Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
POP RUA
GE POP RUA 2019:
SUMÁRIO
2. CURSO: FAMÍLIA...................................................................................... 61
Profa. Vanessa Ribeiro Simon
8 horas
Dia da
Nº Data Conteúdo/Atividade Referência Bibliográfica
Semana
03/04 4ª Formação do Povo CUNHA, Manuela Carneiro. Negros, Estrangeiros., São
Brasileiro Paulo. 1988.
MATOSO, Kátia de Queiros. Ser Escravo no Brasil. 3ª
edição. Editora Brasiliense.São Paulo.SP. 1990.
QUERINO. Manuel. Costumes Africanos no
Brasil.Volume XIX. 2ª Edição. Editora
Massangama.Recife-PE. 1988.
SANTANA, Carlos E. C. de. Lajes dos Negros: Quilombo
da Liberdade, In Coletânea de Textos – Educação na
Bahia. Editora da UNEB, Salvador-Ba. 2001.
01 ________ Carnaval, identidade e educação: Um olhar
sobre os blocos afros In Sementes: Cadernos de
Pesquisa, Salvador. 2002
________ Malê Debalê: Lugar de aprender, Lugar de
ensinar. Disponível em
http://www.africaeafricanidades.com, acesso em 26 de
agosto de 2010.
_____________________________________, In
Coletânea de Textos – Educação na Bahia. Editora da
UNEB, Salvador-Ba. 2001
2
Cláudia Fuchs
RESUMO: O presente texto, de cunho bibliográfico, tem por objetivo apresentar reflexões
acerca dos desafios e das possibilidades da efetivação de uma Educação em e para os Direitos
Humanos (DH) na escola contemporânea. Todavia, a noção de uma educação que se volte aos
DH ainda não é realidade na prática nem no currículo brasileiro. Num momento em que
vivenciamos a crise de valores públicos e privados e da sociedade como um todo, torna-se
necessário que os temas de igualdade, liberdade e dignidade humana não estejam apenas
inscritos nos documentos/textos legais, mas que ultrapassem barreiras e sejam internalizados
por todos aqueles que, de modo formal ou informal, se responsabilizam pelas novas gerações
e o mundo comum.
39
ABSTRACT: The purpose of this text is to present reflections on the challenges and
possibilities for the implementation of Education in and for Human Rights (DH) in
contemporary school. However, the notion of an education that goes back to the DH is still
not reality in practice nor in the Brazilian curriculum. At a time when we are experiencing the
crisis of public and private values and of society as a whole, it is necessary that issues of
equality, freedom and human dignity are not only recorded in the legal documents / texts but
that they overcome barriers and are internalized by all those who, formally or informally, take
responsibility for the new generations and the common world.
1 Doutorando em Educação nas Ciências (UNIJUI), Mestre em Educação nas Ciências (UNIJUI),
Especialista em Metodologia de Ensino de História pela Uniasselvi e Licenciado em História e
Sociologia pela mesma Instituição. Bolsista CAPES. E-mail: jenerton.xitz@hotmail.com
INTRODUÇÃO
Por isso, o tema dos DH tornou-se foco de preocupações no século XXI, ele tem sido
debatido em várias conferências internacionais, também é objeto de políticas públicas em
várias nações do mundo e, passa a ser objeto de estudo para inúmeros pesquisadores, pois, os
DH envolvem o nosso cotidiano e estão relacionados com a educação, com o trabalho, a
exclusão social, a diversidade, a igualdade, a alteridade, a ética, etc.
Diante do debate, a educação é um pré-requisito para adquirir a liberdade civil, uma vez
que os direitos civis são destinados para o uso de indivíduos com mentalidades alargadas, que
aprenderam a ler, escrever, calcular e, principalmente, refletir sobre suas ações. Não obstante,
3
é, uma verdadeira falseabilidade da consciência que impossibilita e impede a reflexão. Nesse
ambiente de distorções e de falsa consciência, ou melhor, nestes “tempos sombrios” de que fala
4
Bertolt Brecht , estes tempos onde a radicalidade se opõem à uma Educação em e para os DH,
Por isso, pensar uma Educação em e para os DH surge como possibilidade de inverter
essa falseabilidade da consciência, propondo e estabelecendo caminhos possíveis para um
mundo comum, onde o humano esteja acima do mercado, dos obstáculos da globalização
neoliberal, objetivando intermediar um processo crítico-reflexivo da realidade.
3
Referimo-nos, por exemplo, à alienação, às barbáries, à sociedade administrada de que nos fala Adorno
(1996).
4
Ver texto disponível em: < http://www.modevida.com/wp/wp-content/uploads/2016/03/Brecht.pdf>.
internalizados por todos aqueles que, de modo formal ou informal, se responsabilizam pelas
novas gerações e o mundo comum.
Nesse sentido, não sendo os DH uma concessão da sociedade política, eles são fruto de
construções históricas marcadas por confrontos e contradições da realidade, após a ocorrência de
injustiças e constantes desigualdades o debate sobre a necessidade de exigir direitos a estes
41
indivíduos que sofreram com essas e outras violências. Ademais, os DH, por mais fundamentais
que possam ser, são construções históricas, isto é, nascem em diferentes conjunturas, caracterizadas
por lutas em defesa de novas liberdades contra antigos modos de poder, por isso, nascem de forma
gradual e lenta.
Para Garcia e Lazari (2014, p. 33), os DH “[...] são aqueles inerentes ao homem
enquanto condição para sua dignidade que, usualmente são descritos em documentos
internacionalmente para que seja mais seguramente garantidos”, grosso modo, podem ser
conceituados como a categoria jurídica instituída com a finalidade de proteger a dignidade
humana em todas as suas dimensões.
sociais (econômicos, culturais e sociais). A terceira geração de direitos refere-se aos direitos
de solidariedade e fraternidade, ou seja, os direitos ao desenvolvimento ou progresso, ao meio
ambiente saudável, à paz, à autodeterminação dos povos. Todavia, há também aqueles direitos
introduzidos no âmbito jurídico pela globalização política, isto é, os direitos de quarta
geração, que são aqueles direitos que se referem à democracia, informação e ao pluralismo,
em outras palavras, seriam os direitos do gênero humano.
Nesse contexto, Bobbio (2004) estabelece que os direitos da primeira geração são
aqueles que correspondem aos direitos de liberdade, logo, não é o Estado que age; os direitos
de segunda geração são denominados pelo autor como direitos sociais, o que corresponde ao
agir (positivo) do Estado; os direitos de terceira geração constituem-se, ainda, como uma
categoria vaga e heterogênea, referindo-se aos direitos do homem em âmbito internacional,
como viver uma vida digna, num ambiente sem poluição; nos direitos de quarta geração, o
autor considera que estes referem-se as possibilidades de promover manipulações genéticas
em cada indivíduo, referindo-se a configuração dos estudos que envolvem a bioengenharia, a
biotecnologia, a bioética.
42
direitos que tratam das liberdades individuais básicas: à vida, à expressão, participar da
elaboração de leis de sua comunidade política (direta ou indiretamente), formando uma
sociedade aberta e um Estado de Direito; a “segunda geração” de direitos está relacionada aos
direitos econômico-sociais ou simplesmente direitos sociais, tornam o Estado devedor de sua
população, tendo como obrigação realizar ações para garantir um mínimo de igualdade e de
bem-estar social; os direitos da “terceira geração”, referem-se aos direitos do homem no
âmbito internacional, destarte, estão presentes na consciência coletiva da população que passa
a exigir tais direitos do Estado com maior frequência. Referem-se aos direitos de ter um meio
ambiente não poluído/contaminado e viver em uma sociedade harmônica; os direitos da
“quarta geração” são ligados ao pluralismo e à democracia, isto é, a possibilidade de ser
diferente, direito à informação, à pluralidade (nos mais diversos modos), ao respeito das
minorias e apátridas, em suma, podemos dizer que a “quarta geração” se refere aos direitos
das gerações vindouras. Por isso, cabe à atual geração a responsabilidade e compromisso com
o mundo, a fim de que este seja igual, ou melhor, do que aquele que recebemos das gerações
passadas, isso implica na discussão e transversalidade de todas as outras gerações de direitos.
Como observa Norberto Bobbio (2004), a DUDH é muito mais do que uma sugestão,
ela a busca por um valor ético, um programa que age em conjunto com/para toda a
humanidade. A declaração é uma prova histórica do consenso mundial sobre um sistema de
valores. Por isso que, quando olhamos para a declaração temos o sentimento que há muitos
direitos deixados de lado/fora, todavia, é preciso também compreender que os que estão
presentes ainda não se efetivaram por completo em todas as sociedades e a conquista destes
não ocorreu sem um longo processo de lutas.
5
atrocidades , o perigo à recaída da barbárie ainda é eminente: “Qualquer debate sobre os ideais
da educação é vão e indiferente em comparação com este: que Auschwitz não se repita.”
(ADORNO, 1995, p. 104), grosso modo, “a exigência que Auschwitz não se repita é a
primeira de todas para a educação” (ADORNO, 2006, p. 119).
Por isso, a educação é, antes de qualquer coisa, um compromisso com o Outro, com a
pessoa, com o ser humano, logo, ninguém dela escapa. Não obstante, sendo ela um
compromisso com o Outro, ela não só pode como precisa desempenhar um papel fundamental
na construção e no desenvolvimento de uma consciência cidadã, alicerçada na preocupação e
na defesa dos DH. 44 Conforme o Art. 205 da Constituição Federal, “a educação, direito de todos e
dever do
Ademais, concordamos com Bittar (2011) quando indaga: Por que devemos educar em
DH, articulando a capacidade de sentir e pensar, de vivenciar e pensar de modo crítico a realidade
humana? E como, nas experiências autoritárias, os indivíduos que exerciam suas funções
conseguem justificar a desresponsabilização pelos atos e crimes contra a humanidade?
No escrito Educação após Auschwitz (2006), Adorno alerta para o crescente potencial
autoritário que paira e se reproduz na sociedade moderna. Por isso, é fundamental reconhecer e
desenvolver a consciência dos mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer barbáries
5
Basta lembrarmos do caso de Adolf Eichmann, analisado por Hannah Arendt na obra Eichmann em
Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (1999).
contra a humanidade, ou seja, são incapazes de autorreflexão crítica, ou, nas palavras de
Agamben (2003), exercem simplesmente o dever de ofício, separando-os da consciência ética.
Comprova-se a necessidade de se educar em e para os DH, uma vez que tal movimento
deve possuir como objetivo a discussão dos conhecimentos historicamente construídos pela
humanidade sobre os DH, além de reafirmar valores e práticas que possam consolidar a
cultura dos direitos e o exercício do respeito, bem como promover a valorização das
diversidades – de cunho étnico-racial, religioso, cultural, gênero, orientação sexual, entre
outros, somente assim criamos condições para que Auschwitz não se repita.
Pode ser considerado justo, ou seja, portador pessoal da virtude da justiça, aquele
que, embora mais poderoso e inteligente, não busca dominar os outros, 45 mas
orienta sua ação (por exemplo, de legislador, de juiz, de pai/mãe, de professor ou de
concidadão) na ideia da justiça política, mesmo quando a legislação for falha,
passível de diferentes interpretações ou ineficiente. (HÖFFE, 2004, p. 472).
Nesse sentido, a educação que se faz em e para os DH deve ser compreendida como
uma “ação pedagógica conscientizadora e libertadora, voltada para o respeito e valorização da
diversidade, aos conceitos de sustentabilidade e de formação da cidadania ativa” (BRASIL,
2009, p. 25), compreendendo que este processo não está limitado ao espaço escolar, mesmo
que seja neste espaço onde ocorre a sua sistematização.
Por isso, uma Educação em e para os DH será sempre um processo discursivo contra o
6
biopoder , em outras palavras, de toda forma de poder que age sobre a sociedade e os
indivíduos, buscando o controle pleno por parte do Estado. Em Foucault, essa resistência
contra o biopoder expressa-se da seguinte maneira:
[...] contra esse poder ainda novo no século XIX, as forças que resistem se
apoiaram exatamente naquilo que ele investe – isto é, na vida e no homem
enquanto ser vivo. Desde o século passado, as grandes lutas que põem em
questão o sistema geral de poder já não se fazem em nome dos antigos
direitos, ou em função do sonho milenar de um ciclo dos tempos e de uma
idade do ouro. Já não se espera mais o imperador dos pobres, nem o rei dos
últimos dias, nem mesmo o restabelecimento apenas das justiças que se
creem ancestrais; o que é reivindicado e serve de objetivo é a vida, entendida
como as necessidades fundamentais a essência concreta do homem, a
realização das suas virtualidades, a plenitude do possível. Pouco importa que
se trate ou não de utopia; temos aí um processo bem real de luta; a vida
como objeto político foi de algum modo tomada ao pé da letra e voltada
contra o sistema que tentava controlá-la. (Foucault, 2010, p. 136).
Por conseguinte, a Educação em e para os DH será o meio pelo qual o indivíduo, sujeito de
7
direito, empoderado , logo, consciente de seus direitos, irá se apropriar do discurso dominante sobre
os direitos humanos a fim de acioná-lo a seu favor e contra as práticas 46 totalitárias da biopolítica
[ou do biopoder] contemporânea.
6
O biopoder se mostra em sua dupla face: como poder sobre a vida (as políticas da vida biológica,
entre elas as políticas da sexualidade) e como poder sobre a morte (o racismo). Trata-se,
definitivamente da estatização da vida biologicamente considerada, isto é, do homem como ser vivente
(CASTRO, 2009).
7
O significado aqui empregado refere-se à consciência social dos DH.
isolado de docentes não garante uma eventual melhoria do professor encontre na prática diária
as condições ideais/propícias para melhor o ensino (AZANHA, 1995).
Por isso, consideramos que uma Educação que se diz preocupada com os DH, deve ser
promovida tanto nas escolas como também fora delas, com estrita preservação da verdade e
da memória, através da formação problematizadora em DH de educadores e educandos,
baseando-se, fundamentalmente, na diversidade de formas, seja em publicações, teatros,
vídeos, danças, seminários, internet, palestras, pesquisas etc, dando-se sempre a ênfase à
cultura institucional e ao fomento de práticas em consonância com os princípios éticos.
Ademais, uma educação que se diz em e para os DH, mas não trabalha o ato de pensar,
também a partir do Outro, deixa-se embair na boa sorte do que encontra como constituído nas
subjetividades unificadoras e totalizadoras dos processos educacionais, e na perda do sentido
do humano reduzindo a possibilidade da alteridade. Portanto, o professor como mediador, tem
48
o desafio de em cada encontro (aula, discussão etc.) colocar-se aberto à alteridade pela
interpelação que vem do Outro, pois esta rompe um pouco ou completamente o plano que apreende
a relação. A educação em e para os DH é, necessariamente, um empreendimento coletivo. Para
educar – e para ser educado – é necessário que haja ao menos duas singularidades em contato.
Educar é um encontro de singularidades.
Portanto, numa educação anônima, para parafrasear Arendt (2013), não há pessoas que
se revelam, nem experiências sobre as quais possamos pensar e nas quais possamos encontrar
algum sentido para a educação e o Outro. Muitas vezes, há experiências e momentos
significativos que surgem, de modo inesperado, em alguma escola, em alguma sala de aula -
algumas luzes, como diz Arendt. Assim, quem pensa o Outro e nele sua educação, tem de
tomar cuidado para não apagar essas luzes, pois elas nos lembram a tarefa da educação: cuidar
de um mundo que não dispensa as pessoas (o Outro), mas depende delas, estas são as
possibilidades do vir-a-ser Educação em e para os DH.
Pois, nas palavras de Hannah Arendt (2013, p. 247), “a educação é o ponto em que
decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos responsabilidade por ele [...] e [...]
onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo.”
Uma educação comprometida com os DH e o mundo comum (eu, o Outro, e tantos outros), dá
as boas-vindas a todos na esperança de que possam amá-lo à sua maneira singular.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
8
Transmite-se saberes teoréticos, isto é, teoréticos vem da palavra teoria, que é uma palavra
lindíssima, que, por sua vez, vem do étimo grego theoria, que significa visão, contemplação. Por isso,
o ensino é definido como o processo de “dar a ver”. Dar a ver, exatamente, por esses saberes que
introduzem uma visibilidade do mundo e dos seres que o habitam, visibilidade essa que tem como
característica fundamental poder ser objeto de transmissão discursiva. (POMBO, 2002).
Revista Perspectiva Sociológica, n.º 20, 2º sem. 2017, pp. 39-52.
16
Portanto, educar nesta perspectiva é, essencialmente, estar aberto para o novo, para o
Por isso, a nossa esperança reside nos novos, por serem iniciadores, por nascerem não
somente para a vida (nascimento), mas também para o mundo (natalidade), são capazes de
interromper processos históricos e, futuramente transformar o mundo e quem sabe criar espaços
novos de interação e convivência. Pois, é isso que lembra a tarefa da educação: cuidar do mundo
e acolher as crianças e jovens que vêm a fazer parte dele, e possibilitar o “direito a ter direitos.”
(ARENDT, 2009, p. 330). 50
REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor. Palavras e Sinais: modelos críticos 2. Tradução de Maria Helena Ruschel.
AGAMBEN, Giorgio. Opus Dei: Arqueologia do Ofício. Trad. De Daniel Arruda Nascimento.
São Paulo: Boitempo, 2003.
_____. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueira.
São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
_____. ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. 7. ed. São
Paulo: Perspectiva, 2013.
BITTAR, Eduardo C.B. Democracia, Justiça e Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2011.
BRASIL. (Constituição, 1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 40. ed.
São Paulo: Saraiva, 2007.
51
CANDAU, Vera Maria. Educação em direitos humanos: desafios para a formação de
professores. Novamérica, n. 78, p. 36-39, 1998.
CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault: um percurso por seus temas, conceitos e autores.
Trad. Ingrid. M. Xavier. Belo Horizonte-MG: Autêntica. 2009.
CLAUDE, Richard Pierre. Direito à educação e educação para os direitos humanos. Revista
internacional de direitos humanos: SUR, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 37-63, 1 sem. 2005.
FOUCAULT, Michel. Estratégia, Poder-Saber. Manoel de Barros Motta (org.). Trad. Vera
Lúcia A. Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. Coleção ditos e escritos IV.
GARCIA, Bruna Pinotti; LAZARI, Rafael José Nadim de. Manual de direitos humanos. Salvador:
JusPodivm, 2014.
HÖFFE, Otfried. Valores em instituições democráticas de ensino. Educ. Soc. [online]. vol. 25,
n. 87, pp. 463-479, 2004.
RIBEIRO, João U. Política: quem manda, por que manda, como manda. Ensaios. Rio de
SKLIAR, Carlos. Pedagogia (improvável) da diferença: e se o outro não estivesse aí? Tradução
52
Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X
Adrielly Rocha Tiradentes
EMANCIPAÇÃO.
Abstract: Pierre Bourdieu, French sociologist, works the concept of Symbolic Violence and
the mechanisms used subtly to his interposition and legitimacy. Before the plural and
multifaceted school context, we see the discrimination and devaluation of diversity in many
ways, whether physical or intellects. Thus, a small conceptual approach regarding the
Symbolic Violence and the way in which is its legitimacy in the school will be made. By last,
Graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2011), onde foi
bolsista integral pelo PROUNI. Pós-graduada em Direito Público pela UNIPAC/FACEB-MG.
Mestranda em Constitucionalismo e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas
(Beneficiária taxa CAPES) Editora Associada da Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas.
Pesquisadora do grupo de pesquisa "Sapere Aude" - Reflexões Críticas sobre Direitos Fundamentais e
Garantias Constitucionais. Integrante do grupo de estudos "Direito Internacional, Constituição e
suspensão de direitos". Advogada inscrita nos quadros da OAB/MG sob o número 135.429.
20
Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X
possible paths will be appointed for an education that not engesse the way of thinking of each
student, valuing their origin, culture and individuality, as well as helping to promote an
emancipatory education.
1. INTRODUÇÃO
Logo, percebe-se que a presença de tal mecanismo no âmbito escolar impõe uma
série de barreiras e problemas para a efetivação de um ensino multidisciplinar que valorize e
avalie cada aluno em suas especificidades.
Para tanto, será feito um aporte à abordagem trazida por Pierre Bourdieu, o modo
como se legitima tal mecanismo e, por derradeiro, maneiras de neutralizar o efeito de tal
violência, propiciando um ambiente escolar inclusivo e multifacetado.
21
Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X
Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X
parâmetros dessa definição, exprime-se a ideia de que existe uma cultura inferior e uma
superior, onde, a cultura superior é pertencente à classe mais elevada socialmente e/ou
financeiramente, e, a cultura inferior, pertencente à classe mais popular. Vejamos sua
definição sobre o fenômeno supra citado:
Esse tipo de violência está presente em vários setores sociais, sendo mais comum do
que muitos podem observar. Seja no âmbito familiar, escolar, ou até mesmo na reprodução de
padrões e costumes sociais.
Percebe-se, por derradeiro, que vários dos comportamentos notados hoje no meio
social, são frutos dessa violência que atua de forma tênue, seja na legitimação para aferição de
conhecimento escolar, ou, até mesmo na valoração e modo que os indivíduos de determinada
classe devem se comportar. Observando isto, percebe-se uma certa correspondência àquilo
que fora exposto por Bourdieu, uma vez que, para ele, a reprodução de aspectos culturais não
se dá apenas na esfera econômica, mas também na esfera cultural.
Seguindo essa lógica, observa-se que tal mecanismo é simplesmente instituído, sem
23
Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X
qualquer respaldo que não seja o interesse da classe dominante. Logo, tal violência é
produzida e reproduzida no meio social. Reproduzida e não ensinada, eis que, se ensinada
fosse, daria margem para discordâncias, o que não se permite. Nesse aspecto, a violência
simbólica passa quase que encobertamente na rotina do dia-a-dia, seja nos hábitos ou
costumes da sociedade. Seja nas leis produzidas, nas decisões do judiciário, e, inclusive, na
esfera escolar, como será visto adiante.
Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X
A escola, neste turno, porta-se como instrumento para manipulação desse modo de
“aprender”, impulsionando os alunos a serem meros reprodutores de conhecimento,
desprezando suas peculiaridades e especificidades. Tal procedimento é perfeitamente
adequado à ótica que perfaz o plano escolar no que tange à perpetuação da forma de pensar da
classe dominante, tornando totalmente dispensável a interação de educandos de classes
populares no que se perquire as atividades do campo.
Visualiza-se nesta lógica, o poder arbitrário pelo qual se reveste a conduta escolar, a
qual é responsável pela inculcação e imposição de arbítrios culturais, conteúdos, métodos
avaliativos ou de trabalho.
Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X
A partir do momento em que se tem um plano escolar a ser seguido de forma única e
engessada, as possibilidades de usar as diferenças como complementariedade são nulas,
motivo pelo qual a diversidade cultural e social dos alunos são assujeitadas à um único
patamar.
Se a escola atribui vantagem àqueles que já a detém, muito mais propício que os
pertencentes à classe dominante alcancem mais facilmente as metas estipuladas pela
instituição, corroborando com a ideia de mérito trazida em seu bojo. Doravante, aqueles que
pertencem a classe subalternizada, terão que se readequar ao plano apontado, uma vez que,
26
Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X
para tais, a escola representa uma ruptura no que tange aos valores e saberes de suas práticas,
dificultando então que estes atinjam os êxitos nos termos propostos pela escola.
Diante desse apontamento, Bourdieu destaca o fardo que os alunos de classes menos
favorecidas enfrentam tanto no decorrer do período letivo quanto no término dessa trajetória,
ocasião em que a própria instituição de ensino consegue dar às suas atitudes a aparência de
que são democraticamente instituídas.
Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X
a esse homogeneidade será reportada ilegal, inadequada ou fora dos parâmetros. E é nesse
aspecto que atua a violência simbólica legitimada no seio escolar: moldando o indivíduo à
realidade preconizada por aqueles que dominam o meio social.
Porém, um aparato necessário deverá ser feito antes de indicar as hipóteses aptas
para se chegar a um nível emancipatório satisfatório no âmbito escolar: construir uma nova
forma de olhar a coletividade.
28
Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X
Ocorre que não há espaço para tal concepção, principalmente tratando-se do âmbito
escolar. Como se percebe, na totalidade de um grupo escolar encontram-se os mais variados
elementos que atestam sua heterogeneidade, tais como: a origem familiar (formação, etnia,
localização), os diferentes credos, culturas; elementos que por si só tornam peculiar cada
experiência de vida e conhecimento que o aluno carrega.
Noutro ponto, não se pode reduzir esse complexo círculo à uma esfera uniforme e
homogênea, quando se proclama defender algo em prol da maioria (como se as formas de ver
e conhecer o mundo fossem iguais em todas as pessoas, desconsiderando a autopoiese). Nesse
sentido:
Logo, pessoas e grupos sociais não são iguais perante a escola, e, possuem também
tratamento diferenciado. Tais elementos trazem certos percalços à lógica de padronização do
ensino como meio mais eficaz à estimular a educação e cidadania. Necessário pois, levar em
conta as desigualdades e diferenças que permeiam o convívio escolar, para que, assim,
trabalhe-se a possibilidade de instauração de um contexto escolar mais solidário, fraterno,
29
Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X
Não raras vezes em que a Violência Simbólica se manifesta nos arredores escolares
nas mais variadas maneiras. São frequentes os casos envolvendo o recente fenômeno
denominado buylling, seja ele na forma de preconceito racial ou de gênero, e, o que se
percebe, é que a própria instituição escolar não está pronta pra lidar como a diversidade,
tampouco com sua concretude.
Cabe então uma abordagem e apontamento das falhas e/ou omissões que permeiam o
contexto escolar, pois, este, é o lugar onde o indivíduo galga seus primeiros degraus para
estabelecer suas relações de conhecimento, correlacionando parâmetros e aprendendo a
assimilar ensinamentos.
Certo é que a própria escola detém um sistema simbólico de cultura. Esse sistema
trata-se de uma estruturação construída pela própria comunidade acadêmica diretamente
influenciada pelas forças dominantes. Porém, essa realidade que da primazia à
homogeneização, acaba por tornar inviável a exposição e aceitação da diversidade nos mais
variados contextos, sendo, pois, um “padrão” completamente fora de esquadro e inapto a
viabilizar o crescimento pessoal e intelectual dos alunos.
Um ponto difícil de ser rechaçado se concentra na própria aceitação por parte dos
alunos pertencentes à classe dominada. Como se depreende, a classe dominante impõe certos
parâmetros e ordenanças implicitamente, os quais são tidos como legítimos e naturais para
aqueles que se submetem à essas estipulações. E, para ilustrar a assertiva, um caso ocorrido
em maio deste ano 2015 ilustra perfeitamente a situação.
Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X
àqueles que cometiam as agressões, a situação tornou proporções mais drásticas. Além de ter
aumentando os insultos (por ter nomeado os autores), a jovem aluna ainda teve que pedir
desculpa aos seus próprios agressores (determinação da própria diretota). Resultado refletido
em Lorena: Febre alta, inaptidão em comparecer as aulas e estresse pós-traumático.
Devido à proporção que a situação tomou nas redes sociais e, diante da inércia da
escola em tomar atitudes cabíveis, houve intervenção do Conselho Tutelar e do Departamento
de Ações Afirmativas de São Bernardo do Campo, momento qual ocorreu a mudança de
postura e devida responsabilização dos envolvidos direta ou indiretamente no infortúnio. Após
a tramitação desse processo, a coordenadora pedagógica da escola entrou em contato com a
vítima para que essa não deixasse a instituição.
Mui embora a instituição tenha feito algumas ressalvas em relação ao ocorrido (o que
Bauman usa de uma analogia feita ao conto “A terra dos cegos” para explicitar a
questão da normalidade como uma construção social, feita sob medida para aqueles que
integram o círculo social. No momento em que a “anormalidade” se choca com a ordem
construída, ou seja, com as expectativas dos “normais” (ou maioria), tem-se a discriminação
em desfavor dessa “anormalidade”, atitude que nada mais é que um meio de preservar a
ordem, uma criação sociocultural. (BAUMAN, 2012, p.72)
Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X
A ordem é feita sob medida para a maioria, de modo que aqueles que são
relativamente poucos e não se dispõe a obedecê-la constituem uma minoria
fácil de desvalorizar como um “desvio marginal” – e portanto fácil de
identificar, localizar, desarmar e subjugar. Selecionar, identificar e excluir a
“margem da anormalidade” é um resultado necessário do processo de
construção da ordem e um custo inevitável de sua perpetuação. (BAUMAN,
2012, p. 73)
8 o problema em si. A chave da questão se encontra no modo em como a escola lidará com a
diversidade, viabilizando ou não sua concretude.
Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No presente ensaio foi trazido o modo em que a violência simbólica (entendida por
um mecanismo utilizado de forma sutil por classes dominantes a fim de legitimar certas
crenças, comportamentos ou tradições), se instala no meio escolar, e, quais os efeitos
decorrentes de sua instauração.
A Escola nessa seara, deverá servir como meio de integração social, e não como
meio apto à fomentar à discriminação, principalmente nos fatores que versam sobre gênero,
raça, cor ou credo.
Dever-se-á fornecer meios, mesmo que necessários nas mais diversas formas, para
formar um cidadão consciente, apto a discernir e lutar em desfavor de práticas que, embora
sutis, engessam e legitimam práticas de violência simbólica.
Tal assertiva funda-se na própria Carta Magna brasileira, a qual aponta a educação
como direito fundamental. Ademais, cuidando-se da especificidade deste direito para crianças,
o Estatuto da Criança e do adolescente preza, como um dos seus baluartes, a não
discriminação e valorização de todas as culturas no seio social e escolar.
Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X
REFERÊNCIAS
BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco; JUBILUT, Liliana Lyra; MAGALHÃES, José
Luiz Quadros de Magalhães. Direito à diferença. 1ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2013, v. 1, 2, e
3.
BAUMAN, Zygmunt. Sobre educação e juventude. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, v. único.
BORBA, Jorge Falcão. RUSSO, Maria José de Oliveira. Contradições na escola: a violência
no lugar do desenvolvimento humano. Revista múltiplas leituras.V.4, N.2, 2011.
Disponível em: < http://www.bibliotekevirtual.org/index.php/2013-02-07-03-02-35/2013-02-
07-03-03-11/654-ml/v04n02/5607-contradicoes-na-escola-a-violencia-no-lugar-do-
desenvolvimento-humano.html> Acesso em: 26/08/2015.
BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. 2ª Ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1998, v. único.
BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil
LTDA, 1997, v. único.
BOURDIEU, Pierre. A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens
simbólicos. São Paulo: Zouk, 2002.
BOURDIEU, Pierre. Poder simbólico. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil
LTDA, 1989, v. único.
NEURA, Cézar. PASSOS, Luiz Augusto. Violência simbólica nos rituais legitimadores dos
processos escolares – Fenômeno bullying no ambiente escolar. Disponível em:
<http://www.pucpr.br/eventos/educere/educere2008/anais/pdf/255_754.pdf> Acesso em:
26/08/2015.
Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X
SANTOS, Telma Aparecida da Silva. A mídia e sua relação com a violência simbólica no
contexto escolar. Encontros de pesquisa em educação.V.1, N.1, 2013. Disponível em: <
http://revistas.uniube.br/index.php/anais/article/view/805/923> Acesso em: 26/08/2015.
Brasil: vítima de racismo em escola, menina é obrigada a pedir desculpas aos agressores.
Disponível em: < https://pt.globalvoices.org/2015/05/06/brasil-vitima-de-racismo-em-escola-
menina-e-obrigada-a-pedir-desculpas-aos-agressores/> Acesso em: 26/08/2015.
35
RESUMO
1. INTRODUÇÃO
As discussões obsessivas sobre “raças” estão superadas; hoje sequer há unanimidade sobre o
conceito de “raça”; o interesse pela etnia-identidade amplia-se.
Naturalmente, as pessoas estão sempre mais interessadas pelas discussões da sua realidade ou
do seu entorno. Nisso reside, talvez, o fato de que os ENECULT realizados em 2005 e 2006
terem acatado as resenhas sobre o “PCI - Projeto Cara de Índio”. Desta feita (se me for dado
oportunidade) pretendo apresentar mais reflexões de caráter filosófico-antropológico sem, no
entanto, desprezar as contribuições do campo da antropologia cultural e da história. Afinal,
percebo que algumas pessoas continuam céticas até no campo acadêmico (é o caso da reitoria
da UNEB), enquanto outras contestam francamente (inclusive um antropólogo da ANAI, por
incrível que possa parecer) a existência de índios (e de índiodescendentes) na cidade de
Salvador.
7
*Diretor Presidente da UNID – União Nacional dos Índiodescendentes (Salvador)
– email: unidbrasil@yahoo.com.br
36
Diversos estudos descrevem a presença de povos nativos no território atual de Salvador, bem
antes da chegada dos povos ibéricos. É sabido que antes dos tupinambá, outros povos (tupi,
tupina, tupinae etc) ocuparam o litoral da Bahia. Há um dado muito interessante, destacado
por alguns pesquisadores, inclusive pelo antropólogo baiano Antônio Risério (“UMA
HISTÓRIA DA CIDADE DA BAHIA”), sobre a “aldeia eurotupinambá” existente antes da
fundação de Salvador, conforme relato de alguns navegadores, dentre os quais Martim Afonso
de Souza e Simão Alcazaba, em 1533 e 1535, respectivamente. Em 01 de novembro de 1501 a
expedição de Gonçalo Coelho “Comerciou com índios e fixou um marco de pedra numa ponta
rochosa, que, por isso mesmo, veio a se chamar “Ponta do Padrão”, onde fica atualmente o
Farol da Barra” (pg. 53 da op. cit.).
Em dezembro de 1548, D. João III, após retomar a Capitania da Baía de Todos os Santos,
decidiu criar um Governo Geral no Brasil. Caramuru mais uma vez foi convocado para apoiar
a nova empreitada. Em 29 de março de 1549 uma esquadra de naus e caravelas, com um
batalhão de mil homens (funcionários, negociantes, padres, operários, tripulantes e
degredados) fundeou na Baía de Todos os Santos. Tomé de Souza e seus expedicionários,
com a colaboração do povo da aldeia de Caramuru, iniciaram a construção da “cidade da
Bahia”. A casa do governador, muralhas e cercas contra os ataques dos tupinambá, câmara
municipal, a “Sé de palha”, a ponte de atracamento naval etc foram erigidos com o barro e a
madeira da terra.
37
Vários acontecimentos marcaram a segunda metade do século XVI, além das primeiras
tentativas de invasão dos holandeses, da unificação dos reinos de Portugal e Espanha (1580-
1640), a brutal guerra de extermínio dos índios, promovida pelo Mém de Sá etc motivam a
migração de povos ibéricos para o Brasil. O trabalho de cristianização dos jesuítas contribuiu
para a desestruturação social e cultural dos povos indígenas no recôncavo e no resto do Brasil.
A “cristianização” significava “amansamento”, subjugação e servidão da população restante
das aldeias destroçadas..
2
É 1. A fusão de “raças” e culturas
O território onde está encravado Salvador pertencia totalmente aos tupinambá até o começo
do século XVI. Como dito, o primeiro donatário ao desembarcar nessa terra encontrou uma
aldeia eurotupinambá. Os tupinambá de Salvador e de outras partes confrontaram e reagiram
violentamente à presença dos “brancos” apesar da presença do português Diogo Álvares, o
Caramuru, com sua aldeia “eurotupinambá”.
Somente após meio século de contato eurotupinambá, época suficiente para a conformação de
duas gerações (segunda metade do século XVI) chegaram os povos africanos, escravizados. A
partir desse momento são dadas as condições para ampliação da miscigenação:
3
índiodescendentes, afroindígenas, afrobrasileiros e mulatos .
2
Utilizo a palavra “raça” [ainda empregada, amplamente, no campo acadêmico] como recurso
operativo e contrastante da origem dos grupos humanos (nativo-indígena, europeu e africano).
3
Considero o termo “mulato” mais adequado que “pardo”, palavra que propicia interpretações
trânsfugas; a interpretação de que a palavra mulato(a) decorre da história da violência sexual praticada
contra as mulheres de cor preta, tidas como “montaria sexual”. Considero mais razoável que seja uma
alusão à hibridagem, mestiçagem ou “cor de mula”, mulus (no latim), muwallad (mestiçagem entre
árabes) ou muladi (mestiçagem entre árabes cristão), da primeira das quais deriva, em português, a
palavra muar, designativa de uma espécie de híbrida da raça cavalar; no Dicionário Caldas Aulete
encontramos mais uma significação de “mulato”, sem nenhuma conotação depreciativa: “variedade de
pêssegos grandes, na região de Leiria” – cidade fundada bem antes de Salvador (pg. 2438).
38
A presença indígena está mais ou menos registrada, desde a partir da primeira metade do
século XVI, nas crônicas de missionários, documentos oficiais e de viajantes. Depois do
escrivão de Tomé de Souza outros importantes relatos foram feitos por Manoel da Nóbrega,
Anchieta e Vieira e outros missionários. Seguem-se Frei Vicente do Salvador (com relatos dos
séculos XVI e XVII), Luis dos Santos Vilhena (século XVIII). Cito ainda Thedoro Sampaio,
nascido no século XIX, em Santo Amaro (que escreveu “O Tupi na Geografia Nacional”, em
1969 e a “A História da Fundação da Cidade do Salvador”); Pedro Calmon (também nascido
no século XIX, que escreveu “História da Casa da Torre”); Luiz Henrique Dias Tavares;
Antônio Risério e outros.
A literatura não foi pródiga para com a história dos nossos índios. Há uma fase da literatura
brasileira chamada de “indianista” (Gonçalves de Magalhães, Gonçalves Dias, José de
Alencar etc) com interessantes registros da temática indígena, embora romanceada. Tem
grande valor literário e histórico a crônica e a poética de Gregório de Mattos Guerra
(Salvador: 1636 / Recife: 1696). O poeta alcunhado “boca de brasa” (e também de “Pica-
Flor”) fez muito uso do vocabulário tupi em muitas das suas criações. Escrevia ele, na
segunda metade do século XVII: “Um calção de pindoba a meia zorra / Camisa de urucu,
mantéu de arara./ Em lugar de cotó, arco e taquara, / Penacho de guará em vez de gorra[...]
/ De Paiaiá tornou-se Abaeté. [...] / Não sei onde acabou, ou em que guerra, / Só sei que deste
Adão de Massapé, / Procedem os fidalgos desta terra”; e em outro poema sobre OS
PRINCIPAIS DA BAHIA, CHAMADOS OS CARAMURUS: [...] “A linha feminina é
carimã / Moqueca, pititinga, caruru / Mingau de puba, e vinho de caju / Pisado num pilão de
Pirajá.[...] O branco é um maraú, que veio aqui; / Ela é uma índia de Maré, / Cabepá, Aricobé,
4
Cobé...
3.4.Índios nas guerras de Salvador
Batalhões indígenas foram muitos utilizados pelos lusos e por outros estrangeiros (franceses,
holandeses e espanhóis) que disputavam a posse da terra ou nas guerras contra vários povos
indígenas. Em Salvador não poderia ser diferente. Santos Vilhena (A BAHIA DO SÉCULO
XVIII – Editora Itapuã/Salvador/1969, pgs. 51 e 55) fala dos batalhões indígenas utilizados
como guardas, em Salvador, no século XVII. Frei Vicente do Salvador, em sua HISTÓRIA
DO BRASIL (escrita em 1627) foi testemunho da resistência à invasão holandesa de 1624,
anotando: “... o governador mandou outra companhia ao porto de Vila Velha, que é meia
4
Em www.sonetos.com.br; só indicado o título do segundo poema; não sublinhados.
39
Os relatos mais detalhados sobre a guerra contra os portugueses na Bahia, nos anos de
1822/1823, inclusive feitos por Pedro Calmon e de Luiz Henrique Tavares, dão conta de pelo
menos um batalhão de “índios flecheiros”.
Por não estarem grafadas, as línguas dos nossos nativos não resistiram ao impacto causado
pelo encontro (também confronto) com os portugueses. O tupi resistiu um pouco mais pelo
fato de que os jesuítas resolveram utilizá-lo como língua geral, para o que elaboraram um
códice lingüístico-tupinambá, utilizado como língua franca até a segunda metade do século
XVII.
Apesar da opressão e do choque cultural ainda hoje mais de duzentos povos indígenas do
Brasil (com número de indivíduos que varia de uma dezena a alguns milhares) falam uma
língua nativa dentre as cerca de cento e oitenta faladas. A maioria dos falantes de línguas
indígenas concentra-se no Norte do Brasil. No Dicionário Contemporâneo de Língua
Portuguesa Caldas Aulete, encontra-se a seguinte seqüência de palavras: “Teju, Tijuaçu,
Tejubina, Tejubu, Tejuco, Tejunhana, Tejupar e Tejupim” (pgs. 3522/3), todas de raiz
tupínica. Houaiss informa-nos ainda que no “... registro do Atlas do Brasil ao milionésimo
consta de cerca de sessenta mil unidades (com as repetições do mesmo topônimo [...]) em que
5
Itálicos, negritos e sublinhamento não constam nos originais.
