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BRASIL

Em ano de festejos, o “trauma” da


colonização marca as relações entre
Portugal e Brasil
As feridas deixadas pela época colonial e pela escravatura, a preservação da Amazónia e as
relações económicas estiveram no centro da conferência da Fundação Calouste Gulbenkian
que assinalou o bicentenário da independência do Brasil.

João Ruela Ribeiro


24 de Junho de 2022, 20:48

A ex-ministra do Ambiente do Brasil e antiga candidata presidencial Marina Silva na Fundação Calouste Gulbenkian
NUNO FERREIRA SANTOS
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As relações futuras entre Portugal e o Brasil não podem ser entendidas sem confrontar o
“trauma” do encontro inicial entre os dois países, há mais de 500 anos, afirmou esta
sexta-feira a ex-ministra e ambientalista brasileira Marina Silva, durante a conferência
Brasil-Portugal: Perspectivas de Futuro, organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian, a
propósito do bicentenário da independência do Brasil.

A ecologista quis dedicar a sua intervenção ao que chamou de “encontro/confronto” que


marcou a época colonial, (https://www.publico.pt/2015/12/27/culturaipsilon/noticia/o-
legado-colonial-de-portugal-no-brasil-entre-a-culpa-e-a-redencao-1718464) sobretudo o
extermínio dos povos indígenas pelos colonizadores portugueses a partir de 1500.
“Tivemos uma relação traumática que eliminou um milhão de indígenas a cada século”,
afirmou Silva, que foi ministra do Meio Ambiente entre 2003 e 2008, e é hoje uma das
vozes mais respeitadas no campo ambiental no Brasil.
(https://www.publico.pt/2021/10/16/mundo/noticia/amazonia-proxima-ponto-nao-
retorno-alerta-exministra-brasileira-1981322)

A ex-ministra alertou para o perigo de se desvalorizarem os traumas deixados pela época


colonial (https://www.publico.pt/2014/06/27/culturaipsilon/entrevista/o-imperio-
portugues-e-talvez-o-mais-flexivel-a-gerir-populacoes-coloniais-ate-ao-seculo-xviii-
1660324) no debate contemporâneo sobre as relações entre os dois países. “Por mais que
isso seja doloroso e seja algo que, olhando para trás, não se repetiria, não adianta
minimizar por trás das nossas semelhanças mais fáceis, como o nosso gosto pelo
bacalhau, ou tentarmos amenizá-las com a ideia de que tivemos um encontro de troca de
culturas que se formaram de forma pacífica ou cortês”, declarou a também ex-senadora.

Uma perspectiva igualmente crítica foi veiculada pelo director artístico do Instituto
Moreira Salles, João Fernandes,
(https://www.publico.pt/2019/05/10/culturaipsilon/noticia/joao-fernandes-sai-reina-sofia-
ir-dirigir-instituto-moreira-salles-brasil-1872240) que recordou a carta de Pero Vaz de
Caminha em que é comunicada ao rei D. Manuel I a chegada da armada portuguesa de
Pedro Álvares Cabral ao que viria a ser o território brasileiro. Fernandes referiu o tom
“amigável” do primeiro encontro entre os portugueses e os povos autóctones
acompanhado de uma “insensibilidade” perante a descoberta: “Uma ideia arrogante de
uma superioridade de crenças de quem chega em relação a quem encontra.”

João Fernandes também recorreu à metáfora do trauma para abordar o passado colonial
de Portugal e Brasil, lamentando, por exemplo, que não se estude a história da
escravatura nas escolas portuguesas. “Há muito que ainda não foi pensado a partir dos
traumas acumulados que estão em todas as famílias portuguesas”, afirmou o curador.

“O trauma da exploração colonial é importantíssimo para a discussão contemporânea e


nós fugimos desse trauma em Portugal. No Brasil esse trauma é físico”, explicou
Fernandes, que está à frente do Instituto Moreira Salles há quase três anos.

Acordo comercial analisado


Um dos aspectos mais focados ao longo das intervenções na conferência foi a evolução
do acordo de comércio livre entre a União Europeia e o Mercosul, o bloco económico de
países da América do Sul, que está em processo de ratificação pelos parlamentos dos
Estados-membros de ambas as entidades. Ao fim de quase duas décadas de complexas
negociações, foi alcançado um acordo para a redacção do tratado em 2019,
(https://www.publico.pt/2019/06/28/economia/noticia/ue-mercosul-fecham-
compromisso-politico-assinar-tratado-livre-comercio-1878139) mas desde então o
progresso foi mínimo. As objecções de países como França e Irlanda face ao impacto no
sector agrícola europeu, bem como a oposição generalizada à política ambiental do
Governo brasileiro para a Amazónia
(https://www.publico.pt/2020/09/19/mundo/noticia/macron-rejeita-acordo-uemercosul-
nome-luta-alteracoes-climaticas-1932154) são os principais entraves.
Uma possível solução para o impasse seria a partição do tratado que isolasse a
componente comercial, como sugeriu a representante permanente de Portugal junto da
ONU, Ana Paula Zacarias, durante a sessão dedicada à economia. “Há aqui um espaço
importante, apesar das dificuldades”, afirmou a embaixadora, embora considere que
apenas no final do ano exista um “texto final”.

O presidente da Academia Brasileira de Letras, Merval Pereira, responsabilizou


directamente o Presidente Jair Bolsonaro e a sua política ambiental pelo fracasso do
acordo entre a UE e o Mercosul. “Se o Presidente Bolsonaro for reeleito não temos
nenhuma perspectiva de sucesso”, declarou o jornalista, referindo-se às eleições
presidenciais marcadas para 2 de Outubro.

A preservação da Amazónia é um tema central para as relações do Brasil com Portugal e


com o resto do mundo, defendeu Pereira, considerando “equivocada” a abordagem
actual do Governo de Bolsonaro. “O Brasil esta a afastar-se dos países que sempre foram
os nossos parceiros naturais. Se o Brasil puder mudar a política da Amazónia, podemos
ter com Portugal uma porta para a Europa”, explicou.

O presidente do Senado federal, Rodrigo Pacheco, um dos poucos intervenientes na


conferência com responsabilidades políticas actuais, quis sublinhar que o aspecto que
melhor une Portugal e Brasil “são os momentos em que houve o reconhecimento de que
o melhor regime é o Estado de direito e o Estado democrático”.

Pacheco garantiu ainda que o Congresso federal tem funcionado como “travão
institucional” em relação a “iniciativas descabidas”, dando o exemplo de propostas para
autorizar a actividade mineira em terras indígenas ou para alterar o sistema de voto
electrónico actualmente em vigor no Brasil – Bolsonaro tem dito que o método é
vulnerável a fraudes e alude com frequência à possibilidade de as eleições deste ano
poderem vir a ser manipuladas, embora nunca tenha fornecido qualquer prova das suas
alegações.
O ex-ministro dos Negócios Estrangeiros português Paulo Portas lamentou, por seu lado,
que o Brasil não esteja entre os dez principais destinos de exportações portuguesas.
“Podíamos fazer mais do ponto de vista do crescimento, sobretudo simplificando”
procedimentos, afirmou.

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