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Jean--Pierre Vernant

Mito e Pensamento entre os Gregos é, sem dúvida,

MITO &
uma pesquisa renovadora nos estudos que se referem
à Grécia antiga, estimulante, aberta para novas
reflexões.
Que seja válido, para o público brasileiro, o desejo
de uma comunhão mais profunda entre especialistas
de várias áreas em vista de uma melhor compreensão
Cf)
o
pensamento
~ntre os
Qj)
dei homem~@tigo, voto que formula J.-P. Vernant em Q)
lo--.
sua introdução: "se nossa tentativa puder contribuir Qj)
para suscitar um trabalho de equipe agrupando Cf)

helenistas,, historiadores, sociólogos e psicólogos, se


ele fizer almejar um plano de conjunto para o estudo
das transformações psicológicas que a experiência grega
preparou e da viragem que ela operou na história do
o
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lo--.
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Gregos
homem interior, este livro não terá sido escrito em vão". +--' 2~ edição
Haiganuch Sarian
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ISBN 85-219 -0431-2

9788521 904311
®
PAZ E TERRA
guagem por instrumento comum: a arte do advogado, do pro-
fessor, do orador, do político. 70 A razão grega é a razão que
permite agir de modo positivo, refletido, metódico, sobre os
homens mas não transformar a natureza. Nesses limites, como
'
nas suas inovações, ela é bem filha da Cidade.

As origens da fllosofia 1
Onde começa a filosofia? Há duas maneiras de entender
esta questão. De início, pode-se perguntar onde situar as fron-
teiras da filosofia, as margens que a separam do que ainda não
é ou não o é por inteiro. Em seguida, pode-se perguntar onde
apareceu pela primeira vez, em que lugar surgiu - e por que
aí em vez de noutra parte. Questão sobre a identidade, ques-
tão sobre a origem, ligadas uma à outra, inseparáveis; mesmo
se numa lógica demasiado boa e simples, a segunda questão
parece já pressupor a primeira como resolvida. Dir-se-á: para
estabelecer a data e o local de nascimento da filosofia, é ainda
necessário conhecer o que ela é, possuir a sua definição para
distingui-la das formas de pensamento não filosóficas? Ao con-
trário, porém, quem não vê que não se poderia definir a filoso-
fia no abstrato como se ela fosse uma eterna essência? Para se
saber o que ela é, é preciso examinar as condições do seu
nascimento, seguir o movimento pelo qual se constituiu histo-
ricamente, quando no horizonte da cultura grega, ao colocar
70. Sobre a passagem da retórica e da sofística à lógica, cf. Jacque!ine de novos problemas e ao elaborar os instrumentos mentais que a
Romilly, Histoire et raison chez Tbucydide, Paris, 1956, pp. 181-239. A práti- solução deles exigia, ela abriu um campo de reflexão, traçou
ca dos discursos antitéticos, das antilogias, conduzirá, pelo estabelecimento
dos "lugares-comuns" do discurso, pela análise das estruturas da demonstra-
ção, pela medida e aritmética dos argumentos opostos, a uma ciência do 1. P hilosopher, Les interrogations contemporaines. Sob a direção de
raciocínio puro. Christian Delacampagne e Robert Maggiori, Paris, Fayard, pp. 463-71.