40
o percentual de origem tupi e brasílica é alentado”, e que nós, brasileiros, “... somos seres [...]
linguisticamente indianizados...” (op. cit. pgs. 10 e 12).
Para o interesse estrito desta resenha interessa demonstrar que Salvador, sua Região
Metropolitana (séc. XX) e o Recôncavo Baiano desde que foram citados pela primeira vez
estão integrados, claramente, a uma “região de cultura indígena”, a saber:
Mapa I – “Distribuição das nações Tupi-Guarani da Costa (Início do século XVI)”, publicado
em “Fragmentos de História e Cultura Tupinambá etc”, de Carlos Fausto, e em “De Cunhã à
Mameluca”, de João Azevedo Fernandes, pg. 283.
Mapa III – Mapa, “Áreas Culturais Indígenas do Brasil – 1900/1959”, de Eduardo Galvão, em
que Salvador e a sua RM estão perfeitamente abrangidos pela área “nº 11”. (conforme “Índios
do Brasil”, de Júlio Cezar Melatti, pg. 45).
Os dados apresentado, além dos citados a seguir, confirmam plenamente a existência de uma
população “indígena” e “índiodescendente”, em Salvador:
O censo realizado pelo IBGE em 2000 (assim como o de 1999) por si só possui credibilidade
política e método científico reconhecido internacionalmente. Com relação à população
“indígena” da Bahia, que totalizou 64.240 indivíduos, convém apresentar o seguinte quadro:
Salvador: 18.712 (29 %), Municípios da RM: 23.006 (36 %) e Demais Municípios (35%).
Resta afirmar que, no ano de 2000, 65% da população baiana (41.712 pessoas) autodefinida
indígena residia em Salvador e na sua Região Metropolitana (Camaçari, Candeias, Dias
42
d’Ávila, Itaparica, Lauro de Freitas, Mata de São João, Madre de Deus, São Francisco do
Conde, São Sebastião do Passé e Simões Filho).
A UNID – União Nacional dos Índiodescendentes, fundada em 2002, tem sede à Avenida Sete
de Setembro, 62, Sala 317, Edf. SULACAP, centro de Salvador, estatuto, registro cartorial,
CNPJ, e não tens fins lucrativos. Essa entidade integrou o Fórum de Entidades e Movimentos
de Direitos Humanos – FEMDH e a Comissão que discutiu e aprovou a “Política de Ações
Afirmativas da UFBA”, em 17 de abril de 2004, incluindo o sistema de cotas para negros,
índios e índiodescentes oriundos da rede pública de ensino. Os dirigentes e associados e
associados da UNID participam de congressos, seminários, palestras e atua em defesa da
cultura dos povos indígenas contemporâneos. A entidade entende que cabe a cada cidadão
reconhecer-se como “indígena” ou “índiodescendente”, o que decorre do direito sagrado de
autodefinição previsto na Constituição Federal e na Resolução 169 da ONU. Os
“índiodescendentes” estão amparados pelo princípio do direito (“quem pode mais, pode
menos”) aplicável à Resolução 169, da ONU. Afinal, não se pode negar ao cidadão o direito
de autodefinir “índiodescendente” quando até poderia autodefinir-se como “indígena”.
Nos anos 2004, 2005 e 2006, a diretoria da UNID, em cooperação com outras entidades,
coordenou a realização da SEMANA DA CONSCIÊNCIA INDÍGENA, sem nenhum ônus
para o setor público, fato inédito, em Salvador. Essa entidade também participou, de forma
organizada, juntamente com dezenas de militantes, do “Grito dos Excluídos”, em 2004, 2005
e 2006, com faixas e palavras de ordem em defesa dos povos indígenas.
Sob a coordenação da pessoa que escreve esta resenha, com a participação da UNID,
Sindicato dos Bancários da Bahia, FEMDH, assessoria parlamentar do Deputado Estadual
Yulo Oitica fundou-se, em meados de 2003, um “Comitê em Defesa dos Índios Pataxó” e
outros da Reserva Caramuru – Paraguassu”. Milhares de cartas padronizadas foram enviadas
ao STF, por várias vias, pedindo justiça e agilização no julgamento da Ação Ordinária
Originária nº 312, que tramita há 25 anos. Petições juntadas ao processo em 20/nov/03 ( nºs
148.367 a 369), 16/jan/04 (nºs 163.358 a 360) e em outras datas.
Ainda que uma simples autodeclaração (item “6.1”) tenha força moral e política, outras fontes
de natureza cultural, tais como a língua (item “4”), artefatos, signos, pistas etc, originados na
vida econômica e social, produtiva e artística e no campo da arqueologia podem (e devem) ser
listadas em favor da visibilidade de qualquer expressão étnico-identitária. Em Buenos Aires, o
arqueólogo Schávelzon busca “... reconstruir, através de pequenos objetos e de pistas [...]
práticas negras existentes no passado da capital argentina” (A Utopia Brasileira e os
Movimentos Negros, Antônio Risério, pg. 412). Portanto, seguindo essa linha, para concluir,
listamos os seguintes elementos comprobatórios da ação e da presença indígena em Salvador:
6.4.1. Retrato Molecular do Brasil
Os estudos populacionais realizados pelo doutor Sérgio Pena (UFMG), conhecido como
“Retrato Molecular do Brasil”, são de grande importância para o conhecimento da nossa
44
população. Marcelo Leite afirma, em artigo publicado na Folha de São Paulo (Caderno Folha
Ciência) de 26 de março de 2000, sobre o estudo do Dr. Sérgio Pena e sua equipe: “Hoje,
como há na população um terço de haplótipos indígenas (mtDNA), isso corresponde a algo
como 50 milhões de linhagem ameríndia ou pelo menos dez vezes mais do que havia quando
a Terra dos Papagaios foi descoberta”, comentando os dados do citado estudo.
Salvador não é apenas um dos territórios onde germinou o protoplasma da nossa população
indígeno-mestiça, mas também é um território onde vive parcela dessa população.
Em torno do Campo Grande há, no mínimo, três referências culturais e construtivas alusivas à
cultura indígena (as primeiras citadas), além de outras:
a) panteão ao “Dois de Julho”: talvez seja o monumento nacional em que a figura de um índio
b) belo painel pintado por Caribé (aproximadamente 3 x 4 m), colorido, com a temática
indígena, na entrada do edifício “Tupinambá” (Rua João das Botas);
d) fonte hídrica e luminosa, com estátua de índia no topo, localizada defronte ao Quartel da
Polícia Militar da Bahia, sito à Praça Aspilcueta Navarro (Aflitos – Centro);
e) possivelmente o maior painel de Caribé, com temática indígena, esteja localizado no Cine
2
Glauber Rocha (Praça Castro Alves), com aproximadamente 40m , sito no salão de projeção
– edifício atualmente em obras de ampliação e adaptação;
Salvador tem Rua dos Índios (bairro Cidade Nova), Rua dos Canibais (bairro Pernambués),
Condomínio Aldeia Jaguaripe ou ainda um bairro (Jardim Brasília - Saramandaia) com várias
6
“Itacoatiara”: derivado de itá (pedra) + kua´tiara (pintura), cf. Dicionário Histórico das Palavras
Portuguesas de Origem Tupi, de Antônio Geraldo da Cunha (pg.158)
45
Faço algumas indicações (inclusive derivadas ou corruptelas) que possam ilustrar esse
marcador sócio-cultural:
I. Nomes das pessoas domiciliadas em Salvador, conforme diversas fontes (cartórios, Banco
de Dados Cadastrais da UNID, imprensa e outras): Anari, Aranda (s), Ari, Araci, Bartira,
Buriti, Canindé, Caramuru, Caubi, Guaracy(i), Y(I)ramá, Ian (derivado de Iã?), Itaparica,
I(y)ara, I(y)ano, Jaguarci (y), Juracy(i), Jurema, Juss(ç)ara, Karaí (y), Karipuna, May(i)ra,
Maués, Missu, Moaci(y)r, Moema, Naira, Naíra, Paraguassu (também com ç), Paraná, Peri
(y), Petitinga, Poti(y), Tainá, Taiana, Tabajara, Ubiratã(n), Yuri (guarani, além de russo) etc.
II. Nomes de locais (bairros, praças, ruas, travessas etc) e acidentes geográficos: Aldeias
Jaguaripe (condomínio residencial), Apipema, Aratu, Baependi, Caetés, Camarajib(p)e,
Capanema, Capimirim, Carijós, Cunha (ã), Gamboa, Goitacás, Guarani, Guaratinga, Guaporé,
Humaitá, Iguatemi (Centro comercial, empresarial e bairro), Ipirá, Itaparica, Itabira, Itaboray,
Itapoã, Itapuã (an), Jaborandi, Jequitaia, Juá, Juamirim, Jurunas, Marajó, Mauá, Mecejana,
Paramana (Ilha), Paripe, Periperi, Pernambués, Pernambuco, Piauí, Pirassununga, Sergy,
Sucupira, Tapuia, Tibiriçá, Tupi (y), Tupinambá, Urubupanga (Urubupungá?), Xavantes etc
6.4.4. Carnaval da Bahia
O Carnaval, foi introduzido no Brasil pelos portugueses. “Combatido como jogo selvagem, o
entrudo prevaleceu até quando apareceram elementos de brincar menos agressivos...”
(Larousse Cultural – Antropologia e Folclore, pg. 12). O carnaval da Bahia, hoje, é o carnaval
do Brasil reconhecido em todos os continentes, ao lado do carnaval “carioca”, estudado por
dezenas de antropólogos e sociólogos. Toda a fisionomia e todos os elementos dessa festa
sincrética são “multi” (racial e cultural) e envolve todas as classes sociais. Segundo RISÉRIO
(op. cit., pg. 145), “A paixão dos nossos indígenas do litoral – tupinambás e tupiniquins – pela
dança, pela música e pela retórica, pela eloqüência discursiva [os nossos políticos, também,
digo eu] tornou-se proverbial entre os estudiosos”. Dentre todas as considerações e reflexões
que podem ser feitas em torno do carnaval há uma “básica”, que remete ao seu caráter
dionísico e selvagem, com danças e com mortes: a antropofagia sincrética tupinambá-mestiça.
7
Alô Comanches e Apaches do Tororó!
7. RESISTÊNCIA À PRESENÇA E À EXPRESSÃO INDÍGENA, EM SALVADOR.
7
Os Tupinambás, assim como os Comanches e os Apaches (povos do EE.UU), são ameríndios.
46
9
Caso B – A comissão de educadores e consultores designada pela Secretaria de Educação da
Prefeitura Municipal de Salvador (Secretária: Olívia Santana), em 2005, para implantar a Lei
10.639/03, desconsiderou importantes diretrizes da Resolução nº1, de 17 de junho de 2004, do
Conselho Nacional de Educação - CNE. A Resolução define as “Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da Cultura
Afrobrasileira”, considerando que a Lei 10.639 não é auto-aplicável, e declara no caput do
Art. 2º que a citada lei se destina a “promover a educação de cidadãos atuantes e conscientes
no seio da sociedade multicultural e pluriétnica, prossegue, mediante “... a divulgação e a
produção de conhecimentos, bem como atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos
quanto a pluralidade étnico-racial” (Parágrafo 1º). O parágrafo 2º do Regulamento nº1
reafirma amplitude educacional da Lei quando que postula o “...reconhecimento e valorização
8
Tipo de aldeia primitiva da região da antiga Gália, atualmente Galícia, na Espanha.
9
Consultores que receberam agradecimento pela participação no projeto de implantação do ensino
da Lei 10.639/03: Mary Garcia Castro, Maria de Lurdes Siqueira, João José Reis, Yeda Pessoa de
Castro, Muniz Gonçalves Ferreira, Marly Geralda Teixeira, Valdina Oliveira Pinto, Vanda
Machado e Lázaro Raimundo dos Passos Cunha.
47
10
Presidente da Câmara Municipal que garantiu ação política pela aprovação do Projeto de Lei listado
na ordem
48
8. CONCLUSÃO – Há muito a ser feito pela cultura e pela identidade indígena, em Salvador,
afinal “...defuntos são aqueles que perderam a memória”, conforme Mircea Elíade (in Mito e
Realidade, pg. 109). Salvador, Bahia, fevereiro de 2008 - Consultoria: José Carlos Bahiana
Machado Filho (cultura indígena); Revisão léxica, normalização e editoração do texto:
Natássia Guedes Alves. Revisão geral: Maria Angélica Guedes Alves.
BIBLIOGRAFIA
ALVES, José de Arimatéa Nogueira. PCI – Projeto Cara de Índio. Salvador, 2006. ARANHA,
Maria Lúcia de A. & MARTINS, Maria Helena P. Filosofando – Introdução à Filosofia. São
Paulo: Moderna, 2002.
BRANDÃO, Maria de Azevedo. “A cidade contra o Recôncavo”. In: Revista Bahia, 28.
Salvador: Fundação Cultural da Bahia, jan/1999.
DIEGUES JÚNIOR, Manuel. Etnias e Culturas no Brasil. RJ: Bibl. do Exército, 1980.
GUICCI, Guilhermo. Viajantes do Maravilhoso Novo Mundo. SP: Cia de Letras, 1992.
LINDOSO, Dirceu. A Utopia Armada (A Cabanagem alagoana – pernambucana). Maceió:
Universidade Federal de Alagoas, 2005.
NIMUENDAJU, Curt. Mapa Etno-histórico do Brasil - Regiões Adjacentes (1ª edição: 1944).
Brasília/DF: IBGE, 1987.
-------- -------- Uma História da Cidade da Bahia. Rio e Janeiro: Versal, 2004.
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Histórico das Palavras de Origem Tupi. São Paulo:
Melhoramento/UnB, 1978.
DIVERSOS. Enciclopédia Compacta- Brasil Temático. São Paulo: Nova Cultural, 1995.
51
52
Salvador Bahia - BA
Histórico
ostensivos, porém, humildes alfaiates, razão por quê o movimento passou à história como a
"Revolução dos Alfaiates".
Antes mesmo de proclamada a independência do País, já se lutava nas ruas de Salvador pela
nossa emancipação política; depois. n os arredores da cidade travaram-se as vitoriosas batalhas de
Cabrito e Pirajá, que culminaram, a 2 de julho de 1823 - data triunfal da entradas das tropas
libertadoras - , com a consolidação da Independência Nacional.
Bem diferente foi a reação à notícia da Proclamação da República, que só provocou
estupefação e ressentimentos. Apesar das manifestaç ões históricas de republicanismo e da série de
motins e revoluções fracassadas, a cidade permanecia fiel ao regime monarquista, chegando mesmo
a esboçar-se uma tentativa de articu lação do Norte do País para uma reação favorável à monarquia.
No período republicano a fisionomia urbana da cidade sofreu modificações sensíveis a
começar com as obras do Porto, que lhe ampliaram a área com aterros necessários a construção do
ancoradouro. De 1912 a 1914 deu-se a abertura da Avenida Sete de Setembro, do Largo do Teatro
(atual Praça Castro Alves) até o Farol da Barra. Nessa época também se verificou a demolição das
histórica igrejas da Ajud a, de São Pedro e do Rosário de João Pereira. Nos últimos vinte anos a
cidade vem-se expandindo, sobretudo na direção dos seus arrabaldes (Barra, Graça, Itapagipe,
Mares, Brotas, Liberdade, São Caetano, Pituba e Itapoã), com a abertura de novas ruas e avenidas,
visando, principalmente. ao aproveitamento dos vales.
Gentílico: soteropolitano
Formação Administrativa
Fundada em 1549, com a denominação de Salvador e nã o São Salvador ou cidade do
Salvador.
Em 1549, e lei municipal de 05-08-1892, é criado o distrito de Vitória e anexado ao
município de Salvador.
Em 1552, e lei municipal de 05-08-1892, é criado o distrito de Sé e anexado ao município de
Salvador.
Anteriormente a 1608, e lei municipal de 05-08-1892, foram criados os distritos de Cotegipe,
Itapoã, Matoim, Paripe, Passé e Pirajá anexados ao município de Salvador.
Em 1623, lei municipal de 05-08-1892, é criado o distrito de Conceição da Praia e anexado
ao município de Salvador.
Em 1648, e lei municipal de 05-08-1892, é criado o distrito de Santo Antônio Além do
Carmo e anexado ao município de Salvador.
Foi Capital do Brasil até 1673.
Pelo alvará de 20-07-1679, e lei municipal de 05-08-1892, forma criados os distritos de
Santana e São Pedro e anexados ao município de Salvador.
Em 1718, e lei municipal de 05-08-1892, foram criados os distritos de Brotas e Rua do Paço
e anexados ao município de Salvador.
Em 1720, e lei municipal de 05-08-1892, é criado o distrito de Pilar e anexado ao município
de Salvador.
Em 1760, e lei municipal de 05-08-1892, é criado o distrito de Penha de Itapagipe e anexado
ao município de Salvador.
Pelo decreto de 19-07-1832, e lei municipal de 05-08-1892, é criado o distrito de Maré e
anexado ao município de Salvador.
Pela lei provincial nº 1110, de 06-05-1870, e lei municipal de 05-08-1892, é criado o distrito
de Mares e anexado ao município de Salvador.
Pela lei municipal nº 310, de 22-10-1897, é criado o distrito de Nazaré e anexado ao
município de Salvador.
Em divisão administrativa referente ao ano de 1 911, o município é constituído de 20 distritos:
Salvador, Brotas, Conceição da Praia, Cotegipe, Itapoã, Maré, Mares, Matoim,
54
Nazaré, Paripe, Passé Penha de Itapagipe, Pilar, Pirajá, Rua do Paço, Santana, Santo Antônio
Além do Carmo, São Pedro, Sé e Vitória.
Pela lei municipal nº 1077, de 03-08-1920, é criado o distrito de Aratu e anexado ao
município de Salvador.
Pelo decreto nº 7479, de 08-07-1931, foram anexados ao município Salvador as Ilhas de Bom
Jesus, Frades, Madre de Deus e Santo Antônio .
Em divisão administrativa referente ao a no de 1933, o município é Capital do Estado e
aparece constituído de 24 distritos: Salvador, Aratu, Brotas, Candeias, Conceição da Praia, Cotegipe,
Itapoã, Maré, Mares, Matoim, Paripe, Passé, Nazaré, Penha de Itapagipe, Pilar, Pirajá, Plataforma,
Rua do Paço, Santana, Santo Amaro do Ipitanga, Santo Antônio Além do Carmo, São Pedro, Sé e
Vitória.
Em divisão territorial datadas de 31-XII -1936 e 31-XII-1937, o município é constituído de 12
distritos urbanos e 12 suburbanos, assim denominados: Brotas, Conceição da Praia, Mares, Nazaré,
Penha (ex-Penha de Itapagipe) Pilar,Rua do Paço, Santana, Santo Antônio, São Pedro, Sé e Vitória.
distritos suburbanos: Arat u, Candeias, Cotegipe, Itapoã, Maré, Matoim, Paripe, Passé, Pirajá,
Periperi, Plataformae Santo Amaro de Ipitanga.
Pelo decreto-lei estadual nº 10724, de 30-03-1938, os distritos foram reduzido à categoria de
zonas.
No quadro fixado para vigorar no período de 1939-1943, o município é constituído do distrito
sede e subdividido em 24 zonas: Brotas, Conceição da Praia, Mares, Nazaré, Penha, Pilar, Rua do
Paço, Santana, Santo Antônio, São Ped ro, Sé e Vitória. distritos suburbanos:
Aratu, Candeias, Cotegipe, Itapoã, Maré, Matoim, Paripe, Passé, Pirajá, Periperi, Plataforma e
Santo Amaro do Ipitanga.
Pelo decreto-lei estadual nº 141, de 31-12-1943, retificado pelo decreto estadual nº 12978, de
01-06-1944, a zona de Itapoã passou a gra far Itapuã.
De Acordo com artigo 23, do Ato das Disposições constitucionais Transitórias, de 02-08-
1947, que alterou a divisão territorial vigente em 1944-1948, o município de Salvador adquiriu os
distritos de Suape e Senhor dos Passos, foram transferidos do município São Francisco do Conde,
como simples subdistritos e com os nomes, respectivamente: Madre de Deus e Bom Jesus.
Em divisão territorial datada de 1-VII-1 950, o município é constituído do distrito sede. Pela
lei estadual nº 628, de 30-12-1953, foram criados os distritos de Águas Comprida, Ipitanga e Madre
de Deus e Nossa Senhora das Candeias todos (ex-povoados) e anexados ao município de Salvador.
Em divisão territorial datada de 1-VII-1 955, o município é constituído de 5 distritos:
Salvador, Água Comprida, Ipitanga, Madre de Deus e Nossa Senhora das Candeias.
Pela lei estadual nº 1028, de 14-08-1958, desmembra do município de Salvador o distrito de
Nossa Senhora das Candeias. Elevado à c ategoria de município com a denominação de Candeias.
Em divisão territorial datada de 1-VII-1 960, o município é constituído de 4 distritos:
Salvador, Água Comprida, Ipitanga e Madre de Deus.
Pela lei estadual nº 1538, de 07-11-1961, desmembra do município de Salvador o distrito de
Água Comprida. Elevado à categoria de m unicípio com a denominação de Simões Filho.
Pela lei estadual nº 1753, de 17-07-1962, desmembra do município de Salvador o distrito de
Ipitanga. Elevado à categoria de municí pio com a denominação de Lauro de Freitas.
Em divisão territorial datada de 31-XII- 1963, o município é constituído de 2 distritos:
distritos: Salvador e Madre de Deus.
Assim permanecendo em divisão territoria l datada de 1-I-1979.
Em divisão territorial datada de 1988, o município permanece com 2 distritos: Salvador e
Madre de Deus e com 22 subdistritos: Amaralina, Brotas, Conceição da Praia, Itapoá, Maré, Mares,
Nazaré, Brotas, Candeias, Conceição da Praia, Cotegipe, Itapuã, Maré,
Mares, Nazaré, Paripe, Passo, Penha, Periperi, Pilar, Pirajá, Plataforma, Santana, Santo
Antônio, São Caetano, São Cristóvão, São Pedro, Sé, Valéria e Vitória.
55
ANOTAÇÕES – CURSO 01
57
58
59
60
61
62
63
AMAZON CRIA 1000 POSTOS DE TRABALHO EM MANCHESTER
Posted on novembro 28, 2018 by Maria
No próximo ano, a empresa pretende abrir uma nova sede, que vai abrigar
5.000 funcionários em Old Street, centro de Londres.
Organização
Carlos Fortuna
Nº 21
Julho, 2018
1
67
www.ces.uc.pt
E-mail: cescontexto@ces.uc.pt
ISSN 2182-908X
Índice
Carlos Fortuna
As casas em dois sentidos ................................................................................................................... 4
Madalena Duarte
Violência dentro das casas .................................................................................................................. 8
Sílvia Portugal
O cuidado em casa e o cuidado da casa ........................................................................................... 16
Carolina Anselmo
Mudar de casa ..................................................................................................................................... 19
Violeta Rodríguez
Morar fora de casa: uma experiêrncia de resistência no Bairro da Merced, Centro Histórico da
Cidade do México .............................................................................................................................. 28
Rómulo Oliveira
Janela de classe e o olhar no olho da casa ....................................................................................... 33
Adelino Gonçalves
O(s) lado(s) de fora da casa ............................................................................................................... 43
Paulo Peixoto
A casa despida..................................................................................................................................... 53
2
69
Nota de abertura
5 uma enorme satisfação abrir este dia de reflexão sociológica, cruzada com outras visões ou
orientações, sobre “As casas vistas por dentro e por fora”. Inserida na 20ª Semana Cultural de
Universidade de Coimbra, esta primeira sessão como as duas seguintes vão dar-nos suficiente
matéria para equacionar as diversíssimas variantes em que a “casa” se revela enquanto
oikosesfera – espaço de interação social interna –, mas também como feixe de relações
exodomésticas ou espaço arquitetónico com modulações várias.
Começaremos com uma reflexão sobre o que passa “dentro” de casa. Sim, a violência
doméstica de todos os dias, mas também o cuidar da casa e de outros dentro dela.
Caros e caras colegas, cumprimento-vos com alegria. Do mesmo modo que cumprimento
a Vice-Reitoria para a Cultura da UC, a FEUC e o CES que apadrinham este dia de
abordagem sociocultural das casas. A eles junto a menção habitual ao Doutoramento em
Sociologia: Cidades e Culturas Urbanas que é o grande abrigo onde nos reunimos hoje.
Carlos Fortuna
3
70
Nesta intervenção farei uma breve alusão à casa a partir da aproximação de duas dimensões
sensoriais particulares: a visão e a audição. A inspiração para tal decorre do próprio poeta
Ruy Belo que no seu Oh as casas as casas as casas reconhece – em boa hora adotado como
marca inspiradora desta 20ª Semana Cultural de UC – que é sensorial a marca distintiva de
umas e de outras casas.
O advento da TV alterou esta disposição física dos membros da família, já que o novo
aparelho veio conquistar a centralidade posicional para ficar ao alcance da visão de toda a
gente. Cadeiras e sofás passaram a estar alinhados lado a lado, para facilitar o visionamento,
em resultado do que as pessoas abdicaram de se olhar de modo frontal e passaram a olhar-se
de relance, exercitando a sua visão periférica, em sinal (involuntário?) de desatenção
interpessoal, dada a proeminência espacial estratégica do “aparelho”.
8 sobejamente conhecida a crítica que este isolamento dos jovens em casa tem gerado:
quebra de laços, hiper-individualismo, atomismo excessivo, perda de competências
comunicativas, etc. No fundo, não se distingue de forma essencial da avaliação crítica que a
sociologia fez sobre os primórdios da busca da afirmação individual dos sujeitos na
modernidade, quer se trate da fuga à “tirania da comunidade” como estratégia de afirmação
da individualidade de que fala Richard Sennett, quer da clássica “multidão de isolados” (The
lonely crowd), abordada por David Riesman no dealbar da sociedade de massas.
Tenho sustentado que este refúgio dos jovens no seu espaço íntimo dentro de casa revela
uma natureza diferente do convencional entendimento que tende a atribuir-lhe um sentido de
5
72
puro individualismo e isolamento. De modo muito breve, direi que esta fuga expressa antes
uma escolha preferencial de um grupo social em vez de outro, uma deslocação da família
para os amigos virtuais. Quero admitir com isto que o isolamento deliberado dos jovens de
hoje pode conter um capital renovado de experiência social e de abertura ao mundo que tem
sido negligenciado ou incompreendido. A hipótese que gosto de alimentar é a de que,
encerrados nos seus quartos, os jovens de hoje, possam estar a manipular com inusitada e
reconhecida mestria os dispositivos comunicacionais (computador, vídeo, smartphones,
tablets, twitter, facebook, instagram) que os ligam intensamente a outros e possam estar,
assim, a cerzir um novo e insuspeitado ethos cosmopolita e progressista. Quiçá um ethos
transclassista, feito de distâncias tornadas próximas, em tudo semelhante ao que alguns
sociólogos chamam “políticas de piedade”.
7
74
Universidade de Coimbra
m.madalenaduarte@gmail.com
O medo do crime é um problema sociológico ao qual tem vindo a ser dada crescente atenção
interdisciplinar. A criminologia feminista do século XX desafiou claramente a total natureza
masculina das teorias do crime, chamando a atenção à repetida omissão e deturpação das
mulheres na teoria criminológica (Chesney-Lind, 2006). Os alertas feministas focaram-se
primeiramente na vitimação de mulheres e no silêncio exercido sobre a mesma. É deste modo
que encontramos diversos trabalhos nas áreas da agressão e abuso sexual, e violência nas
relações de intimidade (e.g., Buzawa e Buzawa, 1990; Estrich, 1987; Rhode, 1997). Estes
trabalhos fizeram emergir a consciência que, comparativamente aos homens, não só
estatisticamente as mulheres têm uma maior probabilidade de serem vítimas de um qualquer
crime, como também que o próprio medo é genderizado, isto é, as mulheres têm mais receio
de serem vítimas de crime (em particular de crimes violentos e crimes sexuais).
Neste breve ensaio procura-se refletir sobre estas questões abordadas pela criminologia
feminista com as lentes da sociologia do espaço, conceito de Simmel, nomeadamente
abordando as geografias do crime. Como estudo de caso, em jeito de contextualização das
pistas reflexivas apresentadas, selecionou-se a violência nas relações de intimidade.
Supõe-se, consequentemente, que a perceção social do medo seja dirimida quando estas
mulheres chegam a casa, ao seu espaço privado, um local tido como seguro. Contudo, para
muitas mulheres, as suas casas, com o ideal romântico da privacidade, podem ser mais
10
Independentemente de as mulheres de classes sociais mais baixas tenderem, em geral, a sofrer mais violência,
numa intersecção entre classe social e género, como Crenshaw (1991) argumenta, também teremos de ter em consideração
que as experiências de medo vivenciadas por mulheres pobres e a sua capacidade de ligar com tais situações poderão ser
diferentes daquelas das mulheres com mais recursos e redes sociais mais influentes. Outras variáveis podem ainda ser
consideradas, como nacionalidade, etnia, religião, etc..
8
75
perigosas do que qualquer espaço público. A violência contra as mulheres nas relações de
intimidade é paradigmática destas ténues fronteiras entre o público e o privado.
Estes juristas (…) abandonaram a ideia de hierarquia e começaram a usar a ideia de interioridade
para descrever a relação de casamento (…) invocando os sentimentos e espaços de
domesticidade. Depois de traduzido de uma linguagem antiquada para uma linguagem mais
contemporânea de género, a justificação do Estado para o tratamento diferenciado da violência
doméstica de outros tipos de abusos pareceu razoável (…). (Siegel, 1996: 2120)
9
76
que, consequentemente, a injustiça das leis existentes se deve a uma estrutura omnipresente
da dominação masculina – patriarcado - que começa no espaço privado e se expande para a
2
esfera pública e instituições políticas. A bandeira feminista "o pessoal é político" surge
historicamente, entre outras reivindicações, para proteger as mulheres da impunidade da
violência sofrida pelos homens no espaço privado.
Mas se Bachelard olha para os espaços interiores quase exclusivamente como espaços
felizes, a violência doméstica (num sentido mais abrangente, incluindo abusos sobre pessoas
idosas ou crianças) ou nas relações de intimidade, torna evidente que estes também podem
tornar-se espaços hostis e “interiorizar”/ “domesticizar” as geografias do medo. Por isso,
quando surgem casos de violência no lar, a sua imagem romanticizada fica abalada no
imaginário individual, mas também coletivo, enquanto representação social.
3
De forma a melhor ilustrar este ponto, optei por recorrer a excertos de entrevistas
realizadas com mulheres vítimas de violência numa relação de intimidade, procurando
encontrar ligações entre os espaços, a violência sofrida, mas também as estratégias de
negociação, resistência e sobrevivência desenvolvidas nesses mesmos espaços.
Nas narrativas de algumas mulheres encontramos determinados lugares interiores e/ou
sons, associados à chegada quotidiana do agressor e, portanto, à instalação de uma rotina no
tempo e no espaço do medo:
A nossa casa tinha dois andares e os quartos, os nossos e os dos dois rapazes, eram na parte de
cima, e eu lembro-me sempre que, quando chegava às dez, onze da noite – porque ele a dada
altura já nem durante a semana jantava em casa – já estávamos nós nos quartos. Eles com as
portas trancadas. Eu não podia trancar a minha porque o quarto também era dele, e quando o
sentíamos a subir as escadas… era como se
10
Este slogan tem correspondência com "o económico é político" enquanto afirmação central ao desafio que a
esquerda coloca ao liberalismo.
11
As entrevistas foram feitas no âmbito da tese de doutoramento por mim realizada, “Por um direito sem margens: o
papel do direito na violência contra as mulheres”, e do projeto “Trajetórias de Esperança: itinerários institucionais de
mulheres vítimas de violência doméstica”, ambos financiados pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. As entrevistas,
com duração média aproximada entre três e quatro horas, foram realizadas entre Janeiro de 2008 e Dezembro de 2011, a
mulheres com idades, nacionalidades, classe social e origem geográfica diferenciadas. Os nomes destas mulheres são
fictícios.
10
77
fosse um ladrão. Se calhar, digo-lhe sinceramente, tinha menos medo se fosse um ladrão. Ele fazia
barulho a subir as escadas de propósito para nos aterrorizar. (Francisca, 61 anos)
Noutros discursos, é possível verificar uma imagem distorcida de alguns espaços onde,
para algumas mulheres, a violência sofrida foi, por razões que são suas, mais dolorosa e
marcada nos seus discursos. O quarto, espaço de intimidade por excelência do casal, é o lugar
da casa mais evidenciado:
Como tive os dois abortos, acabei por não ter filhos, não me apeguei a nada daquela casa e não quis
voltar para lá. Quis esquecer a raiva, a ele, tudo. (…) Onde eu sofri mais foi no nosso quarto que é
onde o casal supostamente deve ser mais feliz, não é? É o único espaço mais, digamos assim, dos
dois. Mas aquilo… Ele dizia que eu não prestava para nada, “Tu és uma porcaria, tu nem te sabes
arranjar, até tenho nojo de ti”. Ele dizia muitas vezes que tinha nojo de mim. E pronto, era um viver
muito mau. Ele chegava a casa nem “bom dia”, nem “boa tarde”, nem um beijo. Nada. Eu dizia que
ele não gostava de mim. Mesmo no relacionamento íntimo eu via que ele também não gostava de
mim. Eu cheguei a fazer coisas, tudo por tudo, que nunca tinha feito na minha vida … comprar
lingerie daquelas, pronto, que qualquer homem gosta e ele: tu não prestas. E eu senti-me muito
deprimida. […] Por isso psicologicamente … era ao ponto de me dizer “Tu metes-me nojo dos pés
à cabeça! Tu és um monstro. Tu és uma nojenta. Tu és uma porcaria.” – tudo assim do pior mesmo!
(Joana, 44 anos)
Já éramos casados […] ele saia com os amigos, ia para discotecas e eu ficava sozinha durante a
noite com o meu menino. E a minha mãe dizia-me que aquilo não era vida, um homem casado até
às tantas da noite… A minha mãe dizia-me, mas eu defendia-o e dizia que tinha ido sair com os
amigos, mas eu dizia-lhe a ele que não era justo, que eu também era nova e também gostava de sair
e de conviver. E ele dizia-me que eu era gorda e que tinha de ficar em casa, que em casa era o meu
lugar. E eu ficava ali, no quarto, toda a noite, sozinha. Todas as noites. (Alice, 53 anos)
Ele quando tinha aquelas venetas dele, ele espadeirava cadeira, sofás, rebentava com as portas, não
me deixava dormir, beliscava-me toda para eu não dormir, nem me deixava descansar a mim nem
deixava descansar os filhos. (…) Deixámos de dormir no quarto, os meninos eram pequeninos
ainda, porque de noite ninguém parava, e o nosso sítio de dormir era na sala, quando ele ia de
manhã para a fábrica. (Ana, 26 anos)
Obviamente que o quarto foi, nas histórias de algumas mulheres entrevistadas, lugar
também de violência sexual. Mas a impossibilidade do quarto do casal enquanto lugar de
construção de uma intimidade previsível parece surgir como uma violência per se.
Noutras entrevistas foram percetíveis as múltiplas estratégias desenvolvidas pelas
mulheres, quer de sobrevivência, quer de escape à violência (que, não raras vezes, tinha de ser
planeado). Rotinas relacionadas com espaços que tiveram de ser alteradas, como vimos no caso
de Ana, que passou a dormir na sala, mas também objetos que passaram a ser escondidos, salas
esvaziadas, casas silenciadas para não incomodar o agressor ou alertar a vizinhança:
Eu fui casada durante 14 anos e nesse tempo fui sempre vítima de violência doméstica, até que
cheguei a um ponto que já não aguentei mais. No namoro as coisas correram bem, depois no
casamento é que as coisas se complicaram. Casei com 16 anos, eu estava cega. Ele era mais velho
do que eu cinco anos. Eu sempre me gostei de arranjar para ele, pôr-me bonita, sabe? E lá me
pintava na casa de banho. Ao início, ele gostava. Depois, começou a ficar com ciúmes. Um dia,
íamos sair, ele entra pela casa banho, estava eu a pentear-me… Estava grávida de 6 meses, a minha
cara ficou… a menina sabe o que é um bicho? A cara toda inchada, toda cheia de hematomas, nem
conseguia abrir os olhos, eles tiraram-me fotos, eu quando vi uma foto de como estava até me
assustei com a cara que tinha… O procurador mostrou-me essa foto e eu disse: “credo, eu sou um
bicho”, estava horrorosa. Quando cheguei a casa a primeira coisa que eu fiz foi tirar o espelho da
casa de banho. Até de lá sair, nunca mais teve espelho aquela casa de banho. (Maria, 44 anos)
Quando arrendámos a nossa casa, decorei-a com muito gosto e, se calhar é um defeito meu, mas eu
tinha muita coisa, muita quinquilharia como se diz, sobretudo na sala, mas na cozinha também,
também coisas
11
78
que me foram dando. Antes de me começar a bater a mim, houve um tempo que ele partia as coisas
que eu mais gostava. […] Depois, batia-me, maltratava-me, batia-me com todos os objetos que
vinham à mão, candeeiro, cadeiras, estragou um rádio que me atirou, mas bateu na porta, tudo o que
houvesse, mas ele batia-me com o objetivo de me matar. Comecei a tirar tudo de lá. A sala já só
tinha a televisão, os sofás e pouco mais. (Dora, 37 anos)
Isso ele nunca fez [bater]. A violência que ele exerceu sobre mim foi sempre psicológica e começou
quando fui promovida no emprego. […] Há coisas que tiveram de mudar até nos divorciarmos. Eu
exigi que ele não dormisse no meu quarto (veja que estou a dizer meu e não nosso) e eu deixei de
tomar pequeno almoço sentada na cozinha, mas em pé e de frente para a porta. Porque ele, mais do
que uma vez, antes de eu sair para o trabalho, quando sabia que tinha alguma reunião, veio por trás
de mim e rebentou um pacote de leite e cima de mim ou despejou café para eu chegar atrasada.
(Catarina, 42 anos)
Os casos de violência relatados por estas e outras mulheres revelam que da violência sofrida
dentro de casa emergem, pelo menos, duas contingências: ou quem sofre violência constrói um
processo de rutura com a casa enquanto sua alegoria (e, não seguem na esteira de Borges quando
inicia o seu poema “A Elegia da lembrança impossível”, ao dizer “o que não daria eu pela
memória”); ou sabe que tem de sair daquela casa para escapar à violência que lhe é infligida.
Esquema 1
12
79
Não cabe aqui falar dos vários problemas inerentes a esses espaços institucionais (e aos das
organizações governamentais e não governamentais com os quais se articulam) e que devem ser
discutidos em termos de políticas públicas (ver Santos et al, 2012). Apenas sublinhar que estes
são, compreensivelmente, espaços estranhos a estas mulheres, na sua dimensão física, mas
também simbólica. Espaços que se apresentam com regras, com pessoas que não fazem parte do
seu círculo íntimo, com hierarquias, sem memórias, com um presente receoso e com um futuro
incerto. As entrevistas de mulheres que passaram por estes espaços mostram testemunhos muito
diversos e várias passaram, ao longo da sua trajetória de escape
2 violência, por mais do que uma casa abrigo. Refira-se a título de exemplo duas experiências
significativamente distintas:
Não, tenho um quarto só para mim. Onde estamos tem um quarto por família, se for uma mãe com 3
filhos
/ um quarto para a mãe para os 3 filhos, para mim também, estou só eu. Ainda bem que tenho um
quarto só para mim, quando posso fechar a porta e pensar: “estou no meu quarto, estou sozinha”, dá
para desligar um bocadinho. (Paula, 41 anos)
Quando entrei, até me assustei com as condições (…). Parecia uma vivenda com dois pisos, uma
casa de banho para cada andar, 4 quartos em cima, em cada quarto duas camas para duas famílias. Eu
estive num quarto com duas crianças e do meu lado, outra senhora com duas crianças. Uma casa de
banho para 4 quartos, 7 ou 8 famílias para essa casa de banho. Estive aí 2 meses, graças a deus saí de
lá. (…) Lá era assim: às 6 horas tinha de acordar para tomar banho, como era só uma casa de banho,
imagina todos… Depois, a cozinha era numa garagem grande. Não deixavam ficar no quarto, no
quarto era só a partir das 10 horas da noite para dormir, com as luzes apagadas e pronto. Não
podíamos estar no quarto durante o dia, nem quando as crianças estavam doentes, nem nada. No
inverno era frio. Naquela cozinha, naquela garagem, pingava, cheirava horrivelmente; sentadas lá no
sofá sem fazer nada, pingava em cima de nós, em cima da comida, tudo molhado… (Susana, 33
anos)
13
80
Referências bibliográficas
Bachelard, Gaston (2008), A Poética do Espaço.[2ª Edição] São Paulo: Martins Fontes.
Buzawa, Eve S.; Buzawa, Carl G. (1990), Domestic Violence. The Criminal Justice Response.
Newbury Park, CA: Sage.
Chesney-Lind, Meda (2006), “Patriarchy, Crime, and Justice: Feminist Criminology in an Era of
Backlash”, Feminist Criminology, 1(1), 6-26.
