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Discricionariedade administrativa

24 : Considerações iniciais: discricionariedade e vinculação

Quando a Administração é habilitada a exercer poderes unilaterais perante os administrados, através da prática de
atos administrativos, impõe-se que a normas que autorizam essa intervenção adote a estrutura da programação
condicional: hipótese (‘se’), conector deôntico (‘pode’, ‘deve’, ‘tem de’) e estatuição (‘medida a adotar’).

A norma de competência indica ainda o ‘fim’ ou a ‘finalidade’ das medidas e providências da Administração e
fornece, na estatuição, uma indicação mais ou menos precisa sobre o conteúdo da medida (ex.: ‘quem’, ‘quando e
para quê’ e ‘o quê’).

O tema da discricionariedade relaciona-se sempre com uma ‘abertura da norma’, com o emprego pelo legislador ou
pelo autor da norma de competência de uma técnica de abertura na formulação dos preceitos normativos.

O oposto da discricionariedade é a vinculação.


Regista-se esta segunda situação quando a norma de competência:
« Indica de forma fechada, definitiva ou taxativa as circunstâncias que desencadeiam a intervenção
administrativa
« Estabelece que a Administração tem de agir quando estes pressupostos se verifiquem (norma obrigatória)
« Define, de forma rigorosa e fechada, em que consiste esta ação.

O ato a praticar ao abrigo de uma norma assim estruturada corresponde a ‘um ato administrativo estritamente
vinculado’, ou seja, um ato administrativo cuja prática é legalmente devida e que, nos termos da lei, deve ser
praticado com um determinado conteúdo.
A discricionariedade, enquanto oposto de vinculação, supõe que a norma de competência formule uma ‘disciplina
incompleta do poder’, ou seja, que não defina de modo pontual todos os aspetos operativos da ação administrativa.

25 : Discricionariedade administrativa:
‘espaço de autonomia da Administração’

A AP está sujeita à lei e ao direito. Toda a ação administrativa, em qualquer das formas que assuma, tem de se
basear e de se poder reconduzir a uma norma jurídica estabelecida ex ante.

Salvo em situações marginais, de habilitação conferida por normas da UE ou da CRP, a ação administrativa baseia-
se, de forma direta e imediata, em leis ou em regulamentos administrativos, os quais se baseiam, por sua vez, em
leis. Ou seja, a habilitação da ação administrativa reside, em regra, de forma direta ou indireta, na lei.

25.1. Compreensão inicial: discricionariedade como espaço livre e não jurídico

A ideia de vinculação da Administração à lei conduziu à compreensão da função administrativa como uma função de
aplicação ou de execução da lei. Levando, em outros tempos, a que à Administração coubesse executar mecânica e
automaticamente as determinações da lei.

Mas em contraposição a esse espaço de vinculação, admitia-se um espaço de não-vinculação, em que a


Administração poderia atuar livremente sem fundamento numa lei – um espaço de discricionariedade administrativa.
A discricionariedade equivaleria a uma liberdade própria da Administração para atuar em áreas e dispor sobre
assuntos e matérias não reguladas por lei.
Assim, discricionariedade e legalidade eram dois hemisférios separados que não se misturavam, não se cruzavam e
nem se sobrepunham. Além disso, a discricionariedade era concebida como um poder não jurídico, de ‘pura
administração’, exercido num quadro de plena liberdade, situado fora do direito. E por isso, era vista como uma
esfera reservada da Administração, a discricionariedade delimitava um espaço no qual os tribunais não poderiam
entrar: discricionariedade corresponderia a injusticiabilidade.

25.2. Discricionariedade como espaço jurídico autorizado por lei

O alargamento do princípio da legalidade e a sujeição de toda a atividade administrativa à lei, pôs em causa a
conceção da discricionariedade como espaço não jurídico. Esta ideia de que a discricionariedade se situa fora da lei
não pode manter-se uma vez que não há ação administrativa fora da lei. A Administração não tem um poder próprio
de escolher e definir as suas ações ou os fins das mesmas.

A discricionariedade transformou-se numa competência legal confiada e entregue ao agente administrativo. O


poder discricionário passou a ser, e é hoje, um poder ao serviço de uma função e de uma finalidade: a realização do
interesse público indicado na norma de competência.

A discricionariedade corresponde a um poder de determinação e de escolha de efeitos jurídicos que a


Administração exerce com base em valorações próprias, mas tem de se orientar ou guiar, nesse exercício, por
cânones jurídicos, como a adequação, a proporcionalidade, a imparcialidade ou a razoabilidade.

Não há ‘decisões discricionárias’, há, pode haver, isso sim, momentos discricionários de decisões administrativas,
momentos esses que se entrecruzam com momentos vinculados.

25.3. Discricionariedade como espaço de autonomia da Administração e de liberdade de decisão


administrativa

A discricionariedade administrativa é aqui assumida como o espaço de autonomia ou de liberdade de decisão de


que desfruta a Administração numa situação concreta e individualizada, referindo-se a um poder situado numa
relação jurídica que se desenvolve entre a administração e um ou vários administrados determinados.
Claro que o uso de vocábulos como ‘autonomia’ ou ‘liberdade’ requer a máxima cautela, uma vez que a
Administração não tem liberdades nem goza de autonomia para definir os fins das suas ações.
A Administração não é um poder livre da lei e do direito, mas também não deve ser concebido como poder
subalterno, totalmente subjugado à lei e aos tribunais.