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um espaço de saber que antes não existia, onde ela própria se de pesquisa que denominamos filosofar? Não há resposta simples
estabeleceu para explorar de maneira sistemática as suas di- para essas questões. Mas é precisamente encarando essa comple-
mensões. É pela elaboração de uma forma de racionalidade e xidade, dedicando-se a ela, que se pode ter a esperança de situar
de um tipo do discurso até então desconhecidos que a prática os diversos aspectos do problema das origens da filosofia.
da filosofia e a figura do filósofo emergem e adquirem seu Para começar, uma questão sobre o vocabulário. No século
próprio estatuto; delimitam-se, no plano social e intelectual, VI, não existiam ainda as palavras "filósofo" e "filosofia". O
atividades profissionais como funções políticas ou religiosas primeiro emprego de philósophos atestado figuraria em um frag-
situadas na cidade, inaugurando uma tradição intelectual origi- mento que se atribui a Heráclito, no início do século V. Na
nal que, a despeito de todas as transformações por ela sofridas, realidade, esses termos adquirem direito de cidadania somente
nunca cessou de se enraizar em suas origens. com Platão e Aristóteles ao tomar um valor preciso, técnico e,
Tudo começou no início do século VI a.e., na cidade grega de certo modo, polêmico. Afirmar-se "filósofo", mais do que
de Mileto, no litoral da Ásia Menor, onde os jônios estabelece- ligar-se aos seus predecessores, é distanciar-se com relação a
ram colônias ricas e prósperas. No espaço de cinqüenta anos eles: é não ser um "físico" como os milésios, limitando-se a
sucederam-se três homens, Tales, Anaximandro e Anaxímenes, uma investigação acerca da natureza (historía perz physeos), não
cujas pesquisas são bastante próximas pela natureza dos pro- ser também um desses homens que ainda, nos séculos VI e V,
blemas abordados e pela orientação espiritual para que se os se designam pelo nome de sophós, sábio, como os Sete Sábios,
tenham considerado, desde a Antigüidade, como os formado- entre os quais figura Tales, ou sophistés, hábil no saber à maneira
res de uma única e mesma escola. Quanto aos historiadores desses peritos na arte da palavra, desses mestres da persuasão,
modernos, alguns acreditaram reconhecer, na florescência des- de competência pretensamente universal, que se tornarão ilus-
ta escola, o fato decisivo anunciador do "milagre grego". A Ra- tres no decorrer do século V, e que Platão recusará no filósofo
zão ter-se-ia subitamente encarnado na obra desses três filó- autêntico, a fim de, por contraste, estabelecer melhor o estatuto
sofos milésios. Pela primeira vez, em Mileto, descendo do céu de sua disciplina.
para a terra, ela ter-se-ia irrompido no cenário da história; a sua Physiológos, sophós, sophistés, e mesmo se se detém em
luz, doravante revelada, como se tivessem enfim caído as escaras certos propósitos de Platão, 3 mythológos, narrador de fábulas,
dos olhos de uma humanidade cega, não teria mais cessado de de histórias de mulheres idosas, é como se dizer que aos olhos
iluminar os progressos do conhecimento. Assim escreve John da filosofia constituída, estabelecida e institucionalizada pela
Burnet: "os filósofos jônios abriram a via que a ciência, desde fundação das escolas, como a Academia e o Liceu, onde se
então, só fez seguir". 2 ensina a tornar-se filósofo, o sábio Tales, ao dar impulso às
O que sucede na realidade? Os milésios já são filósofos no pesquisas dos milésios, nem por isso ultrapassou a soleira da
sentido pleno do termo? Em que medida as suas obras - que nova morada. Porém, por mais resoluta que seja esta afirmação
aliás só conhecemos, no melhor dos casos, pela fragmentos da diferença, ela não exclui a consciência da filiação. Aristóteles,
muito raros - marcam um corte decisivo com relação ao pas- ao falar dos "antigos" pensadores, daqueles de "outrora", dos
sado? Em que sentido as inovações que fornecem justificam quais ela recusa o "materialismo", observa que Tales é conside-
que se lhes creditem o advento desse novo modo de reflexão e rado, com toda justiça, o "iniciador desse tipo de filosofia". 4

2.]. Burnet. Early greek philosophy, 3ª ed., Londres, 920, p. V (tradução 3. Cf. Platão, O sofista, 242 e d.
francesa: L'Aurore de la philosophie grecque, Paris, 1919). 4. Aristóteles, Metafísica, 983 b 20.

