Você está na página 1de 16

AULA 1

TRANSTORNO DO ESPECTRO
AUTISTA

Profª Rossana Ghilardi


TEMA 1 – PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES

Assim como os demais transtornos, o do Espectro Autista tem múltiplos


olhares, abordagens e interesses, incluindo controversas intrigantes, sendo que
algumas delas serão abordadas nas aulas. O Transtorno do Espectro Autista
(TEA) tem caminhos de análise na área da saúde, de políticas públicas, da família,
da neurociência e outras tantas.
No entanto, para a disciplina Transtorno do Espectro Autista que iniciamos
agora, a intenção é estudar elementos que possam atender à demanda da escola
de Educação Básica, envolvendo os alunos com TEA e seus familiares, assim
como seus pares nas classes, os colegas, os docentes e a equipe pedagógica.
Naturalmente, para dar conta deste objetivo, beberemos em diversas fontes,
trazendo alguns dos olhares já listados e informações, que nos parecem mais
impactam no cotidiano escolar de convivência com pessoas com TEA.
Assim, temos a proposta de apresentar aspectos gerais deste transtorno
do neurodesenvolvimento, desde o histórico de estudos e definições, passando
pelas políticas públicas, principalmente aquelas com impactos na área
educacional, trazendo elementos diagnósticos e de intervenção nos quais
educadores e familiares tenham maior envolvimento.
Como a intenção da disciplina é desenvolver panorama do TEA, não há
como fugir dos aspectos históricos, até porque eles esclarecem muitos dos mitos
que circulam no senso comum. Descartamos a revisão histórica exaustiva, nossa
estratégia é desvendar alguns mitos para apresentar a evolução do entendimento
do autismo ao longo do tempo.
Você sabe, por exemplo, como surgiu a ideia da “mãe geladeira”? Ou o
mito de que as vacinas infantis são provocadoras do autismo? As respostas são
encontradas mergulhando no histórico, associada à evolução dos conceitos e
tratamentos.

1.1 Primeiras Pesquisas sobre Autismo

Em muitos momentos das aulas, utilizaremos indistintamente o termo


autista nos referindo ao Transtorno do Espectro Autista (TEA), mas,
especificamente nesta aula, verificaremos a aplicação do verbete e mudanças do
seu significado com o tempo.

2
Na etimologia, autismo vem do grego – autós –, que significa algo como
por si só. Segundo Stelzer (2010), tem como correspondente no latim o verbete
“idiotia”, que significa viver no seu próprio mundo. Foi empregada pela primeira
vez se referindo a crianças (3 a 4 anos) com quadro clínico estranho pelo
educador austríaco Theodore Heller, isso em 1908. Inclusive, anos mais tarde,
Piaget (1896-1980) chegou a utilizar a palavra autismo para designar a primeira
etapa do desenvolvimento do pensamento infantil típico, anterior à fase
egocêntrica.
Na psiquiatria, os primeiros registros de patologias infantil com sintomas
que hoje são relacionadas ao autismo estão em capítulo de livro publicado em
1867, escrito pelo psiquiatra Henry Maudsley (1835-1918) (Stelzer, 2010) sobre
um tipo de insanidade na tenra idade. Compreensível essa demora em dar
atenção a comportamentos diferenciados de crianças, uma vez que a infância e a
adolescência também foram sendo constituídas ao longo da história da
humanidade de maneira diferente nas culturas. Mesmo no período da Revolução
Industrial (1760-1840), as crianças eram entendidas como mini-adultos,
trabalhando nas indústrias europeias com o mesmo regime de tempo e condições
dos adultos.
Costumo citar a Sociologia da Infância como exemplo da demora da
sociedade ocidental entender a criança, que se consolida apenas na década de
1990. Mesmo os estudos de Piaget sobre o desenvolvimento cognitivo infantil,
malmente completam um século.
Vários pesquisadores descreveram comportamentos hoje atribuídos ao
TEA, ou utilizaram o termo autismo em seus relatos. Como o italiano DeSanctis,
no início do Século XX, estudando a demência precoce. Em 1911, a médica Eugen
Bleuder (1857-1939) desenvolve relatos sobre "pessoas que tinham grande
dificuldade para interagir com as demais e com muita tendência ao isolamento"
(Stelzer, 2010), utiliza o termo autismo para determinado sinal, dentre outros,
atribuído à esquizofrenia infantil.

