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Artigo recebido: 23/1/2023

RELATO DE EXPERIÊNCIA Aprovado: 22/2/2023

O papel da ludicidade como fator estruturante


da identidade humana/individualidade
The role of playfulness as a structuring factor of
human identity/individuality
Beatriz Picolo Gimenes1
DOI: 10.51207/2179-4057.20230011

Resumo Summary
Este artigo reflexiona sobre a “ludicidade”, seus significados This article presents “ludicity/play-playthings”, its meanings
e manifestações, especialmente como “criatividade latente” e and manifestations, especially as “latent creativity” and
função estruturante na constituição da “identidade humana”, structuring function in the constitution of “human identity/
a partir do desenvolvimento da criança. As referências são individuality”, from child development The references are in
em pesquisas pela Neurociência e Psicomotricidade com os research by Neuroscience and Psychomotricity with the sys-
paradigmas sistêmicos – corpo e mente integrados. Decorre temic paradigms – integrated body and mind. It stems from
da experiência pessoal no brincar em brinquedotecas e da personal experience in playing in toy libraries and from
prática docente/clínica na Psicopedagogia e Psicologia. teaching/clinical practice in Psychopedagogy/Psychology.
Unitermos: Ludicidade/Jogos-Brinquedos. Criatividade. Keywords: Playfulness/Play and Playthings. Creativity.
Identidade Humana/Individualidade. Human Identity/Individuality.

Introdução A ludicidade conduz o indivíduo a ações que


Ludicidade, do Latim – ludus, significa qualquer almejam a criatividade ao longo da vida (Gimenes,
exercício que favoreça a imaginação e fantasia; brin- 2017, 2020a, 2021a, 2021b; Winnicott, 1975). Acostu-
cadeira, jogo... Filosoficamente, é um conceito visto mando-se com atos movidos por dedicação, cuidado,
como “fenômeno humano”, expresso pelo brincar beleza e intenção nobre – por amor despende-se
geralmente, e considerado uma faculdade herdada, mais tempo, mesmo que a finalidade seja algo
natural, espontânea e autotélica – capacidade inata simples. Havendo esmero no hábito de construir
ao indivíduo e com o fim em si mesmo. Para outros, algo ludicamente para alguém, o primeiro que se
é a manifestação comum da “dinâmica infantil”, em beneficia é o próprio autor. Mesmo em uma breve
que o ser busca e apropria-se de estímulos, intera- mensagem criativa, o emissor é que mais aprende,
gindo à sua volta com interesse e/ou bem-estar, E, diferindo-se daquele que privilegia a objetividade
mais amadurecida, tem a tomada de consciência de da razão e minimiza a emoção.
como melhor agir (Gimenes, 1996, 2000a; Huizinga, Outro fator é sobre a generalização a respeito de
1990; Vygotsky, 1991). pensar que o brincar/brincadeira seja geralmente

Trabalho realizado no Centro Universitário – Fundação Santo André (FSA), Santo André, SP, Brasil.
Conflito de interesses: A autora declara não haver.
1. Beatriz Picolo Gimenes – Doutora em Ciências (UNIFESP) e Mestre em Psicologia da Saúde (UMESP); Matemática, Psicóloga Clínica e Institucional,
Gestalt e Neo-Reich, Neuropsicomotricista e Arteterapeuta; Psicopedagoga (UMESP/ titular ABPp); Psicoterapeuta Familiar em Hospital (Psiquiatria/
EPM-UNIFESP); Terapeuta em Visão Subnormal e Reabilitação Visual (Oftalmologia/EPM-UNIFESP); e em TDAH-Dislexia (FMABC); Membro
Presidente do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Brinquedotecas (ABBri) e International Toy Library Association (ITLA) Member,
São Bernardo do Campo, SP, Brasil.