A ‘liberdade de decisão administrativa’ só é atribuída e reconhecida na medida em que exista uma justificação
(podendo essa justificação concreta, em cada caso, descansar em múltiplos fatores).
A discricionariedade administrativa não deve, pois, ser aceite, como uma espécie de ‘mal necessário’ ou como um
espaço de autonomia da Administração que os tribunais, por razões práticas têm de tolerar. O poder discricionário
da Administração é um elemento essencial de uma compreensão adequada do princípio da separação e
interdependência de poderes, em que a Administração não pode ser o parente pobre dos 3 poderes clássicos.

27 : Noção de discricionariedade administrativa

Poder conferido por uma norma de competência à AP para que esta, com base nos seus próprios juízos de
apreciação e valoração, decida, em última instância, sobre a medida a adotar numa situação concreta.
27.1. Poder conferido à Administração pela norma de competência

A discricionariedade refere-se a um poder conferido por uma norma jurídica ao agente administrativo, o qual é
chamado a aplicar essa norma numa situação concreta da vida, mediante uma decisão.

O poder discricionário tem uma fonte normativa, resulta da concessão ou da autorização do poder normativo através
da abertura normativa.

A determinação da existência do poder discricionário depende de uma interpretação jurídica. É por interpretação da
norma de competência que se define uma premissa essencial sobre a presença de um poder discricionário. É a
interpretação da norma que indica se e quando existe discricionariedade (a atividade interpretativa visa revelar e
clarificar o texto da norma de modo a poder determina-se o seu âmbito e o seu sentido).

27.2. Valorações próprias da Administração

É ainda por via da interpretação da norma de competência que se vai poder concluir sobre se o poder por ela
conferido convoca ou faz apelo a valorações próprias, ‘privativas’, que se devam considerar ‘reservadas’ à
Administração. Assim se designam as apreciações, os juízos de valor, valorações e ponderações que a Administração
tem de fazer para poder decidir nos termos da norma de competência.

A valorização administrativa não se esgota na formulação de juízos isolados de apreciação, avaliação ou de


qualificação de factos ou qualidades de pessoas ou coisas. A valorização que a norma confia ao agente pode incidir
apenas sobre a eleição da medida, da melhor medida, que vai adotar no caso concreto.
Os juízos isolados de apreciação e os juízos de ponderação valorativa são elementos do que se pode designar
‘autonomia de valoração da Administração’ (valoração que pode ser atual ou prospetiva).
Podemos então concluir que um poder é discricionário porque o seu exercício em concreto, que se materializa numa
escolha, numa seleção entre alternativas, se baseia em valorações e juízos que o sistema jurídico deve reconhecer e
assumir como próprios e privativos da Administração, ou em valorações próprias do exercício da função
administrativa.

27.3. Escolha da medida a adotar numa situação concreta - decisão

A discricionariedade pressupõe e assenta num momento valorativo, na formulação de juízos sobre os factos ou
situações a que a decisão responde, bem como sobre as medidas a adotar; depois das valorações e ponderações
valorativas, e com fundamento nestas, o exercício efetivo da discricionariedade vai materializar-se num momento
volitivo, na tomada de uma decisão e, em especial, na escolha do conteúdo ou substância dessa decisão.

O poder discricionário consubstancia-se num poder de escolha, de seleção e de decisão sobre a medida, a adotar
num caso determinado.

27.4. Decisão da Administração em última instância

Em todos os elementos analisados até aqui, esteve sempre presente uma compreensão do exercício da
discricionariedade como um processo que se materializa na escolha de uma medida pela Administração com base
numa norma de competência (em regra, uma norma legal). Neste sentido, a discricionariedade envolve uma ação
conjugada do legislador e da Administração.

Num tempo posterior ao exercício do poder discricionário, poderá intervir um tribunal, ao qual pode ser solicitada a
apreciação da legalidade da decisão discricionária. Ora só existe discricionariedade, como um espaço de valoração
e de decisão próprio e reservado do agente administrativo, se este tiver a última palavra sobre a escolha
discricionária, se decidir em última instância. A discricionariedade exige assim que, se vier a ser chamado a apreciar
uma decisão administrativa, o tribunal ‘respeite’ o espaço de valoração próprio da Administração.

Mas, claro, isto abrange exclusivamente o momento especificamente discricionário da decisão, não os elementos
vinculados, que também existem, os quais estão expostos a apreciação judicial.

Vimos antes que o poder administrativo discricionário é o resultado de uma divisão de competências entre o
legislador e a Administração. Pois, podemos concluir agora que essa leitura não permite compreender a
discricionariedade na sua inteireza. Uma leitura global só se alcança quando se considera um plano tripolar, um
processo de divisão de competências entre legislador, Administração e tribunais.

28 : Limites jurídicos e
critérios do exercício do poder discricionário

A escolha discricionária é, em si mesmo, uma decisão jurídica, uma vez que, por força de um dever jurídico que
comanda o poder de escolha da Administração, aquela deve ser a decisão certa, correta e justa: é o que exige o
dever de boa administração. Mas não se esgota dentro desses limites a juridicidade do poder discricionário.
Além dessa juridicidade inerente ao dever de boa administração, a discricionariedade é um poder orientado
juridicamente, que tem de ser exercido segundo critérios e padrões jurídicos, e que se desenvolve dentro de limites
legais e jurídicos.
Em território de uma ‘juridicidade perfeita’ existe, para a Administração, um imperativo de correto exercício da
discricionariedade. Quer isto dizer que o poder discricionário se apresenta como um poder vinculado; o exercício do
poder discricionário é limitado juridicamente por critérios jurídicos.