TEMA 2 – MÃE GELADEIRA!?

Para perceber como o entendimento sobre o TEA evoluiu, mostraremos


como alguns mitos e ideias distorcidas foram construídos. Começamos com o mito
da mãe geladeira.

3
2.1 O começo de tudo – Leo Kanner

Marcos para o autismo, como conhecemos hoje, foram principalmente dois


trabalhos. O primeiro é o do psiquiatra infantil Leo Kanner (1894-1981), que
acompanhou onze casos de crianças que demonstravam "uma incapacidade
importante de se relacionar com as demais pessoas, iniciando-se nos primeiros
anos de vida" (Stelzer, 2010).
Em 1943, Kanner identifica sinais clínicos distintos da esquizofrenia infantil,
que se manifesta desde o nascimento e com caráter inato, são eles: "o extremo
isolamento, a necessidade de imobilidade, as estereotipias gestuais e os
distúrbios da linguagem (ou a criança não fala ou emite um jargão desprovido de
significação)" (Ribeiro; Martinho; Miranda, 2012, p. 79). No ano seguinte,
denominou de síndrome do autismo infantil precoce.
Em seus estudos, Kanner analisa também os pais das crianças. Percebe-
se os pais como intelectuais, dentre outros aspectos, mas também descreve-os
como frios e distantes. Assim, desenvolveu a ideia de que o autismo poderia ter
uma causa relacional, associada a pais que não conseguem estabelecer vínculos
emocionalmente adequados com seus filhos. De certa maneira, suas
interpretações são embrião à ideia da mãe geladeira.
De acordo com Ribeiro, Martinho e Miranda (2012), no período de quase
30 anos de produção, Kanner oscilou entre abordagem psicanalítica (de Margaret
Mahler), atribuindo sintomas do autismo à relação mãe-filho; explicações
comportamentalistas; e, finalmente, fixando-se em causas orgânicas. De certa
maneira, o vai e vem do autor ajuda a estabelecer a discussão que está presente
até a atualidade sobre as causas do autismo, se tem bases inatas ou adquiridas.

2.2 Hans Asperger

Outro trabalho contemporâneo ao de Kanner contribuiu muito para


estabelecer o TEA, do médico austríaco Hans Asperger (1906-1980), que, em
1944, publicou o artigo Psicopatologia Autística da Infância (Stelzer, 2010). No
entanto, muitos anos se passaram até a divulgação mais ampla de seu trabalho,
fato atribuído à demora em traduzir esse artigo, originalmente escrito em alemão.
Apesar de também ser austríaco, Kanner era radicado nos EUA, onde trabalhou
e publicou seus trabalhos que repercutiram muito no país.

4
Asperger estudou meninos com nível cognitivo variado, “com inteligência
preservada e com desenvolvimento de linguagem normal, mas que apresentavam
comportamento autista e comprometimento importante de habilidades sociais e
de comunicação" (Stelzer, 2010).
Outros sintomas descritos pelo pesquisador foram os interesses restritos e
repetitivos, rotinas rígidas, fixação em determinados objetos, aparente
inteligência, mas dificuldade na aprendizagem em geral, mesmo com capacidade
viso-especial e memória desenvolvida.
Percebeu-se a similaridade dos sintomas descritos pelos dois autores, mas
havia algumas distinções, dentre elas a idade em que os sintomas se manifestam,
enquanto Kanner percebe os sinais desde o nascimento, Asperger relata que
aparecem entre os 4 e 5 anos.
Mas Síndrome de Asperger, denominação bem conhecida por aqueles que
lidam com autismo, foi utilizada primeiramente em 1963 por Van Krevele, segundo
Stelzer (2010), e consolidada por Lorna Wing, em 1981 (Ribeiro; Martinho;
Miranda, 2012).
Outros estudos aconteceram na sequência, como de Hilde Mosse (1958),
buscando diferenciar autismo de psicose e esquizofrenia. Também Andreas Rett,
neuropediatra estudou 22 meninas com “atrofia cerebral progressiva, com
movimentos estereotipados das mãos, demência, alalia, apraxia de marcha e
tendência a apresentar crises epilépticas” (Stelzer, 2010, p. 14). O termo atípico
surgiu nos anos de 1950, para abranger casos diversos de crianças com ego
fragmentado associado à psicopatia materna.
Com os estudos de Kanner, supondo-se que os problemas apresentados
pelas crianças eram resultantes da falta de afetividade dos pais, deduz-se
imprescindível tratá-los. As terapias psicanalíticas foram o caminho para atender
estes pais em longos processos terapêuticos. Isso nos leva a outro nome
relevante na história do autismo – Bruno Bettelheim.