Crenshaw, Kimberlé W. (1991), “Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and
Violence against Women of Color”, Stanford Law Review, 43(6), 1241–1299.
Foucault, Michel (2013), Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Lisboa: Edições 70.
Hille, Koskela (2016), “‘gendered exclusions’: women's fear of violence and changing
relations to space”, Geografiska Annaler: Series B, Human Geography, 81:2, 111-124.
Okin, Susan (1989), Justice, gender and the family. Princeton: Basic Books.
Okin, Susan (2008), “Gênero, o público e o privado”, Revista Estudos Feministas, 16(2), 305-
332.
Pain, Rachel H. (1997), “Social Geographies of Women's Fear of Crime”, Transactions of the
Institute of British Geographers, 22 (2), 231-244.
Pateman, Carole (1988), The Sexual Contract. Oxford: Basil Blackwell Ltd.
Pateman, Carole (1983) "Feminist Critiques of the Public/Private Dichotomy", in Benn, Stanley
I.; Gaus, Gerald F. (eds.), Public and Private in Social Life. London: Croom Helm. 304-305.
Rhode, Deborah (1997) Speaking of Sex: the denial of gender inequality. Cambridge, MA:
Harvard University Press.
14
81
Santos, Boaventura de Sousa; Duarte, Madalena; Oliveira, Ana; Santos, Cecília; Dias, João
Paulo (2012), Trajetórias de Esperança: itinerários institucionais de mulheres em situação de
violência doméstica. Coimbra: CES.
Schneider, Elizabeth (2002), Battered women and feminist lawmaking. New Haven, Conn:
Yale University Press.
Siegel, Reva B. (1996), “The Rule of Love: Wife Beating as Prerogative and Privacy",
Celta Editora.
Valentine, Gill (1989) “The Geography of Women's Fear”, Area, 21(4), 385-390.
Warrington, Molly (2001), “‘I must get out’: the geographies of domestic violence”,
Transactions, 26, 365-382.
15
82
1. O cuidado
Falar sobre o cuidado e a casa implica colocar algumas questões simples: O que é o cuidado?
Quem cuida e quem é cuidado? Onde se cuida? Como se cuida? Porque se cuida?
O que é o cuidado?
As definições do Dicionário dão conta dos diferentes elementos que fazem do cuidado um
objecto complexo: acções, pensamentos, sentimentos, emoções, tarefas, actividades, trabalho.
Autoras como Carol Gilligan, Joan Tronto, Patricia Paperman, Sandra Laugier, Pascale
Moulinier trouxeram para o centro dos debates a importância dos laços sociais e das relações
pessoais para a reflexão acerca das tarefas de cuidado. As autoras feministas mostraram como a
“ética do cuidado” tece proximidades e constrói conceitos diferentes de ética e de justiça,
configurando uma “ética situada”, atenta às características do outro e focada na relação
interpessoal.
A resposta à pergunta “quem cuida?” é óbvia: são as mulheres. As tarefas de cuidado são
marcadas por uma profunda desigualdade sexual, que as atribui, nos domínios do simbólico e da
prática, às mulheres. Na experiência feminina, o cuidado da casa e dos outros estão
intrinsecamente conectados. Como afirma Ann Oakley, a principal característica do trabalho
16
83
doméstico é ser um “trabalho de mulheres”. Assume-se à partida que desde que existam
mulheres numa casa serão elas a realizá-lo, o pressuposto sendo que as mulheres podem
desempenhar essas tarefas naturalmente e os homens não.
Na reciprocidade familiar não conta o que se troca, nem quando se troca. Nesta dádiva, o
tempo conta tanto menos quanto mais se confia no outro. Mediada pela afectividade e pela
confiança, a reciprocidade realiza-se muitas vezes à “escala de uma vida” e transforma o apoio
numa espécie de “crédito a longo prazo” que não necessita de ser retribuído no imediato, nem de
ser simétrico: o contra-dom pode vir muito mais tarde ou mesmo ser destinado a outra pessoa.
Por um lado, nesta concepção inscreve-se uma ideia clara da evolução das posições de
receptor e de dador ao longo da vida, de pais e filhos. Na infância e juventude, os filhos são
apenas receptores, na idade adulta são receptores e dadores, de uma forma assimétrica, até que os
pais atingem a velhice, e nessa altura passam estes a ser os receptores. Por outro lado, são
contempladas pessoas que não têm possibilidade de reciprocar e que serão sempre receptoras.
2. A casa e o cuidado
Olhar o cuidado “dentro de casa”, implica, também, ter que olhar para fora dela. Implica integrar
uma escala macro e articular escalas analíticas – do micro do espaço doméstico e das
17
84
Perguntar quem se ocupa de quem e como? Implica pensar a organização social e política
das actividades de cuidado, olhar as desigualdades estruturais e as políticas públicas. Ou seja,
analisar o modo como as responsabilidades do cuidado são distribuídas e quais os agentes que
tomam decisões sobre essas responsabilidades – Estado, mercado, comunidade, família.
O cuidado em casa é também importante para discutir o que Wellman chama a “economia
política da comunidade”, ou seja, o lugar das redes pessoais nos sistemas de produção e
reprodução social. As mulheres têm, em grande parte, sido utilizadas como “exército de reserva”
para a reprodução das famílias, fornecendo, a baixos custos, serviços de qualidade elevada e com
grande flexibilidade de utilização, o que se, por um lado, beneficia as famílias, por outro lado,
não deixa de beneficiar também as outras esferas de produção de bem-estar, nomeadamente a
estatal, aliviando-a de responsabilidades.
No entanto, este movimento não se faz sentir sem a persistente resistência das famílias – a
recusa da institucionalização dos idosos, o pluralismo terapêutico, as apropriações do espaço
doméstico distintas do seu desenho funcional arquitectónico, etc., revelam a continuidade de
modos de fazer que nos obrigam a espreitar para dentro de casa, se queremos verdadeiramente
conhecer como se cuida nas sociedades contemporâneas.
18
85
Mudar de casa
Carolina Anselmo, Centro de Estudos Sociais e Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra
ccanselmo@gmail.com
O que nos leva a mudar de casa? Algumas respostas rápidas, com pouca reflexão logo podem
emergir: uma pessoa pode querer morar sozinha, morar com alguém, morar próxima ao local de
trabalho, morar com menores custos, morar com mais espaço, mudar de cidade ou mesmo de
país. Podemos também pensar que as mudanças nem sempre estão relacionadas a um
deslocamento para outros espaços, e sim, a transformações de um espaço. Ou seja, o mudar de
casa pode significar mudar a casa: demolir uma parede, trocar um móvel, colocar quadro na
parede ou um enfeite em algum canto. Tanto o mudar de casa quanto o mudar a casa pode ser
relacionar a transformações para maior acolhimento, descanso ou identificação com o espaço.
Mas por que voltar nossa atenção para um ato tão banal, ou melhor, tão pessoal como esse
de mudar de casa? Poderíamos responder essa pergunta trazendo alguns argumentos colocados
no texto Padrões de mudanças de casa e eventos de vida – uma análise das carreiras
habitacionais, escrito por Magda Nico. A socióloga, ao analisar a sociedade portuguesa, entende
que perceber o momento de vida em que as pessoas mudam de casa, a duração e condição de
permanência em uma residência ou os eventos que impulsionam as trocas de casa podem
contribuir para o estudo de mudanças sociais (Nico, 2014). Fatores como por exemplo a família,
o trabalho, a saúde ou envelhecimento podem ser estudados de forma relacionada ao ato de
mudar de casa. Mudamos, portanto, por razões privadas e familiares, ou públicas e profissionais.
Fora do contexto europeu, outras análises poderiam ser feitas em situações urbanas
diferentes, como por exemplo, as mudanças que acontecerem no Aglomerado da Serra, uma das
1
maiores favelas da cidade de Belo Horizonte, com aproximadamente 50.000 habitantes.
2
O motivo das mudanças de casas que acontecerem ali, no período entre 2006 e 2010,
fugiram ao poder de decisão de cada morador que não tiveram a opção de ir ou ficar. Tal favela
3
passou por obras de reestruturação urbana, parte de um programa chamado Vila Viva, que
demandou a demolição de muitas casas, seja para abertura de ruas, por precariedade da
construção, risco de instabilidade geológica ou mesmo por higienização de algumas áreas e
maior controle policial. Explicita-se aqui outro ponto: mudar de casa pode ser uma ação
voluntária ou involuntária e essa também é uma categoria a ser analisada quando focamos tal
assunto.
4
Dados recolhidos em 2010, ano em que a pesquisa no território estava sendo desenvolvida. Ver Anselmo (2011).
4
As mudanças de casa estavam relacionadas com um projeto de urbanização que aconteceu em um período mais alargado do que
esse. Entre os anos citados (de 2006 e 2010) houve foi uma uma aproximação minha com parte das pessoas que mudaram de
casa.
4
O projeto Vila Viva engloba obras de saneamento, remoção de famílias, construção de unidades habitacionais, erradicaçãode
áreas de risco, reestruturação do sistema viário, urbanização de becos, implantação de parques e equipamentos para prática de
esporte. O projeto é um seguimento do Plano Global especícfico que foi um estudo aprofundado da realidade de vilas e favelas de
Belo Horizonte realizado em três etapas: levantamento de dados, elaboração de diagnóstico integrado dos principais problemas
da área de estudo e definições de prioridades locais. Ambos os projetos são de iniciativa do governo municipal de Belo
Horizonte.
19
86
Voltemos então as casas, foco da discussão desse texto. Quando vistas de fora e de longe se
mostram muito semelhantes: as formas, as texturas, as cores, os tamanhos das janelas, as
coberturas, os afastamentos entre elas. Mas se nos aproximarmos um pouco, veremos que há
diferenças. E não são poucas. Existem casas mais precárias, sem acabamentos, sem vedações,
sem acessos estruturados. Existem também casas rebocadas, pintadas, com jardim cuidado,
garagem (Imagem 1). Existem variações também nos estilos e formas das construções que
podem ser mais arredondadas, com mais cores e detalhes (Imagem 2) enquanto outras são mais
retangulares e sem qualquer inventividade.
Se vistas por dentro, as casas talvez possam apresentar diferenças ainda mais acentuadas.
Os tamanhos, as divisões internas, o padrão de acabamento, o padrão de higiene, os móveis e os
objetos de cada família. Existem casas com chão em terra batida, outras com cimento, outras
com acabamentos. Em algumas delas as pessoas dormem no chão. Em outras já encontramos
muitos móveis. As casas de banho por vezes são internas, outras externas. Existem casas com
quartos separados para pessoas diferentes da família. Em outras, todos dormem juntos em um
mesmo espaço. Há casas que estão se consolidando e outras que já estão erguidas há muito
tempo. Há casas com mais ou menos objetos e enfeites. Há casas sem pintura, outras pintadas de
uma só, outras mais coloridas (Imagens 3, 4 e 5).
20
87
Em muitos dos casos pode se notar que a casa se estende para fora das suas paredes
externas, seja para um quintal onde se lava e seca roupa, seja para criar animais, seja para
cultivar ou preparar alimento, para divertir reunindo as pessoas, tocando música ou com
brincadeiras infantis. A casa se estende para fora porque as portas estão sempre abertas, porque
os vizinhos se encontram, convivem, se ajudam. Ou ainda porque a casa também é lugar de
trabalho. O dono do bar, da mercearia, do cabelereiro, do vendedor de gás, de material de
construção, do marceneiro, do serralheiro, da cozinheira, de qualquer pequeno comércio e
serviço que são meios de sobrevivência de muitos ali. A casa é lugar de morar e de trabalhar.
Nota-se, portanto, que são muitas as diferenças entre as casas, o que revela os diversos
padrões de vida e os modos de morar na favela, na cidade. No texto intitulado Quem mora nas
favelas de Silke Kapp e Margarete Silva (2012) criticam a ideia que muitos de nós temos de
homogeinizar as pessoas, as casas e a vida na favela, além de associarmos sempre a uma ideia de
extrema pobreza que nem sempre é verdade.
Imagens 6 e 7 - Novas habitações construídas pelo programa Vila Viva. Aglomerado da Serra, Belo Horizonte, 2010
Fonte: Arquivo pessoal.
Para olhos acostumados com padrões e maneiras de morar de uma cidade formal, as novas
condições de moradia parecem mais confortáveis do que as havia nos barracos. Mas ao
entrevistar alguns moradores nos deparamos com depoimentos como esses a seguir:
Se você perguntasse assim: entre o apartamento e continuar com o seu barracão... Se você perguntar
todo mundo aqui, entre a sua casa e o seu barracão, o que você queria? Continuar lá e eles
legalizarem lá e você continuar lá? Eu com certeza ia preferir lá. (trecho do depoimento moradora
entrevistada 1)
Eu não quero ficar mais não. Completou dois anos eu estou saíndo. O que você quer é liberdade para
os filhos, se você não tem... Para que você precisa ter quarto dividido, para quê? Acho que isso daí...
A
21
88
melhor coisa é a felicidade, da gente e dos filhos. Vivíamos todos no mesmo espaço, mas você quer
4
saber? A felicidade estava toda lá. (trecho do depoimento moradora 2)
Nem todos os moradores tiveram a mesma opinião. Alguns entendem que mudar da casa, ou
do barraco, para o apartamento representava uma ascensão social. Mas, o fato é que depois de
ouvir 30 moradores, a maioria preferia os barracos aos apartamentos. E qual o porquê de tal
escolha? Resumidamente, pode-se dizer que o motivo está relacionado com os diferentes perfis
de pessoas e famílias que ocupam os prédios. Os hábitos são muito distintos e há extrema
dificuldade de lidar com o coletivo, embora haja um grande sentimento de comunidade. Por
exemplo, em um predinho estava uma senhora que tinha desvios de comportamento e levava lixo
para sua casa, no mesmo andar morava uma família com oito pessoas de diferentes idades, no
andar de cima um senhor que trabalhava com transporte com carroças e não tinha lugar em casa
para o seu cavalo.
Lá eu podia fazer um puxadinho, crescer um terraço, aqui eu não posso nada. Entendeu? Não posso
nada. Não posso pensar em aumentar nada. Então eu acho que assim... Eu vou morar em três quartos,
sala e cozinha para o resto da minha vida. Não posso fazer nada. O máximo que posso mudar é de
cor. Não é? (trecho do depoimento moradora entrevistada 1)
Na sua casa qualquer problema que dá você vai lá arruma, você cuida. Porque você quer mais é sua
casa arrumadinha. Isso aqui não é da gente. Você não pode fazer nada! (trecho do depoimento
moradora entrevistada 2)
Ficou explícito que as pessoas ali preferiam mudar a casa ao invés de mudar de casa. Não
querem se manter em condições insalubres ou desprotegidas, mas sim, poder melhorar a sua
casa, para manter seus hábitos que não cabem na rigidez formal que o apartamento oferece.
Querem e precisam aumentar ou diminuir seus espaços conforme a família cresce, conforme
surge a necessidade de alugar um cômodo para completar a renda, para manter sua atividade de
trabalho, para cultivo dos alimentos e animais, para fazerem as festas nos quintais.
Por mais que muitos dos moradores digam que sua casa começa da porta do apartamento
para dentro, há diversas apropriações e usos dos espaços coletivos. As portas dos apartamentos
estão quase sempre abertas, muitos objetos pessoais como armários, plantas, cadeiras,
brinquedos das crianças, ficam no hall e nas escadas, como se a casa se estendesse para além da
porta. Muitas roupas são estendidas para secar fora do prédio, muitos churrascos e festas são
feitos nas áreas comuns que não teriam esse uso previsto. As regras de como morar nos
predinhos são rígidas e entregues em um manual quando as pessoas se mudam e exigiriam
mudança de comportamento de muitos. Mas os comportamentos imprevisíveis, desviantes,
clandestinos se manifestam.
5
Foram feitos ajustes gramaticais das falas na transcrição.
22
89
5
h) notável como as apropriações dos espaços da nova casa funcionam como táticas
(Certeau, 2008) e como resistências às imposições formais e de uso dadas. A ocupação dos
edifícios pode ser vista quase como uma repetição da maneira de viver e de morar nos becos.
As novas casas vistas de dentro e de fora são diferentes dos barracos antigos. Mas a casa que
se estende e se reconfigura segue, não muda.
Vemos, então, que mudar de casa pode nos revelar diferentes questões, sejam aquelas
esboçadas no início desse texto, seja no caso das mudanças compulsórias que acabo de
apresentar. São muitas as maneiras de morar. São muitas as formas das casas e seus usos. Como
arquiteta e urbanista que projeta e define espaços, me parece importante estar atenta às casas (as
diferentes casas) e às maneiras de habitar. Estar atenta aos cotidianos, aos desvios para evitar
produzir e reproduzir lógicas impositivas e repressoras de vidas, de casas, de modos de morar.
Isso porque, concordando com Lefebvre (1991), as ações triviais cotidianas constituem as bases
das experiências sociais e da verdadeira contestação política. Quando essas ações são anuladas
por imposições fisicamente formais, o urbanismo praticado nega a possibilidade dessa disciplina
ser um discurso humano e social.
Referências bibliográficas
Anselmo, Carolina (2011), Arte como campo expandido do urbanismo: um estudo de caso no
Lefebvre, Henri (1991), A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Atica
Kapp, Silke; Silva, Margarete (2012), “Quem mora das favelas?”, E-metrópolis revista de
estudos urbano e regionais, 9(3), 28-35. Acesso a 28/05/2018, disponível em
http://emetropolis.net/system/edicoes/arquivo_pdfs/000/000/008/original/emetropolis_n09.pd
f?1447896326.
Nico, Magda (2014), “Padrões de mudança de casa e eventos de vida: uma análise das carreiras
habitacionais”, Sociologia, XVIII, 103-127. Acesso a 28/05/2018, disponível em
http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/12737.pdf.
6
Tática seria uma maneira criativa de utilizar ou desviar daquilo que foi imposto (Certeau, 1998).
23
90
Conexões Público-Privado
Bruno Franco Alves, Centro de Estudos Sociais e Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra
bruno.franco@ufjf.edu.br
A reflexão sobre os domínios das esferas pública e privada é uma marca presente nas ciências
sociais e humanas. Várias são as abordagens, perspectivas e olhares sobre essa questão deveras
discutida. Regra geral, essa relação é realizada de forma dicotômica, situando as casas como
lócus do privado e as ruas como o espaço público por excelência. O que se pretende realizar aqui
é repensar o lugar da casa nessa relação entre o público e o privado. O título do próprio
seminário, “As casas vistas de dentro e de fora”, já carrega em si a sugestão de que as casas não
possuem uma única dimensão. As casas são múltiplas e, a mesma casa, também pode abrigar
sentidos diferentes conforme são vistas por dentro e por fora.
Dessa forma, pode-se questionar: As casas sempre foram ou são o templo da intimidade?
Quem enxerga o lado de dentro das casas? É preciso adentrar nas casas para conhecê-las ou
podemos conhecê-las por dentro, mesmo estando de fora? Caminhamos no sentido do
fechamento das casas como recanto das famílias ou as casas ainda permanecem abertas, agora
com novas “portas” tecnológicas que permitem adentrá-las, vivenciá-las e conhecê-las? Qual o
sentido da dicotomia entre a casa e a rua?
Para essas pensar sobre essas e outras questões acerca da casa, podemos partir da porta como
uma pretensa divisão entre o público e o privado. Isso porque é a porta o elemento material que
obstaculiza a passagem entre esses dois mundos, cindindo o espaço e delimitando fronteiras.
Conforme já apontava Georg Simmel (1996 [1909]), ao contrário da ponte que mostra como o
ser humano é capaz de unificar o que está naturalmente cindido, a porta mostra como o homem é
capaz de cindir a uniformidade contínua do ser natural, resguardando a passagem entre mundo
interior da casa ao mundo exterior.
Em geral, na Idade Média as aberturas da casa para o exterior eram escassas e de
dimensões modestas, provavelmente para mantê-las protegidas do frio durante o inverno. A
porta, na entrada da casa, era a sua principal abertura, por vezes a única, já que as janelas nesse
período assumiam uma condição acessória (Conde, 2011a: 63).
Nesse período, as casas correntes eram moradias unicelulares, isto é, formadas por um
espaço contíguo, sem divisões internas, compartilhado por tudo e todos: família, animais,
produtos e instrumentos de trabalho. Não havia espaços apropriados individualmente e nem
funcionalmente espacializados. Além disso, a casa era o local de relações e sociabilidades
múltiplas: era local de repouso, mas também de trabalho, de produção, de consumo; era local de
relações familiares, mas também de relações mercantis e de convivências com os outros.
(ibidem: 71). Não obstante ao fato da casa demarcar um território sobre o qual geralmente o
homem exercia o seu controle, havendo uma diferenciação entre esse espaço e aquele que lhe era
exterior, a casa ainda não tem o seu sentido ligado à proteção da intimidade, sendo que muitas
das atividades quotidianas do citadino medieval invadiam a rua, a travessa, o adro (Trindade,
2002: 96)
Nos fins da Idade Média, as casas na cidade começam a ganhar algumas divisórias que
separam o espaço do trabalho do espaço habitacional ou, em alguns casos, passam a contar com
vários planos, geralmente ficando o térreo destinado às atividades profissionais e a
24
91
Entre os séculos XVI e XVIII ocorrem importantes mudanças que vão sedimentando os
caminhos para o incremento da privacidade. Neste período, multiplicam-se as divisões interiores
e aumenta a especialização funcional dos diversos compartimentos das casas das classes mais
abastadas (Cunha e Monteiro, 2011: 224). Já nas habitações populares, mesmo no século XVIII e
início do século XIX, as portas podiam estar frequentemente abertas e muitas das casas
permaneciam sem uma especialização funcional, por conta do seu tamanho reduzido. A casa era
tida por esses grupos populares como espaço de abrigo e não como reduto de intimidade, tanto
que muitas das atividades domésticas como o lazer, cozinhar, comer, rezar e até as necessidades
fisiológicas, ainda eram realizadas na própria rua (Olival, 2011: 270).
Não obstante a multiplicidade de contextos, é consenso que a casa chega ao século XIX já
como como espaço de intimidade, da vida privada. Trata-se aqui, especificamente, da casa
burguesa, que passa a ser o lugar de residência das famílias nucleares compostas de pais e filhos
solteiros, promovendo a separação física desta familia em relação ao resto da sociedade e
protegendo a sua vida íntima. Acentua-se a contraposição entre público e privado, valorizando-se
o privado como espaço de maior liberdade para o indivíduo em relação à vida comunitária. Com
a intensificação das interações sociais, dos códigos sociais que regiam as relações públicas, a
casa aparece como espaço de refúgio desses olhares, de recolhimento e proteção contra o
escrutínio da vida social, por isso de maior liberdade.
Nos dias atuais a casa permanece como reduto da intimidade familiar, como local seguro e
confiável onde seus habitantes se protegem contra a vida exterior. Esse movimento, sobretudo
nos países com altos índices de violência, é acompanhado por um processo paulatino de
isolamento das casas e dos seus moradores em relação às ruas e à própria vizinhança. As cidades
de muros, onde as casas são fechadas com muros, grades e portões, tal como descreve Teresa
Caldeira (2000), simbolizam bem esse processo.
Dentro dessa casa contemporânea, fechada ao mundo exterior, há também uma crescente
sobreposição entre as privacidades de seus habitantes. A busca de realização e de projetos
individuais de cada ente da família faz com que o espaço comum da casa seja modelado de
forma a comportar essas múltiplas intimidades, o que é revelado pela maior compartimentação e
pelas mudanças arquitetônicas em seu interior: a existência da suíte conjugal, que permite aos
pais não mais partilhar do banheiro com os filhos; a construção do banheiro social, que restringe
o acesso dos visitantes à zona dos quartos; a criação de novas suítes para os filhos; o aumento da
dimensão dos quartos/suítes que passam a ser espaço de fruição da intimidade individual; a
compartimentação da suíte do casal em ambientes distintos para cada um dos cônjuges; o recheio
dos quartos que passou a contar com diversos equipamentos antes usados de forma coletiva pela
família como televisão, som portátil e computador (Pereira, 2011).
Seguindo esse caminho, poder-se-ia chegar à conclusão de que ao longo da história as casas
caminharam em direção ao seu fechamento, tanto ao mundo exterior como na própria relação
interna entre seus moradores, sempre com vistas a maximizar as intimidades que protege e
demarcar de forma nítida o domínio do público e do privado. No entanto, essa história passou a
contar com um elemento novo e que foi capaz de alterar significativamente
25
92
a nossa forma de viver e de habitar: a profusão do acesso à internet e dos dispositivos móveis
conectados à rede mundial.
O uso da internet por um número cada vez maior de pessoas, especialmente com a
popularização dos dispositivos móveis e das redes sociais digitais como o Facebook, Instagram e
o Whatsapp, permite o intenso compartilhamento de mensagens de texto, fotos, áudios e vídeos.
A casa não fica imune a esse fluxo comunicacional e ganha novas “portas”, “frestas” e “janelas”,
agora voltadas para uma realidade que é virtualizada. A exposição cada vez maior da vida
privada, do interior da casa, das suas rotinas, dos seus moradores para a audiência das redes
sociais digitais, que é pulverizada e muitas vezes desconhecida, atua, de certo modo, como uma
renúncia à privacidade protegida pela casa em troca do reconhecimento da audiência pública.
Como bem afirma o historiador português Manuel Conde, a casa, urbana ou rural, comum
ou qualificada, é como um microcosmo da sociedade, profundamente reveladora dessa, dos
espaços e dos tempos em que se ergueu e perdurou (Conde, 2011b: 14). A casa de nossos dias é
um espelho do seu tempo, tempo em que a rigidez dos conceitos se esbate, de contradições como
aquela que faz com que a casa passa a ser ao mesmo tempo espaço público e privado, onde a
intimidade é ao mesmo tempo resguardada e compartilhada conforme o desejo dos indivíduos
que a habitam.
Referências bibliográficas
Arendt, Hannah (2007), A condição humana. [10ª ed]. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
Caldeira, Teresa Pires do Rio (2000), Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em
São Paulo. São Paulo: Ed.34/Edusp.
Conde, Manuel Sílvio Alves (2011a), “A casa”, in Sousa, Bernardo Vasconcelos (Coord.),
História da Vida Privada em Portugal: A idade média. Maia: Círculo de Leitores e Temas e
Debates, 54-77.
Conde, Manuel Sílvio Alves (2011b), Construir, habitar: a casa medieval. Braga: CITCEM
– Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória».
Cunha, Mafalda Soares; Monteiro, Nuno Gonçalo (2011), “As grandes casas”, in Monteiro,
Nuno Gonçalo (Coord.), História da Vida Privada em Portugal: A idade moderna. Maia:
Círculo de Leitores e Temas e Debates, 202-243.
26
93
Almeida, A. N. (ed.), História da Vida Privada em Portugal: os nossos dias. Maia: Círculo de
Leitores e Temas e Debates,16–47.
Olival, Fernanda (2011), “Os lugares e espaços do privado nos grupos populares e intermédios”,
in Monteiro, Nuno Gonçalo (Coord.), História da Vida Privada em Portugal: A idade moderna.
Maia: Círculo de Leitores e Temas e Debates, 244-275.
Trindade, Luísa (2002), A casa corrente em Coimbra dos finais da idade média aos inícios da
época moderna. Coimbra: Câmara Municipal de Coimbra.
27
94
Este texto recolhe partes de uma investigação sobre efeitos do processo de gentrificação sobre o
espaço público a partir da experiência de despejo que acompanhei no bairro de La Merced, no
Centro Histórico da Cidade do México em 2011. O que se descreve de seguida tem como ponto
de partida a expulsão dos moradores de uma casa do bairro, a que chamaremos “nossa casa”.
Estes moradores foram expulsos do prédio que habitavam havia mais de duas décadas. Em um
ato de resistência, construíram a sua "nova casa”, uma instalação precária feita de placas de
cartão e madeira localizada a um canto da praça situada em frente da sua antiga casa. Essa
ocupação informal do espaço público alterou a relação das pessoas despejadas com os restantes
moradores do bairro, e gerou novos usos e significados do espaço, assim como do mobiliário
urbano, ilustrado aqui pela praça pública e a sua fonte central. O percurso através da história
dessas casas será feito como tentativa de responder a uma série de questões sobre a relação da
casa com a cidade e o bairro e, por outro lado, como entender a "casa" como espaço, a um
tempo, doméstico e coletivo onde várias tensões e afetividades são colocadas.
28
95
uma parte do bairro constitui ponto para o comércio sexual1. O bairro da Merced ou “La
Meche”, como é popular e afetivamente chamado, é um espaço multicultural e socialmente
complexo. O dia-a-dia do bairro tem um fluxo contínuo e acelerado de pessoas com intensos
intercâmbios materiais e simbólicos. Na maioria dos seus edifícios existem hoje lojas ou
armazéns de reconhecido valor histórico e patrimonial.
A “nossa casa” situa-se numa das zonas mais representativas do bairro – a praça “La
Aguilita” – formalmente chamada praça Gustavo Baz. Alguns dos espaços da Cidade do México
têm mais de uma designação em resultado de afetos e das histórias que ali tiveram lugar e que
fazem parte do capital simbólico dos lugares. A praça La Aguilita é conhecida por conter um dos
mitos fundadores da cidade. Com efeito, diz-se que foi ali que os aztecas encontraram a águia
engolindo uma serpente, o signo que mais tarde viria a ser o marcador simbólico da fundação da
Grande Tenochtitlan, hoje Cidade do México. Perto da casa encontra-se a fonte central da praça
que faz referência a este mito fundador, com a representação da águia, da serpente e de um cacto,
além das áreas verdes e canteiros. A “nossa casa” é a que se situa do lado esquerdo da fotografia
da praça.
A “nossa casa” é um desses casos de moradias sem código postal nem endereço. A este
respeito, podemos recordar que o sociólogo Pierre Bourdieu sublinha que, na ordem jurídica e
simbólica, uma pessoa sem endereço postal, praticamente, não tem existência no espaço social.
Por ironia parece que esta avaliação se aplica diretamente à experiência desta “nossa casa” que,
sem a “existência social” referida por Bourdieu, se tornou presa fácil dos interesses que
acabaram por desalojar as seis famílias que ali moravam.
7 Podem ser consultados os documentários Los armenios en la Merced, produzido pelo Colegio de Michoacán e Plaza La
Soledad, da fotógrafa Maya Goded.
29
96
Os moradores desta casa, tendo sido expulsos dos seus apartamentos, procuraram
reconstituir a disposição original do espaço coletivo, mas também do espaço interno de cada
unidade familiar, quando se viram obrigados a morar no espaço público. A “nova” casa coletiva
em que passaram a residir os desalojados da “nossa casa” foi construída num tempo muito curto,
aproveitando os bocados cartão e outros materiais das papelarias do bairro, assim como diversos
bocados de madeira, plásticos e ferros. O teto tinha diversas cores e as divisórias entre os quartos
eram feitas de pedaços de tecido. A área ocupada pela casa estendia-se ao longo de uma parcela
lateral da praça, numa extensão de cerca de 25 por cinco metros. No conjunto da “nova” casa
moraram dez pessoas, sendo a maioria mulheres e crianças.
As formas da casa
Um terceiro aspecto refere-se à funcionalidade da casa, à suas forma, número de quartos, de
salas de banho e dimensão da cozinha. As fotos que apresento são do exterior da casa, uma vez
que, durante a investigação, combinei com os moradores que não tiraria fotos do seu interior,
embora pudesse descrever a organização interna do espaço. A “nova” casa tinha uma cozinha, o
espaço maior de toda a casa, uma sala comum de televisão, três quartos e uma pequena sala de
banho. A cozinha era o espaço de maior socialização e de partilha das atividades do conjunto dos
moradores. As crianças brincavam no exterior da casa que na verdade era constituído pelo
espaço da praça, o mesmo onde sempre tinham brincado antes, mas que agora era convertido em
quintal da “nova” casa.
No seu todo, a praça La Aguilita sempre funcionou como o quintal de todas as casas em
redor. Já a fonte da praça foi agora convertida em lugar da lavagem de roupas e dos utensílios de
cozinha e, por vezes, era mesmo usada como casa de banho. Por um tempo, a praça foi de fato
uma extensão da própria casa.
Nos primeiros meses de cerca de meio ano da sua instalação precária na praça, os moradores
beneficiaram do apoio dos vizinhos. Com o passar do tempo, estes não deixaram de revelar
algum incómodo com a presença da nova “moradia” em pleno espaço público, como que a
subscrever a expressão de uma vizinha, para quem “a solidariedade tem data de
30
97
caducidade”. A ocupação da praça foi a resposta encontrada pelos moradores da “nossa casa”
para reagir às ações de despejo que se foram multiplicando por todo o bairro da Merced.
Enquanto o interior da “nova” casa, com as suas paredes improvisadas, concedia um certo
grau de privacidade e segurança aos moradores, o mesmo não sucedia em relação à hostilidade
exterior que as mesmas frágeis paredes se mostravam incapazes de suster. Afinal, a situação era
muito ambígua politicamente: as pessoas encontravam-se literalmente a viver a situação dupla de
conforto e segurança dentro da “nova” casa e de desconforto e insegurança fora dela.
As “almas do lugar”
Depois de alguns meses passados na sua “nova” casa, os moradores foram desalojados de novo.
Os objetos que foram parte das suas vidas quotidianas foram então deixados para trás,
abandonados na praça. Estes despojos eram agora tudo o que assinalava a ação corajosa de
resistência ao despejo inicial da “nossa” casa. Tal como afirma Michel De Certeau (2000: 137),
se os objetos urbanos são o equivalente às “almas do lugar”, neste caso os móveis abandonados
representam as almas das casas desses moradores despejados – tanto da “nossa”, como da “nova”
casa. São o sinal último e os testemunhos da sua presença no lugar, das suas afetividades e
histórias entrelaçadas no espaço do bairro. A poltrona da casa, a mesma em que se sentaram os
membros da família, os convidados e as personagens do bairro ficou desamparada no lixo. Com
ela, também as lembranças articuladas nos parcos móveis ficaram por ali empilhadas… deixadas
ao abandono.
Foi tudo o que, depois de breve ausência de duas semanas, a investigadora encontrou
quando regressou a La Aguilita.
31
98
A velha “nossa” casa ficou sem moradores por muito tempo, em ruínas e solitária. Até que
fosse renovada, a rádio comunitária do bairro usou os estores em ruína das suas janelas para
expor parte da sua “galeria noturna”, um exercício de fotografia de arte-resistência a mostrar a
dinâmica vida social de um bairro ameaçado. A casa arruinada, que em tempos foi a “nossa
casa”, continua a viver. A resistir.
Referências bibliográficas
Bourdieu, Pierre (2010), “Efectos de lugar”, in Bourdieu, Pierre, La miseria del mundo. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 119‐12
Becerra, José Carlos (1976), “Vecindades del centro” [Islas a la deriva], Revista Tarde y
Temprano, 176.
32
99
Universidade de Coimbra
lo.ol.andrade@gmail.com
A caverna é o primeiro local na história que associamos e percebemos como a casa. Apesar de
não ser o primeiro abrigo é o primordial ao se constituir em casa ora temporária, dada a as
condições sazonais e os recursos disponíveis no território, ora permanente, como afirma
Jarzombek (2013). Deste lugar, o que importa à presente reflexão é um elemento de transição,
uma abertura na barreira posta na fronteira do dentro e fora. A janela tem este significado e na
caverna era fundido à porta como única entrada, única saída, ao separar mundos.
As janelas em tamanhos e posições diferenciadas dão a entender que são como elementos de
controle ambiental dos abrigos, em uma revolução do cotidiano dos grupos primitivos que
buscavam mais espaços internos para a realização de atividades longe das intempéries. A
33
100
criação artificial da janela, além de necessidade, é impulso interessante e acaba por nos povoar e
instigar crenças e credos.
Prolongando a reflexão que se levanta, esta criação, como toda criação humana que busca
reproduzir algo natural de forma artificial, teve maior repercussão a partir do domínio da
tecnologia do fogo, quando o ambiente protegido naturalmente das intempéries do vento e chuva
em sua eterna guarda não era tão imprescindível para manter a chama. Da caverna, da luz, da
chama, da luta anterior a existência da janela, um insight surge de outra luz moderna projetada
na escuridão. O cinema recorda esta pré-história em A Guerra do Fogo (1981) de Jean-Jacques
Arnaud e a luta do Cro-Magnon em manter a chama acessa e aprender a produzi-la. Ao perdê-la
se lança em uma jornada na qual encontra novas tecnologias e abrigos acima da terra, retornando
com os aprendizados.
Repisando a idéia agora apresentada como enunciado: a janela que se escava acompanha a
evolução civilizatória e o domínio de muitas tecnologias da construção e controle ambiental, pela
possibilidade de se identificar um planeamento no esforço para escavar e abrir um buraco em
parede, em terra ou em rocha, definindo tamanho, altura e posição que, aos poucos, são
aprendidos e compreendidos num processo de saber.
Tentador também é recorrer a outra abertura/janela que proporciona irradiações pela história
e pelo pensamento humano, como nas reflexões dos reflexos presentes em A República (2014) de
Platão em que sombras, ruídos e movimentos do cotidiano que são a realidade da caverna,
acabam por se transformar em outra realidade quando há liberdade de um homem que caminha
para fora e traz as novidades. O homem livre voltado para a luz transpassa a porta/janela
oferecendo a todos a idéia de transformação pela libertação. A realidade muda pelo fato de se
voltar para a entrada e saída da caverna, ou mesmo olhar através dela.
Neste processo de divisão do espaço doméstico para cada função uma nova e diferente
janela é produzida e materializada: janela para sala, janela para quarto, janela para cozinha,
janela para casa de banho, janela para arte e janela para olhar o céu. Há janelas para todas as
funções.
O elemento janela ganha um espaço na sociedade e por isso, empreender um esforço para
seu entendimento como objeto e lugar faz sentido, o que é observado em autores como Georg
Simmel e Henri Lefebvre. Na diferenciação que faz da porta que possui o significado de um rito
de passagem, de entrada e saída, de transposição, Simmel (1996) vê que representa a
transparência, o desvendamento de uma intensa interação contida que não convoca,
necessariamente, a transmutação do indivíduo privado em sujeito social. Permite, talvez, um
alargamento deste indivíduo privado, se a posição da janela descortina uma paisagem importante
à presença social.
Tanto Simmel (1996) quanto Lefebvre (2004) identificam na janela esta posição de
observação, um caminho para o olhar. É fato que Simmel prefere a porta, pois a janela permite
uma sociação com o outro do mundo exterior sem trocas imediatas e, sob esta percepção, a porta
carrega a ideia de ponto de troca total, sê dentro, sê fora. De um lado ou de
34
101
outro. Privado e Público. Contudo, Lefebvre (2004) concebe a janela possuidora de uma
característica demasiado importante por posicionar o observador em ponto privilegiado, no qual
o distanciamento relativo permite a identificação dos ruídos que tomam conta da rua, do espaço
público. Este filtro contribui para a percepção do contexto, o que impulsiona a admitir a janela
como um critério metodológico de investigação para a ritmanálise (Lefebvre, 2004).
O fôlego inicial, dado por imagens pré-históricas e uma identificação conceitual e filosófica
que reconhece na janela um objeto e local integrado ao indivíduo e sua história, alimenta um
certo espírito do texto no qual olhar para as janelas e identificar significados, histórias,
tecnologias das diversas janelas, motivos e formas para que foram criadas, interessa. As suas
primeiras funções, a identificação com o sujeito e a transformação social resultante de contínuas
e diferentes apropriações, vêm agora tomar lugar na continuação da análise.
Janelas vistas das janelas: janela indiscreta que enquadra momentos e ritmos
cotidianos. A janela faz parte da cena e interage
Esta poética de olhar para as outras janelas, desnudando as novas funções, é o que nos induz a
admitir um olhar indiscreto e recíproco, fomentado por outras intimidades incorporadas em
nossas vidas e nas paisagens cotidianas pela amplitude da janela. Observamos os vizinhos
através da janela da casa e, assim, apreendemos a transpassar o olhar pelo olho da nossa casa e
pelo olho da casa do vizinho.
As janelas vistas da janela é o significado de Janela Indiscreta (1954) que perscruta a vida
da vizinhança, presente nas dezenas de janelas postas ao olhar privado, a partir de uma
intimidade em contato direto com a intimidade das outras janelas, seja do outro lado da rua, da
praça, em distâncias de ruas e quarteirões, é que temos hoje ao nosso dispor vidas expostas.
Fonte: http://onthesetofnewyork.com/rearwindow.html
35
102
A genialidade de Alfred Hitchcock ante o tema, nos motiva ao movimento junto à janela em
posição dinâmica e não em posição estática qualquer pois somos atores de um jogo de
observador e observado estando sempre em dupla posição. Não há turno entre um e outro, ou
seja, o ator e o observador ocorrem em simultaneidade. Somos o Músico criando incessante
melodia em busca do sucesso; o Recém Casal em núpcias que aos poucos ganha a rotina
matrimonial; a Miss Torso e seus admiradores que aos poucos se vão; a Coração Solitário que
passa o tempo à procura do romance de sua vida; entre outros tantos personagens.