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primeiros mestres do céu, revoltados contra o seu pai e cujos
Hesitações no vocabulário que os designa, incertezas dos
filhos, os Olímpicos, vão, por sua vez, combater e derrubar, a
grandes filósofos gregos clássicos a seu respeito: o estatuto dos
fim de confiar ao mais jovem deles, Zeus, a incumbência de se
milésios não deixa de causar problemas.
impor no cosmo, como soberano novo, uma ordem enfim de-
É preciso situá-los no quadro da cultura grega arcaica, a
finitiva.
fim de avaliar exatamente a sua contribuição às origens da filo-
Entre os milésios, nada subsiste dessa imagística dramática,
sofia.Trata-se de uma civilização fundamentalmente oral. Nela,
e o seu desaparecimento marca o advento de um outro modo
a educação caracteriza-se não pela leitura de textos escritos,
de inteligibilidade. Fornecer a razão de um fenômeno não pode
mas pela transmissão dos cantos poéticos, com acompanha-
mais consistir em nomear o seu pai e a sua mãe, em estabelecer
mento musical, de geração em geração. Assim é armazenado,
a sua filiação. Se as realidades naturais apresentam uma ordem
nas vastas composições épicas, o conjunto do saber, as narrati-
regular não pode ser porque, um belo dia, o deus soberano, ao
vas lendárias que funcionam como memória coletiva e enciclo-
fim dos seus combates, impôs-se às outras divindades como
pédia de conhecimentos comuns. É nesses cantos que se en-
um monarca que reparte em seu reino os encargos, as funções,
contra consignado tudo o que um grego deve saber acerca do
os domínios. Para ser inteligível, a ordem deve ser pensada
homem e do seu passado - as façanhas dos heróis de outrora
como uma lei imanente à natureza e presidindo, desde a· ori-
- , acerca dos deuses, das suas famílias, das suas genealogias
gem, à sua ordenação. O mito narrava a gênese do mundo ao
acerca do mundo, da sua figura e das suas origens. A esse
cantar a glória do príncipe cujo reino fundamenta e mantém
respeito, a obra dos milésios representa bem uma radical ino-
uma ordem hierárquica entre forças sagradas. Os milésios bus-
vação. Nem cantores, nem poetas, nem narradores, eles se ex-
cam, por detrás do fluxo aparente das coisas, os princípios
primem em prosa, em textos escritos que não visam desenrolar
j na l~nha d~ tr~dição, o fio de uma narrativa, mas expor um~
permanentes sobre os quais repousa o justo equilíbrio dos di-
versos elementos de que é composto o universo. Mesmo se
' te o na explicativa, concernente a certos fenômenos naturais e à
eles conservam certos termos fundamentais dos velhos mitos
organização do cosmo. Do oral ao escrito, do canto poético à '
como o de um estado primordial de indistinção a partir do qual
prosa, da narração à explicação, a mudança de registro
se desenvolve o riÍundo, mesmo que eles continuem a afirmar,
corresponde a um tipo de investigação inteiramente novo; novo
com Tales, que "tudo está pleno de deuses", os milésios não
pelo objeto que designa: a natureza, phjísis; novo pela forma de
deixam nenhum ser sobrenatural intervir em seus esquemas
pensamento que aí se manifesta e que é totalmente positivo.
explicativos. Com eles, em sua positividade, a natureza invadiu
Por certo, os mitos antigos, em especial a Teogonia de
todo o campo do real; nada existe, nada se produziu e nunca
Hesíodo, narravam também o modo pelo qual o mundo havia
se produzirá que não encontre na phjísis, tal como podemos
emergido do caos, como se diferenciaram as suas diversas par-
observá-la a cada dia, seu fundamento e sua razão. É a força da
tes, como se constituiu e estabeleceu o conjunto da sua arqui-
phjísis, em sua permanência e na diversidade de suas manifes-
tetura. Mas o processo de gênese, nessas narrativas, reveste-se
tações, que toma o lugar dos antigos deuses; pelo poder de
da forma de um quadro genealógico; ele se desenrola seguindo
vida e princípio de ordem que encobre, ela própria assume
a ordem de filiação entre os deuses, no ritmo dos. sucessivos
todos os caracteres do divino.
nascimentos, dos casamentos, das intrigas, misturando e opon-
Constituição de um campo de pesquisa em que a natureza
do os seres divinos de gerações diferentes. A deusa Gâia (Ter-
é apreendida em termos a um só tempo positivos, gerais e
ra) engendra sozinha Ouranós (Céu) e Póntos (Onda salgada);
abstratos: a água, o ar, o não-limitado (ápeiron), o terremoto, o
acasalada a Ouranós, que ela acaba de criar, dá à luz os Titãs,