2.3 Bruno Bettelheim

Em meados do século passado, também os filhos, as crianças autistas, são


tratadas com base nos conceitos psicanalíticos. O maior exemplo da aplicação da
psicanálise para crianças autistas está em Bruno Bettelheim (1903-1990), que cria
um programa para a Escola Ortogênica de Chicago, entendendo o autismo "como

5
reação de defesa a uma situação extrema, que implicava para a criança uma
ameaça de destruição" (Ribeiro; Martinho; Miranda, 2012, p. 81).
Como o livro best seler A fortaleza vazia (1967), no qual atribui o
desenvolvimento dos sintomas do autismo ao afastamento emocional da mãe, que
não consegue entender e atender às demandas do seu bebê. O autor consolida a
crença da mãe geladeira. Assim, afastar a criança da família seria uma solução e
a Escola Ontogênica seria a instituição a atendê-las.
A atividade de Bettelheim levou ao desenvolvimento e implementação de
algumas técnicas que se sedimentaram, como a aplicação da ludoterapia para
crianças autistas, proposta de Axline e Zelan. Além de outros trabalhos com base
na psicanálise, como Frances Tustin (1913-1994), que após retornar dos Estados
Unidos implementou em Londres técnicas de tratamento para autistas, tendo
como referência a psicanálise infantil de Melanie Klein (1882-1960). No livro A
concha protetora, descreve a proteção criada pelos autistas para diminuir sua
vulnerabilidade e identifica nas mães diminuição de atenção aos filhos em
consequência de depressão, e não da ausência prévia de afetividade. Portanto, o
atendimento psicoterápico pode ser essencial para pais de pessoas com TEA
(Ribeiro; Martinho; Miranda, 2012).
Com o tempo, os métodos de Beltelheim foram contestados, mas o autor
já havia se tornado um ícone na área e suas publicações saíram do campo da
ciência, alcançando a população em geral, assim, seus conceitos ajudaram a
formar a visão popular do autismo, de suas causas e seus tratamentos.
Por algumas décadas, a psicanálise se estabelece como a principal opção
de tratamento do autismo nos EUA, mas para alguns pesquisadores esse tipo de
intervenção não apresentou resultados consistentes. Uma parte da
responsabilidade pela adoção de novos caminhos está nas famílias e mães que
por anos foram responsabilizadas pela sintomatologia dos filhos. Os familiares
destacam a inconsistência de algumas colocações que não correspondem à
vivência cotidiana deles com seus filhos autistas.
Os rumos também mudaram porque, nos anos de 1960, estudando gêmeos
idênticos, comparando a gêmeos fraternos, percebe-se existirem fatores
genéticos envolvidos no autismo. Desde então, muitas pesquisas foram e estão
sendo realizadas para identificar características e fatores causais. Mais adiante
em nossas aulas, detalharemos um pouco o resultado dessas investigações.

6
Um exemplo de pais em busca de novos rumos para entender o autismo
está em Bernard Rimland (1928-2006), psicólogo americano e pai de autista,
passou a investigar a condição e propõe como origem alteração na função da
formação reticular ativadora (Stelzer, 2010). O sistema ativador reticular é
responsável pela ativação do córtex cerebral, que garante estado de vigília.
Rimland é um dos fundadores do Autism Society of America – Sociedade
Americana de Autismo (ASA, em inglês).