Com Hitchcock, as dinâmicas expostas por esta abertura da parede que separa espaços do
que convencionamos ser o lugar da vida íntima e privada, nos provoca a reposicionar o posto de
investigação para o desafio de ler histórias contadas em recortes e momentos. Ainda nos faz
reconhecer e admitir que a janela pode, considerando Latour (2008), ser o objeto em uma análise
de actor-rede de periodicidade imediata ou de complexa periodicidade tão alongada quanto o
processo civilizacional.
Um objeto que permite a compreensão de um grupo e uma rede, seja no processo de sua
instalação no edifício, ou no momento posterior, nos processos de registros cotidianos
interessantes em são criadas circunstâncias de acordo com quem observa, importando sua
posição, suas características físicas e tecnológicas, se aproximando desta feita da lógica analítica
da Teoria Actor-Rede (TAR).
Por isto, recorre-se a uma breve história da janela associada ao ato do olhar a partir de seu
olho caseiro para outro olho caseiro ou, transpassando dezenas de outros olhos caseiros em
registro contínuo de uma fachada. A janela-vitrine.
Há exemplos ao longo da história. Por trás da janela fechada, a mulher no século XIX põe-se
à janela sob a vigilância do marido. Bem vestida, emoldurada por cortinas de cetim, seda e
bordados, observa o movimento da rua e imagina os cheiros e ruídos, numa participação desejosa
à distância, enquanto o jovem aristocrata em janelas escancaradas se coloca em posição de
conquista e sem barreiras. Domina a nova urbanidade desta cidade moderna, que surge a partir
das grandes transformações urbanas do modelo de Hausmann.
36
103
As janelas do outro lado da rua, dos outros edifícios são outros olhos da mesma classe, não
precisam de tantos ritos para se aproximar. Assim, os olhos das casas estão sempre próximos,
vistos e protegidos pelos da mesma classe e extrato social em uma exposição constante, desejada
para se afirmar entre pares, ao demonstrar suas posses, apresentando o que compõe sua casa ao
deixar seus recheios à vista, antes emoldurados por belas cortinas rendadas e de veludo.
Liverpool
Fonte: http://streetsofliverpool.co.uk/tag/liverpool-pics/page/6/
37
104
Estas imagens nos provocam e induzem a uma defesa que ter janela acabou por pressupor
poder económico, uma definição da posição social de uma família. Assim como ter ou não ter
casa, e na medida intermediária ter ou não ter janela se materializou como fator determinante em
uma narrativa de diferenciação de propriedade e posição social. A janela é de classe.
Esta leitura se apoia em outro fato concreto. A sociedade inglesa, entre 1696 e 1851, sofreu
com uma tributação hoje considerada absurda, ou no mínimo inusitada, que traduz um contexto e
uma classe. Window Tax, o imposto sobre a janela, permite uma perceção da dimensão social
que a janela adquiriu.
Entender seu surgimento auxilia na leitura. O rei William III da Inglaterra, na necessidade
de reorganizar a arrecadação da Coroa, após cortes determinados pela Câmara de Comuns,
encaminha proposta ao Parlamento de novo tributo, por meio do Act for granting to His Majesty
severall Rates or Duties upon Houses for making good the Deficiency of the clipped Money, que
impõe cobrança sobre os imóveis dado o número de janelas.
Segundo Oates e Schwarb (2015), este tributo surge em substituição ao tributo sobre fogos –
hearth tax –, que durou de 1662 a 1689, em que se cobrava por cada lareira ou outros fogos
encontrados na habitação (Marshall, 1936; Green, 2010), o que obrigava ao coletor – chimney
man – a adentrar a casa para verificação, ato percebido como criminoso à santidade e intimidade
das famílias. O novo tributo apresentava-se de forma simples e eficiente por sua estrutura de
cobrança determinada por faixa: até 10, entre 10 e 20 e mais que 20. Segundo Oates e Schwarb,
estas faixas foram alteradas inúmeras vezes, passando a até 10, entre 10 e 14, entre 15 e 19 e
mais que 20. Um dos primeiros impostos sobre propriedade pago ao Estado, com a peculiaridade
de que não era cobrado ao proprietário, mas ao ocupante.
Com 155 anos de duração na Inglaterra (1696-1851), o tributo provocou um profundo efeito
na sociedade inglesa, nos projetos e construções que observavam a quantidade de janelas pelas
faixas (idem), com modificação paulatina dos hábitos, num aprendizado de longo prazo, nos
termos admitidos Elias (1993), influindo sobretudo na classe operária nas formas de coabitação,
de compartir e viver nas moradias urbanas.
Em nossa perceção houve a reincorporação da escuridão aos lares operários, em um retorno
a caverna. Escuridão e compartilhamento de casas por diversas famílias. Nos lares operários a
escassez de janelas marca a construção de habitus em um processo de longo tempo, de quatro a
cinco gerações, que nasceram sob os efeitos do imposto numa construção. Aqui podemos admitir
que Bourdieu e Elias estabelecem um diálogo.
Em A Riqueza das Nações, Adam Smith, de forma sucinta, argumenta sobre o efeito do
imposto na vida dos ocupantes, buscando demonstrar que a variação do valor económico de
possíveis rendas auferidas de um imóvel rural e de um imóvel urbano não eram compatíveis com
a tributação gerada, tendo como critério, apenas o número de janelas. Para Smith parecia-lhe
incabível a fórmula, pois incidia com maior peso nas propriedades rurais e naqueles que
possuíam menos possibilidades de auferir renda.
38
105
paisagem urbana de Paris em determinados pontos. Hoje, as janelas emparedadas são uma
curiosidade parisiense.
As fachadas se tornam cegas à rua e, mais uma vez, remontamos a imagem da caverna com
apenas entrada e poucas aberturas, as quais são disputadas por famílias de uma classe de
operários urbanos dos séculos XVII, XVIII, XIX e início do século XX, que compartilham casas
em estado precário.
Esta condição de escuridão e insalubridade que a falta de luminosidade e ventilação causam
à vida dos habitantes era evidente e torna-se foco da crítica para aqueles que propunham
mudanças radicais nas cidades e nas casas. Dentre estes críticos é importante destacar os
integrantes do movimento moderno na virada do século XIX e XX.
A Bauhaus e os primeiros Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna - CIAM
(Mumford, 2002) preconizavam a nova casa, a moradia para os trabalhadores. Ernst May, por
exemplo, já transformava em realidade esta perspetiva na cidade de Frankfurt pelos planos
urbanos e casas operárias. O II CIAM em 1928, sob o tema – Die Wohnung für das
Existenzminimum – (Apartamento para o mínimo de subsistência ou habitação mínima) e Le
Corbusier com Por uma Arquitetura, são manifestações de libertação das janelas, que declaram o
que os operários deveriam exigir, como mais e maiores janelas.
corbusier-2a-parte-1930-1960/
As novas janelas deveriam entrar no repertório da Arquitetura e não é por menos que o
edifício manifesto de Le Corbusier, L'Unite d’habitation de Marselha, era o modelo da
modernidade pretendida, com uma única janela que se estendia por toda a unidade.
Era a revolução da luz para a classe operária francesa e um exemplo da arquitetura moderna.
Edifícios no mundo seguem a fórmula dos panos de vidro que agora compunham as
fachadas nas mais diversas edificações. Nos casos em que se seguiu a fórmula corbusiana, o que
separa agora as pequenas unidades de habitação social da rua é um pano de vidro que compõe a
janela-parede.
A luz entra como nunca na casa operária e a intimidade é também escancarada, as histórias
familiares agora são inteiras e apresentadas a todos, em uma performance cotidiana, às vezes
escondida por uma cortina que se abre e fecha durante parte do dia. À noite, esta cortina se torna
um teatro de sombras.
39
106
Um novo léxico estético toma conta do mundo e tem diversos representantes e, no Brasil,
um outro edifício manifesto da Arquitetura Moderna, ganha a interpretação em curvas e desenho.
O Copan, projeto de 1954 em São Paulo, é o exemplo de Oscar Niemeyer para a arquitetura
moderna aplicada à habitação social, em pleno centro da capital paulistana.
A fachada já não era mais uma expressão qualquer e os olhos da casa, as janelas, não mais
eram vistos como uma representação imagética que podia dar uma leitura humanizada ao
edifício.
Parecia que a luz não sairia das casas, mas o Copan, entre tantos outros edifícios, não
escapou às críticas que o movimento moderno acabou por incentivar a uma arquitetura
internacional. Uma estética global que carecia de história e identidade cultural com o território
em que surgia (Frampton, 2000).
Os novos projetos reorientam a estética, compatibilizando-a com uma redução dos olhos.
Tais projetos agora miram numa estética que seja viável num orçamento imediato, afastando
critérios de ganhos de longo prazo que se detêm na qualidade e acesso da luz, fruição da
paisagem que não ganha peso na planilha de custo.
40
107
Não por menos que ao tomar a Window Tax inglesa e francesa, reconheceram-se influências
importantes na origem de alguns elementos e axiomas do movimento moderno associado ao CIAM.
Se, considerada esta única influência, já seria relevante a digressão inicial, entretanto
empreenderam-se outras questões como a exposição e sociações que a janela permite. Exercícios de
poder puderam ser encontrados, considerando o critério de avaliação de riqueza na Inglaterra
durante 155 anos por contagem de quantidade de janelas, independente dos tamanhos e localidades.
Como interação em Simmel (1996) e ponto de observação social em Lefebvre (2004), poderia
ser facilmente associada ao elemento de vigília social e construção de laços que Jacobs (2000)
observa necessários e que foram fragilizados nos bairros sociais modernistas das cidades
americanas. A janela como olho social.
Por fim, a casa e seus componentes são ricos em desafios de análise sociológica e a janela se
apresentou como pertinente a uma leitura inusitada com uma evolução que se confunde com
critérios de identificação de classe. Novas janelas podem surgir como os ecrãs de nossos
computadores e smatphones, mas a tradicional abertura da parede ainda tem muito que contar.
Referências bibliográficas
Bachelard, G. (1988), A dialética da duração. São Paulo: Ática.
Bachelard, G. (1993), A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes.
Bourdieu, P. (2007), A distinção. São Paulo: Edusp.
Carlson, R. H. (2005) A brief history of property tax. Fair and Equitable, 2. Consultado a 12 junho
de 2018, disponível em https://www.amanj.org/sites/default/files/files/Carlson.pdf.
Ching, F. D. K., Jarzombek, M. M; Prakash, V. (2017), A global history of architecture. Hoboken,
USA: John Wiley & Sons.
Elias, N. (1993), O processo civilizador [Vol. 1]. São Paulo: Zahar.
Engels, F. (2008), A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo.
Frampton, K.; Fischer, J. (2000), História crítica da arquitetura moderna. São Paulo:
Martins Fontes.
Green, A. (2010), The Economic History Review, 63(1), 239-240. Consultado a 12 de junho de
2018, disponível em: http://www.jstor.org/stable/27771579.
Godbout, J. T. (2000), Le don, la dette et l’identité. Paris: La Découverte
Jacobs, J. (2000), Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes.
Jarzombek, M. M. (2013), Architecture of first societies: A global perspective. Hoboken:
John Wiley & Sons.
Latour, B. (2008), Reensamblar lo social - una introducción a la teoría del actor-red. Buenos
Aires: Manantial.
Le Corbusier (1994), Por uma arquitetura. São Paulo: Perspectiva.
Lefebvre, H. (2004), Rhythmanalysis: Space, time and everyday life. London: A&C Black.
Marshall, L. M. (1936), “The levying of the hearth tax, 1662-1688”, The English Historical Review,
51(204), 628-646. Consultado a 12 de junho de 2018, disponível em
41
108
https://www.jstor.org/stable/554438?seq=1#page_scan_tab_contents.
Oates, W. E.; Schwab, R. M. (2015), “The window tax: A case study in excess burden”, Journal
of Economic Perspectives, 29(1), 163-80. DOI: 10.1257/jep.29.1.163. Consultado a 9 de abril de
2018, disponível em https://www.aeaweb.org/articles?id=10.1257/jep.29.1.163.
Simmel, G. (1996), “A ponte e a porta”, Revista de Ciências Sociais - Política & Trabalho,
Filmes
42
109
Por sua vez, as cidades não existem sem as casas. Todas as atividades que fazem vibrar a
vida urbana dependem delas. É dentro das casas ou nos espaços urbanos que elas conformam
– no(s) seu(s) lado(s) de fora – que toda a vida urbana se desenrola. Ora precisamente porque as
casas são o suporte da vida urbana, mudam no tempo. Transformam-se e inovam-se para servir
melhor aquelas atividades acompanhando a sua evolução, pois perecem se não mudarem. Por
isso é que a mudança está inscrita no ADN das cidades e faz com que estas sejam um processo.
Que não tenham um começo, nem tenham um final, mas sejam tão só um processo. Um processo
de transformações que tem lugar nos espaços social, económico e cultural e se interliga com as
mudanças no espaço físico, com velocidades, ritmos e dimensões variáveis.
Todas elas transformam o espaço físico, mas o resultado das mudanças que provocam não é
questionado. Não intriga, nem estimula.
O envelhecimento dos materiais que revestem as casas ou a alteração das suas tonalidades
devida às águas da chuva, por exemplo, são mudanças subtis encaradas com naturalidade porque
se processam num tempo longo, no primeiro caso, ou apenas porque têm lugar de uma forma
ocasional e temporária, no segundo. Por sua vez, as necessidades de aumento do espaço
doméstico ou de trabalho, assim como o cuidado por recuperar os materiais envelhecidos ou
degradados que revestem as casas, muitas vezes levam a mudanças que não são subtis e até
podem perturbar o equilíbrio dos espaços urbanos que ajudaram a construir. Porém, dentro de
certos limites, nem estas mudanças causam intriga.
Por tudo isto, cabe perguntar como é que a cidade lida com a sua mudança? Porque é que a
mudança do(s) lado(s) de fora das casas não é sempre razão para uma intriga? Porque é que a
perturbação do equilíbrio de um espaço urbano não motiva reações? Porque é que a construção
desse equilíbrio não é motivo para uma aspiração permanente para orientar o processo da
cidade?
43
110
Em suma, qual é o incómodo que causa a falta de equilíbrio ou de identidade formal dos
espaços urbanos, ou seja, dos espaços conformados pelo(s) lado(s) de fora das casas? Estes
espaços têm um léxico que não depende dos significantes da “língua comum” que existe para os
“contentores” das casas. As paredes, os telhados, as portas ou as janelas, fazem parte do léxico
da arquitetura das casas, um léxico variado, mas fechado, que é partilhado com “sotaques”
diferentes em função das geografias. Mas os significantes do léxico dos espaços urbanos – rua,
praça, avenida, travessa, largo... – são muito diferentes. São relacionais. Não dependem
individualmente dos significantes da arquitetura das casas, mas sim das relações entre todos eles,
ou seja, dependem do processo com que são construídos ou reconstruídos.
Por tudo isto, o silêncio sobre certas mudanças no espaço físico nas cidades, é sinónimo de
uma (certa) cultura urbana: silenciosa. Uma cultura arriscada, pois não interliga as mudanças nos
demais espaços social, cultural e económico. Uma cultura arriscada porque sem mudança, não há
cidade e sem projeto a mudança não é uma construção, é simples alteridade.
Referências bibliográficas
Belo, Rui (1998), “Oh as casas as casas as casas”. Obra Poética de Ruy Belo. Lisboa: Ed.
Presença, 40-41.
45
112
Os “sem-casa”... e depois?
José Manuel Mendes, Centro de Estudos Sociais e Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra
jomendes@fe.uc.pt
No seu famoso ensaio A casa ou o mundo às avessas (La maison ou le monde renversé
(Bourdieu, 1972), Pierre Bourdieu, a partir de uma reflexão sobre a cultura cabila, estabelece as
bases de análise de uma economia simbólica do espaço a que chamamos casa. A casa é definida
como um microcosmos onde se pode ler as relações de poder, a hierarquização do mundo social
e, também, as formas de resistência pessoal e social nos diferentes lugares e momentos de
intimidade ou de convívio associados a esse microcosmos. Ausentes da reflexão de Bourdieu
estão as formas de poder relacionadas com o patriarcado ou o colonialismo.
São necessários espiões na monarquia? Não é a prática normal dos bons príncipes. Quando um
homem é fiel às leis, cumpriu com o que deve ao príncipe. É pelo menos necessário que ele tenha sua
casa como asilo, e o resto de sua conduta em segurança. (Montesquieu, 1996)
Nesta segunda parte do texto, recorro a quatro casos de pessoas e famílias afetadas pelo
incêndio de junho de 2017 em Pedrógão Grande, e das várias formas que pode assumir o
conceito de casa, o valor simbólico e emocional das memórias associado a esse espaço.
Caso 1
A família, depois de um dia de expetativa e de incerteza, e com o ruído inusitado do incêndio
que se pressentia desde as 16 horas e que se aproximava da aldeia a uma velocidade nunca vista,
decidiu abandonar a casa para um lugar mais seguro. A violência do incêndio e o fumo denso
levariam ao despiste da viatura em fuga, de que resultariam a morte de uma criança e de um
adulto, escapando com vida outros dois adultos.
Meses depois do ocorrido, na casa da família, que permaneceu incólume ao incêndio, todos
os espaços em que a criança brincara nesse sábado à tarde continuam intactos,
46
113
intocáveis, ainda com os brinquedos espalhados pela sala de estar, e o quarto como que parado
no tempo. No caso desta família, a perpetuação da memória alicerça-se na estática simbólica e
material da casa.
Caso 2
1
O incêndio de junho de 2017 destruiu por completo a casa da família Antunes. Além de um dos
seus membros ter ficado gravemente ferido, permanecendo por vários dias hospitalizado, a
questão premente era onde ficarem alojados logo na primeira noite e nos dias seguintes. Após a
recusa de um familiar que residia na mesma aldeia de os acolher, revelando quão ténues podem
ser os laços e as redes sociais, acabaram por se alojar numa casa emprestada por uma pessoa
conhecida noutra aldeia próxima.
Caso 3
Um cidadão inglês tinha adquirido há alguns anos, no centro da aldeia, uma casa de dois pisos de
traça tradicional e em xisto, em busca de uma forma de vida alternativa, longe da agitação de
uma grande metrópole inglesa onde viva anteriormente. O incêndio de junho de 2017 destruiu-
lhe a casa e obrigou-o a residir em vários lugares, conforme a bondade e a disponibilidade de
conhecidos e vizinhos.
Para ele, a reconstrução da casa tornou-se uma prioridade. Para sua surpresa, os apoios
oficiais obrigavam à reconstrução seguindo uma tipologia pré-formatada de uma casa térrea e
com um único quarto, numa lógica padronizada e adequada à composição do seu agregado
familiar. Iniciavam-se, assim, negociações com as autoridades competentes para a possibilidade
de utilização do apoio oficial na reconstrução integral da casa, com pagamento do valor
suplementar ao estipulado pelo próprio. Estávamos perante um exemplo de diplomacia de
desastre, pois todo o processo teve o acompanhamento da embaixada do país de origem e o
princípio de invocação da cidadania europeia.
Caso 4
A lógica estatal de reconstrução das casas destruídas pelo incêndio é vitoriosa e heteroimposta. A
família Marques também perdeu a sua casa no incêndio. O casal e um filho adulto aguardam a
reconstrução da sua casa, enquanto residem uma casa de um familiar. Como aqui não impera a
diplomacia de desastre, a reconstrução será seguida com aplicação de uma tipologia T2. Mas
surge um contratempo. Como um dos adultos é portador deficiência física, há necessidade de
negociar a construção de uma rampa de acesso à casa e de alargar os espaços de circulação e as
portas no interior da mesma para passagem da cadeira de rodas em que o mesmo se faz
transportar. O sofrimento da perda original da casa
11
Utilizamos pseudónimos para a identificação das famílias.
47
114
Em jeito de conclusão
Os casos relatados remetem para o conceito de heterotopia, recuperado por Henri Lefebvre e
numa lógica de produção de lugares ou espaços contrastantes ou mutuamente repelentes (1991:
2
163; 366). Mas, mais relevante em Lefebvre é a ideia central de que os lugares podem ser
sempre analisados como espaços dominados ou apropriados (1991: 164). Os espaços dominantes
e dominados são transformados e mediados pela tecnologia e pelas práticas, e são fortemente
marcados pela história e pelo poder político (Ibidem). Os espaços apropriados, que só podem ser
apreendidos através de um estudo crítico do espaço, assemelham-se a uma obra de arte, embora
se manifestem na sua concretude (Lefebvre, 1991: 165). Para Lefebvre o espaço apropriado é
sempre um espaço de prazer.
Para Lefebvre, “Any revolutionary 'project' today, whether utopian or realistic, must, if it is
to avoid hopeless banality, make the reappropriation of the body, in association with the
reappropriation of space, into a nonnegotiable part of its agenda” (1991: 166).
Como irão as pessoas e as famílias nos casos aqui relatados apropriarem-se dos novos
espaços das suas novas casas, como os vão tornar em espaços de prazer, de significado, de
identidade e de futuro? Quais os processos sociais subjacentes que permitirão a tecedura e a
consolidação dos laços e das redes sociais?
Referências bibliográficas
Bourdieu, Pierre (1972) “La maison ou le monde renversé”, in Esquisse d’une théorie de la
pratique. Précedé de trois essais d’ ethnologie kabyle. Paris: Librairie Droz, 45-59.
Montesequieu (1996) O Espírito das Leis. São Paulo: Martins Fontes 1748 .
9.
Lefebvre propõe uma tipologia com três tipos de lugares ou espaços: isotopias, ou lugares ou espaços análogos; heterotopias,
ou lugares ou espaços contrastantes ou mutuamente repelentes; e, utopias, ou lugares ou espaços investidos pelo simbólico e pelo
imaginário (1991: 163; 366).
48
115
Na apresentação que Roberto DaMatta, antropólogo brasileiro, faz da reedição em 2003 da obra
clássica de Gilberto Freyre, Sobrados e Mucambos (1939), elege a casa “como categoria
sociocultural, agência de sentimentos e instituição económica” que se constitui como o ponto de
partida analítico para pensar as noções nativas de ‘casa’ e ‘rua’, usando-as como “portas e
janelas para traduzir o sistema brasileiro” (DaMatta, 2003: 17). A casa, seja a casa-grande mais
rural ou o sobrado mais urbano é, neste sistema, mais do que local de moradia; é a “escola,
igreja, banco, partido político, hospital, casa comercial, hospício, local de diversão, parlamento,
restaurante e o que mais se queira...”, isto é, “uma instituição sem rival na sociedade brasileira”
(idem: 18). Como bem refere Gilberto Freyre nesta obra: “O patriarcalismo brasileiro, vindo dos
engenhos para os sobrados, não se entregou logo à rua; por muito tempo foram quase inimigos, o
sobrado e a rua (Freyre, 2003: 139). Na sua interpretação, Roberto da Matta insiste em que a
verdadeira oposição à noção brasileira de ‘casa’ seria, mais do que o mucambo ou a favela, a rua,
como polo de vida pública e política, regida por regras em tudo diferentes das que existem no
espaço doméstico da casa. Antes do mais, a rua é o lugar em que a ‘pessoa’ da casa se transforma
em “indivíduo-cidadão” (DaMatta, 2003: 13).
12 o mesmo DaMatta quem afirma na sua obra, também ela já clássica, A casa & a Rua, o
seguinte:
Casa e rua são categorias sociológicas (...) que não designam simplesmente espaços geográficos ou
coisas físicas comensuráveis, mas acima de tudo entidades morais, domínios culturais
institucionalizados (...) capazes de despertar emoções, reações, leis, orações, músicas e imagens
esteticamente emolduradas e inspiradas. (...) se a casa está, conforme disse Gilberto Freyre,
relacionada à senzala e ao mocambo, ela também só faz sentido quando em oposição ao mundo
exterior: ao universo da rua. (DaMatta, 1987: 15-16)
Foi este o desafio que aceitei do meu colega e amigo Carlos Fortuna, para participar nesta
conversa em torno das casas vistas de dentro e de fora: olhar a relação casa/rua como uma boa
relação para pensar o plural das nossas cidades (Fortuna & Leite, 2009) nos seus diferentes usos
e representações. Ou, por outras palavras, pensar a rua e a casa em conjunto, na
indissociabilidade de uma relação, mostra que são as casas que dão a estrutura e o sentido às
ruas. Uma rua é feita de casas, de edifícios que podem assumir a forma de prédios, vivendas,
barracas, ou outras formas de habitat, pelo que não conseguimos pensar casa e rua de forma
separada e oposta.
As cidades têm sido preferencialmente olhadas através do seu espaço público, sendo as ruas,
avenidas, praças, jardins, alguns dos pontos centrais desta atenção sobre a sua vida social. Não
apenas as ruas e praças a céu aberto têm suscitado interesse, como também outros espaços
públicos e semipúblicos abertos aos habitantes e visitantes, nas modalidades próprias de
convivialidade, comensalidade ou outros prazeres sensoriais, normalmente associados ao tempo
livre, lúdico e de lazer, tão característicos da vida citadina. Mercados, lojas, cafés, restaurantes,
tabernas, livrarias, salas de concerto, museus, bibliotecas, ginásios, são apenas
49
116
alguns dos tipos de ‘casas’ que prolongam, de certa forma, o espaço público urbano, alimentando
sociabilidades urbanas de vários tipos. A rua representada como espaço de sociabilidade pública
é já um dado adquirido, apesar das diferenças nacionais, regionais, locais das suas imagens e
representações.
A este propósito, relembro o texto de Tim Sieber, antropólogo norte americano, que bem
mostra o contraste entre a visão negativa da ‘vida de rua’ associada à marginalidade, pobreza e
delinquência, na tradição científicas e literária norte-americana, e uma visão mais positiva das
sociabilidades urbanas construídas em torno da ideia de ‘rua tradicional’ como espaço
polifuncional de muitas atividades e relações, na Europa do Sul, com particular atenção para a
cidade de Lisboa (Sieber, 2008).
Ora... as ruas são feitas de casas, seja qual for o tipo e função das mesmas.
A ligação entre ambas é física, moral, social, cultural. De entre as múltiplas dimensões que
podemos encontrar nesta relação, eu gostaria de me deter sobre um dos seus planos mais
invisíveis e menos explorados, que é o que se constitui em torno de uma miríade de relações de
nível mais comunitário ou, até, familiar, fazendo com que esta sociabilidade ‘de rua’ seja mais
intimamente dependente da vida doméstica das casas e suas vizinhanças, fazendo com que a
própria distinção entre público/privado perca, em muitos casos, pertinência e, até, sentido.
Para isso, gostaria de revisitar, em forma de quase apenas referências, dois textos que
trabalham algumas subtilezas desta ligação e, assim, nos ajudam a refletir sobre a complexidade
de uma relação, para lá da oposição dual sempre tão referida polarizando (e purificando) o
contraste publico/privado. A morada como forma de identificação socialmente construída (Vidal,
2008) e a apropriação comunitária da rua através de rituais religiosos (Cachado, 2008). Ambos
os textos estão publicados no mesmo livro-coletânea sobre a rua (Cordeiro e Vidal, 2008) que
inclui o texto de Tim Sieber anteriormente citado.
Do lado da história, Fredéric Vidal mostra como a identificação da morada em Lisboa foi
socialmente construída através de diferentes práticas de negociação ao longo do século XIX. A
partir de uma análise que cruza diferentes fontes, tais como a organização da posta domiciliária”
as declarações em registos paroquiais e a perceção do espaço em textos literários, o autor mostra
como os domicílios são pontos fulcrais de um processo de negociação que vai dando forma à
ideia de rua, central na organização racional do espaço urbano novecentista, através da
constituição de moradas, ajustando os ‘modelos normativos’ e ‘lógicas de tipo comunitário’
(Vidal, 2008).
50
117
Estas duas pesquisas dialogam com uma outra pesquisa sobre Lisboa que, através do estudo
histórico e etnográfico das festas dos ‘santos de junho’ num dos bairros mais antigos de Lisboa, a
Bica, mostra como as casas se apropriam da rua, revelando a imbricação de relações familiares e
de parentesco com as relações de vizinhança, numa tessitura emaranhada de afinidade,
solidariedades e conflitos que dão identidade ao território mais publico da rua e do bairro
(Cordeiro, 1997).
Regressando à citação inicial de Roberto DaMatta, posso, então, dizer que o mesmo desafio
que nos leva a pensar a relação entre casa e rua, leva-nos, igualmente a pensar a cidade a partir
desta relação. Tanto a rua como a casa são duas ‘espécies de espaços’ (Pérec, 1974) pequenas,
fragmentares, confinadas a certas fatias de território que nos ajudam a decompor essa entidade
complexa que é a cidade em unidades mais próximas dos citadinos. A ligação entre a casa e a rua
ajuda-nos, pois, a chegar ao terceiro elemento, ao citadino que é quem estabelece uma ligação
entre ambas, esta relação nos dá uma visão de pormenor sobre as cidades, mais relacional e, por
isso, mais dinâmica.
Referências bibliográficas
Cachado, Rita d’Ávila (2008), “Entre as casas e o templo, a rua: comunidade hindu e interações
de bairro”, in G.I. Cordeiro e F. Vidal (org.), A rua. Espaço, tempo, sociabilidade. Lisboa:
Livros Horizonte, 129-142.
Cordeiro, Graça I.; Vidal, Frédéric (org.) (2008), A rua. Espaço, tempo, sociabilidade.
Lisboa: Livros Horizonte.
Cordeiro, Graça I.; Vidal, Frédéric (2008), “Introdução”, in G.I. Cordeiro e F. Vidal (org.), A
rua. Espaço, tempo, sociabilidade. Lisboa: Livros Horizonte, 9-16.
DaMatta, Roberto (1987), A casa & a rua. Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de
Janeiro: Guanabara.
DaMatta, Roberto (2003), “O Brasil como morada. Apresentação para Sobrados e mucambos”,
in Freyre, Gilberto (2003) [1939], Sobrados e mucambos. Decadência patriarcal rural e
desenvolvimento do urbano. São Paulo: Global Editora, 11-22
51
118
Fortuna, Carlos; Leite, Rogério (2009), Plural de cidade: novos léxicos urbanos. Coimbra:
Almedina
Sieber, Tim (2008), “Ruas da cidade e sociabilidade pública: um olhar a partir de Lisboa”, in
G.I. Cordeiro e F. Vidal (org.), A rua. Espaço, tempo, sociabilidade. Lisboa: Livros Horizonte,
47-64.
Vidal, Frédéric (2008), “A rua como lugar de referência: identificando domicílios em Lisboa”, in
G.I. Cordeiro e F. Vidal (org.), A rua. Espaço, tempo, sociabilidade. Lisboa: Livros Horizonte,
65-78.
52
119
A casa despida*
Cerca de 4 anos antes de eu ter nascido, Alfred Hitchcock disse, no New York Journal-American,
que a televisão – à época, a caixa que tinha chegado para mudar o mundo – representava a
mesma coisa que a invenção da sanita, na exata medida em que não vinha mudar os hábitos das
pessoas, servindo apenas para as manter dentro de casa. Mais de meio século depois, poderíamos
“nuanciar” a frase de Hitchcock para a adaptar aos dias que correm, onde a Internet das coisas se
substituiu à televisão como instrumento que vem mudar o mundo. Ainda que seja exagerado
assumir que a televisão e a Internet das coisas não vieram mudar os hábitos das pessoas,
interessa-nos, neste texto, reter a analogia para discutir o estatuto da casa no contexto da
mudança das noções de ‘intimo”, de ‘privado’ e de ‘público’. Para encerrar a dimensão
‘escatológica’ já neste primeiro parágrafo, reiteramos apenas, como lembra Monique Eleb (1995)
em “A fronteira móvel entre a vida privada e a vida pública na casa”, que a designação de
‘privada’ atribuída ao WC se deve precisamente ao facto de, não obstante a progressiva
individualização dos espaços domésticos, se tratar do único lugar onde realmente estamos
sozinhos. Esse processo civilizacional que traz consigo as noções de íntimo e de privado, no seio
do qual a casa desempenha um papel central, tem sido amplamente discutido nas ciências sociais
(Duby e Ariés, 1990; Elias, 2006; Mattoso, 2011a, 2011b).
A casa despida, a que me refiro neste texto, é a casa que se mostra e, mais que isso, a casa
que se expõe. A casa que se despe, sobretudo, através dos dispositivos tecnológicos que invadem
as nossas vidas quotidianas com promessas de reforço do conforto doméstico e que nos
acompanham em cada movimento e em casa inação. Que registam o nosso ‘respirar natural’ e os
nossos ‘sinais vitais’, quase inconscientes, traduzindo-os em ‘dados’, mesmo enquanto
dormimos. É a domus da domótica, do controlo automatizado, que permite ‘simplificar as nossas
vidas trazendo conforto e segurança’. É a casa da inteligência artificial que, através da Internet
que está cada vez mais em todas as coisas, transfere para os objetos do nosso quotidiano o poder
de gestão dos nossos comportamentos. A casa despida redefine as linhas de fronteira entre
público e privado. Torna fluidas, senão desajustadas, as noções de ‘dentro’ e de ‘fora’.
As décadas que nos aguardam vão ser formatadas e condicionadas pela recolha de dados
(Klous e Wielaard, 2016). A revolução digital em curso não vai apenas trazer mais
* Este texto reproduz, com adaptações, mantendo o tom coloquial, a apresentação oral proferida em “As casas vistas de dentro e
de fora”. Evento integrado na 20ª Semana Cultural da Universidade de Coimbra [Oh as casas]. FEUC, 12 de abril de 2018.
53
120
informação para as nossas vidas, maior velocidade de ligação e uma acrescida dependência de
memórias externas. Ela está a conduzir-nos para um estado de docilidade, dir-se-ia de servidão
voluntária (Vion-Dury, 2016), de uma transparência ‘nudificante’, cujo resultado final é o
desaparecimento da vida privada e a renúncia irreversível à nossa liberdade individual. A
Internet das coisas está sobretudo apostada em invadir e em tomar conta dos espaços de
preservação da privacidade e de culto da intimidade (a casa, o automóvel, os dispositivos
pessoais eletrónicos móveis…), uma vez que é aí que se pode recolher a informação crítica que é
potencialmente geradora de maior valor de mercado.
Do ‘quem cala consente’ estamos a passar ao ‘quem fala consente’, pois é quem mais fala
(seja de que forma for) na Internet que mais acaba por ter de consentir. ‘Ter de consentir’
é uma expressão que adquire particular relevância. Consentimos em relação à política de
privacidade dos sites em que navegamos. Aceitamos facilmente conceder todas as autorizações
que nos são pedidas pelas aplicações que descarregamos para os nossos dispositivos eletrónicos
móveis. Validamos termos e condições de tudo e de mais alguma coisa. Compramos cada vez
mais, não apenas produtos, mas objetos ligados em rede que trazem consigo cedências
voluntárias de invasão da nossa privacidade. Paradoxalmente, nessa sociedade do consentimento,
quanto mais somos chamados a consentir, menos nos preocupamos com aquilo que consentimos
(Peixoto, 2017).
É uma sociedade em que o direito de uso traz consigo a contrapartida do consentimento,
uma vez que se está progressivamente a substituir o custo financeiro pelo consentimento
explícito. Não consentir significa quase sempre não poder usar. Mas essa contrapartida converte
o desejado e socialmente valorizado ‘poder de compartilhar’ no incontornável dever de
compartilhar. Uma vez que na sociedade da Internet das coisas o consentimento se torna
obrigatório, assistimos a uma crescente banalização do ato de consentir. Consentimos cada vez
mais leviana e acriticamente. A questão é que, nessa imprudência, o preço que pagamos por
aquilo que consentimos se torna aparentemente irrelevante perante o poder e a liberdade de usar
‘sem pagar’(idem). Esta é a sociedade em que estão a ser socializadas as novas gerações. Que
essa leviandade ocorra nos espaços da intimidade, sob a proteção da crença que ‘a nossa casa é o
nosso castelo’, é algo que revela, por um lado, a leveza e a ausência de sentido crítico das nossas
condutas e, por outro lado, o poder adquirido pelas forças que se apoderam da privacidade dos
indivíduos.
Para refletir sobre a ideia da casa despida, podemos perguntar-nos em que circunstância
é apropriado qualificar um espaço como doméstico? Se a ‘casa’ ainda é, ou se é sempre,
sinónimo de espaço privado? Se o ‘estar em casa’ remete apenas para a intimidade, para o
‘dentro’? Que relações devem existir entre o dentro e o fora para que o espaço seja habitado em
situação percecionada de bem-estar, para que o possamos representar e praticar como um ‘estar’
ou um ‘sentir-se em casa’? (Bryson, 2010; Dugain e Labbé, 2016)
Se a televisão domesticou a vida, levando-a para dentro de casa, a Internet das coisas está a
fomentar a fragmentação, a ductilidade e a supressão do espaço doméstico a um nível sem
precedentes. As tecnologias do quotidiano individualizam os comportamentos e o espaço
doméstico é crescentemente produzido por estratégias de individuação. O espaço doméstico da
casa despida é uma construção pessoal. Um mesmo espaço, como uma casa, ou uma sala, pode
incluir vários espaços domésticos, sem nunca ser necessariamente o mesmo espaço doméstico. O
seu caráter interativo exacerba a paradoxal simultaneidade do ‘dentro’ e do ‘fora’, do ‘perto’ e
do ‘longe’. Num mesmo momento, podemos partilhar um mesmo espaço físico restrito ao
mesmo tempo que emergimos numa sociabilidade intensa que está muito fora dele. E uma
contiguidade espacial não impede que a forma preferencial da interação seja a mediada pelos
dispositivos tecnológicos móveis. Nesse contexto, o espaço doméstico não desaparece, mas é
indelevelmente suprimido. Acresce que o uso e a gestão do espaço
54
121
doméstico através da tecnologia, que torna os dispositivos menos uma peça tecnológica e mais
uma extensão ou um substituto do cérebro, coloca-nos crescentemente a funcionar em piloto
automático no espaço doméstico. E a casa participa cada vez mais na cultura do piloto
automático que enquadra a Internet das coisas.
Na sociedade dos Big Data, em cada momento das nossas vidas, estamos a gerar
informação, sobre a nossa saúde, os nossos consumos, as nossas interações, o nosso estado de
espírito, os nossos desejos (…) sobre tudo o que fazemos. Em cada gesto estamos a gerar dados
que são recolhidos, tratados, organizados. Como sabemos, a mobilidade e a privacidade sempre
foram dois dos maiores inimigos da recolha e da precisão dos dados. Por isso, é esse o espaço
estratégico da Internet das coisas. E é por isso que o piloto automático é o desiderato que as
empresas dos Big Data almejam consagrar nos carros e nas casas. Porque a sociedade dos Big
Data alimenta-se da destruição do lado imprevisível da vida em sociedade. Como salientam
Dugain e Labbé (2016), as GAFA (Google, Apple, Facebook e Amazon) procuram vender-nos a
ilusão de que nunca estamos sós, uma vez que estamos ligados em rede. Para questionar esse
argumento, os autores citam a socióloga americana Sherry Turkle, que escreveu o livro Alone
Togheter, concordando que o sentimento de ligação permanente trazido pela hiperconectividade
nos deixa cada vez mais fechados num universo virtual, onde estamos todos juntos, mas cada vez
mais sozinhos. Porque, ao contrário das aparências, a rede não fez aparecer novas solidariedades.
Com poucas exceções, a regra é cada um na sua bolha (apud Dugain e Labbé, 2016).
55
122
se completamente da sociedade, de modo a evitar o contato com outras pessoas (Furlong, 2008).
A casa despida dá origem a uma aldeia digital. Como lembram Dugain e Labbé (2016), o
uso intensivo de tecnologias faz-nos entrar na era da vigilância total. A vida privada passa a ser
encarada como uma anomalia. Porquê lamentar, então, o seu desaparecimento? Empresas como a
Google tranquilizam-nos argumentando que a aldeia digital não é pior que as aldeias de outrora,
onde todos sabiam da vida de todos. Não deixa de ser verdade, desde que não esqueçamos que
nas aldeias de outrora, cada um conhecia quem o vigiava, havendo uma reciprocidade na
vigilância. Além disso, esta espécie de autovigilância era imperfeita. Não estava em todo o lado,
nem em todos os momentos. A aldeia digital, está ancorada numa espionagem invisível, massiva,
permanente e infalível, na qual todas as informações são centralizadas por uma potência
desencarnada e omnisciente (idem). Dela fazem parte, cada vez mais integrados no sistema
doméstico, os carros autónomos concebidos para circular em cidades inteligentes, o mobiliário
urbano inteligente, assim como os drones que se preparam para gerir o sistema de entregas ao
domicílio. Byung-Chul Han (2014) retrata a aldeia digital como um “panótico digital”, cujos
habitantes se sujeitam voluntariamente a uma transparência que dá origem a um “mercado onde
se expõem, vendem e consomem intimidades” (idem, 53). Se aceitarmos esta leitura
‘benthamiana’, a casa é a prisão.
