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Texto preparado para a Divisão de Camponeses e Pescadores do


Instituto Nacional de Desenvolvimento Agropecuário (INDAP)
do Chile no ano de 1968. Neste documento, elaborado no marco
do trabalho realizado no INDAP com camponeses e pescadores ,
se descrevem os Círculos de Cultura como uma “unidade básica
de operação” que tem como base um grupo de pessoas organizadas
em sindicatos, comités, cooperativas, associações de moradores ou
assentamentos, para debate em torno de temáticas comuns.
Tradução realizada por Fernando de la Cuadra a partir da cópia digitalizada
incluida no livro “Paulo Freire, crónica de sus años en Chile”, de autoria de Mar-
cela Gajardo, Santiago, FLACSO, 2019. Revisão da tradução: Débora Dias e
Adelaide Gonçalves. Desenhos de Paulo Freire incluídos no documento original.

O Círculo de Cultura é uma instituição de educação e cul-


tura popular, que funciona com técnica de educação informal,
auxiliada por recursos audiovisuais. Seu caráter dinâmico está
em correspondência não somente com os objetivos de um pro-
grama de promoção e organização de comunidades urbanas,
mas também, com a tomada de consciência que estas comuni-
dades têm dos seus problemas, ainda que em termos ingênuos.
Através destes Círculos, desenvolver-se-á um plano am-
plo de educação de adultos, que incluirá desde Alfabetização
até Cooperativismo, passando por múltiplas disciplinas de
interesse da comunidade.
Por este motivo, o Círculo de Cultura é uma instituição
dinâmica, enraizada na realidade local, regional e nacional,
sua programação deve refletir estas realidades e a captação
ou ponto de vista das comunidades e grupos com os quais
se vai trabalhar. Disso se depreende que sua programação
seja uma resposta aos anseios, às frustrações, às aspirações, às
esperanças dos grupos e comunidades.
A montagem de um Círculo de Cultura jamais deverá se fa-
zer de cima para baixo porque isto o transformaria numa insti-
tuição superposta ao meio e, por isso mesmo, sem efetividade.
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Sempre deverá se fazer de baixo para acima,o que lhe imprimi- sobre elas. Além do material visual preparado para a rea-
rá um caráter orgânico. Deverá surgir, não como uma dádiva lização dos debates, deveriam aproveitar-se os esforços do
de uma “elite”, mas como uma reivindicação da comunidade. setor “Teatro”. Neste sentido, alguns dos temas serão dra-
Assim,para a sua instalação,deverão adotar-se procedimen- matizados, sem apresentar solução alguma e entregues aos
tos especiais, prévios e concomitantes ao seu funcionamento. participantes com simplicidade para serem discutidos no
Antes de entrar na preparação dos quadros especializados momento. É importante também que se utilizem integran-
de promotores, deve-se proceder a fixação das aspirações co- tes dos grupos participantes para atuar na dramatização.
munitárias e interpretação dos objetivos das comunidades. Neste sentido, também devem usar-se gravações de entre-
Depois de ter fixado os temas e haver-lhes relaciona- vistas realizadas com técnicos e especialistas, em linguagem
do com os objetivos do Instituto, se iniciará a preparação acessível, para que os grupos discutam livremente sobre elas.
do material. Os temas escolhidos se codificam de modo a Assim, os temas que estão dentro dos objetivos do INDAP,
constituir núcleos de aprendizagem. Esta redução e codifi- serão tratados e discutidos de forma ativa, o que ajudará a
cação se efetuarão com a presença de especialistas dos vá- transformar a consciência “mágica” do homem rural num tipo
rios temas abordados. de consciência crítica e, estabelecendo-se, assim, uma relação
O material visual pode se fazer em Strip-filmes ou em orgânica entre o processo de aprendizagem e seu conteúdo.
cartazes, preferindo o Strip pelo impacto que tem a projeção A criação de um Círculo de Leitura, como já se apontou,
na comunicação visual. não pode ser feita de cima para baixo como se fosse uma dá-
Os núcleos com os temas devem constituir uma série com diva à comunidade. Como instituição de educação e cultura
uma sequencia adequada. As ilustrações dos temas que po- popular, voltada para a promoção do homem, dos grupos da
dem ser fotografias, desenhos, pinturas, etc. corresponderão à comunidade, deve ser entendida por eles como sua própria
realidade existencial dos grupos e aos objetivos do programa. reivindicação.
É absolutamente indispensável a preparação de textos Aproveitando, por exemplo, a reunião de sócios de uma
populares, formando pequenos livros e folhetos ilustrados cooperativa, o encontro de pessoas que assistem a um espe-