TEMA 3 – EPIDEMIA DE AUTISMO?! CULPA DAS VACINAS INFANTIS?!

Assim como Rimland, outros pesquisadores, pais ou não de autistas,


agregaram muito conhecimento acerca do tema, no entanto, pela complexidade e
diversidade de sintomatologia, sabemos que a caminhada ainda está no início. Os
rumos vão mudando, assim como autismo se destacou da psicose e esquizofrenia
infantil, síndromes como a de Asperger, que foi descrita em separado do autismo,
atualmente compõe o quadro do TEA. Discute-se ainda as causas ambientais e/
ou genéticas, e novidades surgirão a cada momento com desenvolvimento da
genética, da neurociência e outras áreas afins.
Já havia passado quase 40 anos de estudos científicos sistemáticos sobre
o autismo quando finalmente foi incluído no DSM, em sua terceira versão (1980).
DSM é Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM – sigla da
denominação em inglês Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders),
desenvolvido pela Associação Americana de Psiquiatria. Quando incluído no
DSM, a descrição do autismo tinha a intenção primeira de diferenciá-lo da psicose
e esquizofrenia infantil, considerado um passo importante para consolidar as
pesquisas na área, embora ainda descrito de forma embrionária.
No DSM-III, o autismo aparecia como quadro precoce de transtorno
invasivo do desenvolvimento, como uma forma grave de psicopatia, associada a
comprometimento da linguagem e da comunicação, assim com comprometimento
nas habilidades sociais e cognitivas (Stelzer, 2010). O quadro diagnóstico
apresentado foi criticado pelos pesquisadores por apresentar sintomas muito
restritivos, provocando revisão da descrição do autismo em versão complementar,
denominada DSM-III-R, que novamente não atendeu às expectativas dos
interessados no tema, desta vez pela abrangência exagerada (Stelzer, 2010).

7
Outra referência diagnóstica é a Classificação Estatística Internacional de
Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID), que também incluiu o
autismo em sua nona versão, de 1984.
Somente na quarta versão do DSM (1994) e décima do CID aconteceu a
aproximação da descrição dos sintomas e classificação do autismo, o que facilitou
sobremaneira o diagnóstico (Stelzer, 2010). Neste caso, o autismo é apresentado
como relacionado a três fatores básicos: o comprometimento qualitativo da
interação social; o comprometimento da comunicação; e padrão restrito, repetitivo
e estereotipado de comportamento, interesse e de atividades (Stelzer, 2010, p.
27).
Descrição mais precisa das alterações e sintomatologia do autismo resulta
em mais precisão no diagnóstico. Nas últimas décadas, com a massificação do
uso DSM, também promove a avaliação diagnóstica mais generalizada.
Lembramos que o DSM tem sua quinta versão em 2014, que estudaremos
um pouco mais adiante, na qual se estabelece o Transtorno do Espectro Autista.
O CID apresenta a décima primeira versão no primeiro semestre de 2022.
Fato é que, nos anos de 1990, acontece significativo aumento no
diagnóstico de autismo nos Estados Unidos da América. De uma prevalência em
torno de 4 a 10 casos para 10.000 crianças relatados na década anterior, passou
para 30 a 50 por 10.000. Tente calcular: quanto isso representaria na população
Brasileira? Se minhas contas estão corretas, teríamos entre 600 mil e um milhão
de pessoas com TEA, considerando a população do Brasil dos nossos dias.
Mas, o que justificaria esse aumento constatado dos casos no final do
século passado e que continua até os nossos dias? Já se encontra consolidada a
relação do autismo infantil como disfunção neurológica, não psicogênica e com
provocador genético significativo, portanto, alterações no comportamento social
não interfeririam significativamente na quantidade de casos.
São várias as possibilidades levantadas. Uma delas está relacionada
justamente a maior precisão diagnóstica, uma vez que manuais de referência da
área da saúde apresentam clareza e sinergia na descrição dos sintomas. Também
pode-se atribuir a facilidade na divulgação da informação nas últimas décadas,
além do aumento de pesquisas na área, tornando o autismo mais visível e
compreensível. Outro motivo pode ser a inclusão pelo DSM-V da Síndrome de
Asperger e do transtorno global do desenvolvimento não especificados no campo
de autismo (Stelzer, 2010).