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um ato comum com um brinquedo – objeto lúdico e, sim, simplesmente, como um “fenômeno humano”!
concreto. Para muitos desenvolvimentistas, prin- Na abordagem da Fenomenologia (do Existencialis-
cipalmente Vygotsky (1991), a brincadeira começa mo/Humanismo) o valor fundamental nessa área
na evocação provocada por um objeto diferente de é a “ação lúdica”, pois “no acontecendo”, já atinge
brinquedo estruturado, acionando a imaginação sua finalidade (Gimenes & Teixeira, 2012). Sinte-
que conduz à criatividade. Tanto Piaget (1978, tizando, há tempos Huizinga (1990, p. 4) considera
2014) e Wallon (1995b) trabalham muito a questão o brincar/jogar “como ludicidade, precedendo à
do desejo envolvendo o corpo, a intencionalidade cultura humana, por ter origem filo­genética” e
junto à afetividade/emoção nessas ações (Gimenes, “função significante” (Gimenes, 1996, 2000a, 2021a).
2021a; Wallon, 1995a). Atualmente, as escolas estão incentivando e
Quando alguém brinca, é uma manifestação de- programando atividades do brincar, porém, visam,
sejante atrelada à motivação (intrínseca – interna ao ainda, priorizando “um fim lá longe”, isto é, de a
indivíduo) e livre às descobertas ambientais, cujos criança ser “o protagonista”, “o empreendedor”
estímulos são incentivos ao sujeito cognoscente, e outras finalidades alheias para o momento, em
a construir seu saber direcionado pela afetividade detrimento de o indivíduo desfrutar do prazer/
(Piaget, 1978), bem como, uma expressão psíquica bem-estar da ação como tal no agora.
do Eu (Klein, 1981). Recreio curto, aulas com tarefas repetitivas e
Atualmente, nas questões terapêuticas médicas enfadonhas, tempo distribuído sob a opinião do
e nas especializações, o sujeito pesquisado ainda é adulto e sob o aval dos pais, que exigem e acham
dividido entre cognição e afetividade, separado da ser o certo. Contudo, e o momento “presente” – a
atenção e da emoção, por meio de recursos psicomé- presença do ser; como é que fica? Será que nas
tricos, pela análise cartesiana reducionista e intuitiva, situações mencionadas consideram o brincar/lu-
particular do observador não sistêmico. Atitude dicidade como uma manifestação espontânea da
esta que deveria ser invertida! Será que os testes dinâmica infantil?! Claro que não! Há um condi-
psicológicos investigam os sentimentos – “interior” cionamento, uma castração da criatividade infantil
do sujeito observado? A atenção é desvinculada do
preconizando um amadurecimento forçado, para
interesse? E a vontade, ela está atrelada ao desejo?
atingir lá na juventude...
- Busque a resposta para cada questão...
Urge oportunizar o tempo livre! Esquecem que
o ócio é o momento de ressignificação do tempo
Ludicidade enquanto “fenômeno” descompromissado, cujo fim é de gerar possibilidades
A atividade lúdica pode ser vista como fruto de imaginativas; sim, criar mentalmente! Deve-se
atividades prazerosas, interessantes e que ocorrem facilitar que a criança tenha a tomada de consciên­cia
num inter-espaço, havendo a íntima relação entre durante esse “nada” para fazer, que implica em des-
sujeito-objeto, na qual o sujeito exercita as suas construir o organizado, reorganizando-o em nível
funções psicomotoras plenamente sobre a ideia/ mental sobre as estruturas já instituídas (Gimenes,
objeto lúdico. Ao brincar, a criança exercita as suas 2019, 2020a).
funções nos aspectos sensorial, motor, perceptivo-­ A ludicidade é um contínuo “vir-a-ser”, prove­
cognitivo, volitivo-psíquico, social, afetivo... e, niente do universo interno do ser humano em
também, fenomenológico (Gimenes, 2021a) – a ação qualquer idade, com o significado ampliado de
lúdica em sua plenitude! “permanente juventude mental”, que independe da
A partir desse ponto de vista reflexivo é que este cronologia a que o corpo está vinculado (Gimenes,
artigo começa a tomar sentido. 2021b). Para isso, carece, portanto, de o adulto res-
Isso porque, também, deve-se analisar o brincar ponsável pela escola entender melhor esse conceito.
sem a visão desenvolvimentista, ontológica, sem o Mesmo que o processo ensino-aprendizagem seja
olhar de seu valor prático, pedagógico ou psicológico; incrementado com maior enfoque à comunicação/