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relâmpago, o eclipse, etc. Noção de uma ordem cósmica que positividade, sua concepção de uma ordem igualitária, seu qua-
repousa não na força de um deus soberano em sua basiléia dro geométrico, é solidário das formas institucionais e das es-
seu poder real, mas numa lei de Justiça (Dík;) inscrita na natu~ truturas mentais próprias da pólis.
reza, numa regra de repartição (nómos) que implica uma ordem
igualitária para todos os elementos constitutivos do mundo de
tal maneira que ninguém possa dominar os outros e sobre ~les "Admirar-se, declara o Sócrates do Teeteto, a filosofia não
levar vantagem. Orientação geométrica na medida em que se tem outra-origem." 5 Admirar-se diz-se thaumázein, e este ter-
mo, pelo fato de testemunhar a derrocada que a investigação
trata não de retraçar uma intriga narrativa em seu curso suces-
dos milésios efetua com relação ao mito, estabelece-os no mes-
sivo, mas de propor uma theoría, de conferir ao mundo a sua
mo ponto em que se origina a filosofia. No mito, thâuma é "o
figura, isto é, de "fazer ver" como as coisas se passam ao projetá-
maravilhoso"; o efeito de assombro que ele provoca é o sinal
las em um quadro espacial. Estes três traços que marcam o ca-
da presença nele do sobrenatural. Para os milésios , a estranhe-
ráter inovador da física milésia não surgiram no século VI como
za de um fenômeno, em vez de impor o sentimento do divino,
o advento milagroso de uma Razão estranha à história. Ao con-
propõe-no ao espírito em forma de problema. O insólito não
trário, aparecem intimamente ligados às transformações que as
fascina mais, ele mobiliza a inteligência. De silenciosa venera-
sociedades gregas conheceram em todos os níveis e que, após
ção, a admiração faz-se questionamento, interrogação. Quando
o desmoronamento dos reinos micênicos, conduziram-nas ao
o thâuma, no final da investigação, foi reintegrado na normali-
advento da cidade-Estado, à pólis. Deve-se sublinhar a esse
dade da natureza, do maravilhoso só resta a engenhosidade da
respeito as afinidades entre um homem como Tales e o seu
solução proposta. Essa mudança de atitude ocasiona toda uma
contemporâneo de Atenas, o poeta e legislador Sólon. Ambos
série de conseqüências. Para atingir o seu objetivo, um discur-
figuram entre os Sete Sábios que encarnam, aos olhos dos gre-
so explicativo deve ser exposto, não somente enunciado sob
gos, a primeira espécie de sophía, que surgira entre os homens:
uma forma e nos termos que permitem compreendê-lo bem,
' sabedoria toda penetrada de reflexão moral e de preocupações
mas ainda entregue a uma publicidade inteira, colocado aos
políticas. Esta sabedoria tende a definir os fundamentos de uma
olhos de todos, do mesmo modo que a redação das leis, na
nova ordem humana que substituiria por uma lei escrita, públi-
cidade, torna-se um bem comum para cada cidadão, distribuí-
ca, comum, igual para todos, o poder absoluto do monarca ou
do com igualdade. Despojada do secreto, a theoría do físico
as prerrogativas de uma pequena minoria. Assim, de Sólon a
transforma-se assim no objeto de um debate; ela se prepara
Clístenes, a cidade adquire, no decorrer do século VI, a forma
para justificar-se; ser-lhe-á necessário prestar contas do que afir-
de um cosmo circular, centrado na ágora, a praça pública onde,
ma, prestar-se à crítica e à controvérsia. As regras do jogo polí-
semelhante a todos os outros, cada cidadão, obedecendo e
tico - a livre discussão, o debate contraditório, o confronto
comandando alternadamente, deverá ocupar e ceder todas as
das argumentações contrárias - impõem-se desde então como
posições simétricas que compõem o espaço cívico, seguindo
regras do jogo intelectual. Ao lado da revelação religiosa que,
sucessivamente a ordem do tempo. Esta é a imagem de um
na forma do mistério, permanece o apanágio de um círculo
mundo social regulamentado pela isonomía, a igualdade em restrito de iniciados, ao lado também da profusão de crenças
relação à lei, que encontramos, em Anaximandro, projetada no comuns de que todo o mundo participa sem que ninguém se
universo físico. As antigas teogonias estavam integradas aos
mitos de soberania enraizados nos rituais de realeza. O novo
5. Platão, Teeteto, 155 d; cf. Aristóteles, Metafísica, 982 b 13: "Foi a admi-
modelo do mundo que os físicos de Mileto elaboram, em sua ração que levou os primeiros pensadores às especulações filosóficas".