8
No entanto, nos anos de 1990, alguns pais organizados em associações
pela causa do autismo levantaram outra hipótese, relacionavam o aumento de
casos à ampliação da vacinação infantil. Não se referiam a vacinas específicas,
mas a componentes conservantes destas que tinham mercúrio na composição,
metal pesado, altamente tóxico ao meio ambiente e ao organismo, que se
acreditava também se tratar de um agente neurotóxico (Stelzer, 2010).
Em consequência a esse movimento, o componente com mercúrio foi
retirado das vacinas. No entanto, o que se observou passados mais de 30 anos
foi ainda o aumento da prevalência do autismo. Sabe-se hoje que os sintomas
relacionados à intoxicação por mercúrio não têm nenhuma relação com aqueles
observados no autismo.
Recentemente, discussões sobre vacinas voltaram à tona pelo aumento de
casos de doenças consideradas erradicadas e controladas, assim como em
consequência da Pandemia do Coronavírus. Percebe-se que uma parte da
população ainda desconfia das vacinas.
Os cálculos atuais mostram ainda mais casos. Até o momento, o país que
mais estudou a prevalência do autismo é os EUA e recentemente calcula existir
um caso a cada 59 nascimentos. Veja, na imagem a seguir, elaborada pela
Revista Autismo, a evolução dos registros desde 2004:

Gráfico 1 – Aumento de 15% entre os dados de 2016 e 2018.

A ONU (Organização das Nações Unidas) considera que os autistas


representam 1% da população mundial e a Organização Mundial da Saúde (OMS)
apresenta uma a cada 160 crianças no mundo como autistas. Considerando
alguns destes dados, a população de autistas no Brasil pode estar entre 2 e 3
9
milhões de pessoas. Estas são apenas estimativas, uma vez que a maioria dos
países não tem dados relevantes, levantamentos específicos e confiáveis. Mais
adiante, veremos que há possibilidade de o Brasil ter investigação no censo sobre
incidência de autismo (Paiva Jr., 2018).

TEMA 4 – SUPLEMENTO ALIMENTAR E MEDICAMENTOS NO TRATAMENTO


DO AUTISMO?!

Caminhando na cronologia dos tratamentos do autismo, observam-se


divergências e curiosidades.
Nos primeiros anos de definição do quadro, já vimos que terapias
psicanalíticas eram recomendadas para as crianças e seus pais. Outros sintomas
levaram ao emprego de métodos considerados atualmente como inaceitáveis.
Exemplo disso é o eletrochoque e lobotomia, técnicas empregadas para diversos
distúrbios psíquicos até os anos de 1970 (Fleischer, 2012), para diminuir
convulsões frequentes, sintoma de alguns casos graves de autismo.
Soluções medicamentosas também surgiram. Stelzer (2010) cita o uso nos
anos de 1960 do ácido D-lisérgico, conhecido popularmente por LSD. O autor
comenta que as crianças apresentavam algumas melhoras na percepção do
ambiente e no sono. Mas, os efeitos colaterais eram devastadores, além de mais
adiante acontecer a proibição da comercialização do LSD. É preciso entender que
essa droga foi desenvolvida para tratamento psiquiátrico, justificando a utilização
na época, no entanto, provocava reações indesejáveis, como depressão e
quadros psicóticos, além do uso recreativo indiscriminado, que provocaram a
proibição.
Atualmente, alguns fármacos são utilizados para o TEA, geralmente para
controle da agitação e agressividade, comportamentos colaterais considerados
inadequados socialmente.
Outro sintoma muito presente no autismo e que impacta na vida social das
crianças e familiares são as disfunções gastrointestinais. Os familiares buscam
desesperadamente alternativas para essa irritabilidade intestinal, e a alteração da
dieta alimentar parece trazer conforto, diminuindo os sintomas.
Assim, ao longo do tempo, dietas e suplementos aparecem como
alternativa de custo baixo para promover qualidade de vida. São principalmente
"dieta sem glúten e/ou sem caseína, suplementação vitamínica, suplementação
de magnésio e utilização de ácidos graxos" (Chaves Dias et al., 2018).
10
Chaves Dias et al. (2018) realizaram investigação sistemática de pesquisas
publicadas sobre a utilização de dietas sem glúten e caseína no TEA. Há variação
nos resultados nas diferentes investigações, embora a maioria dos artigos mostre
correlação entre a dieta livre de glúten/ caseína em população de autistas e
diminuição de sintomas, os autores consideram os resultados inconclusos.
Justificam a conclusão, pois nas pesquisas estudadas as populações são muito
heterogêneas; os métodos de análise dos dados são variados, dificultando
comparação entre eles. Além disso, os trabalhos mais delineados (especificados)
demonstraram a não associação das dietas com sintomatologia.
Identificam também que