28.1. Limites jurídicos ao exercício da discricionariedade

Além de ter de respeitar limites resultantes imediatamente da norma de competência que lhe atribui o poder
discricionário, o agente administrativo tem ainda de respeitar outros limites

a) Respeito no âmbito da norma de competência

Em primeiro lugar a decisão ou escolha tem de ser feita dentro dos limites especificamente previstos na norma de
competência; o agente só é autorizado a agir com discricionariedade no âmbito da autorização.
Assim é porque o poder discricionário é atribuído ao agente para ou em função da prossecução de um fim definido
externamente. A discricionariedade visa a realização de uma finalidade, em concreto o interesse público revelado
pela norma de competência.

A discricionariedade administrativa consiste num «poder-dever», num poder que se encontra funcionalizado, porque
atribuído para que o agente prossiga o interesse público e, para que, no seu exercício, alcance a realização máxima
ou ótima deste interesse. O dever de prosseguir o fim legal, não existe, porém, uma absolutização desse interesse;
reclama-se do agente uma atitude de equilíbrio, de ponderação de outros interesses relevantes (públicos e
privados).

O desrespeito pelo fim definido, pelo interesse público indicado na norma, origina um vício de ‘desvio de poder’ ou
de ‘uso indevido da discricionariedade’. A finalidade concretamente prosseguida, de forma ilegal, porque estranha
ao fundamento previsto na norma de competência, poderá ser ainda de interesse público ou responder já a um
interesse particular: no primeiro caso, temos um desvio do poder para fins de interesse público, no segundo, um
desvio de poder para fins de interesse particular.
Vale ainda referir que nem sempre o uso indevido da discricionariedade é determinado por uma intenção do agente
no sentido de mobilizar o poder administrativo para fins não previstos (ex.: erro resultante de uma deficiente leitura
do caso real, ou da consideração de elementos incorretos ou inexatos: erro de facto, ou erro material).

Também representa desrespeito dos limites do âmbito da autorização o fenómeno do abuso da discricionariedade.

b) Outros limites

O agente administrativo tem ainda de respeitar limites gerais da ordem jurídica, pelo que não pode, por ex.: infringir
quaisquer disposições legislativas ou quaisquer normas jurídicas aplicáveis ao caso.

Limites de ordem geral são também os que decorrem de uma eliminação ou ‘redução da discricionariedade a zero’.
A figura refere-se a situações em que, apesar de a norma de competência conferir à partida um poder discricionário
à Administração, a apreciação das circunstâncias do caso apenas permite identificar uma única solução como
juridicamente possível ou legítima.

A eliminação ou desaparecimento do poder discricionário pode resultar das circunstâncias específicas do caso
concreto, que elimina alternativas decisórias, ou de atuações anteriores da Administração, em conexão com os
princípios da igualdade e da boa-fé.

28.2. Critérios jurídicos do exercício do poder discriminatório

Além de se desenvolver no respeito de limites no âmbito da autorização, o poder discricionário tem de ser exercido
segundo critérios (regras) jurídicos, decorrentes, desde logo, da exigência de procura da melhor solução para o
interesse público.
a) Conhecimento integral, exato e correto dos elementos pertinentes

Em primeiro lugar, o agente tem o dever de identificar e de avaliar todas as circunstâncias e elementos relevantes ou
pertinentes para se colocar em posição de exercer corretamente o seu poder discricionário. Da mesma forma que
está obrigado a não atender, a despistar, a descartar todos os elementos e circunstâncias que não sejam relevantes
para o mesmo efeito.

Seja qual for o canal de abertura discricionária que a suporta, a decisão discricionária, para ser legal e justa, tem de
ser uma decisão informada, materialmente fundada e baseada no conhecimento e na consideração de todos os
elementos pertinentes.

b) Exercício adequado do poder de apreciação

Além da decisão discricionária dever ser informada, a Administração deve fazer uma representação correta desses
elementos e deve utilizá-los de forma lógica, racional, no desenvolvimento do processo decisório. A Administração
não deve ter apenas o conhecimento certo de todos os elementos pertinentes, deve saber interpretá-los e,
sobretudo, aplicá-los corretamente.

Com frequência, a norma de competência convoca juízos de apreciação, de valoração e de qualificação da


Administração sobre factos ou situações; e o mesmo sucede em casos em que a Administração se encontra
incumbida de competências de avaliação de pessoas ou de coisas ou de situações.

A formulação de juízos como estes deverá orientar-se segundo o princípio da adequação da decisão à situação, à
finalidade indicada na norma de competência. Aplicado à decisão baseada num poder de apreciação, o princípio da
adequação postula a correspondência racional entre a decisão da Administração e a situação concreta.
Embora com uma intensidade mais fraca, aplica-se também aqui o princípio da razoabilidade, que impõe à
Administração o dever de rejeitar as soluções manifestamente desrazoáveis em matéria das valorações próprias do
exercício da função administrativa.

c) Imparcialidade e proporcionalidade na ponderação dos interesses relevantes

A valoração na qual a decisão se baseia, pode recair sobre a qualificação e avaliação de factos e situações, mas
também sobre os vários interesses envolvidos e que devam ser ponderados quando se trate de construir a melhor
medida sempre que a norma atribui ao agente a responsabilidade de escolher entre agir ou não agir, ou de optar
entre medidas alternativas.
A decisão discricionária haverá de ser uma decisão ponderada segundo critérios jurídicos, deve basear-se num
processo de ponderação valorativa de todos os interesses relevantes na situação concreta. Dentro dos limites da
norma de competência, e tendo presente a finalidade prosseguida com a atribuição do poder discricionário, o
agente administrativo terá de considerar e ponderar outros interesses públicos relevantes, bem como os interesses
particulares em presença.