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multimídia, cuja base é cognitiva/tecnológica e fa- atingir o sentar, o arrastar e o engatinhar, que vão
zendo a população agilizar/instrumentalizando-se lhe facilitando a exploração no espaço e a evolução
[que é bom]. Contudo, se for mais isso, intensa e viso-manual dos membros superiores do corpo.
somente, estarão distanciando-se do aspecto prin- Ficará de pé, primeiramente, apoiado em algum
cipal da ludicidade - o “humano”, principalmente móvel, até a criança caminhar lateralmente com a
durante a Educação Infantil e primeiros anos do En- planta dos pés no chão. Andar pela ponta dos pés,
sino Fundamental, cujas ações socioemocionais e por exemplo, pode ser indicador do uso de andador,
relacionais devem focá-la a partir da introspecção que, sentada, deslizava-se assim no ambiente, sendo
individual e, paralelamente à coletividade, em nada aconselhável. (Fonseca, 2018; Gimenes, 1998,
ciclo vital posterior. 2002, 2003a, 2003b, 2011, 2020b, 2020c; Gimenes et
- Fundamente o brincar considerando a presente al., 2012, 2020a, 2022).
reflexão! Ao chegar na condição de se colocar na postura
bípede e de obter o autodomínio e o autocontrole,
foi por ter construído um “GPS cerebral” e a “pinça
O desenvolvimento humanístico do
manual”, pelo recurso da estrutura talâmica-vesti-
indivíduo e a Neurociência
bular e a generalização da preensão posteriormente,
O processo educativo no lar tem se equivocado como exemplos, além de estruturas básicas em ní-
sobre a questão ontológica da espécie humana. Nos vel cerebral para o pensamento contínuo e lógico
tempos hodiernos, os pais têm supervalorizado a (Damásio, 2000; Gimenes, 2020a).
intelectualização da criança com recursos tecnoló- A informação é frequentemente processada de
gicos, esquecendo-se de que o bebê deve se desen- maneira simultânea em duas vias separadas,
volver depois do parto biológico, facilitando-lhe o consciente e inconsciente, estando a ativação
segundo “nascimento” relacionado à construção de cerebral ligada à cognição, envolvendo percepção,
valores humanísticos, como o “parto social do lar”. pensamento, memória e linguagem; operando em
Ou seja, primeiramente a apropriação cultural do níveis: deliberada/consciente e a automática/in-
meio natal, para enfrentar os desafios da infância e consciente [...] Promovendo... [...] especializações
adentrar na adolescência, e, mais à frente, renascer dos hemisférios cerebrais – direito, mais intuitivo,
pela terceira vez, quando assume certa indepen- e o esquerdo mais consciente e racional; o fun-
dência pelo aspecto profissional, na entrada do cionamento de nossa mente oculta, mostrado em
ciclo vital – adulto jovem. Mas, a tecnologia não pesquisas sobre a pré-ativação inconsciente (o
deve estar inserida nesse processo? Sim, porém na priming); as memórias conscientes (explícita) e
medida e no momento certos! inconsciente (implícita); o preconceito consciente
O segundo nascimento deve ocorrer visando versus o automático; e, também, o processamen-
uma adaptação do corpo para abstrair a inteligên- to oculto, que possibilita reflexões repentinas e
cia possível de sua coletividade natal, decorrente momentos criativos. (Gimenes, 2020a, p. 168)
do “desenvolvimento biológico complementar”, Quando o bebê atinge a postura de se sustentar
porque o bebê não nasce pronto como seus outros sentado, sem amparo seguramente, então ele amplia
irmãos-animais da natureza, de espécies distintas. seu campo visual de 45 graus para 90 e, gradativa
Ele não tem os recursos físicos e motores para ir e posteriormente, para 180 graus com o livre girar
em busca da sobrevivência, seja o comparando com do pescoço. É pelo engatinhar que seu olhar de-
uma tartaruga, ou a um potrinho, que caminha senvolve a visão bifocal, fazendo o rastreamento
instintivamente pelo olfato até uma mama, a fim ocular do plano visual à sua volta, bem como, criar
de receber o alimento (Gimenes, 2021c). para si, como se os objetos no espaço estivessem
Portanto, todo o processo de desenvolvimento movimentando-se, decorrente de mudar sua posição
motor global deve prevalecer sobre o estritamente física e não o contrário, deixando-o parado diante
visual-cognitivo nos nove primeiros meses, como de uma tela por muito tempo (Gimenes et al., 2012).
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Figuras 1, 2 e 3
O Cesto de Tesouros