A percepção dos pais sobre o efeito da dieta nos filhos com TEA pode
induzir viés de observação, uma vez que os pais por saberem que os
filhos estão sob algum tratamento já criam expectativa de melhora, ou
observam mais intensamente a variabilidade cognitiva do filho e isso
pode acarretar maior percepção de melhora quando, na verdade pode
não ter havido alteração. (Chaves Dias et al., 2018)

Os autores não encontram evidências científicas que justifiquem empregar


a dieta livre de glúten e /ou caseína para TEA, ainda, são necessários mais
estudos e mais bem delineados para confirmar a relação, embora nada impeça os
pais de adotarem essas dietas.
Mas, temos pesquisas bem significativas na atualidade sobre
medicamentos para combater sintomas do autismo. Um exemplo é o IGF-1
(hormônio do crescimento), testado para uso na Síndrome de Rett (que já tem
mapeamento genético) e possivelmente para outras manifestações do autismo
idiopático (sem conhecimento de causa), já na última fase de experimentação
(Pini et al., 2012).
Também há pesquisas bem desenvolvidas com uso de derivados da
Canabis (canabidiol ou outra similar), que detalharemos em outra aula. Outro
fármaco muito comemorado atua na produção do hormônio vasopressina,
promovendo o aumento de habilidades sociais e diminuição de comportamentos
repetitivos, sintomas nucleares do TEA, é o Balovaptan, da farmacêutica Roche
(Martins; Melo, 2020).

TEMA 5 – AUTISMO OU TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA?!