Dugain e Labbé (2016) retratam uma realidade que nos mostra que a transparência total da
aldeia eletrónica e da casa despida faz parte de uma nova forma de Inquisição. O que significa
ser transparente, perguntam? Os promotores da aldeia eletrónica promovem uma confusão
intencional entre honestidade e transparência. A questão que temos de nos colocar é se a única
forma de tornar as pessoas honestas é colocá-las em vigilância 24 horas por dia? Se
respondermos que sim, então a casa despida pode ser o instrumento da honestidade totalitária.
Como nota Han (2014), esse é o sinal mais claro que a obsessão com a transparência traduz o
desaparecimento da confiança mútua que regulava as relações nas aldeias de outrora. Mas,
mesmo que nada tenhamos a esconder, por que razão é tão fundamental preservar um espaço
onde os outros não têm o direito de olhar e de ouvir? O valor social da vida privada reside na
necessidade que todos temos em “saber algo que os outros não sabem. É aquilo que ninguém
sabe sobre nós que nos permite conhecer-nos a nós próprios” (Don DeLillo apud Preston 2014).
Preston acrescenta que sem intimidade não há imaginação e que estamos condenados a seguir
meros instintos de sobrevivência. Citando Josh Cohen, advoga a necessidade de preservação da
vida privada, porque é a privacidade que "garante que nunca somos totalmente conhecidos pelos
outros ou por nós mesmos, [e que] oferece um abrigo para a liberdade imaginativa, a curiosidade
e a autorreflexão”.
A casa despida é uma casa que se veste, cada vez mais, com uma roupagem adequada ao
striptease. O que as antecâmeras fomentaram na arquitetura das casas (a proteção dos espaços
mais íntimos, desempenhando o papel de filtro entre níveis espaciais de intimidade) está hoje a
ser desfeito pelas câmaras e pelo olho eletrónico e sensitivo. Multinacionais como a IKEA estão
hoje a fomentar alianças estratégicas com os tubarões da Internet das coisas. Esses tubarões estão
cada vez menos dependentes das portas de entrada ‘tradicionais’ da casa despida (o computador,
o telemóvel …) porque as coisas que vão entrando nas casas multiplicam as portas e janelas por
1
onde penetra o olhar perscrutante do panótico digital. A coleção Home Smart, da IKEA, não é
apenas mais uma linha de mobiliário. A Amazon não
1
Não deixa de ser relevante assinalar que a designação da tecnologia (tecnologia Qi – na qual se ancora a Internet das coisas) a
partir da qual a IKEA desenvolve a sua linha Home Smart se baseie numa palavra chinesa (Qi), cujo significado é
‘fluxo de energia’.
56
123
entrega apenas coisas lá em casa. Entrega, preferencialmente, aquelas coisas que fazem parte da
Internet das coisas. A sua, recentemente criada, linha de móveis e de decoração (a Rivet e a
Stone & Beam) não é apenas uma estratégia para diversificar a sua presença no setor do retalho.
É também, e sobretudo, o ‘cavalo de Troia’ onde galopa a Internet das coisas. A Android Things
é uma das novas fronteiras da Google, visando gerar e agregar mais informação que a política do
perfil único, para interligar e conectar dispositivos dentro e fora de casa. Casas inteligentes,
edifícios inteligentes, sensores, monitores, câmaras, sistemas de alarme levar-nos-ão à próxima
etapa da Internet das coisas: as cidades verdadeiramente inteligentes.
No panótico digital, a casa despida torna-se uma prisão sem grades. Nela, onde os objetos
obedecem ao nosso dedo, à nossa voz, ao nosso olhar, para realizar os nossos desejos, cada
movimento é detetado e lido de uma maneira estruturada. Nela, os indivíduos que a habitam
vivem cada vez mais em células isoladas umas das outras. Ao contrário do panótico de Bentham,
podem comunicar e ver-se entre si. Mas, frequentemente, transferem a comunicação para o
ciberespaço e o campo do visual plasma-se nas relações pautadas pelo piloto automático. Como
salienta Han, não são propriamente prisioneiros, mas “vivem na ilusão da liberdade. (…)
expõem-se e revelam-se a eles próprios, voluntariamente. A autoexposição ilumina mais
eficazmente do que a exposição por ação de outrem” (2016: 86). Han estabelece uma analogia
entre a autoexposição e a autoexploração para argumentar que a autoexposição (como a
autoexploração) é mais eficaz que a exposição (ou seja, a exploração), uma vez que se funda
num sentimento de liberdade e na inconsciência da coação externa. “Na autoexposição
coincidem a exibição pornográfica e o controlo pan-ótico (…) [e] o medo de ter de se renunciar à
esfera privada e à intimidade é substituído pela necessidade de uma exibição sem vergonha (…),
[sendo impossível] distinguir-se a liberdade e o controlo” (idem). Na casa despida, a exibição
pornográfica antecipa o efeito da vigilância. Como no panótico de Bentham, basta a suposição da
existência de um guarda para gerar comportamentos de subordinação. Por isso, mostramos antes
de sermos vistos.
Referências bibliográficas
Bryson, Bill (2010), At Home: A Short History of Private Life. Londres: Random House.
Duby, Georges; Ariés, Philippe (1990), História da Vida Privada - Vol. V. Porto:
Afrontamento.
Furlong, Andy (2008), "The Japanese Hikikomori Phenomenon: Acute Social Withdrawal
among Young People", The Sociological Review, 56 (2): 309-325.
Han, Byung-Chul (2016), No enxame. Reflexões sobre o digital. Lisboa: Relógio de Água.
57
124
Klous, Sander; Wielaard, Nart (2016), We Are Big Data: The Future of the Information
Society. Amsterdão: Atlantis Press.
Mattoso, José (ed.) (2011a), História da Vida Privada em Portugal – A Época Contemporânea.
Vol. 3. Lisboa: Círculo de Leitores.
Mattoso, José (ed.) (2011b), História da Vida Privada em Portugal. Vol. 4. Lisboa: Círculo de
Leitores.
Peixoto, Paulo (2017), "Ética e regulação da pesquisa nas Ciências Sociais na sociedade do
consentimento", Educação, 40 (2): 150-59.
Preston, Alex (2014), "The death of privacy". The Guardian, 3 de agosto de 2014.
https://www.theguardian.com/world/2014/aug/03/internet-death-privacy-google-facebook-alex-
preston.
58
59
Alba Zaluar
Resumo O texto aborda algumas das idéias mais disseminadas hoje nos meios de comunicação de massa, assim
como no acadêmico, para entender a questão da violência e propor políticas públicas no Brasil. A redução da
explicação
O tema da violência no Brasil assumiu grande importância na discussão pública e tomou um rumo
muito marcado pela recente história política do país e pelo papel que nela tiveram os intelectuais que
trabalhavam nas universidades e organiza-ções não governamentais. Os últimos 25 anos cobrem um
período da história do país marcado por profundas mudanças políticas, sociais e econômicas, das
quais os cientistas sociais participaram como pesquisadores e como cidadãos. O grande de-safio para
eles, bem como para os militantes de movimentos políticos e os cidadãos do país foi explicar como,
justamente no período em que o país recuperava as insti-tuições da democracia, ocorreu grande
aumento da criminalidade e das violências, seja a institucional, seja a doméstica, seja a difusa
violência urbana. Nas paradoxais tentativas de encontrar respostas para este enigma, muitas foram as
proposições repetidas ad nauseam nos meios de comunicação de massa ou nos estudos mais es-
pecializados.1
do poder, do simbólico e da paixão destrutivos: o triunfo sobre o outro, o orgulho pela destruição do
outro, o prazer de ser o senhor da vida e da morte, o gozo no ex-cesso de liberdade na festa dentro da
comunidade dos comparsas, presentes tanto em assaltos à mão armada quanto em grandes massacres.
Wolfgang Sofsky (1998),2 sociólogo alemão que estudou o terror e escreveu um tratado sobre a
violência, nar-ra com crueza o que vem a ser essa paixão. Escolhe, para ilustrá-la, o personagem
Gilles De Rais, nobre francês contemporâneo de Joana D’Arc, que adquiriu o gosto de matar durante
a Guerra dos Cem Anos e continua a fazê-lo quando não há mais guerra. Caçou, torturou e matou
meninos com a ajuda de seus servos, conforme suas confissões. A redução da criminalidade violenta
à pobreza tampouco permite analisar os seus efeitos inesperados. Essa criminalidade aumenta a
pobreza e os so-frimentos dos pobres, na medida em que impede o acesso aos serviços e institui-ções
do Estado, tais como escolas, postos de saúde, quadras de esporte, vilas olím-picas etc., e ameaça os
profissionais que atendem a população pobre. Também ameaça os jovens pobres que, em função da
atividade que exercem em seus empre-gos, são obrigados a entrar em favelas “inimigas” e são mortos
enquanto traba-lham para viver, caso sejam reconhecidos como moradores de favelas inimigas.
das quadrilhas e se manifesta não só na divisão do butim que cabe a cada um, mas também no
diferencial de submissão aos instrumentos da violência. Os que estão nos escalões mais baixos
sofrem muito mais o medo e o martírio de viver ameaça-dos pela morte cruel e implacável nas mãos
dos inimigos. Vivem sob o império do interdito da traição e da ação independente do comando. A
violência cria um abis-mo absurdo entre o que detém o instrumento, que obriga a submissão, e a sua
víti-ma, que não tem defesa nem recurso. Tem que obedecer. Essas formas extremas de violência
desmantelam culturas e possibilidades de associação — culturas que te-riam sido inventadas para
conter tais paixões ou impulsos humanos —, sem que consigam fazê-lo completamente.
11 “A cultura da violência existe e cresce”. Segundo essa assertiva, uma cultura es-pecífica
encapsularia a violência em certas sociedades ou civilizações. Mas a vio-lência não se refere aos
critérios de tal ou qual civilização, nem às regras de uma so-ciedade dada, nem mesmo de um tempo
histórico determinado. Ela é imanente ou presente, mesmo que limitada ou relativamente controlada,
em todas as culturas, assim como a cultura da paz. Tem outros nomes na antropologia: reciprocidade
ne-gativa ou positiva e destruição de coisas e pessoas ou construção de laços sociais mesmo entre
inimigos, numa visão que é dicotômica mas que não exclui a tensão permanente entre esses dois
pólos nos confrontos competitivos e conflitivos do
potlacht, do esporte moderno e de muitas trocas agônicas. Nessas trocas, as regras que impedem a
completa destruição dos outros são acordadas e vigoram para que o jogo continue. Quando a violência
irrompe, muitas vezes, por uma conjunção de ações retroalimentadas por outras ações individuais ou
coletivas, ela é governada não apenas pelo cálculo racional, mas pela paixão ou emoção descontrolada.
A vio-lência absoluta se exalta e se propaga indefinidamente no circuito das vinganças, mas também
dos prazeres destrutivos que se tornam viciados e excessivos. Quan-do baseada no massacre ou no
terror, ela inverte o mundo familiar, cria a incerteza, destrói a previsibilidade das ações. Os olhares
tornam-se vagos, não há mais terre-no seguro, perde-se o chão, o abrigo e a proteção, tal como vimos
acontecer ao vivo e em cores no dia 11 de setembro de 2001, em Nova Iorque, mas também no Iraque
e no Afeganistão. Tais ações descontroladas não são mais combates entre duas qua-drilhas ou grupos
em guerra, mas verdadeiros massacres de quem não está envol-vido e não tem meios de defesa, porque
os massacres acontecem dentro de ambien-tes fechados (como nas torres do WTC). Esses excessos, no
Brasil, são promovidos pelos grupos de extermínio, sejam eles compostos de policiais ou traficantes,
den-tro de casas, bares, favelas, onde o fator surpresa impede que as vítimas fujam (às vezes para
serem caçadas) ou se defendam com armas de potência similar. As con-seqüências sociais são
catastróficas na medida em que não é mais possível prever o comportamento alheio, deixando portanto
de funcionar os parâmetros do perigo e da ordem, assim como os fundamentos da confiança, sem a
qual não existe vínculo social positivo. Nessas situações, é o medo sem direção, isto é, o pânico que
preva-lece. Atinge, embora desigualmente, tanto os pobres e camadas médias da favela quanto os
pobres e camadas médias do asfalto, os primeiros porque estão no centro da ação de guerra e são
vítimas de crimes violentos, os segundos por estarem na
130
22 Alba Zaluar
periferia da ação e por serem vítimas de crimes contra a propriedade. Uma estraté-gia pública muito
bem pensada e muito eficaz precisa ser montada para interrom-per esse circuito. Dizer que o medo
aqui é fruto da manipulação da mídia é, portan-to, uma afirmação ideológica que tenta negar o que
acontece: não apenas a violên-cia institucional, mas sobretudo a violência que resulta das transações
selvagens e ilegais dos tráficos no crime-negócio.
É “Contam-se os mortos e os danos para avaliar o crescimento da violência”. Além dos mortos e
feridos que podem ser contabilizados em delegacias e hospitais, há tam-bém que se levar em conta os
sofrimentos psíquicos e morais. Os primeiros são visí-veis e publicitáveis. Os segundos são
invisíveis, e deles pouco se fala. As vítimas da violência que sobrevivem não têm apenas as
deficiências físicas que decorrem das agressões sofridas. As marcas traumáticas no seu psiquismo
são tão ou mais gra-ves, e muitas jamais cicatrizam. Parentes e amigos das vítimas que sobrevivem
têm também o seu ordálio de sofrimentos. Um exemplo é a própria humilhação sofrida
cotidianamente por jovens (homens e mulheres) que não podem dizer não aos che-fes muito bem
armados das quadrilhas ou aos policiais que se comportam também como déspotas, nos locais onde
suas ações não podem ser denunciadas por causa do terror já implantado entre seus moradores.
Denunciar a polícia como institui-ção, numa tentativa infantil de afirmar que não se precisa dela, é
negar sua impor-tância crucial na garantia dos direitos civis ou humanos — o direito à vida e à pro-
priedade — e abdicar de torná-la mais capaz de um controlo democrático da crimi-nalidade, que
vitimiza principalmente os pobres. É preciso, portanto, modificar a polícia e seus métodos de
enfrentamento dessa situação terminal com a máxima ur-gência. Acabar com a guerra entre
comandos, e de policiais versus bandidos, para preparar policiais e moradores nas novas relações de
cooperação que se fazem necessárias.
“A posse e o porte de armas pelos habitantes da cidade (cidadãos), que as compram na ilusão de que se protegem,
estão na raiz do problema”. De fato, a facilidade de obter armas,
131
OITO TEMAS PARA DEBATE 23
tanto no comércio legal como no contrabando, tem contribuído para o aumento dos homicídios e das
lesões sérias nas vítimas de agressões. Mas os acidentes decorren-tes da imprudência de manter uma
arma em casa têm incidência muito baixa. Não se pode tampouco tomar o depósito da polícia,
conhecida pela sua ineficácia e mi-nada pela corrupção, como o indicador do tipo de arma que
prevalece entre os mo-radores da cidade. As mais poderosas, tecnologicamente superiores, mais caras
e cobiçadas não vão para o depósito. Trocam de mãos no comércio clandestino que flui entre
policiais e bandidos, assim como no tráfico ilegal que viaja clandestina-mente em navios e
caminhões. O Porto do Rio de Janeiro, assim como de outras ci-dades, é o centro dessa importação
feita nas trevas dos porões e das noites. Por isso mesmo, a maior taxa de homicídio no Rio de Janeiro
está na região do Centro. Por isso, também, a guerra entre os comandos ocorre agora pelo domínio
militar das fa-velas ao redor da Baía de Guanabara. As armas importadas, embora tecnologica-mente
superiores (foram feitas para guerras entre Estados e desferem dezenas de tiros em segundos), são
consideradas leves e podem ser carregadas por crianças. Essa revolução tecnológica nos armamentos
tem sido amplamente utilizada, tanto nas guerras civis fratricidas quanto nos conflitos sangrentos
entre quadrilhas e co-mandos do crime-negócio. Muito mais atenção deve ser dada, portanto, ao
tráfico ilegal e internacional de armas.
12 “Traficantes que nasceram nas favelas são vítimas, mais do que responsáveis, pelo trá-fico no
Brasil”. O mercado sem limites institucionais e morais é importante no co-mércio de drogas e armas.
Estão imbricados com os fluxos de dinheiro para paraí-sos fiscais, como outras formas de comércio
ilegal e corrupção. Impossível, portan-to, que para movimentar as toneladas de drogas e os milhares
de armas que aqui circulam, não haja redes interconectadas de “negociantes” que envolvem vários
personagens da economia legal e ilegal do país. Se os tráficos são males que aumen-tam a
desigualdade, empobrecem ainda mais o povo e pioram o bem-estar social, então é preciso encontrar
as formas de controlá-los e combatê-los. Não há como continuar a silenciar a respeito dos feitos de
traficantes simplesmente porque são marginais e a origem humilde de alguns deles explica, justifica e
faz perdoar seus atos. A luta por uma nova ordem mundial deve incorporar esses argumentos que
estão por trás da tragédia do povo afegão, mas também do paquistanês e de vários países do sudeste
asiático. Novas formas de investigação e intervenção são indis-pensáveis para que se possa falar de
uma nova polícia. Não é com prédios novos, computadores ou viaturas apenas que isso será
alcançável.
“A segurança pública não pode ser a preocupação central dos que atentam para a con-solidação da
democracia no país”. Ao contrário, este é o ponto nevrálgico para conti-nuar o processo que se
interrompeu por causa das indefinições e oscilações das po-líticas públicas no Brasil. Refazer os
circuitos da reciprocidade positiva significa in-tegrar a população nas próprias atividades da segurança
pública. Uma estratégia que não negue o conflito, e sim socialize os jovens na forma mais civilizada
de lidar com ele, o que inclui os jovens que aderem às forças policiais. É preciso mais aten-ção à
pedagogia e à formação oferecida nas escolas e quartéis no que diz respeito à
132
24 Alba Zaluar
socialização para uma sociedade em que a civilidade, a confiança mútua e a previ-sibilidade dão as
condições básicas para novos arranjos e práticas sociais. A parti-cipação é importante na medida em
que não há segurança sem que as pessoas compreendam os perigos e riscos que correm e façam, elas
mesmas, o que podem para controlá-los ou evitá-los. A participação é igualmente importante, pois é
o que permite passar da normatividade burocrática e autoritária para uma norma-tização melhor
aceita pelos que devem internalizar e praticar suas regras. Bairris-mos só atrapalham. Preparar
cidadãos e policiais para a cooperação que se faz mais que imprescindível é condição sine qua non.
O modelo da polícia comunitá-ria não funciona onde os traficantes controlam militarmente o
território e im-põem medo aos moradores. O alcance do trabalho policial é pequeno e ainda se expõe
a acusações de conluio com os criminosos. Antes, faz-se preciso tirar as pessoas de seus refúgios
privados, onde se aprisionam naquilo que N. Elias cha-mou homo clausus e H. Arendt, a solidão
organizada, base do totalitarismo moder-no. Esse é o grande desafio e o grande passo a ser dado no
Brasil, em todos os seus estados, em todos os seus pequenos, médios e grandes municípios.
Notas
2 Este texto foi preparado, numa versão original, para a apresentação do congresso da Associação de Pós-Graduação
em Ciências Sociais (ANPOCS), no final de outu-bro de 2001. Nele procurei resumir os argumentos apresentados na
discussão de al-gumas das afirmações mais frequentemente repetidas.
2 Sofsky, Wolfang (1998), Traité de la Violence, Col. NRF Essais, Paris, Gallimard.
2 Paixão, Antônio Luís (1988), “Crime, controlo social e consolidação da cidadania”, em F. W. Reis, e G. O’Donnell,
A Democracia no Brasil: Dilemas e Perspectivas, Vértice, São Paulo.
Alba Zaluar é professora titular de Antropologia no Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio
de Janeiro, coordenadora do NUPEVI (Núcleo de Estudos das Violências) e assessora do Prefeito do Rio de
Janeiro para Segurança Participativa. E-mail: azaluar@openlink.com.br
133
Planos de Curso_5 Familia
134
Professora Vanessa Cavalcanti (UFBA/UCSAL)
Referências
Rev. esc. enferm. USP vol.52 São Paulo 2018 Epub 24-Maio-2018
http://dx.doi.org/10.1590/s1980-220x2017023703314
ARTIGO ORIGINAL
Objetivo
136
Identificar e analisar a estrutura e o conteúdo das representações sociais de pessoas em
situação de rua sobre cuidados em saúde.
Método
Resultados
Conclusão
O grupo investigado representa o cuidado em saúde como uma ação dinâmica, vinculado à
pessoa e ao contexto e ancorado em elementos da concepção higienista.
RESUMEN
Objetivo
Método
Resultados
El grupo investigado representa el cuidado sanitario como una acción dinámica, vinculado
con la persona y el contexto y anclado en elementos de la concepción higienista.
INTRODUÇÃO
O número de pessoas em situação de rua está em ascensão no Brasil e em vários outros países,
revelando os extremos de desigualdade e exclusão social no mundo(4). O contexto da rua é
onde inúmeras pessoas buscam ser acolhidas, amparadas e abrigadas, embora sejam
constantemente submetidas a condições insalubres e a aglomerados humanos, bem como à
privação de alimento e água, à exposição a variações climáticas e a situações de violência(4-5).
No contexto de rua, muitos acabam envolvendo-se com álcool e outras drogas, estão
vulneráveis a doenças crônicas, psiquiátricas e infectocontagiosas, como afecções de pele,
infestações por piolhos, tuberculose e infecções sexualmente transmissíveis(6-7).
De acordo com dados da Pesquisa Nacional sobre pessoas em situação de rua(5), a busca
dessas por hospitais de emergência é uma ação comum quando estão acometidas de alguma
doença, assim como a busca por realizar hábitos de higiene e manter a alimentação. Esses
dados mostram que essas pessoas adotam medidas de cuidados com a saúde que se alinham ao
contexto no qual estão inseridas. Esses aspectos remetem ao conceito de representações
138
(8)
sociais que as compreende como uma modalidade de conhecimento que produz e determina
comportamentos e nos mostra que algo ausente possa ser acrescentado e que algo presente
seja modificado.
Dessa forma, torna-se relevante explorar os sentidos atribuídos ao cuidado em saúde por esse
segmento populacional, uma vez que as representações sociais podem reverberar em práticas
e condutas pelo grupo social(8-9), apresentando, assim, estreita relação com a Enfermagem e
com a equipe de saúde. A partir da análise dessas representações, será possível repensar as
práticas de cuidado em saúde, bem como a implementação de políticas, com vistas a favorecer
a inclusão/acesso das pessoas em situação de rua nos serviços de saúde, com redução das
diversas formas de preconceitos, violência e vulnerabilidades que lhes são impostas.
MÉTODO
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, cuja produção de dados empíricos se deu no período de
maio a agosto de 2016. Participaram 72 pessoas em situação de rua, cadastradas em duas
Unidades de Acolhimento Institucional, situadas no município de Salvador, Bahia, Brasil. As
referidas unidades foram fundadas em 2014, integram a Rede Municipal do Sistema Único de
Assistência Social, com o propósito de fornecer abrigo temporário e garantir condições de
estadia, convívio e endereço de referência para pessoas com idade acima de 18 anos. As
referidas unidades têm capacidade para abrigar entre 33 e 51 pessoas, respectivamente.
O grupo investigado foi constituído mediante os seguintes critérios: ter idade igual ou
superior a 18 anos e aparentar condições de interagir com a pesquisadora. Para a produção dos
dados, utilizou-se do Teste de Associação Livre de Palavras, instrumento amplamente
empregado em pesquisas fundamentadas na Teoria das Representações Sociais pela
possibilidade que oferece de apreender, de forma espontânea, as projeções mentais e os
conteúdos implícitos ou latentes que podem ser ocultados nos conteúdos discursivos e
reificados(9).
O instrumento contemplou duas seções. A primeira fazia referência aos dados de identificação
e caracterização de saúde das/dos participantes. A segunda, o teste propriamente dito,
composto pelo termo indutor “cuidar da saúde é”, para o qual foi solicitado que cada
participante evocasse até cinco palavras ou expressões curtas que lhe viessem imediatamente
à memória. Em seguida, que os participantes elegessem, dentre os termos citados, aquele
139
considerado mais importante, justificando a escolha. A aplicação foi realizada
individualmente, em sala reservada, com duração média de 10 minutos.
RESULTADOS
Do grupo investigado (72 pessoas), a maioria é representada por mulheres (50), com idade
predominante entre 21 e 31 anos (34), em união estável (47), raça/cor negra (60), adepta de
uma religião (50), refere ter ensino fundamental incompleto e também exercer atividade
informal (44). Quanto ao tempo de permanência nas ruas, prevaleceu o período menor que 5
anos (34). No que tange às condições de saúde, grande parte referiu não possuir comorbidades
(40), sendo que as mais prevalentes foram: hipertensão arterial (5), sífilis (3), soropositividade
para o HIV (4) e litíase renal (3). A maior parte informou acessar o serviço de saúde (71),
buscando por atendimentos na rede hospitalar (52). Quanto às demandas de saúde, afirmaram
acessar as unidades para prevenção e orientação (40), tratamento médico (38), realização de
exames (28) e aquisição de medicações (27). A maioria informou ter feito uso de algum tipo
de substância psicoativa na vida (62), sendo prevalente o uso do álcool (54), seguido da
maconha (48).
A análise do corpus revelou que, em resposta ao estímulo indutor “cuidar da saúde é”, o
grupo investigado evocou 327 palavras, destas, 47 foram distintas. A frequência mínima foi 5,
dessa maneira, foram excluídos da composição os termos com frequência inferior. A
frequência média foi de 15 e a ordem média de evocação foi de 2,9. Os cálculos necessários
no processamento foram desenvolvidos por intermédio do próprio software, baseados na Lei
de Zipf(12), possibilitando expressar o conteúdo e a estrutura da representação social,
conforme disposto no Quadro 1.
Nota: (n = 72).
No quadrante superior esquerdo, denominado núcleo central, estão os termos que obtiveram
maior frequência e menor ordem média de evocação. Na presente pesquisa, o núcleo central
foi constituído pelo termo ‘médico’, que apresentou frequência mais elevada e foi o mais
prontamente evocado. Esse fato se coaduna com as justificativas das/os participantes para o
referido termo:
O médico, ele vai lhe olhar, lhe consultar e ver o que você está precisando (P 11).
Ele vai fazer todos os exames, ver se a pressão está alta ou baixa e ver como é que está (P
45).
Os demais termos que compõem o núcleo central, quais sejam: ‘cuidar de si’ e ‘alimentação’
remetem a uma dimensão intersubjetiva e funcional. As justificativas atribuídas a esses
termos, quando definidos como mais importantes, reiteram o fato de que o cuidado à saúde
envolve o compromisso consigo mesmo, priorizando saúde e alimentação, conforme ilustram
os excertos a seguir:
Se a gente não cuidar do nosso corpo, quem vai cuidar? Tem que primeiro cuidar de si, ter
amor a si para ter saúde (P 22).
141
A gente, mulher, tem que se cuidar e se prevenir, sempre ir ao médico, cuidar das partes
íntimas, né? Aplicar pomada vaginal, na minha primeira gravidez eu nem sabia aplicar
pomada vaginal, minha sogra que me ensinou (P 52).
Procurar ir no médico, fazer alimentação saudável. Sem comida, ninguém vive (P 58).
Droga não é saúde, bebida não é saúde, tem é que comer coisas saudáveis que dê energia ao
nosso corpo (P 68).
Através da higiene você não contrai bactérias, para não precisar passar pelo médico e nem
tomar medicamento (P 4).
Se a pessoa não se higienizar, a pessoa vai ficar vulnerável a uma doença (P 14).
O termo ‘felicidade’ introduz uma dimensão afetiva e subjetiva para com o objeto
investigado. Cinco das participantes sinalizaram e justificaram o referido termo como o de
maior relevância, conforme retratam as seguintes falas:
Felicidade é quando o corpo está em equilíbrio, a mente está em equilíbrio e a saúde também
se equilibra (P 8).
A felicidade é o objetivo máximo da vida. Não importa as conquistas que você obtém na vida,
se você não tem felicidade, não é nada (P 9).
Quando a gente é feliz, tudo fica mais fácil resolver na vida, fica mais fácil resolver as coisas.
Eu acho que a felicidade vem em primeiro lugar pra tudo (P 26).
É importante fazer check-up para evitar doenças. O importante da vida é ter saúde, paz e
liberdade(P 17).
Quando faço atividade física, me sinto muito bem (…) mais leve, e minha respiração
melhora (P 19).
Se a gente não cuidar do nosso corpo, quem vai cuidar? A gente tem que primeiro cuidar de
si, ter amor a si, para ter saúde (P 10).
142
Se você não se tratar da doença, como é que vai ser curada? (P 24).
Se você não se tratar, você não está vivendo. Você, sem saúde, não vai viver por muito
tempo (P 16).
Porque o amor é o que move tudo, eu sou amor, um amor insuperável, eu creio nesse amor,
incomensurável, sem cobranças, na simplicidade (P 71).
Na nuvem de palavras (Figura 1), que agrupa e organiza de modo aleatório os termos
considerando a frequência, nota-se que a palavra ‘médico’ apresentou maior número de
aparição no corpus (36), seguida do termo ‘prevenir-se’ (31) e ‘cuidar de si’ (30), bem como
os termos ‘higiene’ (27) e ‘alimentação’ (22).
No senso comum, a higiene tem como principais sinônimos ‘saudável’ e ‘aroma’. A condição
de morador de rua, associada à sujeira e à higiene precária constituem fatores que impedem
e/ou dificultam o acesso aos serviços de saúde e aumenta a exclusão social. No Brasil, a
mentalidade higienista foi propagada entre a segunda metade dos anos 1940 até a primeira
metade dos 1960, para atender a questões comerciais da era industrial. A produção e a
comercialização de novos e variados produtos relacionados à saúde e à higiene tiveram ampla
propagação pela impressa, disseminando uma nova maneira, moderna e saudável, de se
viver(16). Essa produção e comercialização de novos produtos e sua divulgação na mídia
144
permanecem nos dias atuais, impondo para toda a sociedade uma higiene associada a produtos
aromáticos, com concomitante condenação dos cheiros naturais do corpo humano.
É possível ter uma vida que não se pauta na felicidade prescritiva, ou seja, uma vida cujos
objetos de desejo fogem dos critérios estabelecidos histórica e socialmente, por exemplo:
formatura, sucesso no trabalho, casamento, família(17-18). Nesta perspectiva, andarilhos,
migrantes, pessoas em situação de rua e sujeitos que vivem em contextos culturais diversos
não se reconhecem inferiorizados pelos discursos mais amplos de felicidade(18). Por mais
estranho que possa parecer, estar nas ruas pode ser também uma forma de sentir-se feliz,
distante de um contexto formatado socialmente e que se constitui em um elemento
desencadeador/gerador do ciclo do adoecimento. Muitas vezes, a rua torna-se um local de
refúgio, libertação e estabelecimento de novas relações.
Os elementos que compõem a segunda periferia − quadrante inferior direito −, formada por
palavras menos prontamente evocadas e de menor frequência, apresentam menor
significado/importância para o grupo estudado(9). Nesta pesquisa, ‘atividade física’, ‘exame’,
‘tratar’, ‘beleza’, ‘saudável’ e ‘corpo’ também têm características de conotação positiva para
o objeto representado, numa dimensão atitudinal e imagética. Tais termos são
complementares e apontam que o cuidar da saúde contribui para manter uma melhor
qualidade de vida, norteada pelo modelo biomédico, numa íntima associação com o termo
médico, presente no núcleo central. Essa associação revela uma necessidade mais pragmática
e procedimental desse cuidado(12).
Fica evidente que, para o grupo social, a saúde tem relação com o corpo e com a beleza,
independentemente do local onde estejam. Vale lembrar que a beleza é relativa, embora haja
padrões socialmente divulgados pela mídia. De toda forma, preocupar-se com a beleza e com
o corpo integra as ações voltadas ao complexo processo de cuidado da saúde, revelando a
implicação de um cuidado autoatribuído.
O elemento ‘amor’ aponta para uma dimensão afetiva e se associa ao termo ‘felicidade’,
disposto na segunda periferia, reforçando o conceito ampliado de saúde. Esse termo denota
que o cuidado é perpassado pela necessidade que os participantes têm de se amar, para que
possam melhor cuidar de si e de outrem. A representação social também cumpre uma função
em relação à familiaridade com o grupo, e a dimensão afetiva se apresenta na base desse
trânsito, apoiada na memória individual e coletiva, nas experiências e situações cotidianas(20).
No que concerne à nuvem de palavras, os termos expressos de maneira mais enfática são
representados pelas expressões ‘médico’, ‘prevenir-se’, ‘cuidar de si’, ‘higiene’ e
‘alimentação’, sendo que dois termos pertencem à primeira periferia do quadro de quatro
casas. Isso revela, portanto, a centralidade dos termos no núcleo central e reforça o quão
importante é para o grupo em estudo a normatividade do saber médico, e, concomitantemente,
compartilha e se apropria do saber alicerçado pelo cuidado ampliado de saúde, valendo-se das
noções de prevenção e promoção de agravos, bem como das práticas individuais para cuidar
da saúde.
CONCLUSÃO
Os dados produzidos não podem ser generalizados pela limitação do grupo investigado e pela
dinamicidade das representações sociais. Sua originalidade e ineditismo permitem reflexão
para a elaboração de práticas profissionais alinhadas com as necessidades e realidades de
pessoas em situação de rua e sinalizam a necessidade de novas investigações abordando a
temática. Nesse sentido, acredita-se que os dados podem ser utilizados em ações de formação
de profissionais de saúde, em especial de Enfermeiros/as, visando redução de enfrentamentos
na assistência prestada e de agravos em saúde para a população em situação de rua.
Errata
Onde se lia:
Leia-se:
REFERÊNCIAS
1. Silva CC, Cruz MM, Vargas EP. Práticas de cuidado e população em situação de rua: o
caso do Consultório na Rua. Saúde Debate. 2015;39(n.esp):246-56. [ Links ]
2. Rangel RF, Backes DS, Ilha S, Siqueira HCH, Martins FDP, Zamberlan C. Comprehensive
care: meanings for teachers and nursing students. Rev Rene [Internet]. 2017 [cited 2017 Fev
11];18(1):43-50. Available
from: http://www.revistarene.ufc.br/revista/index.php/revista/article/view/2502/pdf [ Links ]
147
3. Bustamante V, Mccallum C. Cuidado e construção social da pessoa: contribuições para
uma teoria geral. Physis [Internet]. 2014 [citado 2017 mar. 10]; 24(3):673-92. Disponível
em: https://scielosp.org/pdf/physis/2014.v24n3/673-692 [ Links ]
4. Macerata I, Soares JGN, Ramos JFC. Apoio como cuidado de territórios existenciais:
Atenção Básica e a rua. Interface. 2014;18 Supl 1:S919-30. [ Links ]
7. Baggett TP, Hwang SW, O'Connell JJ, Porneala BC, Stringfellow EJ, Orav EJ, et al.
Mortality among homeless adults in Boston: shifts in causes of death over a 15-year period.
JAMA Intern Med [Internet]. 2013 [cited 2017 Feb 10];173(3):189-95. Available
from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3713619/ [ Links ]
8. Moscovici S. A psicanálise, sua imagem e seu público. Petrópolis: Vozes; 2012. [ Links ]
10. Oliveira DC, Gomes AMT. O processe de coleta e análise dos conteúdos e da estrutura
das representações sociais: desafios e princípios para a enfermagem. In: Lacerda MR,
Costenaro RGS, organizadoras. Metodologias da pesquisa para a enfermagem e saúde: da
teoria à prática. Porto Alegre: Moriá; 2015. p. 351-86. [ Links ]
11. Kami MTM, Larocca LM, Chaves MMN, Lowen IMV, Souza VMP. Working in the
street clinic: use of IRAMUTEQ software on the support of qualitative research. Esc Anna
Nery [Internet]. 2016 [cited 2017 Feb 19];20(3):e20160069. Available
from: http://www.scielo.br/pdf/ean/v20n3/en_1414-8145-ean-20-03-20160069.pdf [ Links ]
12. Santos EI, Alves YR, Gomes AMT, Ramos RS, Silva ACSS, Santo CCE. Social
representations of nurses’ professional autonomy among nonnursing health personnel. Online
Braz J Nurs [Internet]. 2015 [cited 2017 Mar 21];15(2):146-56. Available
from: http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/5294/pdf_1[ Links ]
13. Acioli S, Kebian LVA, Faria MGA, Ferraccioli P, Correa VAF. Care practices: the role of
nurses in primary health care. Rev Enferm UERJ [Internet]. 2014 [cited 2017 Mar
04];22(5):637-42. Available from: http://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/enfermagemuerj/article/view/12338/12290 [ Links ]
14. Biscotto PR, Jesus MCP, Silva MH, Oliveira DM, Merighi MAB. Understanding of the
life experience of homeless women. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2016 [cited 2017 Apr
15];50(5):749-55. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v50n5/0080-6234-reeusp-
50-05-0750.pdf [ Links ]
15. Rosa AS, Brêtas ACP. Violence in the lives of homeless women in the city of São Paulo,
Brazil. Interface (Botucatu) [Internet]. 2015 [cited 2017 Mar 14];19(53):275-85. Available
from: http://www.scielo.br/pdf/icse/v19n53/en_1807-5762-icse-19-53-0275.pdf [ Links ]
148
16. Kobayashi E, Hochman G. O “CC” e a patologização do natural: higiene, publicidade e
modernização no Brasil do pós-Segunda Guerra Mundial. An Mus Paul [Internet]. 2015
[citado 2017 mar. 14];23(1):67-89. Disponível
em: http://www.scielo.br/pdf/anaismp/v23n1/0101-4714-anaismp-23-01-00067.pdf [ Links ]
17. Ciello FJ. Feminist killjoys e reflexões (in)felizes sobre obstinação e felicidade. Rev Estud
Fem [Internet]. 2016 [citado 2017 mar. 13];24(3):1019-22. Disponível
em: http://www.scielo.br/pdf/ref/v24n3/1806-9584-ref-24-03-01019.pdf [ Links ]
18. Pinilla RL, Amparo JI. El bienestar subjetivo en colectivos vulnerables: El caso de los
refugiados en España. Rev Investig Psicol Soc [Internet]. 2013 [citado 2017 mar. 21];1(1):67-
84. Disponible
en: http://sportsem.uv.es/j_sports_and_em/index.php/rips/article/view/36 [ Links ]
19. Silva ACS, Sales ZN, Moreira RM, Boery EN, Santos WS, Teixeira JRB. Representações
sociais de adolescentes sobre ser saudável. Rev Bras Ciênc Esporte [Internet]. 2014 [citado
2017 mar. 23];36(2):397-409. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbce/v36n2/0101-
3289-rbce-36-02-00397.pdf [ Links ]
20. Arruda A. Meandros da teoria: a dimensão afetiva das representações sociais. In: Sousa
CP, Ens RT, Villas-Bôas L, Novaes AO, Stanich KAB, organizadoras. Angela Arruda e as
representações sociais: estudos selecionados. Curitiba: Champagnat; Fundação Carlos
Chagas; 2014. p. 181-96. [ Links ]
ISSN: 2236-532X
n. 1 p. 13-33
Jan.–Jun. 2011
Vida precária1
Judith Butler2
Resumo: Neste ensaio, Judith Butler re!ete sobre o que nos vincula eticamen-te
à alteridade, ao Outro compreendido como as pessoas marcadas por vi-das
precárias. Este vínculo não é um a priori, antes emerge apenas quando
reconhecemos a humanidade deste Outro sob ameaça. Aí emerge a proble-
mática da representação do Outro em nossos tempos midiatizados, quando
frequentemente não nos permitem ver a alteridade ou a apresentam de for-ma
a impedir nossa identi"cação com ele(a). Na argumentação de Butler, a
representação da alteridade constitui -se em um meio de humanização/des-
Abstract: In this essay, Judith Butler re!ects about what connects us ethically to
alterity comprehended as the people marked by precarious lives. "is bond is not an a
priori, instead depends in our ability to recognize the threatned humanity of this
Other. "erefore, emerges the problematic of the representation of the Other in our
mediatic era. "e media o#en do not allow us to see the Other or presents him/ her to
us in a way that avoids our indenti$cation with him/her. In Butler’s argu-ment, the
representation of alterity is a way of humanize/de-humanize someone,
7 Tradução de Angelo Marcelo Vasco. Revisão de Richard Miskolci. Agradecemos a Judith Butler por
14 Vida precária
Levinas
falando, se a fala era mesmo sua ou não, eu realmente senti como se estivesse sendo
submetida a um discurso especí!co, e que algo chamado humanidades estava sendo, sob
algum ponto de vista, de quem quer que o seja, ridicularizada. Responder a esse discurso
parece-me uma obrigação importante nestes tempos. Essa obrigação não diz respeito
apenas à reabilitação do autor com o conteúdo de seu discurso per se. Ela diz respeito a
um modo de resposta para quando somos submetidos a um discurso, um comportamento
em relação ao Outro apenas quando o Outro me demandou algo, ou acusa-me de uma
falha ou me obriga a assumir alguma forma de responsabilidade. Esta é uma troca que não
pode ser assimilada no esquema em que o sujeito está aqui como um tópico a ser
interrogado re"exivamente e o Outro está lá como um item a ser procurado. A estrutura do
discurso é importante para a compreensão de como a autoridade moral é introduzida e
sustentada se concordarmos com o fato de que o discurso está presente não apenas
quando nos reportamos ao Outro, mas que, de alguma forma, passamos a existir no
momento em que o discurso nos alcança, e que algo de nossa existência se prova precária
quando esse discurso falha em nos convencer. Mais enfaticamente, no entanto, aquilo que
nos vincula moralmente tem a ver com como o discurso do Outro se dirige a nós de
maneira que não po-demos evitá-lo ou mesmo dele desviar. Essa implicação realizada por
meio do discurso do Outro nos constitui, a princípio, contra nossa própria vontade ou, talvez
colocado de forma mais apropriada, antes mesmo de formarmos nossa vontade. Portanto,
se pensarmos que autoridade moral tem a ver com encontrar uma vontade e sustentá-la,
talvez não estejamos percebendo o próprio modo pelo qual demandas são apresentadas.