Fonte: Gimenes, 2002; Gimenes et al., 2012, 2020a e 2022, respectivamente.

Exemplificando, igualmente como o que aconte- Exemplificando, entre a oportunidade de estar


ceu ao bebê na Figura 1, sobre o aspecto da imagem vendo (percepção – em nível talâmico), colocando
percebida por ele do objeto distante. Havia vários concretamente algo dentro de um objeto maior
copinhos, mas, primeiramente foram colocados de (dentro/fora), é muito distinta da ação vista apenas
três tamanhos, e, preferencialmente, de uma cor virtualmente. Tal atitude proporciona ao indiví-
somente, respeitando seu olhar distante (discrimi- duo de elaborar em nível cognitivo, as noções de
nação visual – cor/tamanho) objetivando a espe- conteúdo/continente. Posteriormente, em nível
cialização da ação a ser desenvolvida – encaixar/ de pensamento lógico, as noções de permanência
acoplar, pela exploração autônoma, após engatinhar de objeto, pertinência, de limites e vizinhanças,
até esses objetos. entre outras (Gimenes, 2021e). Há muitas crianças
É relevante que os estímulos sejam utilizados pequenas que chegam ao consultório sugerindo
com cores primárias, uma de cada vez, depois de “estarem autistas”, todavia, depois do diagnóstico,
observada a cor dominante visual – aquela que a constata-se o equívoco, pois agiam como autistas.
criança mais busca/aprecia. É possível identificar Ultimamente, tem havido certa confusão no pro-
o daltonismo ou a acuidade visual – pelo rastrea- cesso educativo do bebê, pouco estimulando-o à
mento visual feito pela criança, e/ou ser encontrado vinculação materna-afetiva, entregando-o mais à
o diagnóstico de visão subnormal, por exemplo, e estimulação virtual ou por si mesmo, o que é pos-
mais fatores; carecendo de, além da cor, precisar sível, pela reeducação, salvá-los dessa rotulação,
ter o brilho (Gimenes, 2002; Gimenes et al., 2012). restaurando a mãe-suficientemente boa na relação
Então, esse bebê que está segurando o copinho (Winnicott, 1975).
azul, está explorando algo dentro dele também – a O primata, na importante relação mãe-filhote,
profundidade! Sua mão pode entrar ou seus de- favorece o olho no olho, o toque e as lambidas, pois
dos somente, para melhor segurar, aprimorando carregam seus bebês por dois anos ou mais nas
a preensão manual e experienciando a noção de costas. Será que na pandemia tudo ocorreu bem?
tamanhos. Engatinhando encontrou esses objetos Há pais que terceirizam a maternagem de seu bebê
e, depois sentado, houve a exploração. Geralmente, logo após poucos meses de idade... Questiona-se:
não se permite ao bebê esse tempo. É usual despejar como foi a relação inicial em qualidade emocional
um saco de brinquedos, ao invés de oferecer um por dessa díade? Sabe-se que a mãe/responsável da
vez, ou dois a três e observá-lo agindo (Gimenes, criança tem grande influência vincular no desejo/
2002, 2020b). construção do conhecimento da criatura, com base
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emocional, conforme pesquisa na teoria kleiniana latente. O que leva a criança a sentir em si vários
e winnicottiana sobre 42 bebês em seu primeiro tipos de sensações, sentimentos e pensamentos,
ano de vida, com evidências posteriores (Gimenes, que, conforme a idade, pode controlar a influência
2002, 2003b, 2022a; Oliveira & Cabral, 2019). dessas ações e do meio-ambiente sobre si. Ou seja,
A criança, após a fase de um ano e meio, prepara-se ela se autoressignifica pelos processos internos de