Surge aqui um processo de ‘aquisição’ de interesses, orientado pelos princípios da legalidade e da imparcialidade.

A consideração e a ponderação de ‘outros’ interesses relevantes, legítimos e dignos de proteção concretiza a ideia
de uma não absolutização ou da recusa da predominância sistemática, absoluta e automática do interesse público
essencial ou primário. Nos termos da CRP e da lei, a prossecução do interesse público efetiva-se no respeito pelos
direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, o que implica, para a Administração, uma efetiva
proibição de discriminação ou desconsideração dos interesses particulares relevantes no contexto da decisão a
proferir.
Apesar do dever de consideração de todos os interesses relevantes no contexto decisório, o interesse público que
se revela na norma de competência é, com certeza, o interesse crucial, essencial.

Além do princípio da imparcialidade, o processo de decisão deve também ser orientado pelo princípio da
proporcionalidade. O princípio da proporcionalidade desdobra-se na já referida exigência de adequação dos meios
aos fins ou idoneidade.

Esta exigência de adequação impõe-se quanto a todas as decisões da Administração que envolvam escolhas.
Em concreto exige-se que a Administração se oriente por uma regra do meio mais suave (o que envolve o menor
sacrifício dos interesses agredidos).

Por fim, o princípio da proporcionalidade contempla uma exigência de proporção em sentido restrito: a decisão
deve ponderar os interesses em confronto no sentido de alcançar uma ‘justa medida’ entre sacrifício e ganho ou
vantagem. O sacrifício que a decisão provoca no interesse lesado deve ser proporcional à vantagem que gera para
o interesse público beneficiado; regra da proibição do excesso: a Administração não deve impor sacrifícios
desproporcionais, excessivos em relação aos benefícios alcançados.

O princípio da proporcionalidade tem dois subprincípios:


« Necessidade
« Proporcionalidade em sentido estrito (proibição de excesso)

No que diz respeito à tomada da decisão, além da imparcialidade e proporcionalidade, também a justiça e a boa-fé
podem surgir como critérios de orientação. Sendo que se trata de princípios jurídicos, não de regras rígidas.

29 : Âmbito da discricionariedade:
as aberturas normativas discricionárias
A discricionariedade administrativa é o resultado de uma ‘decisão legislativa’ que se materializa na definição de uma
‘abertura’ na norma de competência.

As normas de competência que autorizam a adoção de decisões administrativas concretas e individuais adotam a
estrutura da programação condicional, fornecendo uma indicação sobre o órgão competente para agir, sobre as
circunstâncias que esse órgão pode ou deve agir e o fim a prosseguir, e, por fim, sobre o poder a exercer, a medida
a adotar, pelo mesmo órgão: ‘quem’, ‘quando e para quê’ e ‘o quê’ são as indicações que em geral se devem extrair
da norma de competência.

A discricionariedade reside essencialmente numa abertura da norma de competência sobre a indicação do ‘quando’,
em que circunstâncias, ou de ‘o quê’, do conteúdo das medidas a adotar. Num ou noutro desses elementos, a
norma convoca uma valoração própria da Administração, autorizando-a a proferir uma decisão com base nessa
valoração. A discricionariedade reside sempre numa tarefa mista, que abrange a apreciação e a decisão.

A abertura discricionária pode então dizer respeito ao ‘quando’, encontrando-se na previsão normativa, na definição
ou enunciação dos pressupostos, por via da utilização de conceitos jurídicos indeterminados. Mas também pode
resultar do enunciado da estatuição da norma, na indicação de ‘o quê’, das medidas que podem ser adotadas, ou na
formulação do conector deôntico, do elemento estrutural de ligação entre a hipótese e a estatuição. Podemos ainda
ter situações de acoplamento, se a norma de competência define canais discricionários na identificação dos
pressupostos e na estatuição.

29.1. Conceitos jurídicos indeterminados na hipótese da norma de competência

As diferentes origens das aberturas discricionárias explicam diferentes graus de dificuldade na identificação da
intencionalidade legislativa de conferir poderes discricionários. Mas a intencionalidade da decisão, nem sempre se
revela tão clara quando se está em presença de uma competência de apreciação definida com a mobilização de
conceitos jurídicos indeterminados utilizados no recorte hipotético da norma.

Na medida em que constitua uma forma de abertura discricionária, o emprego de conceitos indeterminados na
hipótese da norma está, em regra, associado à formulação de juízos isolados, suscitando uma apreciação de sim ou
não, no contexto de um juízo de adequação que não envolve uma ponderação valorativa de interesses. Mas essa
não é uma regra taxativa, uma vez que há conceitos imprecisos na hipótese que recamam uma ponderação
valorativa de interesses concorrentes.

29.1.1. Conceitos jurídicos indeterminados

Conceitos abertos e cláusulas indeterminadas como ‘acidente grave’, ‘pessoa idónea’, ‘capacidade de resolução de
problemas complexos’, ‘acentuada carência de recursos’, ‘incumprimento persistente’, e outros do mesmo tipo,
surgem nas normas jurídicas administrativas.