Ou seja, não percebemos a questão do ser implicado, a demanda que nos vem de algum
lugar, muitas vezes um lugar sem nome, pela qual nossas obrigações são articuladas e são
impostas a nós.
De fato, essa concepção do que é moralmente vinculante não é dada por mim mesmo;
ela não procede da minha autonomia ou de minha própria re-"exividade. Ela chega a mim
de um lugar desconhecido, de forma inesperada, involuntária e não planejada. Na verdade,
ela tende a arruinar meus planos e, se meus planos são desfeitos, isso pode muito bem ser
o sinal de que uma autori-dade moral pesa sobre mim. Quando pensamos em um
presidente logo nos vem
do que eu para entender esse mistério. Por que razão, por exemplo, o Iraque é
considerado uma ameaça à segurança do “mundo civilizado” enquanto mísseis
voando da Coreia do Norte – e até mesmo a tentativa de sequestro de navios
estadunidenses – são chamados de “assuntos regionais”? E se o presidente dos
Estados Unidos foi conclamado pela maior parte do mundo a retirar suas ame-aças de
guerra, por que não se sente vinculado a essa demanda? Em razão da desordem em
que a voz presidencial se encontra neste momento, talvez devês-semos pensar mais
seriamente na relação que existe entre modos de discurso e autoridade moral. Isso
poderá nos ajudar a entender quais valores as humani-dades têm a oferecer, e quais
são os contextos do discurso em que a autoridade moral passa a se tornar vinculativa.
-me uma questão ética, mesmo sem sabermos ao certo o teor dessa
demanda. O “rosto” do outro não pode ser lido como um signi!cado
secreto e o impe-rativo que ele impõe não pode ser imediatamente
traduzido sob a forma de uma prescrição linguística que é capaz de ser
linguisticamente formulada e seguida.
Levinas escreve:
relação ética de amor pelo outro está enraizada no fato de que o eu [self] não pode
sobreviver sozinho, não pode encontrar sentido apenas em sua pró-pria existência no
mundo... Expor a mim mesmo à vulnerabilidade do rosto
O rosto é o que não se pode matar ou, pelo menos, aquilo cujo sentido con-siste em
dizer: “tu não matarás”. O homicídio, é verdade, é um fato banal: pode matar-se outrem;
a exigência ética não é uma necessidade ontológica...
Portanto, o rosto, estritamente falando, não fala, mas o que o rosto signi-"ca é, no
entanto, expresso pelo mandamento “não matarás”. O rosto exprime esse
mandamento sem, precisamente, falá -lo. Poderia parecer que é possível utilizar o
mandamento bíblico a "m de entender algo do signi"cado do rosto, mas há alguma
coisa faltando aqui, uma vez que o “rosto” não fala no mesmo sentido que a boca fala;
o rosto não é nem reduzível à boca nem, de fato, a qualquer coisa que ela possa
balbuciar. Algo ou alguém diferente fala quando o rosto é comparado a certo tipo de
discurso; é um discurso que não vem de uma boca ou, se o faz, não tem uma origem
ou, signi"cado último, nela mes-ma. De fato, em um ensaio intitulado Peace and
Proximity , Levinas deixa claro que “o rosto não é exclusivamente um rosto humano”. $
A "m de explicar essa passagem, ele se remete ao texto Life and fate, de Vassili
Grossman, o qual ele descreve como:
Emmanuel Levinas e Richard Kerney, “Dialogue with Emmanuel Levinas”. Face to Face with Levinas,
Albany: SUNY Press, %&'(, p. )!-#. Levinas desenvolve esta concepção primeiro em Totality and In"nity:
An Essay on Exteriority, tradução para o inglês de Alphonso Lingis, Pittsburgh: Duquesne University
Press, %&(&, p. %'*-)+!. Seleciono citações de seus trabalhos mais recentes por acreditar que eles dão
uma formulação mais madura e incisiva do rosto.
É Emmanuel Levinas. Ethics and In"nity. Tradução para o inglês de Richard A. Cohen, Pittsburgh:
Duquesne University Press, %&'$, p. '*. Citada no texto como El. [Nota do tradutor: Para a versão em
português deste excerto foi utilizado o trecho correspondente que está em “Ética e In"nito”. Biblioteca de
Filoso"a Contemporânea. Lisboa: Edições *+, p. *&]
13 Emmanuel Levinas. “Peace and Proximity”. Basic Philosophical Writings. Editado por Adriaan T. Peperzak, Simon
Aqui o termo “rosto” opera como uma catacrese: “rosto” descreve as costas humanas, o
movimento do pescoço, a tensão das omoplatas. E dessas partes do corpo diz-se – por sua
vez – que choram, que soluçam, que berram, como se fossem um rosto ou, então, um rosto
com boca, garganta ou, de fato, apenas uma boca e garganta do qual vocalizações
emergem e que não tomam estado de pa-lavras. O rosto deve ser encontrado nas costas e
no pescoço, mas ele não é exata-mente um rosto. Os sons que dele emergem são
agonizantes, sôfregos. Assim, já podemos perceber que o “rosto” parece consistir em uma
série de deslocamentos de tal maneira que o rosto é representado como as costas que, por
sua vez, é re-presentada como uma cena de vocalização agonizante. E ainda que haja
muitos nomes em uma série aqui, eles terminam em uma $gura que não pode ser no-
meada, uma ênfase que não é, estritamente falando, linguística. Portanto, o rosto, o nome
que se dá ao rosto, as palavras por meio das quais nós entendemos seu signi$cado – “não
matarás” – não conseguem exatamente expressar o signi$ca-do do rosto uma vez que – no
$nal da $la – parece ser precisamente a vocalização sem palavras do sofrimento que
marca os limites da tradução linguística aqui. O rosto – se vamos colocar em palavras seu
signi$cado – será aquele para o qual pa-lavras não podem realmente apreendê-lo. O rosto
parece ser uma forma de som, o som da linguagem evacuando seu sentido, o substrato
sonoro da vocalização que precede e limita a entrega de qualquer signi$cado semântico.
mesmo tempo, mais e menos que uma sentença. Responder ao rosto, entender seu
signi!cado quer dizer acordar para aquilo que é precário em outra vida ou, antes, àquilo que
é precário à vida em si mesma. Isso não pode ser um despertar, para usar essa palavra,
para minha própria vida e, dessa maneira, extrapolar para o entendimento da vida precária
de outra pessoa. Precisa ser um entendimento da condição de precariedade do Outro. É
isto que faz com que a noção de rosto pertença à esfera da ética. Levinas escreve: “o rosto
do outro em sua precariedade e condição de indefeso é, para mim, ao mesmo tempo, a
tentação de matar e um chamado à paz, o ‘não matarás’” ("#$). Esta última observação
sugere algo que realmente nos desarma em vários sentidos. Por que exatamente a
condição de precariedade do Outro produziria em mim o desejo de matar? Ou então, por
que produziria a tentação de matar ao mesmo tempo em que carrega em si um cha-mado à
paz? Há algo em minha apreensão da precariedade do Outro que me faz querer matá-lo? É
o simples estado de vulnerabilidade do Outro que se torna em mim um desejo assassino?
Se o Outro, ou o rosto do outro – que, a!nal de contas, carrega o signi!cado de sua
precariedade – ao mesmo tempo me tenta a assassi-nar e me proíbe de agir nesse sentido,
então o rosto opera e produz uma luta em mim e estabelece essa luta no coração da ética.
Parecia ser a voz de Deus que é re-presentada pela voz humana, uma vez que é Deus
quem diz, por meio de Moisés:
“Não matarás”. O rosto que ao mesmo tempo faz de mim um assassino e me proíbe
assassinar é aquele que fala por meio de uma voz que não é sua, que fala por meio de
uma voz que não é a de nenhum humano.# Portanto, o rosto pronuncia várias elocuções ao
mesmo tempo: ele enuncia uma agonia, uma insegurança, ao mes-mo tempo em que
indica uma proibição divina do homicídio.$
2 O pano de fundo teológico disto pode ser encontrado no livro do Êxodo. Deus deixa claro para Moisés que ninguém pode
ver a face de Deus, ou seja, que a face divina não é para ser vista e não está disponível para representação: “Você não
poderá ver a minha face, porque ninguém poderá ver-me e continuar vivo” (%%:&', para a tradução ao português foi
utilizada a versão NVI); posteriormente, Deus deixa claro que as costas poderão e irão substituir o rosto: “Então tirarei a
minha mão e você verá as minhas costas; mas a minha face ninguém poderá ver” (%%:&%). Mais tarde, quando Moisés
está carregando a palavra de Deus na forma dos mandamentos, está escrito “Quando Arão e todos os israelitas viram
Moisés com o rosto resplandecente, tiveram medo de aproximar-se dele” (%(:%'). Mas o rosto de Moisés carregando a
palavra divina também não é para ser representado. Quando Moisés retorna ao seu lugar humano, ele pode mostrar seu
rosto: “Quando acabou de falar com eles, cobriu o rosto com um véu. Mas toda vez que entrava para estar na presença do
Senhor e falar com ele, tirava o véu até sair. Sempre que saía e contava aos israelitas tudo o que lhe havia sido ordenado,
eles viam que o seu rosto resplandecia. Então, de novo Moisés cobria o rosto com o véu até entrar de novo para falar com
o Senhor”. Agradeço Barbara Johnson
/ Levinas escreve: “Mas aquele rosto olhando em direção a mim, em sua expressão – em sua mortalidade
– convoca-me, demanda-me, ordena-me: como se a morte invisível enfrentada pelo rosto do outro... fosse um ‘problema
meu’. Como se, desconhecido pelo outro que já, na nudez de seu rosto, ele afeta, ele ‘me
156
20 Vida precária
Um pouco antes, em Peace and proximity, Levinas re!ete sobre a vocação da Europa e
se questiona se o “não matarás” não é precisamente o que deveria apreender do próprio
sentido da cultura europeia. Não "ca muito claro onde exatamente sua Europa começa e
termina, se ela tem fronteiras geográ"cas ou se
4 produzida toda vez que esse mandamento é pronunciado ou comunicado. Essa já é uma
Europa curiosa cujo signi"cado é conjecturado no sentido de consistir nas palavras do Deus
hebreu, cujo status civilizacional, tomado dessa maneira, depende da transmissão de
interditos bíblicos. É uma Europa, portanto, na qual o hebraísmo tomou o lugar do
helenismo e o Islã permanece sem voz. Talvez o que Levinas esteja nos dizendo é que a
única Europa que deva ser chamada de Europa seja aquela que eleva o Velho Testamento
acima da lei civil e secular. De qualquer maneira, ele parece estar retornando ao primado
da interdição na construção do próprio signi"cado de civilização. E muito embora possamos
ser tentados a entender isso como um eurocentrismo nefasto, também é importante
perceber que não há uma Europa reconhecível que possa ser apreendida dessa visão. Na
verdade, não é a existência da interdição do assassinato que faz da Eu-ropa Europa, mas a
ansiedade e o desejo que a interdição produz. À medida que continua a explicar como o
mandamento opera, ele se refere ao Gênesis, capítulo
#$, no qual Jacó "ca sabendo sobre a chegada iminente de seu irmão e rival Esaú. Levinas
escreve: “Jacó "ca inquieto com a notícia de que seu irmão Esaú – amigo ou inimigo – está
vindo encontrá-lo à frente de quatrocentos homens. O verso oito nos conta que ‘Jacó
estava perturbado em seu espírito e com muito medo’”. Nesse momento, Levinas se volta
ao comentador Rashid para captar a diferença entre medo e ansiedade e conclui que
“[Jacó] temia por sua própria morte, mas estava ansioso por saber que talvez tivesse que
matar” (%&').
Obviamente, ainda permanece obscuro por que Levinas assumiria que uma das
primeiras respostas à precariedade do Outro é o desejo de matar. Por que a tensão das
omoplatas, o pescoço esticado, a vocalização agonizada, que comuni-cam o sofrimento do
outro, poderiam gerar em alguém um desejo por violência? Deve ser porque aquele Esaú,
juntamente com seus quatrocentos homens, ame-aça me matar – ou, pelo menos, aparenta
que irá me matar – e, nessa relação com o outro ameaçador ou, de fato, com aquele rosto
que representa a ameaça,
reportasse’ antes mesmo de confrontar-se comigo, antes de se tornar a morte que me encara, a mim mesmo, face
a face. A morte do outro homem coloca -me sob pressão, chama-me à responsabilidade, como se eu, pela minha
possível indiferença, tornasse-me cúmplice daquela morte, invisível ao outro que
5 exposto a ela; como se mesmo antes de ser condenado, tivesse que responder pela morte do
outro, e não deixa-lo só em sua solidão mórbida”. Levinas em Emmanuel, Alterity and
transcendence. New York: Columbia University Press, %(((, p. $'-).
157
1 Judith Butler 21
Embora Levinas aconselhe que a autopreservação não seja razão boa o su-!ciente
para matar, ele também presume que o desejo de matar é primário em todo ser
humano. Se o primeiro impulso em relação à vulnerabilidade do outro
i) o desejo de matar, a injunção ética que dele decorre é precisamente militar contra esse
primeiro impulso. Em termos psicanalíticos, isso implicaria em fa-zer convergir o desejo de
matar em direção a um desejo interno de matar a própria agressividade e o senso de
colocar-se a si mesmo como prioridade. O re-sultado disso seria provavelmente neurótico,
mas pode ser que a psicanálise en-contre um limite nesse ponto. Para Levinas, é o ético
mesmo que salva alguém do circuito da má consciência, a lógica pela qual a proibição
contra agredir se
158
22 Vida precária
torna o conduto interno para a agressão dela mesma. A agressão, assim, se volta contra
ela mesma na forma de crueldade do superego. Se o ético nos move além da má
consciência é porque esta é, a!nal, apenas uma versão negativa do nar-cisismo e, assim,
ainda uma forma de narcisismo. A face do Outro vem a mim de fora e interrompe aquele
circuito narcisista. A face do Outro me chama para fora do narcisismo em direção a algo
!nalmente mais importante.
Levinas escreve:
O Outro é o único ser que eu posso desejar matar. Eu posso desejar. E, no en-
tanto, esse poder é exatamente o contrário do poder. O triunfo desse poder é
sua derrota enquanto poder. No exato momento em que meu poder de ma-tar
se realiza, o outro escapou de mim... Eu não olhei em seu rosto, eu não
encontrei seu rosto. A tentação da negação total... esta é a presença do rosto.
Estar em relação face a face com o outro é ser incapaz de matar. Também é a
situação do discurso. (")
Esta última a!rmação não está aqui de graça. Levinas explica em uma en-trevista
que “rosto e discurso estão amarrados. Ele fala e é nisso que se torna possível e que
começa todo discurso” (#$). Uma vez que o que o rosto diz é
“não matarás”, poderia parecer que é por meio desse mandamento primário que a fala
passa a existir, de tal maneira que a fala inicia sua existência enquanto pano de
fundo para esse possível homicídio. De maneira mais geral, o discurso nos faz uma
reivindicação ética precisamente porque, antes da fala, algo nos é dito. De forma
simples, e talvez não exatamente como Levinas pretendia, somos primeiro dirigidos,
reportados por um Outro, antes mesmo que assumamos a linguagem para nós.
Assim, portanto, podemos concluir que é somente na condição de sermos remetidos
a um discurso que podemos, então, fazer uso da linguagem. É nesse sentido que o
Outro é a condição do discurso. Se o Outro for anulado, também o será a linguagem,
uma vez que esta não pode sobreviver fora da condição do discurso.
No entanto, lembremo-nos que Levinas também nos disse que o rosto – que é o
rosto do Outro e, portanto, a demanda ética feita pelo Outro – é aquela vocalização da
agonia que ainda não é exatamente linguagem, ou não mais linguagem, por meio da
qual somos despertados para a precariedade da vida do Outro e que também levanta,
ao mesmo tempo, a tentação de cometer ho-micídio e a sua interdição. Por que seria,
então, que a inabilidade em matar seja a situação do discurso? Seria em razão de que
a tensão entre o medo pela própria vida e ansiedade pela possibilidade de se tornar
homicida constitui a
159
1 Judith Butler 23
Mas a razão para levar Levinas em consideração no contexto de hoje é, pelo menos,
dupla. Primeiro, ele nos fornece uma maneira de pensar a respeito da relação entre
representação e humanização, uma relação que não é assim tão direta quanto poderíamos
gostar de pensar. Se o pensamento crítico tem algo a dizer sobre ou para a presente
situação, pode muito bem sê -lo no domínio
160
24 Vida precária
Quando consideramos as formas comuns de que nos valemos para pensar so-bre
humanização e desumanização, deparamo-nos com a suposição de que aqueles que ganham
representação, especialmente autorepresentação, detêm melhor chan-ce de serem
humanizados. Já aqueles que não têm oportunidade de representar a si mesmos correm grande
risco de ser tratados como menos que humanos, de serem vistos como menos humanos ou, de
fato, nem serem mesmo vistos. Temos um pa-radoxo diante de nós, pois Levinas deixou claro
que o rosto não é exclusivamente um rosto humano e, mesmo assim, é uma condição para a
humanização." Por ou-tro lado, há o uso do rosto, no interior da mídia, no sentido de efetivar a
desumani-zação. Poderia parecer que a personi!cação nem sempre humaniza. Para Levinas, ela
pode muito bem evacuar o rosto que não humaniza; e eu espero mostrar que a personi!cação às
vezes opera sua própria desumanização. Como podemos chegar a saber a diferença entre o
rosto inumano, porém humanizador, para Levinas, e a desumanização que também pode ocorrer
por meio do rosto?
Talvez tenhamos que pensar sobre as diferentes maneiras em que a violência pode
acontecer: uma é precisamente por meio da produção do rosto, o rosto de Osama bin
Laden, o rosto de Yasser Arafat, o rosto de Saddam Hussein. O que foi feito com esses
rostos pela mídia? Eles estão enquadrados, certamente, mas também estão jogando com
esta moldura e atuando para ela. O resultado disso
6 Levinas faz distinção algumas vezes entre o “semblante” entendido como o rosto dentro de uma experi-ência
perceptiva, e o “rosto” cujas coordenadas são entendidas como a transcender o campo perceptivo. Ele também
fala de vez em quando sobre representações “plásticas” do rosto que obliteram o rosto. Para o rosto operar
enquanto rosto, ele deve vocalizar ou ser entendido como resultado de uma voz.
161
1 Judith Butler 25
afegãs que tiraram, ou deixaram cair, suas burcas. Em uma semana do inverno passado,
visitei um teórico político que orgulhosamente exibia os rostos dessas meninas em sua
geladeira, exatamente ao lado de alguns cupons de supermerca-do, como se ali
estivessem como um sinal do sucesso da democracia. Alguns dias depois, participei de
uma conferência na qual escutei uma fala sobre os impor-tantes signi!cados culturais da
burca, a forma como exprime pertencimento a uma comunidade e religião, uma família,
uma história de relações de parentesco, um exercício de modéstia e orgulho, uma proteção
contra a vergonha e também como opera como um véu atrás do qual, e por meio do qual, a
agência feminina pode funcionar e, efetivamente, funciona. " O medo do palestrante era de
que a destruição da burca – como se ela fosse um símbolo de repressão, atraso ou mesmo
de resistência à própria modernidade cultural – resultaria numa per-da signi!cativa da
cultura islâmica e uma extensão dos pressupostos culturais dos Estados Unidos no tocante
a como sexualidade e agência devem ser organi-zadas e representadas. De acordo com as
fotos triunfalistas que dominaram as primeiras páginas do New York Times, essas jovens
mulheres estampavam suas faces “nuas” como um ato de liberação, um ato de
agradecimento ao exército dos Estados Unidos e como uma expressão de prazer que há
muito pouco se tornara euforicamente permitida. O leitor norte-americano estava pronto
para ver o ros-to e foi para a câmera e por ela que o rosto foi, !nalmente, exposto,
tornando-se assim, no instante de um segundo, um símbolo do sucesso em se empreender
a exportação do progresso cultural americano. Isso nos !cou claro naquele ins-tante e nós
estávamos, por assim dizer, com a posse do rosto. Nossas câmeras não apenas o
capturaram, mas nós mesmos !zemos com que o rosto capturasse nosso triunfo e que ele
agisse como a rationale a favor de nossa violência, nossa incursão na soberania alheia, da
morte de civis. Onde está a perda nesse rosto? E onde está o sofrimento causado pela
guerra? De fato, o rosto capturado pela câmera parecia ocultar ou deslocar o rosto no
sentido levinasiano, uma vez que nós não vimos ou escutamos, por meio daquele rosto,
nenhuma vocalização de lamento ou agonia, nem mesmo algum ruído da precariedade da
vida.
JJ. Lila Abu-Lughod, Do Muslim Women Really Need Saving? Anthropological re#ections on
cultural rela-tivism and others, American Anthropologist ($%&: '), p. ()'-"%.
162
26 Vida precária
7 o rosto humano em sua deformidade, em seu extremo, não aquele com o qual somos
convidados a nos identi!car. De fato, é a não identi!cação que é inci-tada por meio da
absorção hiperbólica do mal no próprio rosto, nos olhos. E se nós iremos nos entender
enquanto interpelados de alguma maneira por e nessas imagens, é precisamente como o
observador não representado, aquele que olha de fora, aquele que não é capturado por
imagem alguma, mas cujo papel é capturar e subjugar, se não eviscerar, as imagens à
mão. Similarmente, embora possamos querer celebrar os rostos recém -descobertos das
jovens mu-lheres afegãs como uma celebração do humano, temos que perguntar para qual
função narrativa essas imagens são mobilizadas, se a incursão no Afeganistão foi
realmente feita em defesa do feminismo, e em que forma de feminismo ela, mais tarde, se
fantasiou. Ainda mais importante, parece que devemos perguntar quais cenas de dor e
lamento essas imagens cobrem e desfazem. De fato, todas essas imagens parecem
suspender a precariedade da vida; elas ou representam o triunfo americano ou promovem
um incitamento ao triunfo militar america-no no futuro. Elas são os despojos de guerra ou
são os alvos da guerra. E, nesse sentido, podemos dizer que o rosto é, em cada ocasião,
des!gurado e isto é uma das consequências !losó!cas e representacionais da própria
guerra.
7 um que confunde os sentidos e produz uma comparação claramente imprópria: isso não
pode estar certo, uma vez que o rosto não é um som. E, mesmo assim, o rosto pode !gurar
como som justamente por não ser o som. Nesse sentido, a !gu-ra delineia a
incomensurabilidade do rosto com qualquer que seja aquilo que ele
163
1 Judith Butler 27
Para Levinas, portanto, o humano não é representado pelo rosto. Pelo con-
trário, o humano é indiretamente a!rmado exatamente nessa disjunção que tor-na
a representação impossível, e essa disjunção é exprimida na representação
impossível. Para a representação exprimir o humano, portanto, ela deve não
apenas falhar, mas deve mostrar sua falha. Há algo de irrepresentável que nós,
não obstante, perseguimos representar e esse paradoxo deve ser absorvido nas
representações que realizamos.
Nesse sentido, o humano não é identi!cado com aquilo que é representado, mas –
da mesma forma – não o é com o irrepresentável. O humano é, ao con-trário, aquilo
que limita o sucesso de qualquer prática representacional. O rosto não é “apagado”
nessa falha de representação, mas é constituído exatamente nessa possibilidade.
Algo no geral diferente acontece, entretanto, quando o ros-to opera a serviço de uma
personi!cação que alega conseguir capturar o ser humano em questão. Para Levinas,
o humano não pode ser capturado por meio da representação e pode -se perceber
que alguma perda do humano acontece quando ele é capturado pela imagem. "#
Obviamente, uma elaboração mais profunda deste tópico teria que analisar as
várias maneiras pelas quais a representação funciona em relação à huma-nização e à
desumanização. Às vezes há imagens triunfalistas que nos dão a ideia do humano
com que devemos nos identi!car, como por exemplo o herói
"# Para uma discussão mais extensa da relação entre imagens de mídia e sofrimento humano, ver o provo-cativo
livro de Susan Sontag Regarding, the pain of others, New York: Farrar-Straus e Giroux, $##$.
164
28 Vida precária
patriótico que expande as fronteiras de nosso ego euforicamente até que se en-contre com
aquela da própria nação. Nenhuma compreensão da relação entre imagem e humanização
pode ocorrer sem uma consideração das condições e signi!cados dos processos de
identi!cação e desidenti!cação. É válido notar, entretanto, que a identi!cação sempre se
baseia na diferença que busca superar, e seu propósito é alcançado apenas por meio da
reintrodução da diferença que ela alega ter feito desaparecer. Aquele com quem me
identi!co não sou eu e esse
“não sendo eu” é a condição da identi!cação. Caso contrário, como Jacqueline Rose
nos lembra, a identi!cação rui, se perde na identidade, o que prenuncia a morte da
própria identidade."" Essa diferença interna à identi!cação é crucial e, em certo sentido,
ela nos mostra que a desidenti!cação é parte da prática comum da própria
identi!cação. A imagem triunfalista pode comunicar uma impossível superação dessa
diferença, uma forma de identi!cação que acredita ser obrigada a superar a diferença
que é a condição de sua própria possibilidade. A imagem crítica, se podemos falar
desse modo, trabalha essa diferença da mes-ma forma que a imagem levinasiana o
faz; deve não apenas falhar em capturar seu referente, mas mostrar essa falha.
A exigência por uma imagem mais verdadeira, por mais imagens, por ima-gens
que comuniquem todo o terror e realidade do sofrimento tem seu lugar e importância.
O apagamento daquele sofrimento por meio da proibição de imagens e
representações geralmente circunscreve a esfera da aparência, da-quilo que podemos
ver e daquilo que podemos saber. No entanto, seria um erro pensar que apenas
precisamos encontrar as imagens certas e verdadeiras e que, dessa maneira, certa
realidade será exprimida. A realidade não é exprimida por aquilo que está
representado no interior da imagem, mas sim por meio do desa-!o à representação
que a realidade entrega."#
O processo de esvaziamento do humano feito pela mídia por meio da ima-gem deve ser
entendido, no entanto, nos termos do problema mais amplo de que esquemas normativos
de inteligibilidade estabelecem aquilo que será e não será humano, o que será uma vida
habitável, o que será uma morte passível de ser lamentada. Esses esquemas normativos
operam não apenas produzindo ideais do humano que fazem diferença entre aqueles que
são mais e os que são menos humanos. Às vezes eles produzem imagens do menos que
humano, à guisa do humano, a !m de mostrar como o menos humano se disfarça e ameaça
8 Para uma discussão de “fracasso” como base para uma concepção psicanalítica da psique, ver
Jacqueline Rose, Sexuality in the Field of Vision. London: Verso, "$%&, p. $"-'.
"# Levinas escreve: “alguém pode dizer que o rosto não é ‘visto’. Ele é o que não se pode tornar um conteúdo, o qual
o pensamento poderia reconhecer; ele é incontível, ele conduz para além” (El, p. %&-().
165
1 Judith Butler 29
enganar aqueles de nós que poderiam pensar que conseguem reconhecer outro humano
ali, naquele rosto. Mas muitas vezes esses esquemas normativos fun-cionam precisamente
sem fornecer nenhuma imagem, nenhum nome, nenhu-ma narrativa, de forma que ali
nunca houve morte tampouco houve vida. Estas são duas formas distintas de poder
normativo: um opera produzindo uma iden-ti!cação simbólica do rosto com o inumano, por
meio da forclusão de nossa apreensão do humano na cena. A outra funciona por meio de
um apagamento radical, como se nunca tivesse existido um humano, nunca houvesse
existido uma vida ali, e, portanto, nunca tivesse acontecido nenhum homicídio. No pri-meiro
caso, algo que já emergiu no domínio da aparência precisa ser disputado como
reconhecidamente humano. No segundo, o domínio público da aparência
9 ele mesmo constituído com base na exclusão daquela imagem. A tarefa às mãos é
estabelecer modos públicos de ver e ouvir que possam responder ao clamor do
humano no interior da esfera da aparência, uma esfera na qual os rastros do clamor
se tornaram hiperbolicamente in"ados ou totalmente oblite-rados a !m de racionalizar
um nacionalismo glutão, onde ambas as alternativas se revelam a mesma. Podemos
considerar isso uma das implicações !losó!cas e representacionais da guerra, pois a
política – e o poder – funcionam em parte por meio da regulação daquilo que pode
aparecer, daquilo que pode ser ouvido.
perfeitamente na moldura daquilo que pode ser dito, daquilo que pode ser mos-trado?
Não é este o ponto onde podemos ler, se ainda podemos ler, a forma como a
melancolia se torna inscrita como o limite do que pode ser pensado? O desfazer da
percepção da perda – a insensibilidade humana à dor e ao sofrimen-to – torna-se o
mecanismo por meio do qual a desumanização se consuma. Este desfazer da
percepção não se consuma nem dentro, nem fora da imagem, mas através da própria
moldura que contém a imagem.
“bombas explodindo no ar” sobre as ruas e casas de Bagdá (as quais, não surpre-
endentemente, são ocluídas da visão). Obviamente, foi a espetacular destruição do
World Trade Center que primeiro legitimou o efeito “shock and awe”, e os Es-tados
Unidos recentemente exibiram para o mundo inteiro ver que eles podem e serão
igualmente destrutivos. A mídia se vê extasiada com a sublimidade da destruição e
vozes de dissenso e oposição devem achar uma forma de intervir nessa máquina de
sonho de dessensibilizar na qual a destruição massiva de ca-sas e vidas, fontes de
água, eletricidade e calor são produzidas como um sinal desvairado de um poder
americano ressuscitado.
ser lamentados. O ultraje causado por suas mortes justi!ca o esforço de guerra,
Referências bibliográ!cas
e Kerney, Richard. “Dialogue with Emmanuel Levinas”. Face to Face with Levi-
nas. Albany, SUNY Press, !"#$.
SONTAG, Susan. Regarding the pain of others. New York, Farrar-Straus e Giroux, %&&%.
Isabel Dias
189
171
190
172
1
Com a noção de "itinerários de exclusão" , Claude Dubar demonstra como é pos
sível reconstituir o processo de conjunto designado sob o termo de exclusão social. Através
da reconstituição destes "itinerários" consegue-se acompanhar a trajectória daqueles que
passaram, por exemplo, por processos de expulsão do emprego e de dissolução das rela
ções sócio-familiares. O acompanhamento destes "itinerários" (através de estudos longi
tudinais, em que a metodologia do inquérito por questionário é fundamental) permite a
reconstrução dos percursos típicos de exclusão social, bem como a identificação das popu
lações mais afectadas por aqueles "itinerários". Desta forma, a exclusão não é mais uma
fatalidade irreversível (o que tornaria o próprio termo inadequado e mesmo perigoso),
mas constitui uma série de encaminhamentos biográficos ligados a mecanismos estrutu
rais. Claude Dubar, "Socialisation et processus" in L 'Exclusion - L 'État des Savoirs, Serge
Paugam (dir.), Paris, La Découverte, pp. 111-119.
2
Os doentes infectados pelo vírus da SIDA correm sérios riscos de exclusão social.
Para o efeito, contribuem duas grandes características associadas a esta infecção: por um
lado, existe a representação colectiva de que se trata de uma epidemia e, por esta razão,
as pessoas infectadas são alvo de processos de rejeição e de discriminação, porque são
percebidas como um perigo para os outros; por outro lado, trata-se de uma patologia que,
apesar de se ter evoluído no seu conhecimento e tratamento, o prognóstico permanece
fatal para aqueles que contraem o vírus. O estigma da "morte" (lenta ou breve) pode des-
plotar reacções de fuga, rejeição e acelerar processos de marginalização social graves.
Embora a SIDA se encontre em contextos sociais dotados de elevados recursos econó
micos e culturais, a pobreza é considerada como um factor social de risco, na medida em
que o acesso à informação e aos cuidados básicos de saúde estão ligados a contextos de
vida deficitários. Neste caso, a infecção destas populações pelo vírus da SIDA vem ace
lerar os processos de vulnerabilização e de desafíliação social. Para um maior desenvol
vimento, ver Irene Théry e Sophie Tasserit, "Sida et exclusion" in L 'Exclusion — L 'État
des Savoirs, Serge Paugam (dir.), Paris, La Découverte, pp. 363-373.
191
173
a sua integração social seja muito precária. Definir um limiar a partir do qual as
necessidades básicas de um indivíduo ou família estão ameaçadas torna- se
difícil, até porque os seus critérios de definição variam de acordo com
condições históricas e culturais próprias de cada sociedade. Por esta razão, é
comum na literatura sociológica sobre o tema recorrer-se à distinção entre os
conceitos de pobreza absoluta e pobreza relativa. O primeiro diz respeito à falta
de rendimentos para assegurar as necessidades de subsistência, ou seja, à
incapacidade dos indivíduos e as famílias assegurarem as suas neces- sidades
básicas (Costa e Silva, 1985; Fernandes, 1991; Paugam, 1991; Capucha,
1998), tentando-se, por esta via, definir cientificamente uma linha de pobreza. O
segundo, refere-se aos padrões de vida, hábitos e actividades específicas de uma
sociedade e dos quais um conjunto de indivíduos/famí- lias se encontram
privados. Neste contexto, a ideia dominante é a da exclu- são dos níveis de vida
socialmente definidos e reconhecidos como normais (Fernandes, 1991; Strobel,
1996; Capucha, 1998).
Aos dois conceitos acima referidos importa acrescentar a noção de
pobreza subjectiva a qual traduz a avaliação que cada um faz do grau de
(in)satisfação das suas necessidades (Costa, 1984). Assenta, pois, na percep- ção
pessoal, familiar ou de grupo face às situações concretas de existência (Baptista
e Outros 1995). Todas estas noções não se excluem mutuamente, pelo
contrário, podem coexistir num mesmo indivíduo e família.
192
174
193
175
4.1. Ambos constituem fenómenos sociais cujas causas podem, ainda que
não exclusivamente, ser procuradas nos princípios de funcionamento das
sociedades modernas (por exemplo, a urbanização acelerada e desordenada
geradora de segregações sociais, espaciais e raciais; a uniformização e ina
daptação do sistema escolar; a desigualdade de rendimentos e de acesso aos
bens, aos serviços, aos equipamentos colectivos e à instrução; o desenrai-
zamento provocado pela mobilidade profissional e a maior distância entre as
gerações; o crescimento do desemprego e das taxas de criminalidade; a
inadequação dos serviços de apoio e protecção social; a existência de eco
nomias informais, etc).
194
176
A exclusão de certas categorias sociais da esfera produtiva e das prá- ticas de sociabilidade
social e familiar, priva-as do exercício pleno da cida- dania. Isto é paradoxal nas nossas
sociedades. No que concerne aos idosos, tanto a Europa como a América do Norte
conseguiram uma vitória notável sobre o prolongamento das suas vidas o qual se deve,
também, à melhoria dos sistemas de reforma e dos serviços de apoio médico-social. Ao mesmo
tempo, esta categoria social tem sido alvo de processos de desvalorização e exclusão social
crescentes. Estes países não preservaram um papel activo e útil para os seus idosos passando
esta fase da vida a ser encarada como um custo colectivo sem nenhuma contrapartida. A
velhice passou a representar um período da vida em que se "sobrecarrega" alguém ou alguma
instituição e se possui um estatuto social à margem da sociedade (Guillemard, 1996:194).
Paralelamente, a reforma implica uma quebra dos rendimentos, que se repercute numa maior
dificuldade de acesso aos bens e serviços. A instabilidade dos sistemas de segurança social,
associada à crise do Estado- Providência veio reforçar a dependência, desta população, face aos
serviços sociais e agravar os processos de desafíliação vividos pelos idosos. Ser idoso, nas nossas
sociedades, constitui, assim, um "risco social" de exclusão, quer do sistema produtivo quer,
ainda, das redes de sociabilidades.
Também os assalariados "velhos", ou seja, aqueles que ainda são novos para a reforma, mas
já são "velhos" para o trabalho, correm sérios riscos de exclusão. Estes assalariados são, com
frequência, expulsos do mercado de emprego e devido às dificuldades de adaptação às novas
tecnologias e com- petências, estão bem representados entre os desempregados de longa dura-
ção. O desemprego de longa duração é, igualmente, denominado por "desem- prego de exclusão"
(Dubar, 1996:112), uma vez que, aqui, a exclusão está directamente relacionada com as normas
sociais de empregabilidade. A par- ticipação de trabalhadores com mais de 55 anos no mercado
de emprego, tornou-se minoritária na maior parte dos países europeus (Guillemard, 1996:194).
195
177
no sistema de ensino. As baixas expectativas face ao futuro dos jovens que se encontram,
ainda, nas fileiras do sistema de ensino, mas também dos recém-licenciados e que não
encontram emprego 3, impede a formação de uma verdadeira identidade de estudante,
nos primeiros, e retarda a constru- ção de uma identidade profissional, no segundo caso
(Paugam, 1996:570; Esteves, 1996:47).
Estes exemplos ilustram, de algum modo, o carácter "paradoxal" dos processos de
exclusão social, que afectam estas categorias sociais, nas nos- sas sociedades.
No que concerne à família, esta tornou-se, nas sociedades contempo- râneas, o espaço, por
excelência, de expressão do individualismo e da pri- vatização. Mas a emergência de uma família
mais intimista e humanizada, nas sociedades modernas, não significa que a dimensão conflitual e
violenta tenha desaparecido, completamente (Dias, 1996). Aliás, é na família moderna e privatizada
que "uma parte considerável dos atentados aos direitos huma- nos" se concretizam (Fernandes,
1994:27), conduzindo alguns autores a con- siderar que o lar é "um dos lugares mais perigosos
das sociedades moder- nas" (Lourenço e Outros, 1997:15) . O paradoxo reside, então, numa
família moderna que pode ser um lugar de afectividade, de privacidade e de auten- ticidade, mas
também, um lugar de sujeição e de exercício da violência sobre os seus membros. Desta forma,
quando "os ritmos do amor e do ódio entram em consonância e perduram, a família pode iniciar o
caminho da sua desa- gregação" (Idem, 1994:14) e de exclusão dos padrões normais de compor-
tamento familiar.
4.3. Em ambos os fenómenos existe uma certa "opacidade" do objecto. Existem formas
de exclusão social e de violência doméstica que não se vêem, mas que se sentem, outras que
se vêem mas que ninguém fala e, por fim, formas de exclusão e de violência doméstica
completamente invisíveis, dado que nós nem sonhamos com a sua existência, nem
possuímos a fortiori nenhum vocábulo para as designar (Cf. Xiberras, 1996:20). No caso da
vio-
3
O desemprego de longa duração não tem poupado, em particular, o grupo dos mais jovens. Para estes, a
relação com o trabalho dá-se não só através dos empregos precários, que constituem uma condição prévia para o
recrutamento na medida em que acumulam, deste modo, experiência profissional, mas também através da sua manifesta-
ção negativa que é o desemprego. Aliás, a precariedade do emprego constitui, para os jovens, uma espécie de "prelúdio
do desemprego". Ver António Joaquim Esteves (1996), "Transição ao trabalho e posturas de investigação e intervenção
sociais" in Sociologia, n.° 6, Faculdade de Letras do Porto, p. 47.
196
178
lência doméstica, esta opacidade é ainda mais reforçada, devido ao carácter privado da família
moderna. A privacidade tornou-se, assim, o principal ali- ado da violência doméstica, uma vez que
contribui, grandemente, para a invi- sibilidade das suas múltiplas manifestações.
4.4. Por outro lado, não constituem fenómenos marginais que apenas afectam uma franja
dos sub-proletários ou das famílias com fracos recursos económicos e culturais. Tratam-se de
fenómenos transversais, no sentido em que podem ser extensivos a famílias de diferentes meios
e classes sociais.