Como percebemos, a definição e entendimento do autismo mudou ao longo


do tempo, mas mantendo o cerne descrito por Kanner de comprometimento

11
precoce no relacionamento pessoal, também de comunicação e comportamentos
repetitivos e estereotipados.
Alteração significativa que transformou inclusive a denominação do
autismo está no DSM-V. Vamos tentar entender o que mudou entre a quarta e
quinta versões do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais.
O DSM – IV incluía nos Transtornos Globais do Desenvolvimento o
Autismo, Transtorno de Rett, Transtorno Desintegrativo da Infância, Transtorno de
Asperger e outros.
A denominação Transtorno de Espectro Autista (TEA) foi oficializada no
DSM-V (2014). Está incluído como um dos Transtornos do neurodesenvolvimento,
juntamente com: deficiências intelectuais; transtornos de comunicação; transtorno
de deficit de atenção/ hiperatividade; transtorno específico de aprendizagem;
transtornos motores; outros transtornos do neurodesenvolvimento.
Na versão V do manual são integrados ao transtorno autista o transtorno
de Asperger e o transtorno global de desenvolvimento, justificado pela percepção
de se tratar de um mesmo quadro caracterizado por um contínuo de sintomas, de
mais leves a mais graves, com a mesma perspectiva, isto é, relacionados à
comunicação social e comportamentos restritivos e repetitivos, que provocam
prejuízos variados na rotina do sujeito. A aglutinação dos transtornos tem intenção
de “melhorar a sensibilidade e a especificidade dos critérios para o diagnóstico de
transtorno do espectro autista e para identificar alvos mais focados de tratamento
para os prejuízos específicos observados” (DSM-V, 2014, p. XlII, Prefácio).
Assim, surge o Transtorno do Espectro Autista (TEA), como denominamos
atualmente. Um transtorno do neurodesenvolvimento com alterações
principalmente na comunicação e interação social e desenvolvimento de padrões
restritos e repetitivos de comportamento.
Importante dizer que se trata de um acometimento sem cura. Aqui, temos
mais um mito a vencer: dizer que não tem cura não é condenação, pois o TEA
tem tratamento, que, se bem aplicado e quando iniciado precocemente, diminui
os sintomas e prejuízos, em alguns casos substancialmente.
Também é importante destacar que as causas do TEA são múltiplas e a
maioria ainda não identificada plenamente. Outra consideração importante quanto
ao TEA são os impactos econômicos e emocionais que provoca na família, o que
será detalhado mais adiante nas aulas.
Mas, o que é um transtorno?

12
Exatamente o que se entende do verbete fora do autismo, transtorno é uma
desorganização, uma bagunça, uma perturbação. Outra palavra compondo a
denominação é espectro, que remete a multiplicidade e variedade de sintomas,
provocados por diversas causas distintas.
A complexidade e variedade que caracterizam o TEA têm algumas
implicações necessárias, mas difíceis de ser conduzidas, pelo custo e pelo
envolvimento de múltiplos profissionais. No caso do TEA, participam diretamente
dos tratamentos psicólogos, psiquiatras, terapeutas ocupacionais,
fonoaudiólogos, nutricionistas, psicopedagogos e outros profissionais da saúde.
Naturalmente, também envolve os familiares e a escola, uma vez que os
tratamentos mais efetivos estão associados à reprogramação comportamental.
Assunto este para um pouco mais adiante nas aulas.
Como trouxemos aqui mitos sobre o autismo, muitas vezes provocados por
distorções, julgamos fundamental apresentar a transcrição literal do DSM-V,
descrevendo as Características Diagnósticas do TEA. A leitura atenta e a
compreensão das características é importante para diminuir equívocos de
interpretação.

Características diagnósticas
As características essenciais do transtorno do espectro autista são prejuízo
persistente na comunicação social recíproca e na interação social (Critério A) e
padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades
(Critério B). Esses sintomas estão presentes desde o início da infância e limitam
ou prejudicam o funcionamento diário (Critérios C e D). O estágio em que o
prejuízo funcional fica evidente irá variar de acordo com características do
indivíduo e seu ambiente. Características diagnósticas nucleares estão evidentes
no período do desenvolvimento, mas intervenções, compensações e apoio atual
podem mascarar as dificuldades, pelo menos em alguns contextos. Manifestações
do transtorno também variam muito dependendo da gravidade da condição
autista, do nível de desenvolvimento e da idade cronológica; daí o uso do termo
espectro. O transtorno do espectro autista engloba transtornos antes chamados
de autismo infantil precoce, autismo infantil, autismo de Kanner, autismo de alto
funcionamento, autismo atípico, transtorno global do desenvolvimento sem outra
especificação, transtorno desintegrativo da infância e transtorno de Asperger.
(Fonte: DSM-V, 2014)

13
Naturalmente, o diagnóstico do TEA está a cargo de profissionais da área
da saúde. No entanto, conhecer as características do Transtorno de Espectro
Autista é importante para aqueles que acompanham pessoas com TEA.
Reforçando, temos como características:

A) Comunicação social comprometida, interferindo na interação com os


outros;
B) Comportamentos, interesses e atividades seguem padrões restritos e
repetitivos;
C) Sintomas presentes desde o início da infância;
D) Sintomas trazem prejuízos no dia a dia do sujeito.