Tratam-se, em todos esses casos, de cláusulas legais que empregam «conceitos jurídicos indeterminados», conceitos
formulados mediante um enunciado impreciso ou vago e que, por isso, têm, no contexto da norma, uma extensão
incerta. A indeterminação destes conceitos não se resolve com recurso às ferramentas de metodologia jurídica de
interpretação de normas. Em casos como estes, trata-se de abrir um espaço ao aplicador da norma para fazer
apreciações, formular valorações, emitir juízos de valor sobre uma situação, um facto ou qualidades de coisas ou
pessoas.
Neste sentido, conceitos indeterminados não são conceitos de interpretação difícil ou conceitos ambíguos, cuja
ambiguidade se possa resolver por uma interpretação que lhes defina o sentido exato. Trata-se de conceitos
imprecisos que por causa dessa sua imprecisão, apresentam-se elásticos e com uma extensão incerta.

Estes conceitos jurídicos indeterminados não devem confundir-se com os designados ‘conceitos classificatórios’, os
quais, mesmo quando aparentemente indeterminados, referem-se a situações individualizáveis e, em função da
experiência, de conhecimentos técnicos, científicos ou jurídicos, conhecem apenas uma possibilidade de aplicação
em cada caso; não revelam qualquer flexibilidade, plasticidade ou capacidade de aplicação.
A aplicação do conceito classificatório só permite uma única solução correta, razão pela qual se tem de concluir que
o emprego do mesmo pela norma de competência não significa uma abertura discricionária. Na interpretação e
aplicação desses preceitos, o agente administrativo não desenvolve um processo de valoração, de apreciação
valorativa, nem é chamado a formular um juízo próprio. O ordenamento jurídico reclama, no âmbito da aplicação
destes conceitos uma decisão da Administração apoiada na objetividade, não na opinabilidade.

Deve ter-se ainda presente que, um conceito (verdadeiramente) indeterminado pode ser objeto de definição legal.
Esta pode ter o propósito de eliminar a indeterminação, para efeitos de aplicação do regime jurídico em causa.
Pode, no entanto, suceder que a lei apenas diminua (sem eliminar) a indeterminação de um conceito. Por fim, a lei
pode fornecer uma indicação sobre alguns casos típicos ou indiciadores da aplicação correta do conceito.

29.1.2. Conceitos jurídicos indeterminados como fonte de discricionariedade

A utilização de conceitos jurídicos indeterminados em sentido próprio na descrição dos pressupostos, na previsão da
norma, pode constituir um modo de a norma de competência conferir discricionariedade ao agente administrativo –
discricionariedade de apreciação.

Dizemos ‘pode constituir’ porque a circunstância de uma norma administrativa utilizar um conceito indeterminado
não significa necessariamente que nele esteja presente uma intenção de devolver à Administração a última palavra
sobre a aplicação do conceito indeterminado: a discricionariedade administrativa exige que se possa retirar da
norma legal uma intencionalidade de abertura para uma valoração própria da Administração.
Sem a presença dessa intencionalidade, não se pode atribuir à decisão da AP o sentido de decisão de última
instância sobre a valoração de um conceito. O poder discricionário, além de envolver a intervenção conjugada da
legislação e da Administração, exige ainda que o tribunal, se vier a ser chamado a apreciar a decisão da
Administração, respeite a valoração administrativa. Assim, só se estará perante um poder discricionário quando o
agente administrativo tenha uma liberdade de decisão não apenas em face do legislador, mas também em face do
tribunal.

O primeiro passo consiste em identificar o tipo de valoração que o conceito indeterminado suscita, de modo a
perceber-se se faz apelo à experiência e a apreciações que se possam considerar próprias da Administração.
Por outro lado, há conceitos indeterminados intrinsecamente associados à descrição do núcleo típico das
competências de uma autoridade administrativa.
Além disso, surgem conceitos que remetem para o saber específico da Administração, para a sua perícia ou
expertise, os seus conhecimentos especializados, a sua formação e competência técnica.

Noutros casos, a competência de apreciação pode assumir uma natureza discricionária em razão de ser da especial
preparação técnico-científica do órgão administrativo ou da legitimação especial da autoridade responsável
decorrente da sua composição aberta e plural.

Acrescem ainda as situações em que a norma define competências decisórias que se sustentam na ponderação de
situações e problemas complexos, que exigem a adoção de medidas em situações de incerteza ou de risco e que,
em geral, têm de se basear em juízos prospetivos, estimativas e projeções. Também nestes casos, os conceitos
indeterminados convocam um poder de apreciação próprio da Administração que, em regra, o tribunal deve
respeitar pelo facto de resultar da mobilização de competências e conhecimentos técnicos que oferecem garantias
de utilização dos instrumentos idóneos nos processos de análise prospetiva e de estimativa futura sobre a evolução
de situações.

Aos casos anteriores, juntam-se os das decisões administrativas com um impacto político ou com consequências
políticas.
Em todos os casos indicados, os conceitos indeterminados empregados na norma de competência são uma fonte de
discricionariedade e, portanto, remetem para um espaço de valoração própria da Administração que se manifesta na
decisão.

Num grau ainda mais elevado de atribuição de discricionariedade, temos conceitos como ‘interesse público’ ou
‘mérito, conveniência ou oportunidade’ que as normas de competência também empregam na definição dos
pressupostos do exercício do poder que conferem ao agente administrativo.
Nem todos os conceitos jurídicos indeterminados conduzem a um tal resultado, a indeterminação no modo de
descrição da hipótese normativa não corresponde sempre, em todos os casos, a uma abertura discricionária. Exige-
se que a indeterminação seja o corolário de uma intenção legislativa (da norma de competência) de autorizar um
poder discricionário da Administração.