para as pessoas já alfabetizadas. táculo ou que se reúnem em qualquer ocasião, é que se pode
Nos Círculos de Cultura, acompanhados pelo pessoal já lhes falar da possibilidade de fazer reuniões – duas ou três
devidamente preparado, os grupos de “participantes” (que vezes por semana – para a discussão de problemas. Se se
substituem os alunos da escola tradicional) decodificam os aceita a sugestão, pode-se propor a criação de um Círculo de
temas codificados. Cultura. Este Círculo de Cultura pode funcionar na casa de
A tendência natural destes Círculos é a transformação uma das pessoas, ou na sede da cooperativa, na sacristia de
gradual, e as vezes muito rápida, de “grupos de estudos” em uma igreja ou na escolinha rural.
“grupos de ação”. Na realidade, a medida que os grupos vão Tem que advertir que, nestas reuniões, não estará nem um
sendo desafiados por situações cada vez mais problemáti- professor, nem um conferencista de ares doutorais, mas que
cas, eles desenvolvem, com o diálogo, sua consciência, escla- os assuntos de maior interesse da comunidade serão discuti-
recendo-a, e passam da compreensão das situações à ação dos democraticamente.
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Depois de obter a adesão do grupo para a discussão dos para a animação dos debates, mas, sobretudo, a respeito da
seus problemas, se fará informalmente uma fixação dos te- condução dos mesmos.
mas de interesse imediato do grupo. O educador perguntará Esta preparação requer:
seguidamente os temas que os assistentes quiserem ter como Uma mudança de atitude. De uma atitude autoritária a
matéria da aprendizagem. A medida que vão surgindo as uma dialogal.
respostas, elas devem ser anotadas pelo educador. A renúncia a exposições verbalistas.
Também se deverá estimular aos assistentes mais passivos Adoção do diálogo que se funda na procura amorosa, hu-
para que eles também tomem parte da reunião. O temário milde e crítica de algo.
será, então, estudado pela equipe central tão rapidamente Superação de uma posição ingênua, para a qual o “ho-
como seja possível. mem simples” nada sabe e, como nada sabe, deve-se lhe en-
A programação deverá efetuar-se baseando-se neste te- sinar uma atitude nova que afirma que o homem simples
mário obtido nas reuniões de base. Os temas se codificam e sabe essencialmente porque é homem. Mas, este conheci-
vêem-se os meios com os quais se vai ativar o Círculo. mento deve ampliar-se e aprofundar-se. A atitude dinâmica
Podem-se instalar tantos Círculos quanto sejam os gru- o identifica com o aprendizado. Deve-se tentar a superação
pos, com um máximo de 25 pessoas interessadas em discutir da captação, compreensão mágica ou ingênua das coisas e
os temas, considerando, além do mais, as disponibilidades dos fatos, por uma captação cada vez mais ajustada da cau-
gerais com que se conta. salidade autêntica da qual resulta uma compreensão cres-
Nas experiências realizadas no Brasil, era impressionante o centemente crítica.
interesse de homens simples por discussão de temáticas con- Esta mudança é promoção em si. É difícil, mas não ir-
sideradas geralmente de interesse estritamente universitário. realizável. Se não se obtém uma mudança desta natureza,
Será muito importante a fixação crescente de temas, os é impossível um esforço de promoção como Autopromo-
mais variados, cuja discussão interessa às comunidades ru- ção. A distância cada vez maior entre “cultos” e “incultos”
rais. A riqueza de material que, deste modo, se reunirá, será provoca atitudes paternalistas com relação a estes últimos.
um aporte valioso para todo esforço de promoção que se Uma atitude paternalista é o trato dos “adultos” para com os
empreenda no futuro. “menores”. Daí a dificuldade para o diálogo.
Será possível, pouco a pouco, o conhecimento da temá- A relação dialogal entre A e B é amorosa, humilde, crí-
tica popular rural, reduzida e codificada. Isto faria possível a tica e esperançada. É uma relação comunicante e criadora.
publicação de um catálogo de temas chilenos. A relação de diálogo é resistida por aquelas pessoas que se
acham donas de uma “verdade” que impõem paternalmente
A capacitação do pessoal aos “Menores”.
Uma formação vertical, anti-dialogal, que se recebe em
Um dos aspectos mais importantes num trabalho como muitas escolas, gera atitudes que resistem à mudança. Resis-
este é a capacitação do pessoal que atuará. Não só no refe- tência que é maior, pois, está referida a um sistema de valo-
rente ao mínimo de conhecimentos básicos indispensáveis res, a uma visão de mundo.
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Daqui, a necessidade de capacitar o pessoal para supe- - Humilde