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as outras. Parmênides de golpe lhe dá a sua forma extrema ao
interrogue a seu respeito, define-se e afirma-se uma nova no-
liberar as bases do conceito de ser com um rigor sem compro-
ção da verdade: verdade aberta, acessível a todos e que funda-
misso. Os imperativos lógicos do pensamento fazem desvane-
menta em sua própria força demonstrativa os seus critérios de
cer-se a ilusão de que a multiplicidade dos seres pudera ser
validade.
produzida por uma gênese qualquer. O ser exclui a geração.
Entretanto, o caminho assim liberado pelos milésios de-
De onde o ser poderia ter sido gerado? Se for de si-mesmo, não
semboca em um outro horizonte diferente dos seus. Depois
terá havido geração. Se for do não-ser, chega-se a conseqüên-
deles, em ruptura com eles, instaurar-se-á um modo de refle-
cias contraditórias: antes da geração, o que chamamos ser era
xão cujas exigências e ambições também vão além da sua em-
então o não-ser. A respeito do ser, não se pode nem dizer nem
presa. Chamado para comparecer no tribunal do lógos da razão
pensar que ele se tornou, mas somente que ele é. A verdade
demonstrativa, todo o aparato de noções sobre o qual os físicos
asseguravam a sua investigação - a natureza, a gênese, a mu- desta proposta não é constatada empiricamente; ao contrário, a
dança, a emergência do múltiplo e do móvel a partir de um despeito da aparência do movimento, da mudança, da disper-
elemento único e permanente - acha-se denunciado como são das coisas no espaço, da sua diversidade no decorrer do
sendo ilusório e inconsistente. No início.do século V surgem tempo, a sua evidência impõe-se absolutamente ao espírito no
várias correntes de pensamento que, prolongando os milésios final de uma demonstração indireta, mostrando que o enuncia-
e também contradizendo-os, vêm "espaduá-los" para constituir do contrário é logicamente impossível. Comandado do interior
como que a outra vertente do arco sobre o qual a filosofia vai por essa ordem demonstrativa, o pensamento não tem outro
apoiar o seu edifício: diante da plena positividade dos físicos objeto a não ser aquilo que lhe pertence propriamente, o lógos,
da Jônia, afirma-se o ideal de uma inteira e perfeita inteligi- o inteligível.
bilidade. Para que o discurso humano sobre a natureza não se Os progressos da matemática, cujo estudo das formas a
desmorone, arruinado no interior à maneira dos antigos mitos, 6 orientação geométrica dos milésios havia conduzido a privile-
não é suficiente que os deuses tenham sido deixados de fora· é giar, conferem a essa pesquisa da inteligibilidade pelo rigor
preciso ainda que o raciocínio seja inteiramente transparent~ a demonstrativo uma solidez e uma precisão exemplar. Tal como
si mesmo, que não comporte a menor incoerência, a sombra de se apresenta nos Elementos de Euclides, o geômetra assume
uma contradição interna. É o rigor formal da demonstração, a assim, pelo seu caráter apodítico, valor de modelo para o pen-
sua própria identidade em todas as suas partes, a sua congruência samento verdadeiro. Se essa disciplina pode tomar a forma de
em suas mais longínquas implicações, que estabelecem seu va- um corpo de propostas deduzidas inteira e exatamente a partir
lor de verdade, e não o seu acordo aparente com os dados de um número restrito de postulados e de axiomas, é porque
naturais, isto é, no fim das contas, essas pseudo-evidências sen- ela não visa às realidades concretas nem mesmo essas figuras
síveis, sempre flutuantes e incertas, relativas e contraditórias. que o geômetra revela no curso da sua demonstração. Ela tem
No decorrer do século V, reveste-se de aspectos múltiplos por objetivo puros conceitos, que ela própria define, e cuja
o esforço para construir correntes de propostas que se comuni- idealidade - isto é, para retomar a fórmula de Maurice Caveing,
cam de modo tão necessário que cada uma delas implica todas a perfeição, a objetividade, a plena inteligibilidade - está liga-
da ao seu não-pertencer ao mundo sensível.
Assim se reconstitui, por detrás da natureza e além das
. 6 . Cf. ~latão, Fílebo, 14 a: " Como se a nossa tese (lógos) se perdesse aparências, um pano de fundo invisível, uma realidade mais
amqmlada a maneira de uma fábula (mj}thos) e que não pudéssemos sair verdadeira, secreta e escondida, que o filósofo se encarrega de
dela a não ser ao preço de algum absurdo no raciocínio (alogía)".