A situação apresenta-se nos mesmos termos quanto a conceitos como ‘boa-fé’, ‘moralidade’, ‘idoneidade moral’,
‘moral’, ‘bons costumes’: também estes convocam uma valorização para a qual a Administração não está em
situação que a autorize a decidir em última instância. O tribunal realiza, também neste caso, um controlo total da
decisão que aplica o conceito.

Por outro lado, entende-se que, por razões de transparência e de igualdade de tratamento dos administrados e no
sentido de aumentar a racionalidade do seu processo decisório, a Administração deve, em geral, densificar e
precisar previamente os critérios que vai seguir no exercício de poderes de apreciação e de avaliação – redução da
indeterminabilidade de conceitos normativos.

Cumpre ainda observar que, em relação a matérias protegidas pela reserva de lei parlamentar, como é o caso dos
direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, impõe-se ao legislador, ou ao autor do regulamento administrativo,
um dever de especial contenção no emprego de conceitos jurídicos indeterminados na definição das normas de
competência, de modo a evitar as indefinições e as aberturas normativas em áreas da ação administrativa que
interferem diretamente com essas matérias.

A maior densificação das normas de competência também se deve fazer exigir nas normas que conferem
competências sancionatórias à Administração. Aqui, o propósito da determinação, da garantia de um ‘mínimo de
determinabilidade’, não consiste em diminuir a discricionariedade da Administração, mas, antes, em diminuir a
indefinição da conduta ilícita e, consequentemente, a indefinição da sanção aplicável. De resto, no caso do ilícito de
mera ordenação social, a questão da discricionariedade administrativa na aplicação de sanções não se coloca, uma
vez que os tribunais têm poderes de plena jurisdição na apreciação dessas decisões administrativas.

29.2. Permissões de ação

Por vezes, a competência administrativa não corresponde a um estrito dever de ação, limitando-se a norma a
conferir um poder à administração e, em simultâneo, a conferir-lhe o poder de decidir ‘se’ vai agir ou não. Temos
aqui o poder de agir, desligado de um dever de agir, e, portanto, uma «discricionariedade de ação», de «decisão»
ou de «intervenção». Em geral, a norma emprega neste caso, o conceito “pode”.

O conceito normativo de “pode” revela-se suscetível de ser interpretado como faculdade, permissão, que remete
para um poder de escolha entre fazer e não fazer, concedido por uma norma permissiva. Mas não se deve excluir
que o ‘pode’ referencie, não um poder de escolhe entre agir ou não agir, mas antes um ‘poder-dever’ de agir e, por
conseguinte, uma competência pública que pode ser de exercício obrigatório. Ou seja, podemos estar diante de um
‘poder discricionário’ ou de um ‘poder-competência’.

Assim, a conclusão segundo a qual uma norma jurídica que enunciar que um “órgão administrativo pode” se
apresenta como meramente permissiva só se alcança quando nela se acolhe de forma clara a atribuição ao agente
aplicador de um poder de escolha entre agir ou não agir, de optar entre estas 2 possibilidades de acordo com o
princípio da oportunidade. Em suma, tem de se afigurar claro que a norma ‘deixa em aberto com inteira igualdade a
hipótese positiva e a negativa’ e que o critério que dita a opção pode ser configurado pelo órgão.

Nos antípodas das normas permissivas, encontram-se as normas obrigatórias, as quais exigem a intervenção do
órgão competente sempre que se verifiquem, em concreto, os respetivos pressupostos. As normas obrigatórias não
contêm uma abertura discricionária quanto à decisão entre agir ou não agir.

Em geral, as normas obrigatórias podem dividir-se entre aquelas que definem um dever específico de agir e as que
definam apenas um dever genérico de agir.

Nas primeiras, que determinam a intervenção administrativa sempre que se verifique a situação real, concreta e
determinada nelas prevista, não existe uma possibilidade de escolha entre agir ou não agir, mas já existe o poder de
escolha do momento de agir. Por outro lado, as situações excecionais e atípicas, pode até admitir-se a não-ação, ou
seja, o incumprimento do dever de agir, com fundamento no princípio da proporcionalidade, se se aceitar que este
princípio se pode aplicar no caso de decisões administrativas vinculadas.

No caso de dever geral de agir, a norma estabelece uma competência obrigatória e não admite, como regra geral, a
inércia da Administração, mas, evidentemente, não pode exigir-se que esta faça o impossível. Pelo que este tipo de
normas está na origem de uma forma de discricionariedade organizatória de programação e de planificação do
trabalho administrativo.

29.3. Indicação de medidas em alternativa

Um canal típico de abertura discricionária consiste em a norma de competência indicar que, perante dada situação, a
Administração pode adotar a medida A, B, ou C. Está aqui presente uma discricionariedade de escolha alternativa
ou optativa.

29.4. Não determinação das medidas a adotar (atipicidade)

É na estatuição que a norma define especificamente o ‘poder’ que a Administração vai exercer, por via da indicação
do conteúdo possível da decisão a adotar. Trata-se de indicar ‘o quê’, em que consiste a ação administrativa. Ora,
pode suceder que a norma de competência utilize cláusulas gerais ou conceitos indeterminados na enunciação das
medidas que o agente administrativo pode adotar. Pode, em qualquer fase do procedimento, o órgão competente
para a decisão final, oficiosamente ou a requerimento dos interessados, ordenar as medidas provisórias que se
mostrem necessárias, se houver justo receio de, sem tais medidas, se constituir uma situação de facto consumado ou
se produzirem prejuízos de difícil reparação para os interesses públicos ou privados em presença, e desde que, uma
vez ponderados esses interesses, os danos que resultariam da medida se não mostrarem superiores aos que se
pretendam evitar com a respetiva adoção.