Estes são os sintomas nucleares, mas existem outros tantos e que variam
de pessoa a pessoa, alguns deles com maior prejuízo social, como a agitação, as
agressões a si próprio e aos outros. Outros são bem significativos nas atividades
escolares, como aqueles que envolvem a linguagem e a cognição.
O diagnóstico costuma ser clínico, isto é, baseado em observações,
entrevistas, e informações de maior número de fontes. Muitas vezes, existem
deficit verbais e não verbais de comunicação como expressões faciais rígidas, por
exemplo. Podem desenvolver gestos funcionais, mas seu repertório costuma ser
menor do que a população típica. Há também pouca espontaneidade no gestual,
sem conseguir provocar efeito desejado.
Observa-se comprometimento na linguagem; bem comum é a ecolalia, ou
fala em eco e outros comprometimentos. Mas, os casos leves têm a linguagem
oral preservada. Alguns sujeitos têm preferência por atividades individuais, outros
têm extrema dificuldade em iniciar qualquer tipo de interação.
Não há necessidade de citarmos todos os sintomas secundários,
importante é entendermos que cada caso é um e tanto para o tratamento quanto
para o acompanhamento serão implementadas ações distintas.

14
REFERÊNCIAS

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. DSM-IV. Manual Diagnóstico e


Estatístico de Transtornos Mentais. 4. ed. Porto Alegre: ARTMED, 2002.

_____. DSM-V. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais.


Porto Alegre: ARTMED, 2014. Disponível em: <http://www.niip.com.br/wp-
content/uploads/2018/06/Manual-Diagnosico-e-Estatistico-de-Transtornos-
Mentais-DSM-5-1-pdf.pdf>. Acesso em: 01 abr. 2021.

CHAVES DIAS, E., SOUSA ROCHA, J.; BEMFICA FERREIRA, G.; das GRAÇAS
PENA G. Dieta isenta de glúten e caseína no transtorno do espectro autista: uma
revisão sistemática. Rev Cuid [Internet]. 1 jan. 2018. Disponível em:
<https://revistacuidarte.udes.edu.co/index.php/cuidarte/article/view/485>. Acesso
em: 01 abr. 2021.

FLEISCHER, Soraya. Autismo: um mundo obscuro e conturbado. Mana, Rio de


Janeiro, v. 18, n. 1, abr. 2012, p. 231-235. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
93132012000100011&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 01 abr. 2021.

MARTINS, A.; MELO, E. O autismo e o potencial uso de inibidores do receptor


tipo 1A de Vasopressina para seu tratamento. Brazilian Journal of Health
Review, mar. 2020. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/publication/340031871_O_autismo_e_o_potencia
l_uso_de_inibidores_do_receptor_tipo_1A_de_Vasopressina_para_seu_tratame
nto_Autism_and_the_potential_use_of_Vasopressin_type_1A_receptor_inhibitor
s_for_your_treatment>. Acesso em: 01 abr. 2021.

PAIVA JR., F. Quantos autistas há no Brasil? Revista autismo, 01 mar. 2019.


Disponível em: <https://www.revistaautismo.com.br/geral/quantos-autistas-ha-no-
brasil/>. Acesso em: 01 abr. 2021.

PINI, G. et al. IGF1 as a Potential Treatment for Rett Syndrome: Safety


Assessment in Six Rett Patients. Autism Research and treatment, 13 jun. 2012.
Disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3420537/>.
Acesso em: 01 abr. 2021.

RIBEIRO, M. A. C.; MARTINHO, M. H.; MIRANDA, E. da R. O sujeito autista e


seus objetos. Revista A peste, São Paulo, v. 4, n. 2, jul./dez. 2012, p. 77-89.

15
Disponível em: <https://revistas.pucsp.br/apeste/article/download/22116/16225>.
Acesso em: 01 abr. 2021.

STELZER, F. G. Uma pequena história do autismo. São Leopoldo/RS:


Pandorga, 2010. Disponível em: <https://docplayer.com.br/6834601-Uma-
pequena-historia-do-autismo.html>. Acesso em: 01 abr. 2021.

16

Você também pode gostar