para o período simbólico, desenvolvendo a lingua- homeostase e autorregulação, sob o comando cere-
gem e é fácil observá-la falando com os objetos. bral, reconstruindo-se pela contínua ação da plasti-
Depois dos três-três e meio, a falar: “agora eu vou cidade neural em nível sináptico. Essas mudanças
colocar a roupinha na boneca”, ou “vou pegar o são decorrentes da experiência vivenciada, consi-
carrinho para ele passar na ponte, indo dentro do derada aprendizagem – a adaptação aos estímulos
túnel”, e para firmação do Eu (ego). Igualmente, externos do meio (Damásio, 2000; Gimenes, 2021d;
quando o adulto aprendendo a dirigir: “vou parar, Gimenes & Perrone, 2020). Assim, a ludicidade é
então vou colocar o desembreio em ponto morto”, avaliada como uma faculdade saudável de expressão
mesmo estando com estruturas mentais avançadas humana, proveniente da filogênese e culminada na
(Gimenes, 1999, 2009). fase hominal, com o advento da razão/inteligência
Antigamente, aconselhava-se sobre o cuidado de (Gimenes, 2000b, 2021e).
a criança assistir à TV, por tempo reduzido e apenas – O brincar auxilia na saúde orgânica?
após os dois a três anos, para evitar distúrbios psí-
quicos manifestados durante o sono, repercutindo
como agitação/irritabilidade na vigília, conforme Identidade Humana/Individualidade –
alerta a psicanalista Soifer (citado em Gimenes et Conceito e Expressões
al., 2020a). Todavia, quais são os desconfortos ou A identidade humana/individualidade define-se
prejuízos à saúde mental do bebê, com o celular ou pelo processo de construção dinâmica da “unidade
tablet oferecidos intensamente, desde os seus nove da consciência de si”, das relações subjetivas, das
meses? Estando a intencionalidade desenvolvendo-se, comunicações, da linguagem e das experiências
o bebê já sabe desejar, manifestando-se pelo choro sociais formadas no meio em que se vive. Este atua
ou gritos, e tem sido atendido prontamente pelos sobre o indivíduo, influenciando-o pelos fatores
pais neófitos. Certamente, desconhecem o perigo intrapessoais, “as capacidades inatas do indivíduo e
dessa exposição contínua ao psiquismo infantil! as características adquiridas da personalidade”, bem
Toda imagem nessa fase deve existir também como como, dos fatores interpessoais, que são as “identi-
objeto concreto, para que o bebê possa lamber, ficações com outras pessoas”, além daqueles fatores
apalpar, explorar e controlar alguma fantasia que culturais, os “valores sociais, aos quais o ser humano
aquela figura lhe cause. está exposto, tanto global quanto comunitários”. É
A emoção acompanha sempre a razão em cons- a consciência de quem eu sou, diferindo-se do ego
trução, desde os primórdios do pensamento, tendo auxiliar – a mãe, quando na infância (Damásio, 2000;
a percepção visual sobrepondo-se em nível mental Myers, 2012; Gimenes & Perrone, 2020, 2021).
até antes dos seis-sete anos, responsável pelos Se desde bebê for facilitado o livre brincar e o
espantos, ou pesadelos, e até o medo, gerando sen- brincar livre na natureza, colabora-se na construção
timentos de tristeza/alegria registrados na memória de sua identidade, promovendo a criatividade e au-
e de até sentir-se feliz (Damásio, 2000; Gimenes, tonomia, logo, o advir das competências executivas,
2021b, 2021d; Goleman, 1995; Klein, 1981; Marino cognitivas e conativas (Gimenes, 2003a; Gimenes &
Júnior, 1975). Cotrim, 2021) e, mesmo quando enferma, a criança