30 : Controlo judicial da discricionariedade

Como quaisquer outras, as decisões administrativas proferidas no exercício de poderes discricionários estão
expostas ao controlo judicial, que, necessariamente, vai ocorrer, se alguém com legitimidade para o efeito, desferir
um ‘ataque’ contra elas. Pode surgir aqui uma ação de impugnação, no sentido de se obter a anulação ou a
declaração de nulidade de uma decisão, ou de uma ação de condenação, se o propósito for o de obter a
condenação da Administração a proferir uma decisão. Em ambos os casos, o facto de a Administração ter proferido
a decisão ou ter-se recusado a fazê-lo no exercício de um poder discricionário coloca a questão de saber em que
termos se vai processar a intervenção judicial.

Para existir discricionariedade administrativa, revela-se essencial a decisão legislativa de instituir o poder
discricionário. Esta é uma questão necessária, porém não suficiente. Um poder discricionário só existe na medida em
que as decisões proferidas no seu exercício constituem uma decisão em última instância, que o tribunal deva
respeitar. Se o tribunal puder ‘discordar’ da escolha da AP, ou puder refazer todo o juízo em que esta baseou a
sua escolha, então, não existe, afinal, discricionariedade enquanto momento da autonomia própria da
Administração.

É importante reter, que a decisão administrativa discricionária se apresenta também como uma decisão vinculada.
Não há decisões discricionárias, como sabemos, há, pode haver, momentos discricionários de decisões
administrativas, momentos ou elementos discricionários que se cruzam com momentos ou elementos vinculados.
Maior ou menor, ao lado da parcela de discricionariedade existe sempre na atividade administrativa uma parcela de
vinculação por normas jurídicas – uma parcela de normatividade.

Os elementos vinculados também podem relacionar-se de uma forma direta com o próprio exercício do poder
discricionário: o desrespeito dessas vinculações dá origem a vícios, como o desvio de poder ou uso indevido da
discricionariedade, bem como o abuso ou subutilização do poder discricionário. Embora recaia sobre situações
diretamente associadas ao exercício da discricionariedade, a apreciação do tribunal não toca a essência ou o
exercício em si mesmo do poder discricionário.

A situação é já diferente quando a decisão ou a omissão administrativa se apoiam em juízos de valoração e em


ponderações efetuadas pela Administração no pleno exercício do poder discricionário, na essência deste poder.
Agora terá de definir-se uma metódica específica de apreciação judicial que respeite o exercício da
discricionariedade como momento da autonomia da Administração; mas também que garanta o controlo da
observância da racionalidade jurídica que se impõe no exercício da discricionariedade, máxime dos cânones
jurídicos que devem ser observados neste contexto.

A lei acolhe um arranjo conciliador:


« Se o ato a praticar envolve a formulação de valorações próprias da função administrativa, o tribunal não
pode determinar o conteúdo do ato a praticar – respeito da autonomia da Administração
« Mas deve explicar as vinculações a observar pela Administração na emissão do ato devido – garantia do
respeito pelos critérios jurídicos do exercício da discricionariedade.

Mas precisamente a mesma questão surge noutras situações, designadamente quando o tribunal é acionado para
apreciar decisões proferidas pela Administração no exercício de poderes discricionários. O esquema conciliador
passa aqui, pela ideia de que o tribunal tem de fiscalizar, mas sem proceder a um reexame da decisão. Deve existir
aqui, um controlo judicial, mas que respeite o momento da escolha discricionária.
Este é o critério geral que resulta de uma compreensão adequada das relações entre a Administração e os tribunais
à luz de uma leitura equilibrada do princípio da separação dos poderes.

30.1. Discricionariedade de apreciação

No cenário de ‘discricionariedade de apreciação’, associado ao emprego de conceitos indeterminados na previsão


da norma de competência, o exercício do poder discricionário deve orientar-se pelo princípio da adequação da
decisão à situação ou de adequação da decisão à finalidade indicada na norma de competência.

a) A questão da amplitude do controlo judicial


A questão que importa agora colocar é que metódica deve o tribunal seguir para verificar se a decisão proferida
pela Administração, com fundamento num juízo de valoração própria, é uma decisão adequada à situação.

De acordo com a doutrina clássica, ainda seguida em grande medida na jurisprudência administrativa portuguesa,
em áreas de discricionariedade, o tribunal apenas deve realizar um controlo externo, e, se for o caso, elimina a
decisão administrativa na hipótese de uma completa e manifesta desconexão entre a decisão e o facto – erro
manifesto de apreciação.

Incorrem no vício de erro manifesto de apreciação as decisões em que a Administração se recusa a reconduzir a um
conceito indeterminado uma situação concreta que, indiscutivelmente, corresponde a esse conceito ou, em sentido
inverso, as decisões que reconduzem a um conceito indeterminado uma situação concreta que, indiscutivelmente,
não se encaixa nos limites normativos do mesmo.

Aderimos ainda, à opinião de uma parte da doutrina, segundo a qual ao erro manifesto de apreciação, devem ainda
reconduzir-se as situações que, sem serem de erro flagrante ou visível à distância, e exigindo por isso alguma
indagação judicial, se materializam numa decisão completamente desconexa com a situação à qual se aplica, em
termos de se poder considerar o resultado como absurdo, contrário ao bom senso e à razão, que nenhuma
autoridade razoável teria produzido.