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atingir e da qual ele faz o próprio objeto da sua meditação. Ao
se prevalecer desse ser invisível contra o visível, do autêntico
contra o ilusório, do permanente contra o fugaz, do certo con-
tra o incerto, a filosofia substitui, à sua maneira, o pensamento
religioso. Ela se situa no próprio quadro que a religião havia
constituído quando, ao colocar além do mundo da natureza as
forças sagradas que, no invisível, asseguram o seu fundamento,
ela estabelecia um completo contraste entre os deuses e os
homens, os imortais e os mortais, a plenitude do ser e as limi-
tações de uma existência fugaz, vã, fantasmática. Entretanto, a
filosofia opõe-se à religião até nesta aspiração comum em ul-
trapassar o plano das simples aparências para aceder aos prin-
cípios ocultos que as confortam e as sustentam. Por certo, a
verdade que a filosofia tem o privilégio de atingir e de revelar
é secreta, dissimulada no invisível para as pessoas comuns; a
sua transmissão, através do ensino do mestre ao discípulo, con-
serva em alguns aspectos o caráter de uma iniciação. Mas a Índice Remissivo
filosofia traz o mistério para a praça. Não faz mais dele o moti-
vo de uma visão inefável, mas o objeto de uma investigação em
pleno dia. Pelo livre diálogo, do debate argumentado ou do
enunciado didático, o mistério se transmuta em um saber cuja
vocação é ser universalmente compartilhado. O ser autêntico
ao qual se liga o filósofo aparece assim como o contrário, tanto
quanto herdeiro, do sobrenatural mítico; o objeto do lógos é a
própria racionalidade, a ordem que preside à dedução, o prin-
cípio de identidade da qual todo conhecimento verdadeiro tira
a sua legitimidade. Entre os físicos de Mileto, a nova exigência
de positividade imediatamente era levada ao absoluto no con-
ceito de physis; em Parmênides e seus sucessores eleatas, a
nova exigência de inteligibilidade é levada ao absoluto no con-
ceito do ser, uno, imutável, idêntico. Entre essas duas exigên-
cias que, de uma certa forma, se conjugam e, de uma certa
forma, se combatem, mas que ambas marcam igualmente uma
ruptura decisiva com o mito, o pensamento racional engaja-se,
sistema após sistema, em uma dialética cujo movimento gera a
história da filosofia grega.

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