A exclusão constitui um processo em curso que se propaga, tal como "um cancro"
(Paugam, 1996:10), por todos os meios sociais. Independen- temente da sua condição social,
económica ou mesmo religiosa, nenhuma família, hoje, pode ter a certeza de que estará imune
a este problema social. A falência do Estado-Providência (que em Portugal nunca se constituiu
real- mente) (Almeida e Outros, 1994:5) e dos mecanismos de protecção social, tendem a
reforçar este sentimento de insegurança face ao futuro. A "nova pobreza" constitui disto um
exemplo. Enquanto nas décadas passadas a preocupação incidia sobre os grupos marginais
considerados inadaptados ao progresso, os "novos pobres" constituem segmentos da população
adaptados à sociedade moderna mas que são vítimas da conjuntura económica e da crise de
emprego (Paugam, 1996:12). Tratam-se, aqui, de pessoas "que não possuem níveis suficientes
de posse, de capital material e de capital humano e, por isso, são objecto de exclusão social"
(Fernandes, 1991:39).
Hoje, os detentores de um emprego não se preocupam tanto com uma hipotética relação
de dominação do trabalho, mas com um conjunto de situ- ações incertas que se traduzem
numa angústia individual face ao risco de desemprego, numa fraca implicação na vida
colectiva da empresa, numa perda progressiva da sua identidade profissional e, sobretudo, na
possibili- dade de vir a engrossar as "fileiras" dos excluídos e marginalizados. E, aqui, a pobreza,
em particular daqueles que nunca a experimentaram," aparece como um símbolo de fracasso
ou de insucesso" (Idem, 1991:58).
A violência doméstica conhece uma certa transversal idade no seio das sociedades actuais.
Apesar de ser um fenómeno mais visível nas classes com fracos recursos económicos e culturais
ela existe, igualmente, nas classes médias e altas, apesar destas defenderem com mais afinco a
sua privacidade. Num estudo recente, sobre os Maus Tratos às Crianças em Portugal (Almeida e
Outros, 1997:87-88), as autoras observaram uma representação significativa de adultos
masculinos prepetores do mau trato com profissões
197
179
198
180
4.9. Finalmente, gostaria de salientar alguns factores gerais que podem estar,
simultaneamente, presentes em ambos os fenómenos, tornando os indi víduos e
famílias mais vulneráveis a situações de exclusão social e de vio lência
doméstica: condições de habitação deficitárias (insalubridade, super lotação,
alojamento inadequado); condições de saúde precárias (deficiente acesso aos
serviços de saúde, irregularidade de cuidados médicos e de estra tégias de
prevenção da doença, maior incidência da mortalidade infantil, menor
esperança de vida); baixos níveis de escolaridade (maior incidência de abandono
escolar, taxa de analfabetismo mais elevada, ocorrência de insu cesso escolar);
existência de desemprego e de precariedade face ao trabalho; baixos níveis de
rendimentos e de qualificação profissional; incidência da economia informal;
maior segregação espacial (zonas degradadas e periféri cas dos centros urbanos)
e consequente isolamento social; frequência de famílias de grande dimensão
com elevada natalidade e de famílias mono- parentais; incidência de
comportamentos aditivos (alcoolismo, toxicodepen- dência); membros da família
portadores de doença mental e de doenças cró-
199
181
A conjugação destes factores com outros de ordem psico-cultural tor- nam alguns
tipos de famílias mais susceptíveis a estes fenómenos, são elas: as famílias numerosas (com
um elevado número de crianças), as famílias monoparentais, as famílias com membros
demasiado jovens ou demasiado idosos. O estudo sobre Os maus Tratos às Crianças em
Portugal mostra- nos, precisamente, que estes têm uma grande incidência em meios
sociais desfavorecidos e que a família monoparental (materna e paterna), a alargada com
avós e a recomposta (materna e paterna) têm uma expressão significa- tiva em certos tipos
de mau trato. Por exemplo, na família monoparental era frequente o "abandono", na
família recomposta o "abuso emocional com agressão física", na alargada com avós a
"negligência" (Almeida e Outros, 1997:82).
200
182
relativo empobrecimento que implicam, mas também pelo isolamento e pela perda de
algumas sociabilidades e solidariedades privadas a que conduzem (Martin, 1996:172). Destas
situações de ruptura resultaram novas configu- rações familiares como, por exemplo, as
famílias monoparentais. Esta noção, ao ser introduzida, pelos sociólogos nos anos setenta veio
permitir, não só, a conceptualização e classificação dos "agregados familiares constituídos por
uma ou mais crianças menores e um dos seus pais biológicos" (Lobo, 1995:79), mas
também contribuiu para destigmatizar certas situações fami- liares (por exemplo, as mães
celibatárias, separadas e divorciadas), tornando, ao mesmo tempo, mais evidentes as
dificuldades económicas associadas ao facto de uma pessoa só assumir os seus filhos. Não é
de estranhar, por isso, que a estas configurações familiares se tenha atribuído a seguinte
equação: "monoparentalidade = pobreza" (Martin, 1996:175).
Nestas famílias, o trabalho representa um papel central para fazer face a um
empobrecimento tendencial e para evitar a dependência e o isolamento social. No caso das
famílias monoparentais maternas, o trabalho permite à mulher não só uma fonte de
rendimento que lhe proporciona a manutenção do lar e a subsistência dos filhos, mas
também o acesso a relações sociais diversas, nomeadamente no local de trabalho.
Paralelamente, a rede de paren- tesco pode desempenhar um papel importante de protecção,
de sociabilidade mas também de integração contribuindo, pontualmente, no plano financeiro,
nas tarefas quotidianas e no cuidado para com as crianças. Para muitas mulheres, a
ruptura conjugal inaugura uma longa fase de monoparentalidade, constituindo as relações
conjugais sem coabitação uma forma de romperem a solidão e o isolamento sexual.
A monoparentalidade, sobretudo a materna, pode, igualmente, consti- tuir um cenário
onde se desenvolvem processos de sujeição e de violência sobre os seus membros. Percebido
o isolamento social e a maior fragilidade e dependência destas famílias, pelos "companheiros
ocasionais" (alguns, com trajectórias de exclusão) destas mulheres, tanto elas como os seus
filhos se podem tornar vítimas de violência doméstica. O estudo sobre Os Maus Tratos às
Crianças em Portugal (Almeida e Outros, 1997:82 e 88) demonstrou exis- tir uma relação, por
um lado, entre os tipos de mau trato e a estrutura do grupo doméstico e, por outro lado,
entre aqueles e o tipo de relação de con- jugalidade no grupo doméstico. As famílias
monoparentais e as famílias recompostas surgem, entre outros tipos de família, como
configurações fami- liares em que se destacam certos tipos de mau trato (por exemplo, o
abuso emocional com agressão física, a agressão física e o abuso sexual). O tipo de mau
trato infligido sobre a criança também não era indiferente ao tipo de relação existente
entre os pais. Certos abusos (físicos, emocionais,
201
183
sexuais, etc.) eram praticados por casais que, ora viviam juntos, ora esta- vam em processo
de separação ou estavam, já, separados. O que significa que as situações de ruptura
conjugal podem representar um risco social de violência, para as crianças que fazem parte
destes contextos familiares.
202
184
Bibliografia
ALMEIDA, Ana Nunes de; ANDRÉ, Isabel Margarida; ALMEIDA, Helena Nunes de (1995),
ALMEIDA, Ana Nunes de; GUERREIRO, Maria das Dores; LOBO, Cristina; TORRES, Anal ia; WALL, Karin (1998), "Relações
Familiares: Mudança e Diversidade" in Portugal, que Modernidade?, José Manuel Leite Viegas, António Firmino da
Costa (orgs.), Lisboa, Celta Editora, pp.45-78. ALMEIDA, João Ferreira de (1990), Portugal -
---- (1993), "Integração social e exclusão social: algumas questões" in Análise Social,
ALMEIDA, João Ferreira de, e Outros (1994), Exclusão Social — Factores e Tipos de Pobreza em Portugal, Oeiras,
Celta Editora.
203
185
ANDREWS, Aliene Bowers (1994), "Developing community Systems for the primary pre- vention of family violence" in
Family & Community Health, n.° 4, vol. 16, Columbia, Aspen Publishers Inc. B APTISTA , Isabel; P ERISTA ,
Isabel; R EIS ,
Marginalidades" in
Portugal, que Modernidade?, José Manuel Leite Viegas, António Firmino da Costa (orgs.), Lisboa, Celta Editora,
pp.209-242. COIMBRA, Alexandra; FARIA, Ana;
n.° 2, Lisboa, Instituto Superior de Psicologia Aplicada. C OSTA , Alfredo Bruto da (1984), "O conceito de Pobreza"
in Estudos de Economia,
n.°3, vol. IV, Abril/Junho, pp. 275-295. C OSTA , Alfredo Bruto da; S ILVA , Manuela (1985): A Pobreza em Portugal
Lisboa,
Colecção Caritas, n.° 6. DIAS, Isabel (1996), "Algumas considerações teórico- metododológicas sobre o fenómeno
da violência na família", Comunicação apresentada ao III Congresso Português de Sociologia, Lisboa (em publicação).
DUBAR, Claude (1996), "Socialisation et processus" in L' Exclusion - L 'État des Savoirs,
Serge Paugam (dir.). Paris, La Découveite, pp. 111-119. E STEVES, António Joaquim (1996), "Transição ao trabalho e
posturas de investigação e
---- (1994), 44 Os Direitos do Homem nas Sociedades Democráticas. A Violência na Família" in Sociologia, n.° 4,
Faculdade de Letras do Porto, pp. 7-47.
G ALLAND , Olivier (1996), "Les jeunes et Pexclusion" in L' Exclusion — L'État des Savoirs, Serge Paugam (dir.), Paris,
La Découverte, pp. 183-192. GELLES,
Richard J. (1987), The Violent Home, Newbury Park, Sage. GUILLEMARD, Anne-Marie (1996), iCVieillissement et exclusion" in
L' Exclusion — L 'État
des Savoirs, Serge Paugam (dir.). Paris, La Découverte, pp. 193-206.
KELLERHALS, Jean; TROUTOT, P. Yves; LAZEGA, Emmanuel (1989), Microssociologia da Família, Lisboa, Publicações Europa-
América. LOBO , Cristina (1995), "Do
---- (1996), "Padrastos no quotidiano" in Sociologia — Problemas e Práticas, n.° 19, Lisboa, CIES/ISCTE.
LOPEZ , Caballero Alfonso (1992), "La familia como sistema en conflito" in Revista de Fomento Social, n.° 47, Estúdios,
pp.83-97. LOURENÇO, Nelson; LISBOA, Manuel
Cadernos de Condição Feminina n.° 48, Lisboa, Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres.
204
186
LYNN, Laurence E. Jr. (1992), The Battered Woman and Shelters: The Social Construction ofwife
Abuse, Albany: State University of New York. M ARTIN , Claude (1996),
L'Etat des Savoirs, Serge Paugam (dir.), Paris. La Découverte, pp. 172-182.
n.° 4, Revista do Instituto Superior de Serviço Social de Coimbra, Dezembro, pp. 25-
39.
PAUGAM , Serge (1991), La Disqualification Sociale. Paris, PUF. PAUGAM, Serge (1996), '"La
Constitution d' un Paradigme" in L' Exclusion — L 'État des
Savoirs, Serge Paugam (dir.). Paris, La Découverte, pp. 7-19. PAUGAM, Serge (1996),
"Les sciences sociales face à Fexclusion" in L' Exclusion — L 'État
des Savoirs, Serge Paugam (dir.). Paris, La Découverte, pp. 565-577. SEBASTIÃO, João
(1996), "Crianças da ma, marginalidade e sobrevivência*' in Sociologia
in L' Exclusion — L 'État des Savoirs, Serge Paugam (dir.), Paris, La Découverte, pp. 23-
31. STROBEL, Pierre (1996), "De Ia pauvreté à Texclusionisociété salarial ou
de rhomme" in Revue Internationale des Sciences Sociales. n.° 148, L'Organisation des
Nations Unies pour FEducation, Ia Science et Ia Culture. THÉRY, Irene;
Savoirs, Serge Paugam (dir.). Paris, La Découverte, pp. 363-385. TORRES, Anália
Cardoso (1996), Divórcio em Portugal. Ditos e Interditos, Oeiras, Celta
Editora.
205
187
ANOTAÇÕES – CURSO 02
188
189
190
191
192
193
Racismo institucional e saúde da população negra
Correspondência
DOI 10.1590/S0104-129020162610 Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.535-549, 2016 535
195
Abstract Introdução
The health of black women is not an area of knowl- A revisão da literatura especializada publicada no
edge or a relevant field in Health Sciences. The Brasil expõe a baixa presença que a saúde da mulher
scientific knowledge production in this area is negra tem nos periódicos nacionais dedicados às Ci-ências
inexpressive and the theme is not part of the cur-riculum da Saúde. De fato, uma breve revisão entre os periódicos
of different undergraduate and graduation programs in disponíveis na biblioteca virtual SciELO permite
health, with very rare exceptions. It is a vague verificar essa escassez: a busca simples com
matter, which, in most cases, is ignored by most descritores “saúde mulher negra” oferece 24 artigos
researchers, students, and health profes-sionals in nacionais publicados a partir de 2008. Ao restringir a busca
Brazil. This study intends to present some para artigos da área de saúde pública, a dis-ponibilidade
information on formulation processes of this reduz-se a apenas seis textos completos publicados. Não é
conceptual field from the demands of organized possível auferir aqui, com exatidão, a extensão dessa
social movements and experts’ formulations. Such lacuna ou distinguir sua origem. Ou seja, não há como
saber as razões do baixo índice de publicações sobre
o tema: se por desinteresse, falta de estímulos ou
information will be presented with the aim of
existência de restrições explícitas nas instituições de
subsi-dizing research and contributing to the
pesquisa; se devido a barreiras interpostas pelos
formulation and management of public policies
conselhos editoriais dos diferentes periódicos; ou, ainda,
suitable to the needs expressed in the social and
se devido a combinações entre os variados
health indicators of Brazilian black women.
elementos. Tais ausências ou insuficiên-cias podem
indicar a não consolidação da saúde da população negra e
Keywords: Black Women’s Health; Racism; da saúde da mulher negra como campos temáticos e de
Institu-tional Racism; Public Policies. pesquisa, relacionada ao baixo grau de penetração nas
instituições de pesquisa dos debates sobre o racismo,
seus impactos na saúde e suas formas de enfrentamento.
196
dos processos que geraram a Reforma Sanitária e a
criação do Sistema Único de Saúde. No entanto, é
As reivindicações da população negra e de mo- possível verificar que essa presença, apesar de ter
vimentos sociais − especialmente o Movimento de contribuído para a concepção de um sistema
Mulheres Negras e do Movimento Negro − por universal de saúde com integralidade, equi-dade e
mais e melhor acesso ao sistema de saúde participaram participação social, não foi suficiente para inserir,
da esfera pública ao longo dos vários períodos da no novo Sistema, mecanismos explícitos de
história das mobilizações negras, principalmente superação das barreiras enfrentadas pela população
no período pós-abolição, e se intensificaram na negra no acesso à saúde, particularmente aquelas
segunda metade do século XX, com forte expressão nos interpostas pelo racismo.
movimentos populares de saúde, chegando a participar
A vinculação entre racismo e vulnerabilidades razões étnicas. O acesso a serviços de saúde é mais
em saúde chegou à agenda da gestão pública com difícil e o uso de meios diagnósticos e terapêuticos
mais força após a realização da Marcha Nacional
das áreas urbanas e utilizá-las como critério de Como resposta, as mobi-lizações inseriram seus
planejamento e definição de prioridades. objetivos no corpo da Lei nº 12.288/2010 (Brasil,
2010) aprovada pelo Congresso Nacional em 2011. A
partir de então, a atenção à saú-de da população negra em
VIII – definir e pactuar, junto às três seus diferentes aspectos passou a ser regulamentada via lei
esferas de go-verno, indicadores e federal, como estratégia de provocar respostas necessárias.
metas para a promoção da equidade No entanto, além do rechaço mais ou menos explícito
étnico-racial na saúde. por parte de muitos, verificou-se, também, uma pro-
funda ignorância acerca dos diferentes elementos
envolvidos nos processos de realização de ações e
IX – monitorar e avaliar os indicadores e as me-
tas pactuados para a promoção da saúde da
população negra visando reduzir as iniqui-
dades macrorregionais, regionais, estaduais
e municipais.
(Brasil, 2009).
estratégias necessárias, que explicam o porquê da cuidado, mas também por serem as mulheres negras a
PNSIPN não ter sido adequadamente parte expressiva de trabalhadoras de saúde das
implementada após esses anos. diferentes profissões. As instituições de pesquisa,
os órgãos de fomento e as instâncias de gestão do
Sistema Único de Saúde permaneceram ausentes na
A seguir, serão apresentadas algumas informa- maior parte desse processo e ainda necessitam de
ções sobre os diferentes elementos
atuação mais consistente e capaz de responder ade-
envolvidos na saúde da população negra e na
quadamente às demandas largamente expressas.
saúde da mulher negra como forma de subsidiar
novas formulações, pesquisas e ações, e,
principalmente, no desejo de contribuir para a Cabe reconhecer que, como campo de
efetiva implementação da PNSIPN no SUS. pesquisa, formulação e ação, a saúde da
população negra se justifica: pela participação
expressiva da população negra no conjunto
Racismo e saúde da da população brasileira; por sua presença
população negra majoritária entre usuários do Sistema Úni-co de
Saúde; por apresentarem os piores indicadores
sociais e de saúde, verificáveis a partir da
Como visto acima, grande parte das desagre-gação de dados segundo raça/cor; pela
formulações conceituais de diretrizes e estratégias e da necessidade de consolidação do compromisso do
atuação em saúde da população negra teve origem fora sistema com a universalidade, integralidade e
do sistema de saúde, a partir da atuação dos sujeitos ne- equidade, apesar deste último ter sido
gros organizados, de suas análises, conhecimentos e longamente negligenciado, especialmente do
valores. Nesse processo de formulação, as mulheres
ponto de vista da justiça social; pela existência
negras tiveram especial destaque, não apenas por sua
de obrigação amparada em instru-mentos legais1.
experiência histórica e cultural nas ações de
/ Convenção Internacional para Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial/1965; Lei nº 7.437/1985; Lei nº
12.288/2011; portaria do Ministério da Saúde nº 992/2009.
Como visto, o principal elemento constituinte desse programas dirigidos a populações vulneráveis e o
campo é o reconhecimento do racismo com um dos fatores desenvolvimento de ações para reduzir disparidades
centrais na produção das iniquidades em saúde entre grupos, além de medidas de saúde, amplas para toda
experimentadas por mulheres e homens negros, de todas a população. Essa visão pressupõe a geração de
as regiões do país, níveis educacio-nais e de renda, informações desagregadas, bem como a tomada de
em todas as fases de sua vida. Esse reconhecimento, decisão em oposição ao status quo produtor ou mantenedor
conquistado no plano político, ainda não foi suficiente das desvantagens.
para ocupar o vazio deixado pela quebra da hegemonia
das teorias eugênicas nas pesquisas do campo das ciências
2 Nota-se que esse modelo surge ao menos dez anos
da saúde .
após as formulações decorrentes da ação do GTI e
das medidas de saúde da população negra por ele
Em 2005, a Comissão de Determinantes propostas. Caso tivesse havido decisão consis-tente
Sociais em Saúde (CDS) da Organização Mundial nessa direção, os dois aportes poderiam ter ampliado o
de Saúde apresentou o conceito de determinantes rol de medidas propostas e favorecido a atuação do
sociais de saúde como um processo complexo no qual SUS em relação à população negra.
parti-cipam fatores estruturais e fatores intermediários
da produção de iniquidades em saúde (ver Figura
No entanto, as decisões de política e gestão de
1). Nele, o racismo e o sexismo estão incluídos
saúde têm sido tomadas como se os dados não indi-cassem
como fatores estruturais produtores da hierarquização
a ampla disparidade e o tratamento desigual que a
social associada a vulnerabilidades em saúde.
sociedade e o Sistema Único de Saúde pro-duzem ou
Esse conceito, ainda, apontava que, para se enfrentar
sustentam, com enormes prejuízos para negros e
adequadamente as iniquidades em saúde, seriam
indígenas, principalmente, diferentemente dos
necessárias medidas que incluiriam a criação de
brancos. Os dados epidemiológicos desagregados
segundo raça/cor são consistentes o suficiente para
4 Para maiores informações sobre a eugenia no Brasil e América Latina ver Nancy L. Stepan “The Hour of Eugenics”: Race, Gender, and
Nation in Latin America Ithaca and London: Cornell University Press, 1991.
A partir daí, a autora delineia um dispositivo de atuam de modo concomitante, produzindo efeitos
racialidade, ferramenta conceitual para explicitar as
formas como o racismo penetra os diferentes campos da
sobre os indivíduos e grupos (não apenas de suas
vida social e produz seus resultados, o que nos permite
vítimas), gerando sentimentos, pensamentos, con-
compreender como o racismo estrutura profundamente
dutas pessoais e interpessoais, atuando também
o escopo de democracia no Brasil, reduzindo a
abrangência da cidadania por estar na base da criação e
manutenção de preconceitos, ou seja, ideias e imagens sobre processos e políticas institucionais.
estereotipadas e inferiorizan-tes acerca da diferença do Apesar da intensidade e profundidade de seus
outro e do outro diferente, justificando o tratamento efeitos deletérios, o racismo produz a naturalização
desigual (discriminação). das iniquidades produzidas, o que ajuda a explicar
a forma como muitos o descrevem, como sutil ou
invisível.
Em sua expressão na vida de indivíduos e
grupos, o racismo assume três dimensões
principais, segun-do o modelo proposto por Segundo Jones (2002), o racismo internalizado
Jones (2002), resumido na Figura 2. traduz a “aceitação” dos padrões racistas pelos indi-
víduos, incorporando visões e estigmas. O racismo
interpessoal se expressa em preconceito e discrimi-nação,
condutas intencionais ou não entre pessoas.
A partir daí, o racismo pode ser visto também
como um sistema, dada sua ampla e complexa atu-ação,
seu modo de organização e desenvolvimento através de Já o racismo institucional (RI), que possivelmente
estruturas, políticas, práticas e normas capazes de
definir oportunidades e valores para pes-soas e
j) a dimensão mais negligenciada do racismo, deslo-ca-se
populações a partir de sua aparência (Jones,
da dimensão individual e instaura a dimensão estrutural,
2002), atuando em diferentes níveis.
correspondendo a formas organizativas, políticas,
práticas e normas que resultam em trata-mentos e
As três dimensões do racismo apontadas acima resultados desiguais. É também denomina-do racismo
sistêmico e garante a exclusão seletiva
de diversidade, diferença e discriminação. A dos serviços de saúde. Entre estes estão barreiras
inter-seccionalidade permite visibilizar as pessoais e familiares, capazes de influenciar o grau
diferenças intragrupo, inclusive entre aqueles
de aproximação ou afastamento de usuários em
vitimados pelo racismo, favorecendo a
relação ao modelo de saúde em uso; os paradigmas
elaboração de ferramentas conceituais e referendados por eles, o que inclui o grau de infor-
metodológicas mais adequadas às diferentes mação e compreensão das linguagens e perspecti-
singularidades existentes. Permite, ainda, maior vas utilizadas; além da adoção ou não de hábitos
consistência na compreensão dos modos de
aproximação e realização dos princípios de
saudáveis de vida e do nível educacional e de renda
universalidade, integralidade e equidade na
9 Como Tackling inequalities in health: an agenda for action, editado por Michaela Benzeval, Ken Judge e Margaret Whitehead (London:
Kings Fund: 1995); e Access to Health Care in America, do Institute of Medicine, editado por Michael Millman (Washington, DC: National
Pessoal/familiar
Visitas Qualidade dos servidores/ Condição de saúde
17 Preferências comunicação
• Prevenção
18 Envolvimento no cuidado
• Conhecimento
19 Hábitos saudáveis (ou não) • Diagnóstico Equidade nos serviços
confiança, seja entre profissionais e Por essa razão, são referidos como inexis-tentes na
usuários, ou entre estes e os serviços e todo o visão daqueles ainda não adequadamente preparados –
sistema de saúde. ou interessados – para efetuar diagnós-ticos mais
precisos a partir de visões mais amplas do que
aquelas oferecidas pelo modelo biomédico.
Nesse modelo, os resultados da ação, que in-cluem
dados epidemiológicos, a visão de usuários e a
constituição ou não de efetiva parceria entre usuários e Essa incapacidade é um dos fatores subjacente às
sistema, também podem funcionar como indicadores das dificuldades ou impedimentos ao alcance pleno das
disparidades e tratamento desigual, atuando, ainda, possibilidades e resultados das ações, programas e
como indicadores da eficiência das ações para a
equidade, o que expõe a necessidade da produção
de informações desagregadas por raça/ cor e o
desenvolvimentos de mecanismos de diálo-go e
participação que garantam a inserção desses grupos e de
sujeitos nos processos de formulação, monitoramento e
avaliação das políticas e ações.
políticas institucionais, perpetuando a exclusão ra- saúde das mulheres negras requerem o desenvol-
cial. Por outro lado, produz ou perpetua privilégios. vimento de ações afirmativas em diferentes níveis,
o que implica o estabelecimento de medidas singu-
larizadas, baseadas em diagnósticos aprofundados e
Um aspecto importante assinalado por igualmente singularizados, os quais devem funda-
King (1996), que justifica a adoção de mentar o desenho de processos, protocolos, ações
medidas específicas e afirmativas para se e políticas específicos segundo as necessidades e
eliminar privilégios e exclu-sões, refere-se singularidades de cada grupo populacional. Assim,
ao fato de que “Pessoas e organiza-ções
que se beneficiam do racismo institucional 2 preciso estabelecer medidas facilitadoras da apro-
são refratárias a mudanças voluntárias do status ximação e acesso, de modo a superar as barreiras
quo” (King, 1996, p. 33). interpostas ao exercício do direito à saúde pelas
mulheres negras. É necessário, também, utilizar
métodos e linguagens inteligíveis, que respeitem e
Através delas, instaura-se oportunidade para a
dialoguem com os diferentes valores, crenças e visões
criação de medidas e mecanismos capazes de
quebrar a invisibilidade do RI e de romper a cul- de mundo, os quais devem ser produzidos com a
tura institucional, estabelecendo novas proposi- participação dos sujeitos a que se quer beneficiar;
ções e condutas que impeçam a perpetuação além de priorizar ou incluir diferentes grupos de
das iniquidades. mulheres negras – que vivenciam condições seme-
lhantes de idade, de local de moradia, de geração, de
orientação sexual, de condição física e mental etc.
–, de vendo ser adequadamente informados em cada
Ações afirmativas e outras medidas uma das fases da tomada de decisões
terapêuticas, de processos e de políticas.
ou oportunidades, que são: acesso e utilização; (2) ação integrada a outras políticas
processos institucionais internos; resultados das setoriais como educação, emprego,
ações e políticas públicas. As ações relativas previdência e assistência social;
a cada um dos níveis estão descritas a seguir.
(3) treinamento de equipes para
abordagem singularizada e para
enfrentamento do ra-cismo;
Acesso e utilização
(4) estabelecimento de metas de cobertura
para grupos populacionais excluídos;
São ações para ampliação do acesso e utilização
(5) inserção da promoção da equidade
das políticas públicas de saúde, incluindo ações de
racial e de gênero como dimensão
promoção pelas mulheres negras, e devem permitir a
estratégica e objetivo dos ciclos de
aproximação física e cultural entre instituições
públicas e as mulheres negras. Tais iniciativas de
planejamentos e orçamento públicos,
aproximação implicam não apenas eliminação de entraves, especialmente da saúde, nas três esferas
que impedem o agente público de alcançar as mulheres de gestão;
negras e cada uma entre elas, como também em maior
disponibilização de infraestru-tura acessível a elas. Ou (6) ampliação da representação negra,
seja, deverão envolver esforços institucionais em com equidade de gênero (de modo
deslocar-se – fisicamente e em relação à cultura proporcional a sua participação na
institucional – em direção a esse grupo excluído ou sub- população geral);
representado. Alguns exemplos de ações possíveis
nesse nível envolvem: (7) estabelecimento de metas de eliminação do
como adoção de práticas capazes de aproximar os É nessa perspectiva conceitual que as atrizes e
objetivos institucionais das necessidades das atores da rede de pesquisador@s, gestor@s e
mulheres negras. Assim, as ações envolvem líderes do movimento social vêm construindo o
os esforços institucionais de eliminação do RI a campo “saúde da mulher negra”.
partir da atuação sobre os resultados das
políticas públicas, sendo:
Referências
Por outro lado, é fundamental que, no lado da
so-ciedade civil, se constituam múltiplos
(1) pactuação de metas sanitárias de observatórios, articulados entre si, de modo a
redução da morbimortalidade segundo
garantir a replica-
raça/cor, com ênfase na morbimortalidade
de mulheres negras de diferentes
idades, orientações sexuais, condição bilidade e a sustentabilidade das ações ao
física e mental, território, entre outros, longo
visando abarcar a totalidade dos grupos
diferenciados de mulheres ne-gras;
do tempo, permitindo, então, que aprofundem seu
(2) adoção de planificação intersetorial que
permita a ampliação da cobertura das polí-
alcance de mudança do Estado e suas
ticas de seguridade social segundo raça/cor e
relações.
grupos específicos – usuários e usuárias de
saúde mental população de rua, entre outros
COOPER, L. A.; HILL, M. N.; POWE, N. R. MANN, J. M.; TARANTOLA, D. J. M. (Ed.). AIDS
Designing and evaluating interventions to in the world: the global AIDS policy coalition.
eliminate racial and ethnic disparities in health Boston: Harvard University Press, 1992.
care. Journal of General Internal Medicine, v.
17, n. 6, p. 477-486, 2002.
MARINHO, A.; CARDOSO, S. de S.; ALMEIDA,
V. V. de. Desigualdade de transplantes de órgãos no
CRENSHAW, K. Documento para o Brasil: análise do perfil dos receptores por sexo e
encontro de especialistas em aspectos raça/cor. Brasília, DF: IPEA, 2011.
Recebido: 08/04/2014
Aprovado: 03/07/2014
Disponível em:
http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/1763/1/2006_Maria%20Lucia%
20Lopes%20da%20Silva.pdf.
223
Dossiê - Desigualdades e Interseccionalidades
DOI: 10.5433/2176-6665.2015v20n2p27
Flávia Biroli1
Resumo
Professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), Brasil, onde integra o
Professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), Brasil, onde integra o
Abstract
The article analyses approaches to the convergences between gender, class and race
within theoretical debates in the last decades, focusing especially on feminism. It aims
to present a broad and non-homogeneous field of researches, that has as a common
ground the understanding that oppressions are multiple and complex and it is not
possible to understand social inequalities when one variable is taken separately. The
relative prominence of each axe, its meaning and the comprehension of the way they
operate together vary in the three different sets of approaches discussed in the article:
marxist or socialist feminism, black feminism, and the studies of intersectionalities.
3* Este artigo é parte do projeto de pesquisa “Convergências na reprodução das desigualdades: gênero, raça
e classe na política brasileira contemporânea”, apoiado pela FAP-DF com recursos do Edital nº 3/2015.
Ele se beneficiou das discussões ocorridas na mesa-redonda “Gênero, raça e classe: convergências na
reprodução das desigualdades”, durante o 39º Encontro Anual da Anpocs, em Caxambu (MG), em 27 de
outubro de 2015.
classe (embora isso não signifique que suspenda a raça como problema),
o feminismo negro e os estudos das interseccionalidades privilegiam o
par gênero-raça (embora isso não signifique que suspendam a classe
como problema). No feminismo negro, as categorias gênero, classe e
raça foram exploradas conjuntamente, mas nem sempre de forma a
produzir um referencial focado na explicação dos seus entrelaçamentos.
Posteriormente, a noção de interseccionalidade, mobilizada em um
conjunto amplo e heterogêneo de estudos, permitiria avançar teórica e
metodologicamente na abordagem desses entrelaçamentos, mas os
estudos que dela lançaram mão frequentemente reduziram o peso da
classe e deixaram de recorrer a ela “como categoria analítica para a
explicação de desigualdades sociais complexas” (COLLINS, 2015, p. 13).
I.
II.
13 Autoras que discutem os processos definidos como “afrodiáspora” e as relações que tomaram forma com a
colonização da América, entre elas Werneck (2010) e Vergara Figueroa e Arboleda Hurtado (2014),
localizam formas de organização política das mulheres negras desde o período da colonização, na resistência
à escravidão. Werneck também situa a luta das mulheres negras no Brasil pós-colonial tomando como
exemplo a fundação do primeiro sindicato das trabalhadoras domésticas por Laudelina Campos Melo, que
foi integrante da Frente Negra Brasileira e membro do Partido Comunista, em Santos, em 1936. Bernardino-
Costa (2014, p. 76), por sua vez, destaca a atriz e trabalhadora doméstica
Arinda Serafim, integrante do Teatro Experimental do Negro (TEN), nos anos 1950, na promoção do
debate público sobre trabalho doméstico remunerado e estímulo para que as trabalhadoras buscassem
treinamento para a ação política em defesa de seus direitos. O que está sendo aqui situado a partir
dos anos 1970 é sua organização como coletivos feministas de mulheres negras que aliam luta e
produção de conhecimento feminista e antirracista.
É Vale ressaltar que a autora destaca a trajetória e produção de Angela Davis, assim como
as reações negativas à sua obra, como exemplar dessa dinâmica).
38 MEDIAÇÕES, LONDRINA, V. 20 N. 2, P. 27-55, JUL./DEZ. 2015
235
15 São números baseados nos dados do Programa Brasil Sem Miséria, que trabalha com as
seguintes variáveis e valores para o ano de 2013: extremamente pobres são indivíduos com
renda domiciliar per capita de até R$79,12; pobres são aqueles com renda domiciliar per
capita maior ou igual a R$ 79,12 e menor que R$ 158,24; vulneráveis têm renda domiciliar
per capita maior ou igual a R$ 158,24 e menor que R$678, valor do salário mínimo em 2013.
40 MEDIAÇÕES, LONDRINA, V. 20 N. 2, P. 27-55, JUL./DEZ. 2015
237
por sua vez têm uma posição mais próxima à dos homens brancos
(44,9% deles estão nessa condição)8.
/ Este parágrafo e os três que lhe são subsequentes retomam resumidamente a discussão apresentada
em Biroli (2015b).
III.
IV.
REFERÊNCIAS
DAVIS, Angela. Women, race, and class. New York: Vintage Books, 1983.
HOOKS, Bell. Feminist theory: from margin to center. Boston: South End Press, 1984.
RATTS, Alex; RIOS, Flávia. Lélia Gonzalez. São Paulo: Selo Negro, 2010.
YOUNG, Iris Marion. Beyond the unhappy marriage: a critique of the dual
systems theory. In: SARGENT, Linda (Ed.). Women and revolution: a
discussion of the unhappy marriage betweem feminism and Marxism. Boston:
South End Press, 1981.
YOUNG, Iris Marion. Socialist feminism and the limits of dual systems
theory. In: YOUNG, Iris Marion. Throwing like a girl and other essays in
feminist philosophy and social theory. Bloomington: Indiana University
Press, 1990.
BIBLIOGRAFIA
RESUMO
O presente artigo aborda a emergência e importância do conceito de gênero, enquanto instrumento teórico
que permite uma abordagem empírica e analítica das relações sociais. Priorizamos desenvolver, de forma
breve, a constituição das relações de gênero, a divisão sexual do trabalho como uma noção que nos permite
discutir as bases materiais desta constituição e a relação gênero-classe e raça.
Relações de Gênero
A produção de nossa existência tem bases biológicas que implicam a intervenção conjunta dos dois sexos, o
macho e a fêmea. A produção social da existência, em todas as sociedades conhecidas, implica por sua vez,
na intervenção conjunta dos dois gêneros, o masculino e o feminino. Cada um dos gêneros representa uma
particular contribuição na produção e reprodução da existência. Para Izquierdo 1 poderíamos nos referir aos
gêneros como obras culturais, modelos de comportamento mutuamente excludentes cuja aplicação supõem
o hiperdesenvolvimento de um número de potencialidades comuns aos humanos em detrimento de outras.
Modelos que se impõem ditatorialmente às pessoas em função do seu sexo. Mas esta só seria uma
aproximação superestrutural do fenômeno dos gêneros.
A autora chama a atenção para as palavras de Marx quando este diz que
A construção dos gêneros se dá através da dinâmica das relações sociais. Os seres humanos só se constroem
como tal em relação com os outros. Saffioti (1992, p. 210) considera que
não se trata de perceber apenas corpos que entram em relação com outro. É a totalidade formada pelo
corpo, pelo intelecto, pela emoção, pelo caráter do EU, que entra em relação com o outro. Cada ser humano
é a história de suas relações sociais, perpassadas por antagonismos e contradições de gênero, classe,
raça/etnia.
255
Chamamos a atenção, ao que Izquierdo coloca como sendo o espaço social do gênero, já que isso tem uma
grande importância quando se analisa a questão da mulher na relação com a atividade trabalho. Para a
autora, o modo masculino, que contribui para a produção da existência, é diferente do feminino. Além disso
as atividades masculinas produtoras da existência estão imbricadas em espaços distintos das femininas, que
resultam em duas esferas: esfera de sobrevivência (doméstica); esfera de transcendência (pública). Cada uma
destas esferas constitui o espaço social de um dos gêneros, sendo a esfera doméstica o espaço próprio do
gênero feminino e a esfera pública própria do gênero masculino. A autora lembra que a separação da
sobrevivência e da transcendência em duas esferas, converte as atividades que se desenvolvem em cada uma
delas em alienadas, porque uma carece de sentido se não se refere à outra. A questão não é tanto
estabelecer valorações a respeito da importância relativa de cada uma das esferas, mas assinalar que
linearmente e circularmente, sobrevivência e transcendência doméstica e pública, masculinidade e
feminilidade não são outra coisa que as duas caras da mesma realidade única e indivisível.
A tentativa de construir o ser mulher enquanto subordinado, ou melhor, como diz Saffioti (1992), como
dominada-explorada, vai ter a marca da naturalização, do inquestionável, já que dado pela natureza. Todos
os espaços de aprendizado, os processos de socialização vão reforçar os preconceitos e estereótipos dos
gêneros como próprios de uma suposta natureza (feminina e masculina), apoiando-se sobretudo na
determinação biológica. A diferença biológica vai se transformar em desigualdade social e tomar uma
aparência de naturalidade.
As relações de gênero, refletem concepções de gênero internalizadas por homens e mulheres. “Eis porque o
machismo não constitui privilégio de homens, sendo a maioria das mulheres também suas portadoras. Não
basta que um dos gêneros conheça e pratique atribuições que lhes são conferidas pela sociedade, é
imprescindível que cada gênero conheça as responsabilidades do outro gênero” (Saffioti, 1992, p. 10).
O “quem somos” vai se constituindo através das relações com os outros, com o mundo dado, objetivo. Cada
indivíduo encarna as relações sociais, configurando uma identidade pessoal, uma história de vida e um
projeto de vida. Neste processo, o fato de se pertencer a um gênero ou outro, ser menino ou menina
também conformam as referências iniciais no mundo.
Ou seja, é pressuposta uma identidade que é re-posta a cada momento. Uma vez que a identidade
pressuposta é reposta, ela é vista como ‘dada’ e não se ‘dando’. É como se uma vez identificado o indivíduo, a
produção de sua identidade se esgotasse com o produto. Na linguagem corrente dizemos ‘eu sou filho’,
ninguém diz estou sendo filho (Ciampa 1990, p. 163).
Neste sentido poderíamos usar o “estou sendo mulher” e não “sou mulher”.
Ciampa (1990) afirma que existe portanto, uma expectativa de que as pessoas devem agir de acordo com
suas predicações e ser tratadas como tal. De certa forma re-atualizamos, através de ritos sociais, uma
identidade pressuposta, que assim é vista como algo dado. Com isso retira-se o caráter de historicidade da
mesma, aproximando-se mais da noção de um mito que prescreve as condutas corretas, re-produzindo o
social.
Não podemos deixar de destacar que a imposição de condutas e normas não são vividas de forma tranqüila
numa assimilação simples e mecânica. Ao contrário à medida que são impostos e não dados por uma
pretensa natureza, há conflitos e resistências que vão sendo confrontados com os limites concretos impostos
muitas vezes pela violência doméstica e sexual.
256
As relações de gênero se estabelecem dentro de um sistema hierárquico que dá lugar a relações de poder,
nas quais o masculino não é unicamente diferente do feminino. Esta diferença de poder torna possível a
ordenação da existência em função do masculino, em que a hegemonia se traduz em um consenso
generalizado a respeito da importância e supremacia da esfera masculina.
Divisão sexual do trabalho, tem sido outro importante conceito para compreensão do processo de
constituição das práticas sociais permeadas pelas construções dos gêneros a partir de uma base material. O
uso de práticas sociais aqui é usado como uma noção indispensável que permite a passagem do abstrato ao
concreto; poder pensar simultaneamente o material e o simbólico; restituir aos atores sociais o sentido de
suas práticas, para que o sentido não seja dado de fora por puro determinismo (Kergoat, 1996).
