não se vê por que
razão deveria ser judicialmente imposto um limite mínimo assegurado ao
devedor de alimentos que não é possível assegurar, da mesma maneira, ao
progenitor que detém a guarda do menor em causa, a não ser por via da
intervenção do legislador democrático.
Assim, a verdade é que o critério interpretativo disponível para a
jurisdição constitucional, simultaneamente respeitador da margem de liberdade
de conformação do legislador, e garantidor de igualdade e uniformidade na
determinação do standard mínimo de existência condigna, não pode deixar de
reconduzir-se, num caso como este, ao valor do RSI. Ou seja, mesmo que pareça
imperativo que o legislador reflita sobre a suficiência dos valores em causa para
o cumprimento do comando constitucional assegurar uma vida com dignidade a
todos os cidadãos, a norma objeto do presente recurso não habilita um juízo de
censura constitucional, porquanto os níveis e a natureza dos rendimentos
recebidos pela pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não têm, por
força das normas da Constituição apreciadas, de se sujeitar, para efeitos de
penhorabilidade, ao montante equivalente ao IAS. Têm, sim, de assegurar a
manutenção na disponibilidade do devedor de alimentos de um montante
adequado a densificar o direito fundamental a um mínimo de existência
condigna, em termos tais que não se gerem, por via jurisprudencial, contradições
e antinomias, nem se limite excessivamente a margem de atuação do legislador.
Ora, uma ponderação desse tipo, com o alcance que implica, não tem espaço,
neste recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, para além do limite
mínimo definido a partir do valor do RSI.
Pelo exposto, não é inconstitucional a norma da alínea c) do n.º 1 do
artigo 48° do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (R.G.P.T.C.) em
conjugação com o n.º 4 do artigo 738.º do Código do Processo Civil, quando
interpretada no sentido de não estabelecer nenhuma diferenciação, fundada na
natureza ou no montante dos rendimentos da pessoa judicialmente obrigada a
prestar alimentos, e de não estabelecer como limite mínimo de aplicabilidade a
preservação de montante equivalente ao valor do IAS.

III. Decisão

Pelos fundamentos acima expostos, o Tribunal Constitucional decide:


a) Não julgar inconstitucional a norma resultante da alínea c) do n.º
1 do artigo 48.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, em conjugação com
o n.º 4 do artigo 738.º do Código do Processo Civil, quando interpretada no
sentido de não estabelecer nenhuma diferenciação, fundada na natureza ou no

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montante dos rendimentos da pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos,
e de não estabelecer como limite mínimo de aplicabilidade a preservação de
montante equivalente ao valor do IAS.
b) Conceder provimento ao recurso interposto e determinar a
reforma da decisão recorrida, em consonância com o presente juízo negativo de
inconstitucionalidade.

Sem custas.

Lisboa, 20 de janeiro de 2022 - Mariana Canotilho - António José da Ascensão


Ramos - José Eduardo Figueiredo Dias - Assunção Raimundo - Pedro Machete

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