rar crenças ingênuas em torno do homem simples (relações - Esperançado
com o mundo, seu poder criador, etc.). A capacitação é con- - Confiado
vicção, não imposição. A convicção leva ao convencido a - Crítico
assumir existencialmente aquilo de que se tem convencido
intelectualmente. O diálogo nasce de uma atitude crítica e gera criticidade.
Os convertidos à promoção podem ajudar a que outros se Alguém comunica realmente algo a outro, na medida que
promovam. A preparação do pessoal exige: se estabelece em suas relações uma curiosidade criadora. Há
a) Uma visão filosófica da promoção; diálogo na medida em que existe um esforço humilde de
b) Uma metodologia da ação; averiguar, de conversar e em que a gente não se julga dono
c) Análise da realidade chilena (histórica, cultural, de uma verdade que impõe ao outro. Para que exista comu-
econômica); e nicação é indispensável que exista respeito à pessoa com a
d) Conhecimento mínimo indispensável ao educador qual a gente se relaciona.
dos campos de ação no rural. Ainda que o objeto da comunicação seja um conheci-
mento de ordem técnica absolutamente comprovado, é ne-
Esta preparação deve ser dialogal (seminários, discussões, cessário que a atitude de quem intenta a comunicação se
críticas de folhetos, etc.). O uso de ajudas audiovisuais é ne- dirija no sentido de estimular o poder criador do outro.
cessário. A capacitação deve dar ênfase à convicção de que No caso do homem rural – que nos interessa mais de
esta filosofia da promoção é a única correta, mas sem cair perto – muitos dos seus procedimentos, que envolvem “co-
nos erros já denunciados. nhecimentos” técnicos (formas de semear, de tratar a terra,
de arar, etc.) estão fundados numa captação mágica da rea-
Diálogo lidade. Não será, então, por meio de informes verticalmente
feitos como que se mudam realidades.
Estes relatórios seriam “comunicados” e não comunicação.

Anti-diálogo

Relação de simpatia quebrada. Nasce de uma atitude


acrítica que não gera criticidade.

O anti-diálogo é:
Relação de “simpatia” na procura de algo (Inter-confian- - Desamoroso;
ça). O diálogo é: - Sem humildade;
- Amoroso - Sem esperança;
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rendimento no aprendizado, é preciso assegurar uma deco-


dificação eficiente da informação.
Na decodificação, surgem vários elementos de “perturba-
ção”, que diminuem o rendimento da aprendizagem. É que,
sendo a codificação pedagógica plural, em seus elementos de
informação, tem variáveis que, não sempre, são bem ordena-
das na sua captação.
Daí a necessidade do coordenador de debates auxiliar na
decodificação. Na educação tradicional, de modo geral, co-
dificação e decodificação são feitas pelo próprio professor.
Daí a passividade dos alunos, meros recipientes da informa-
- Não inspira confiança; ção. Num trabalho de verdadeira promoção, cabe ao educa-
- Acrítico. dor (coordenador de debates), garantir a dinâmica do grupo.

O anti-diálogo não comunica. Não estimula o poder cria-


dor, não propicia a superação da captação e da compreensão
mágica ou ingênua pela compreensão crítica. Do anti-diá-
logo resulta o comunicado que não conduz à comunicação.
É algo imposto, é doado por A para B. No anti-diálogo, B
recebe passivamenteas “fórmulas” que A lhe impõe. B pro-
priamente não incorpora nada para ele mesmo, toda vez que
a incorporação exige de quem a faz o esforço de busca, de
reinvenção, que o anti-diálogo não oferece.
O anti-diálogo é, por isso, essencialmente antipromocional.

Codificação e Decodificação

Posto adiante de uma Codificação, não pode o grupo de


educandos funcionar passivamente, como se fosse um mero
receptor da informação. Pelo contrário, o grupo deve ser
ativo, fazendo ele mesmo a decodificação com a ajuda do
coordenador.
Há, assim, comunicação, que na última análise é interco-
municação, resultante do diálogo. Para obter um máximo de

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