O controlo judicial do princípio adequação baseado no erro manifesto de apreciação, revela-se um controlo judicial
muito atenuado e tímido, que, em termos práticos, se limita a suscitar uma intervenção judicial em cenários de
violação pela Administração de parâmetros elementares de razoabilidade e racionalidade.

b) A tendência internacional (TEDH e Tribunal de Justiça da União Europeia) no sentido do controlo


judicial mais intenso

Pela natureza limitada, contida e deferencial, o controlo judicial da ‘discricionariedade de apreciação’ baseado no
erro manifesto de apreciação vem sendo posto em causa em decisões do TEDH. Por várias vezes, intervindo em
processos com origem em decisões administrativas que aplicam sanções ou que interferem com os direitos civis dos
cidadãos, o Tribunal tem vindo a considerar violado o direito a um processo equitativo pelo facto de a decisão
administrativa não ter sido objeto de controlo judicial suficiente pelo tribunal nacional.

É, contudo, percetível a tendência no sentido de que o TEDH não aceita o controlo judicial limitado ao erro
manifesto, e considera, em geral, que os tribunais nacionais não podem renunciar a uma fiscalização suficientemente
aprofundada sempre que estejam em causa conflitos relacionados com a aplicação de sanções ou com intervenções
administrativas em matérias de direitos civis.

c) Existência de controlo judicial da adequação meio – fim de decisões administrativas a direitos dos
cidadãos

A tendência internacional (TEDH e Tribunal de Justiça da EU) aponta para o controlo judicial aprofundado que
assegure a fiscalização suficiente da legalidade das decisões administrativas relacionadas com direitos dos cidadãos.
Sendo esta também uma exigência que decorre da nossa CRP quando estão envolvidas intervenções administrativas
em matéria de direitos, liberdades e garantias. Com efeito, apesar de a legislação nesta matéria dever respeitar um
‘imperativo de determinabilidade’, poderão, não obstante, surgir normas com conceitos indeterminados, hipótese
em que a respetiva concretização pela Administração deverá ficar sujeita ao controle total do juiz; a utilização por lei
de conceitos indeterminados neste caso não deve, em regra, ser interpretada como concessão de poderes
discricionários à Administração. Impõe-se, assim, um controlo ‘point by point’, sobre todos os elementos de facto e
de direito em que assenta a decisão, sempre que esteja alegada a violação de direitos, liberdades e garantias.
A questão a colocar é se, mesmo fora desse âmbito, não se justifica um controlo de maior amplitude do exercício de
poderes discricionários nos casos em que estejam em jogo decisões relativas a direitos (quaisquer direitos e não
apenas direitos, liberdades e garantias) dos administrados. Ora, na nossa interpretação, um alargamento do
controlo judicial não apenas se justifica, como se impõe neste cenário.

Mesmo que não tenha de se estender ao controlo total, a intervenção judicial deve escrutinar os termos da
adequação da decisão administrativa aos factos, e efetuar um controlo da adequação meio – fim. Ou seja, o controlo
judicial do respeito do princípio da adequação não pode esgotar-se num controlo negativo da razoabilidade, em
que só decisões irracionais, desrazoáveis ou de flagrante arbitrariedade são eliminadas.

Exige-se mais do que isso: o tribunal deve certificar-se de que a decisão concretamente proferida se revela
adequada à situação adequada. Não basta assegurar que uma decisão relativa a direitos de pessoas não é
desrazoável, torna-se necessária a afirmação explícita da convicção judicial de que a decisão se revela adequada.
E para formular este juízo positivo de convicção, o tribunal tem ao seu dispor os elementos constantes do processo
administrativo, bem como as ‘explicações’ que pode solicitar à Administração no decurso do processo contencioso.

O mero controlo da razoabilidade, do erro manifesto de apreciação, poderá manter-se como controlo suficiente,
quanto a decisões neutras para os direitos de particulares, bem como para todas as que envolvem ‘direitos
precários’, que a lei desenha, ab initio, como situações jurídicas de substância mais frágil, que podem fraquejar por
razões de interesse público.

30.2. Discricionariedade de ação e discricionariedade de escolha

Nas situações em que a Administração escolhe os efeitos das suas decisões com base numa abertura discricionária
na estatuição, os critérios fundamentais a seguir são os que resultam dos princípios da imparcialidade, da
proporcionalidade, bem como da justiça e da boa-fé. Ao tribunal cabe, então, apreciar se todos os interesses
relevantes e pertinentes foram efetivamente considerados, indagando se, no procedimento da decisão, a
Administração cumpriu a obrigação de considerar com objetividade todos e apenas os interesses relevantes no
contexto decisório. O tribunal não deve tolerar a decisão administrativa que cria um efeito totalmente favorável para
um certo particular, descurando totalmente, sem qualquer ponderação, os interesses contrapostos de outros
particulares.

O tribunal é ainda competente para apreciar se a decisão cumpre as exigências do princípio da proporcionalidade:
como desfecho dessa apreciação, poderá a vir anular a decisão se a mesma se revelar desadequada, desnecessária
ou desproporcional.
O controlo judicial baseado nos princípios da imparcialidade e da proporcionalidade assegura o imperativo de
existência de um controlo judicial, mas de um controlo que respeite o espaço de discricionariedade administrativa,
originado na abertura intencional da norma de competência.

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