Pela Neurociência, sabe-se dos benefícios que o tem o direito de brincar e prosseguir seu desenvol-
brincar promove, quer com a evocação da imagi- vimento (Gimenes & Ribeiro, 2018; Gimenes, 2022b;
nação, ou com algum objeto, que ative a ludicidade Gimenes et al., 2020b; Macedo et al., 2015).
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Isso lhe assegurará na autoconfiança e proativi- da Informação (TI), do mundo virtual pela repre-
dade, e, pela constância de referências de mesmas sentação, como formas distintas de brincar (Figura 4).
pessoas e objetos, facilita-lhe na construção do Assim agindo, tal estado psíquico repercute no sis-
mecanismo de defesa do ego – a identificação proje- tema imunológico, por autorregulação, sentindo-se
tiva, base da resiliência e da noção de permanência mental e fisicamente saudável, porque naquele
de objeto, pois tudo lhe ocorre em nível cerebral e momento se é feliz (Gimenes, 2019, 2021d).
emoção corporal (Gimenes, 2003b, 2020b).
O brincar vai modificando-se ao longo do desen-
volvimento humano. Geralmente, adota-se a classi- Considerações
ficação piagetiana: Jogos de Exercícios (Funcionais É brincando que se aprende afetiva, cognitiva
– surgem no início da vida); Jogos Simbólicos e socialmente, porque o brincar é terapêutico, por
(aparecem próximo dos dois anos, apoiado pela proporcionar curas e/ou minimizar sequelas emo-
Imitação); Jogos de Construção (final dos quatro cionais/orgânicas. Com o direito de brincar pela
anos, intermediário das fases intuitiva articulada descoberta – atividade espontânea, acontece a cria-
e a de início de regras); e Jogos de Regras (entre ção da “intuição” – “sabedoria que fica” (experiên­cia)
seis/sete anos em diante e dominando os jogos mais e se integrando na sapiência dos algoritmos, num
complexos - Gimenes, 2000b, 2020a). jogo lúdico interdependente valioso, forma-se o
Há as consideradas linguagens expressivas que universo lógico-matemático. E com outros saberes,
vão surgido como produção do (jogo mente-­corpo) emerge a “identidade” (única – aspectos físico, psi-
ato de desenhar, pintar, modelar, pelas Artes Plás- cológico e psíquico-espiritual).
ticas. Cantar, tocar, dançar e dramatizar, exemplos Configura-se, assim, a “identidade humana” decor-
pelas Artes Musical e Cênica. Redigir, ler, declamar rente da ludicidade e esta, como um eficiente e eficaz
e outras, pelas Artes Literárias; e, pela Tecnologia agente estruturante de manutenção da saúde mental,

Figura 4
Produções: a IDENTIDADE em Poesia e Pintura

IDENTIDADE Às vezes, sou pulga,


sou mosca também, que
Às vezes nem eu mesmo voa e se esconde
sei quem sou. de medo e vergonha.
às vezes sou. Às vezes, eu sou Hércules,
“O meu queridinho”, Sansão vencedor,
às vezes sou peito de aço,
“moleque malcriado”. goleador!
Mas, o que importa
Para mim
o que pensam de mim?
tem vezes que eu sou rei,
Eu sou quem sou,
herói voador, eu sou eu,
caubói lutador, sou assim,
jogador campeão. sou menino.

Hammler, H. Miss São Bernardo do Campo [pintura naif]. https://www.facebook.com/photo/?fbid=678729928946765&


set=pb.100061118417958.-2207520000
Bandeira, P. (1991). Identidade [poesia]. In Cavalgando o arco-íris. Moderna

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Ludicidade e identidade humana

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Correspondência
Beatriz Picolo Gimenes
Rua José Bonifácio 350/52 – Centro – São Bernardo do
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