A divisão sexual do trabalho assume formas conjunturais e históricas, constrói-se como prática social, ora
conservando tradições que ordenam tarefas masculinas e tarefas femininas na indústria, ora criando
modalidades da divisão sexual das tarefas. A subordinação de gênero, a assimetria nas relações de trabalho
masculinas e femininas se manifesta não apenas na divisão de tarefas, mas nos critérios que definem a
qualificação das tarefas, nos salários, na disciplina do trabalho. A divisão sexual do trabalho não é tão
somente uma conseqüência da distribuição do trabalho por ramos ou setores de atividade, senão também o
princípio organizador da desigualdade no trabalho (Lobo, 1991).
que a divisão sexual do trabalho não cria a subordinação e a desigualdade das mulheres no mercado de
trabalho, mas recria uma subordinação que existe também nas outras esferas do social. Portanto a divisão
sexual do trabalho está inserida na divisão sexual da sociedade com uma evidente articulação entre trabalho
de produção e reprodução. E a explicação pelo biológico legitima esta articulação. O mundo da casa, o mundo
privado é seu lugar por excelência na sociedade e a entrada na esfera pública, seja através do trabalho ou de
outro tipo de prática social e política, será marcada por este conjunto de representações do feminino.
Conforme Humphrey (1987), a divisão sexual do trabalho é um processo que não se resume a alocar homens
e mulheres em estruturas ocupacionais, perfis de qualificação e tipos de postos de trabalho já definidos. Da
mesma maneira a qualificação é uma construção social fortemente sexuada, marcada pelos gêneros, é uma
dimensão fundamental do processo de constituição das categorias que vão estruturar a definição dos postos
de trabalho e dos perfis de qualificação e competências a eles associados.
A divisão sexual do trabalho, como base material do sistema de sexo-gênero concretiza e dá legitimidade às
ideologias, representações e imagens de gênero, estas por sua vez fazem o mesmo movimento em relação às
práticas cotidianas que segregam as mulheres nas esferas reprodutivas-produtivas, num eterno processo de
mediação.
A categoria gênero
A categoria gênero vai ser desenvolvida pelas teóricas do feminismo contemporâneo sob a perspectiva de
compreender e responder, dentro de parâmetros científicos, a situação de desigualdade entre os sexos e
como esta situação opera na realidade e interfere no conjunto das relações sociais.
Varikas (1989) afirma que ao tomar emprestado o termo da gramática e da linguagem, as feministas
postularam a necessidade de superar o sexo biológico, mais ou menos dado pela natureza, do sexo social,
produto de uma construção social permanente, que forma em cada sociedade humana, a organização das
257
relações entre os homens e as mulheres. A noção de gênero adquire um duplo caráter epistemológico, de um
lado, funciona como categoria descritiva da realidade social, que concede uma nova visibilidade para as
mulheres, referindo-se a diversas formas de discriminação e opressão, tão simbólicos quanto materiais, e de
outro, como categoria analítica, como um novo esquema de leitura dos fenômenos sociais.
A principal importância desta abordagem é que além de ser um conceito que tenta desconstruir a relação
entre as mulheres e a natureza é como nos diz Suárez (2000) um conceito acionado para distinguir e
descrever categorias sociais (uso empírico) e para explicar as relações que se estabelecem entre elas (uso
analítico).
Para Kergoat (1996), que fala em “relações sociais de sexo” 2 o conceito leva a uma visão sexuada dos
fundamentos e da organização da sociedade, ancorada materialmente na divisão sexual do trabalho, num
esforço para pensar de forma particular, mas não fragmentada, o conjunto do social, já que as relações de
gênero existem em todos os lugares, em todos os níveis do social. Esta abordagem deve estar integrada em
uma análise global da sociedade e ser pensada em termos dinâmicos, pois repousa em antagonismos e
contradições.
Lauretis (1994), iniciando a reflexão sobre o termo gênero a partir da gramática e de como este aparece na
forma gramatical de diferentes maneiras, ou mesmo ausentes, conforme a língua, verifica que:
o termo gênero é uma representação não apenas no sentido de que cada palavra, cada signo, representa seu
referente, seja ele um objeto, uma coisa, ou ser animado. O termo “gênero” é, na verdade, a representação
de uma relação, a relação de pertencer a uma classe, um grupo, uma categoria. Gênero é a representação de
uma relação(...) o gênero constrói uma relação entre uma entidade e outras entidades previamente
constituídas como uma classe, uma relação de pertencer(...) Assim, gênero representa não um indivíduo e
sim uma relação, uma relação social; em outras palavras, representa um indivíduo por meio de uma classe
(Lauretis, 1994, p. 210) 3.
Seguindo o texto de Lauretis (1994), as concepções de masculino e feminino, nas quais todos os seres
humanos são classificados, formam em cada cultura, um sistema de gênero, um sistema simbólico ou um
sistema de significações que relaciona o sexo a conteúdos culturais de acordo com valores e hierarquias
sociais. Vale destacar, pela pertinência ao tema deste texto, que
embora os significados possam variar de uma cultura para outra, qualquer sistema de sexo-gênero está
sempre intimamente interligado a fatores políticos e econômicos em cada sociedade. Sob essa ótica, a
construção cultural do sexo em gênero e a assimetria que caracteriza todos os sistemas de gênero através de
diferentes culturas são entendidas como sendo sistematicamente ligadas à organização da desigualdade
social (Lauretis, p. 212).
Uma das principais proposições do texto de Lauretis (1994) é quanto à construção do gênero enquanto
produto e processo:
a construção do gênero é tanto produto quanto o processo de sua representação”. Para ela o “sistema sexo-
gênero, enfim, é tanto uma construção sociocultural quanto um aparato semiótico, um sistema de
representações que atribui significado (identidade, valor, prestígio, posição de parentesco, status dentro da
hierarquia social etc.) a indivíduos dentro da sociedade. Se as representações de gênero são posições sociais
que trazem consigo significados diferenciais, então o fato de alguém ser representado ou se representar
como masculino ou feminino subentende a totalidade daqueles atributos social (Lauretis, 1994, p. 212).
Lauretis (1994, p. 216), chama a atenção para a relação ideologia-gênero. Diz ela:
258
pois, se o sistema sexo-gênero é um conjunto de relações sociais que se mantém por meio da existência
social, então o gênero é efetivamente uma instância primordial da ideologia, e obviamente não só para as
mulheres. Além disso, trata-se de uma instância fundamental de ideologia, independentemente do fato de
que certos indivíduos se vejam fundamentalmente definidos (oprimidos) pelo gênero, como as feministas
culturais brancas, ou por relações de classe e raça, como é o caso das mulheres de cor.
Classe social
Uma questão teórica importante que as pesquisadoras feministas enfrentaram é quanto ao uso da categoria
classe social. Kergoat (1996) trouxe uma importante contribuição a este debate. Para ela a utilização que é
feita do conceito de classe não permite captar o lugar da mulher na produção e na reprodução sociais. As
relações de classe e relações de gênero são coextensivas: tanto para as mulheres como para os homens só
podem ser analisadas conjuntamente. Todos os indivíduos são homens ou mulheres e, por outro lado, todos
têm uma situação de classe a ser determinada.
A autora ilustra a existência do “nó” através do que ela chama de um exame ligeiro da “vocação” do capital
para a equalização de todas as forças de trabalho:
tomando-se gênero, raça/etnia como relações diferenciadoras do mercado de trabalho, pode-se afirmar, sem
medo de errar, que em todas as sociedades presididas pelo referido nó, formado pelas três contradições
básicas, o capital não obedece àquela lógica abstrata que lhe permite prescindir do trabalho doméstico
gratuito (Saffioti 1997, p. 62).
Segundo Saffioti a projeção de Marx de que “a igualdade na exploração da força de trabalho é o primeiro dos
direitos do capital” (apud Marx 1959, p. 232) não se realizou em nenhuma sociedade, porquanto a força de
trabalho é diferenciada em termos de gênero e raça/etnia. Sendo parte do nó, o capital não tem alcance
suficiente para equalizar todas as forças de trabalho.
Concluindo, lembramos que embora o conceito de gênero tenha adquirido força e destaque enquanto
instrumento de análise das condições das mulheres ele não deve ser utilizado como sinônimo de “mulher”. O
conceito é usado tanto para distinguir e descrever as categorias mulher e homem, como para examinar as
relações estabelecidas entre elas e eles. Como diz Suárez (2000) a expressão “relações de gênero” destaca o
uso analítico do conceito.
Devemos destacar também que a emergência do conceito e sua utilização está fortemente impregnado de
uma dimensão política, tanto no que diz respeito a suas origens, como quanto aos seus propósitos. Ele ganha
força a partir do movimento feminista, cujas principais propostas estão voltadas às mudanças nas relações de
poder tanto no âmbito público como no privado, procurando abolir qualquer forma de dominação-
exploração no conjunto das relações sociais.
259
NOTAS
1“Bases materiales del sistema sexo/gênero” de Maria Jesus Izquierdo, Profesora del Departamento de
Sociologia na Universidad Autónoma de Barcelona. Notas esparsas utilizada em curso do SOF-Sempreviva
Organização Feminista. São Paulo, 1990. [voltar]
2 Kergoat chama atenção para o debate sobre a utilização do termo “gênero”, relações de gênero, ao invés
de relações sociais de sexo. Diz a autora (1996, p. 24) “a primeira observação é de bom senso: é impossível
colocar em oposição gênero e relações sociais de sexo; os dois termos são altamente polissêmicos.
Encontramos nos dois casos, os mesmo leque de acepções que vão da simples variável mulheres, até uma
análise em termos de relações sociais antagônicas (Scottr,1988). Trata-se a meu ver, menos de conceituações
alternativas do que formalizações preferenciais”.[voltar]
3 Lauretis utiliza o termo “classe”, segundo suas palavras, “deliberatamente, embora sem querer aqui
significar classe(s) social (s), pois quero preservar a acepção de Marx, que vê classe como um grupo de
pessoas unidas por determinantes e interesses sociais – incluindo especialmente a ideologia – que não são
nem livremente escolhidos nem arbitrariamente determinados” (Lauretis, 1994, p. 211).[voltar]
ABSTRACT
The present article approaches the emergence and the importance of the gender concept, as a theoretical
instrument, which allows an empiric and analytical approach of social relations. We have prioritized to
develop in a brief formal, the constitution of gender relations, and the sexual division of work, as a notion
that allows us to discuss the material basis of this constitution and th fender-class-race relation.
BIBLIOGRAFIA
BRITO, J. ; OLIVEIRA, O. Divisão sexual do trabalho e desigualdade nos espaços de trabalho. In: SILVA FILHO, F.
e JARDIM S. (orgs.) A Danação do Trabalho,. Te Corá. Rio de Janeiro. 1997.
HARDING, S. A Instabilidade das categorias analíticas na teoria feminista. Revista Estudos Feministas, Rio de
Janeiro, v.1, n.1,p. 7-32, 1993.
HIRATA, H. ; KERGOAT, D. A Classe operária tem dois sexos. Revista Estudos Feministas. Rio de Janeiro, v.2,
n.3, 1994..
HUMPHREY, J. Gender and work in the third world, Londres / New York, Iavistok Publications, 1987.
IZQUIERDO, M.J. Bases materiais del sistema sexo/gênero. São Paulo: SOF, [199?]. Mimeografado.
KERGOAT, D. Relações sociais de sexo e divisão sexual do trabalho. In: LOPES, M. J. M.; MEYER, D.E.;
WALDOW, V.R. (Orgs.) Gênero e saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
LAURETIS, T. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, B.H. Tendências e impasses: o feminismo como crítica da
cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
260
LOBO, E. S. A Classe operária tem dois sexos. São Paulo: Brasiliense, 1991.
LOURO, G.L. Nas redes do conceito de gênero. In: LOPES, M. J. M; MEYER, D.E.; WALDOW, V.R. (Orgs.).
Gênero e Saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
SAFFIOTI, H.I.B. Rearticulando gênero e classe social. In: COSTA, A.O. ; BRUSCHINI, C. (Orgs.) Uma Questão de
gênero. São Paulo ; Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992.
______. Violência de gênero: lugar da práxis na construção da subjetividadade. Revista Lutas Sociais, São
Paulo, n. 2, 1997.
SUAREZ, M. Gênero: uma palavra para deconstruir idéias e um conceito empírico e analítico. In: ENCONTRO
DE INTERCÂMBIO DE EXPERIÊNCIAS DO FUNDO DE GÊNERO NO BRASIL, 1, 2000. Gênero no mundo do
trabalho. Brasília: [s.n.] 2000.
VARIKAS, E. Jornal das damas: feminismo no sec. XIX na Grécia. In: SEMINÁRIO RELAÇÕES SOCIAIS DE
GÊNERO VERSUS RELAÇÕES DE SEXO. São Paulo:FFLCH/USP. 1989.
ANOTAÇÕES – CURSO 03
262
263
264
265
266
267
Scanned by CamScanner
268
Scanned by CamScanner
269
Scanned by CamScanner
270
Scanned by CamScanner
271
Scanned by CamScanner
272
Scanned by CamScanner
273
274
275
276
277
278
279
Scanned by CamScanner
280
281
282
283
284
Scanned by CamScanner
285
EMENTA
A loucura e sua historicidade. O movimento antimanicomial e A construção da Reforma Psiquiátrica
Brasileira. Saúde mental: Determinantes Sociais, vulnerabilidades, Direitos Humanos, Cidadania.
Redes de Atenção psicossocial e Intersetorialidade
Curso
CH Teórica CH Prática CH Total
Professor(a) Edna Amado Nonato 12 hs
Nº Data Dia da
Semana Conteúdo/ Referência Bibliográfica
Atividade
1 A loucura BRASIL, 2001. Lei 20.216 /01
e sua
2
historicida UFSC. Reforma Psiquiátrica. Direitos Humanos – Saúde
3 de mental e drogas na contemporaneidade brasileira: os
4 Imaginári direitos humanos como caminho inevitável de abordagem.
o social In: Políticas de saúde mental e direitos humanos [Recurso
sobre o
eletrônico] / Universidade Federal de Santa Catarina; Tânia
fenômeno
da loucura Maris Grigolo; Rodrigo Otávio Moretti-Pires [orgs.]. -
Florianópolis : Departamento de Saúde Pública/UFSC,
2014. Pág 11 a 23..: il.,grafs. Disponível em
https://ares.unasus.gov.br/.../Modulo%202%20Alcool%20e%20Drog
as.pdf?...1...y
1.
ANOTAÇÕES – CURSO 04
288
289
290
291
292
293
Professor(a)
1
Irismar Karla Sarmento de Paiva
1
Cindy Damaris Gomes Lira
1
Jéssica Micaele Rebouças Justino
1
Moêmia Gomes de Oliveira Miranda
1
Ana Karinne de Moura Saraiva
295
Abstract In the present context of neoliberal-ism, Resumo No atual cenário do neoliberalismo, per-
it can be seen that employment and family links cebe-se uma fragilização dos vínculos empregatí-cios
are becoming more fragile, contributing to the e familiares, o que contribui para o fenômeno da
phenomenon of social exclusion, and making exclusão social e dá visibilidade à População em
people who are homeless – the Homeless – more Situação de Rua - PSR. A PSR desafia a uni-
visible. This population, situated on the margin of versalidade, a equidade e a integralidade do Siste-ma
the healthcare network, challenges the univer- Único de Saúde - SUS, encontra-se à margem da rede
sality, equity and integrated quality of Brazil’s de atenção à saúde e é alvo de políticas fo-
Unified Health System – the SUS, and has been the calizadoras. Esse debate transformou-se em objeto
subject of focalizing policies. The debate on this deste estudo de revisão integrativa das publicações
theme is the subject of this study, which is an nacionais dos bancos de dados Literatura Latino -
integrative review of Brazilian publications in the Americana e do Caribe em Ciências da Saúde - Lilacs
literature databases of Lilacs (Latin America and e Base de Dados de Enfermagem - BDENF, com
the Caribbean Health Sciences Database) and the objetivo de levantar o que existe na literatura acerca
BDENF (Base de Dados de Enfermagem da caracterização da PSR, suas necessida-des e as
políticas desenvolvidas para atendê-la. O estudo
revelou que a discussão sobre a PSR é tímida na
– Nursing Database), to provide a survey of the produção do conhecimento, principal-mente, quanto
literature on characterization of the Homeless as a à compreensão dos determinantes sociais do seu
group, their needs and the policies that have been processo saúde/doença. As políticas sociais voltadas
developed to serve them. The study reveals that para essa população são, em sua maioria,
discussion on the homeless has been timid in compensatórias e assistencialistas, de modo que não
production of knowledge, principally in relation to possibilitam a materialização do direito à saúde.
comprehension of the social determinants of the Diante disso, torna-se necessária a construção de
health-disease process of this group. The social políticas sociais coerentes com as necessidades
policies addressing this population are, mostly, sociais da PSR.
compensatory and existentialist, so that they do
10
Faculdade de not allow for materialization of the right to health
Enfermagem, Universidade
do Estado do Rio Grande do as a possible outcome. In this context, it becomes Palavras-chave Saúde, Políticas públicas,
Norte. necessary to build social policies that are coherent Popu-lação de rua
with the social needs of the homeless.
R. Des. Dionísio Figueira
383, Centro. 59600-000
Mossoró RN Brasil.
karla.paiva@yahoo.com.br Key words Health, Public policies, Homeless,
Homeless population
296
2596 Introdução que vivem nas ruas, identificar suas necessidades
sociais e a complexidade de seu processo saúde-
doença, assim como os motivos que os levaram às
ruas é condição sine qua non para a construção de um
6
O desenvolvimento do capitalismo, a internacio- modelo de atenção universal, equânime e integral .
Paiva IKS et al.
Significados e práticas de saúde Caderno de 13 pessoas em situação Descreve como as PSR percebem
e doença entre a população em Saúde Pública de rua. Estudo seu processo saúde-doença, na
situação de rua em Salvador, Lilacs realizado em Salvador, perspectiva de subsidiar políticas
Bahia, Brasil. Aguiar MM, Iriart Bahia. públicas que ultrapassem o
15
JAB . 2012 higienicismo e o assistencialismo.
continua
299
Quadro 1. continuação 2599
Rede social e promoção Escola de PSR e trabalhadores dos Analisa as políticas e experiências
da saúde dos “descartáveis Enfermagem equipamentos sociais da PSR. Faz crítica às práticas
urbanos”. de Ribeirão que assistem a PSR no isoladas, assistencialistas, que
Souza ES, Silva SRV, Caricari Preto município de São Paulo. sustentam e cronificam a situação
24
AM . 2007 Lilacs de rua.
Serviços de saúde e população Saúde e Representantes da PSR Traz a discussão dos aspectos
de rua: contribuição para um Sociedade e representantes dos relacionados à saúde da PSR e de
debate. Carneiro Junior N, Lilacs/ BDENF principais serviços sua condição de vida. Evidencia
Nogueira EA, Lanferini GM, de saúde localizados relações com os programas e
26
Ali DA, Martinelli M . 1998 na região central do serviços de saúde na perspectiva
município de São Paulo. dos diferentes atores sociais.
300
2600 Embora seja expressivo o número de pesso-as com pai/mãe/irmãos (29,1%). Dos entrevistados no
apontado pelo estudo, estipula-se que mais de censo, a maioria citou pelo menos um desses três
50.000 estejam em situação de rua, uma vez que motivos, que podem estar relacionados en-tre si ou
14
alguns municípios, como São Paulo, Recife e Belo um ser consequência do outro . Desse modo, a ida
Horizonte, não participaram dessa pesquisa por para as ruas está ligada a diversos determinantes,
Paiva IKS et al.
terem feito levantamentos recentes acerca de suas entretanto não se pode perder de vista o processo
PSR. De acordo como o MDS, essa população é social que empurra milhares de pessoas para essa
7
predominantemente masculina (82%), e mais da condição .
metade (53%) das pessoas adultas em situação de
14 17
rua entrevistadas possui entre 25 e 44 anos . Ghirardi et al. apresentam como determi-
nantes do processo de viver nas ruas: competição
A PSR é composta, em grande parte, por
acirrada do mercado de trabalho, fragilização dos
trabalhadores: 70,9% exercem alguma ativida-de
vínculos trabalhistas pela não qualificação pro-
remunerada. Dessas atividades, destacam-se:
fissional, inserção em atividades produtivas com
catação de materiais recicláveis (27,5%), “flane-
grande potencial de substituição e com rendas li-
linha” (14,1%), construção civil (6,3%), limpeza
mítrofes para a subsistência, estigmatização pelas
(4,2%) e carregamento/estivação (3,1%). Apenas
posições de trabalho que ocupam e desemprego.
15,7% das pessoas pedem dinheiro como princi-
14
pal meio para a sobrevivência . Esses dados são Apesar de, em meados dos anos 2000, vários
importantes para desmistificar a concepção de países da América Latina, incluindo o Brasil, te-
que a população em situação de rua é composta, rem experimentado redução nas taxas de desem-
exclusivamente, por “mendigos” e “pedintes”. prego, é importante atentar para o fato de que as
13 mudanças ocorridas e em curso no mundo do
Para Rosa et al. , a definição de população trabalho, no final do século XX e início do
de rua é difícil, tendo em vista que a século XXI, têm como uma das principais con-
multiplicidade de condições pessoais, a sequências a formação de um exército industrial
diversidade de soluções dadas à subsistência e à de reserva, que é a população sobrante frente às
moradia são fatores que dificultam a formulação 28
necessidades do capital .
de conceitos livres de ambiguidades.
A ida para as ruas provoca uma ruptura com
É possível identificar situações diferentes em
as formas sociais, geralmente, aceitas de sobrevi-
relação à permanência na rua: ficar na rua - cir-
vência segundo o princípio legitimador do mer-
cunstancialmente; estar na rua - recentemente;
cado, no qual o trabalho é provedor da moradia,
ser da rua - permanentemente. O tempo vivido
alimentação e demais necessidades. Viver na rua
como moradores de rua é um elemento agra-
romper com o mercado e seu estilo de vida, o que
vante nesse processo: quanto maiores os lapsos
não significa a eliminação total do trabalho ou o
de tempo que permanecem, circunstancial ou re-
impedimento à subsistência, mas o desen-
centemente nas ruas, maiores as probabilidades volvimento de novos códigos, de formas
15
13 específicas de garantia da sobrevivência .
de se tornarem permanentes como seres da rua .
A população em situação de rua tem presen-ça Diante da complexidade de vida e trabalho da
marcante em regiões centrais das metrópoles,
PSR, não se pode pensar em caracterizá-la com
um padrão estereotipado, que, por vezes, anula e
pois essas áreas parecem oferecer mais possibili- massifica suas múltiplas identidades. São
dades de viabilizar seu “modo de andar a vida”: homens, mulheres, crianças, idosos, jovens, que,
grande concentração de serviços, baixa concen- diariamente, lutam pela sobrevivência. No
tração de residências e alta circulação de pesso- entanto o contexto no qual essa população vive
as, fatores que contribuem para sua localização tende a mantê-la em uma posição de invisibilida-
20
territorial . de, destituída da condição de cidadã: “[...] eu não
10,15
tenho nome, eu não tenho identidade” .
12 Quando não são ignoradas, as pessoas de rua são
Para Escorel , a PSR, apesar de ser homoge-
neizada pelas carências em comum e pelos olha- tratadas como objetos da tutela estatal, da
res da exclusão e do desamparo, diferencia-se filantropia privada ou da caridade das igrejas. Estas,
pe-los motivos que levaram as pessoas desse com a filosofia de “fazer o bem sem olhar a quem”,
grupo para a rua, pelo tempo de permanência acabam por reforçar ainda mais a invisi-
nela, pelo grau de vínculos familiares existentes 12
e pelas es-tratégias de sobrevivência adotadas. bilidade dessa população .
Entre os principais motivos pelos quais essas Retirar o manto da invisibilidade da PSR e
pessoas passaram a viver e morar na rua, estão romper com a imagem clássica do vagabundo e
problemas relacionados ao alcoolismo e/ou dro- do mendigo podem ser caminhos possíveis no
gas (35,5%), desemprego (29,8%) e desavenças
301
sentido de resgatar a cidadania do povo de rua. tologia adquirida. Portanto esquece, mascara, ou 2601
No campo do desafio, está a necessidade de se desconsidera a relação de determinação estabele-cida
aproximar ao máximo do cotidiano vivido por entre o processo saúde-doença e o modo de trabalhar e
viver dessa população.
essas pessoas, para entender a complexidade de
para a PSR clarificou essa questão quando inda- processos de inclusão e sofre graus acentuados de
gou a esse público sobre seu maior desejo. Entre as vulnerabilidade e marginalidade no acesso aos
21,30
respostas, destacaram-se: moradia (30,6%), trabalho bens e serviços .
(24,1%), reconstrução de laços familia-res (14,9%),
sair da rua (10,0%) e outros (20,4%). Embora o acesso seja, muitas vezes, difícil
para qualquer cidadão, no caso da população em
Portanto a população em pauta não quer “só situação de rua, há agravantes. Para se conseguir
comida”: ela evidencia que políticas focalizado- atendimento, é preciso chegar muito cedo ao
ras da proteção social não dão conta de satisfazer posto e esperar várias horas, e o indivíduo, com
suas necessidades; contribuem, na maioria das frequência, precisa sair para conseguir o almoço.
vezes, para agravar a situação de rua, E, quando não se sabe o que vai comer ou onde
despersona-lizando ainda mais as pessoas nessa dormir, outras necessidades parecem ficar em se-
circunstân-cia, de maneira que, para se ter acesso gundo plano, mas “[...] a gente não quer só co-
ao que é de direito, é preciso comprovar uma 11
mida” . É comum, ainda, que o morador de rua
situação de indigência ou uma vocação religiosa. esteja com roupas sujas e/ou não tenha tomado
banho, o que faz com que ele seja mal recebido
Com isso, não se quer dizer que prover con- 21
na sala de espera do serviço de saúde .
dições de alimentação ou higiene, por exemplo,
não sejam importantes, mas que elas, por si só,
Aspectos relacionados às concepções do ado-
não são suficientes para resgatar a PSR enquanto
23 ecimento e do processo do cuidado desses indi-
cidadã , além de se incorrer no risco de se ficar víduos, também, contribuem para sua não ade-
preso à imediaticidade dos fatos que envolvem são aos serviços. Outras questões referem-se à
essa população, negando sua essência encoberta própria organização do serviço, que exerce papel
pelas expressões das desigualdades existentes na fundamental no acesso, entre as quais se citam:
7
sociedade capitalista . exigência de documentação, restrição no atendi-
mento da demanda espontânea, limites na atua-
Política da inclusão ou falta de inclusão ção intersetorial, preconceitos, entre outras que
nas políticas: “Eu sou feio, eu sou sujo, 20
criam vínculos precários .
eu sou antissocial, eu não posso
aparecer na foto do cartão postal” Todas essas questões desencorajam futuras
procuras e inserções da PSR nos serviços de saú-
A População em Situação de Rua, esse perso-
de, o que a faz buscar, assim como a população
nagem anônimo que se avoluma pelas ruas das
de um modo geral, preferencialmente,
cidades, excluída das estruturas convencionais da
atendimento emergencial quando não consegue
atual sociedade, como emprego, moradia e priva-
resistir aos sintomas, ou seja, quando o corpo
cidade, constitui um desafio para as políticas de
16 está impedido de lutar pela sobrevivência, “[...]
saúde e demais políticas públicas .
reforçando-se assim, a concepção de saúde
13,18
enquanto ausência de doença” (grifo nosso) .
Trata-se de um grupo que sofre uma sobre-
posição de situações de exclusões e de desvincu- A população de rua não necessita de um novo
lações nas dimensões: sociofamiliar, do trabalho, sistema de saúde, pois a equidade, a integralidade e
das representações culturais, da cidadania e da a universalidade do atendimento estão garan-tidas
vida humana. Acumula estereótipos de uma tipi- na Constituição Brasileira de 1988, com a criação
6
ficação, socialmente, construída; são indivíduos do SUS . Contudo é necessária a recons-trução do
considerados supérfluos e desnecessários à vida sistema de saúde, hegemonicamente, centrado no
social, que convivem ao lado do lixo humano e modelo biomédico, distante, por-tanto, das reais
são descartados de maneira semelhante aos re- necessidades sociais da População em Situação de
síduos sólidos, como bem afirmam Varanda e Rua.
25
Adorno em “Descartáveis Urbanos” .
Essa perspectiva leva a pensar a organização
12 dos processos de trabalho, com a concepção de
2 o que Escorel caracterizou como “[...] pro-
novas abordagens junto à PSR, capazes de intro-
cesso dinâmico no qual os indivíduos transitam da
duzir, em suas formulações, a equidade no acesso
integração à vulnerabilidade ou deslizam da 21
vulnerabilidade para a inexistência social”. aos serviços de saúde , dando visibilidade a esse
grupo social, incorporando às práticas sanitárias
303
suas demandas, articulando-as no conjunto de da não foi implementada na maioria dos estados 2603
25 29
outras práticas sociais . brasileiros .
Colaboradores Agradecimentos
IKS Paiva construiu o artigo considerando o re- A Universidade do Estado do Rio Grande do
corte de parte da revisão de literatura de sua dis- Norte, em especial, ao grupo de pesquisa Marcos
sertação de mestrado. Responsável pela redação Teóricos Metodológicos Reorientadores da Edu-
do artigo, coleta e análise dos dados, interpreta- cação e do Trabalho em Saúde e ao PIBIC por
ção dos resultados, revisão crítica, versão final terem gerado espaços de reflexões teóricas que
do manuscrito. CDG Lira e JMR Justino foram contribuíram para amadurecimento da temática.
res-ponsáveis pela redação do artigo, coleta e
análise dos dados, interpretação dos resultados,
revisão crítica, versão final do manuscrito. MGO 5 População em Situação de Rua, que mesmo
Miran-da e AKM Saraiva participaram como não tendo ido até ela para ver o mundo sobre a
orientado-ras contribuindo com a concepção e perspectiva da rua, a aproximação teórica per-
idealização do projeto, seu conteúdo intelectual, mitiu ampliar os olhares. Mais do que agradecer
revisão crí-tica e versão final do manuscrito. esperamos contribuir nessa perspectiva.
306
Referências 15 Aguiar MM, Iriart JAB. Significados e práticas de saúde 2605
e doença entre a população em situação de rua em Sal-
1 Vieira AB, Furini LA, Nunes M, Libório RMC. vador, Bahia, Brasil. Cad Saude Publica [periódico na
Exclu-são social: a formação de um conceito. In: internet] 2012 Jan [acessado 2013 jan 12]; 28(1):[cerca
Mellazzo ES, Guimarães RB, organizadores. de 10p]. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csp/
2606
Aprovado em 26/08/2015
Apresentação
Proposta de Conteúdo
Tópico 1
Caminhando pela história de vida, podemos acionar marcadores que nos ajudarão a
compreender o fenômeno “rua”. Vulnerabilidade, violência, violação de direitos, consumo de
psicoativos, raça, gênero, laços familiares, relação com os serviços públicos são alguns dos tocantes
que podemos problematizar partindo da premissa individual. Com isso, a opção narrativa que conflui
para o entendimento dos processos que atravessam a chegada, permanência, saída, e, em alguns casos,
o retorno a rua, mostra-se pedagogicamente interessante.
Tópico 2
Esse tópico tem como interesse problematizar outras perspectivas de cuidado. Enxergando, o
conhecimento e o pragmatismo político como grande potencial terapêutico. A ótica da redução de
danos tem nos mostrados que os processos biológicos são extremamente conectados com figurações
sociais particulares. Devido a isso, as relações terapêuticas e de cuidado devem levar em consideração
estruturas sociais específicas de cada sujeito. Dito de outra forma, o percusso/história de agentes que
reconfiguraram sua vida social a partir do engamento político evidencia um elemento significativo
para compreendermos outas metodologias de empoderamento para pessoas em vulnerabilidade social.
310
Tópico 3
Tópico 4
Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos
1/6
LEI Nº 3482/2014
E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS.
O Prefeito Municipal de Feira de Santana, Estado da Bahia, no uso de suas atribuições, FAÇO saber que a
Câmara Municipal, através do Projeto de Lei nº 73/2014, de auditoria do Poder Executivo, decreta e eu
sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º Fica instituída a Política Municipal para a População em situação de Rua, a ser implementada de
acordo com os princípios, diretrizes e objetivos previstos nesta Lei, com respaldo no Decreto Federal Nº
7053/2009.
Parágrafo Único - Considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui
em comum a pobreza externa, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia
Art. 2º convencional regular e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço
de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento
temporário.
Art. 2º O Poder Executivo Municipal poderá firmar convênios com entidades públicas e privadas, sem fins
econômicos, para o desenvolvimento e a execução de projetos que beneficiem a população em situação de rua
e estejam de acordo com os princípios, diretrizes e objetivos que orientam a Política Municipal para a
População em situação de Rua.
VI - respeito às condições sociais e diferenças de origem, raça, idade, nacionalidade, gênero, orientação sexual
e religiosa, com atenção especial às pessoas com deficiência;
2/6
comprovada no atendimento à População de Rua, com qualificação nas diversas áreas do conhecimento, com
formação superior ou médio.
Art. 4ºArt. 4º São diretrizes da Política Municipal para a População em Situação de Rua:
V - integração dos esforços do poder público e da sociedade civil para sua execução
VI - participação da sociedade civil, por meio de entidades, fóruns e organizações da população em situação de
rua, na elaboração, acompanhamento e monitoramento das políticas públicas;
VII - incentivo e apoio ás organizações da população em situação de rua e à sua participação nas diversas
instâncias de formulação, controle social, monitoramento e avaliação das políticas públicas.
VIII - respeito às singularidades de cada território e o aproveitamento das potencialidades e recursos locais na
elaboração, desenvolvimento, acompanhamento e monitoramento das políticas públicas;
I - assegurar o acesso amplo, simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as políticas
públicas de saúde, educação,assistência social,habitação, segurança, cultura,esporte, lazer, trabalho e renda;
3/6
V - desenvolver ações educativas permanentes que contribuem para a formação de cultura de respeito, ética e
solidariedade entre a população em situação de rua e os demais grupos sociais, de modo a resguardar a
observância aos direitos humanos;
VII - disponibilizar divulgar e incentivar a utilização de canais de comunicação para o recebimento de denuncias
de violência contra a população em situação de rua, bem como, de sugestões para o aperfeiçoamento e
melhoria das políticas públicas voltadas para este segmento;
VIII - proporcionar o acesso das pessoas em situação de rua aos benefícios previdenciários e assistenciais e
aos programas de transferência de renda, na forma da legislação específica;
IX - adotar padrão básico de qualidade, segurança e conforto na estruturação e reestruturação dos serviços de
acolhimento temporários,de acordo com o disposto art. 6º;
XII - disponibilizar programa de qualificação profissional para as pessoas em situação de rua, com o objetivo de
propiciar o seu acesso ao mercado de trabalho ou geração de renda.
Art. 6º O padrão básico de qualidade, segurança e conforto da rede de acolhimento temporário deverá
observar limite de capacidade, regras de funcionamento e convivência, acessibilidade, salubridade e
distribuição geográfica das unidades de acolhimento nas áreas urbanas, respeitando o direito de permanência
da população em situação de rua.
Parágrafo 2º A rede de acolhimento temporário existente deve ser permanentemente adaptada e articulada com
as políticas públicas estaduais e federais para o atendimento das necessidades locais.
4/6
A
r
t
Art. 7º .Fica instituído o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitorial da Política Municipal para a
População em Situação de Rua, integrado por representantes do governo municipal e da sociedade civil.
7
Parágrafo
º 1º Integrarão o Comitê Intersetorial, pelo governo municipal, um titular e um suplente dos seguintes
órgãos:
2 - Secretaria Municipal de Prevenção à violência e Promoção dos Direitos Humanos; III - Secretaria Municipal
de Saúde;
Parágrafo 2º A sociedade civil, através das suas organizações que atuam diretamente com a população de rua
terá 06 (seis) representantes, titulares e suplentes, sendo assegurada a participação do Movimento de
População de Rua.
Parágrafo 3º O Ministério Público da Bahia e a Defensoria Pública Estadual poderão compor comitê como
membros convidados.
Art. 8º As Entidades e Organizações da Sociedade Civil que desejarem se habilitar ao Comitê Intersetorial
serão escolhidos mediante eleição democrática promovida pelo órgão gestor de Política Municipal de
População e Situação de Rua e deverão preencher os seguintes requisitos:
4 - As Entidades que tenham como finalidade o trabalho com pessoas em situação de rua são entidades
com personalidade jurídica, criados há pelo menos 01( um) ano e que
5/6
tenham situação comprovada através de ações realizadas junto ao Movimento de População de Rua e/ou
unidade de referência do Município.
Parágrafo Único - Os critérios para habilitação das organizações e entidades bem como o processo de eleição
dar-se à através de ato do Secretário de Desenvolvimento Social e comitê intersetorial de acompanhamento e
monitoramento da Política Municipal para População em Situação de Rua;
At. 9º Compete ao comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal para a
População em Situação de Rua.
I - elaborar planos de ação periódicos com o detalhamento das estratégias de implementação da Política
Municipal para a População em Situação de Rua, especialmente quanto aos objetivos e responsabilidades;
5 - acompanhar e monitorar o desenvolvimento da Política Municipal para a População em Situação de
Rua;
l) - desenvolver, em conjunto com os órgãos municipais competentes, indicadores para o
monitoramento e avaliação das ações da política Municipal para a População em Situação de Rua;
IV - propor medidas que assegurem a articulação intersetorial das políticas públicas municipais para o
atendimento da população em situação de Rua;
V - propor formas e mecanismos para a divulgação da Política Municipal para a População em Situação de
Rua;
VI - instituir grupos de trabalho temáticos para subsidiar as deliberações do Comitê;
VII - Colaborar para facilitar a articulação com as políticas públicas estaduais e federais.
Art. 10º A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social prestará o apoio técnico e administrativo que se fizer
necessário ao funcionamento do Comitê.
Art. 11º Esta Lei entrará em vigor na data a sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
A
r
t
.
1
1
320
6/6
A construção de propostas para o cuidado da população em situação de rua (PSR) no Brasil tem
um longo histórico de intersetorialidade. Na década de 1970 e 1980, a Pastoral do Povo da Rua, da
Igreja Católica, inicia movimento de organização de pessoas em situação de rua, com destaque
para os municípios de São Paulo e Belo Horizonte. Tais iniciativas religiosas foram responsáveis por
implantar casas de assistência aos então moradores de rua, organizar movimentos de representação popular,
sobretudo em relação aos catadores de material reciclável, e realizar eventos e comemorações de mobilização
social de cunho local (BASTOS, 2003; CANDIDO, 2006).
Após o aumento da representatividade da população em situação de rua potencializada por essas
iniciativas, os gestores públicos dos municípios de maior porte começam a delinear estratégias
de identificação e abordagem junto às demandas desse grupo social. Em Belo Horizonte, por exemplo, a Secretaria
Municipal de Desenvolvimento Social assume a agenda política das ações voltadas a essa parcela da população
em 1993, por meio do Programa de População em Situação de Rua, e fomenta a realização do Fórum da
População em Situação de Rua. Tal iniciativa veio, então, desempenhar o papel de integrar vários segmentos
sociais na tarefa de discutir e elaborar políticas públicas capazes de reverter o quadro de exclusão que se impunha
cada vez mais crítico. Entre os seus objetivos, destacou-se o de conhecer a realidade da rua e caracterizar o perfil
desse grupo social; identificar as diversas instituições que atuavam com essa população; e implementar, com ela,
programas de apoio; bem como capacitar tecnicamente os seus membros na busca de alternativas às demandas
apresentadas (BELO HORIZONTE, 1998a).
A partir das constatações do Fórum, foi proposto e realizado um censo específico para a população
em situação de rua (BELO HORIZONTE, 1998b), que reorientou a conformação dos serviços
de saúde dirigidos a ela. Nesse contexto, percebeu-se que o processo de trabalho das equipes de
Saúde da Família (eSF) implantadas, caracterizado pela responsabilização por uma área geográfica
fixa e uma população adscrita, não era apropriado para incluir os moradores de rua, pela sua característica
migratória, o que gerava uma exclusão da PSR da rede assistencial.
Assim, em 2002, a Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte implanta a primeira equipe de
Saúde da Família específica e exclusiva para o atendimento da PSR, sem território de abrangência fixo, que passa
a ser o equipamento de saúde de referência para essa população, e assume a vocação de matriciar as demais eSF
do município na sensibilização do cuidado à PSR eventualmente presente nos territórios dessas equipes, de forma
transversal (REIS JUNIOR, 2011).
Pouco tempo depois, o município de São Paulo, com histórico semelhante, implanta suas primeiras
equipes de Saúde da Família para população em situação de rua, por meio do Programa A Gente na Rua
(CANONICO et al., 2007), e aprofunda o paradigma semântico de certas abordagens de equipes à PSR, em que
visita domiciliar passa a ser “visita de rua”; domicílio, “o lugar em que se costuma ficar na rua”; e família aquela
“constituída por indivíduos declarados no momento do cadastro” (CARNEIRO JUNIOR; JESUS; CREVELIM, 2010).
Outras experiências de centros de saúde com equipes de atenção básica tradicional também começam a
sistematizar ações para a população em situação de rua, porém não de modo exclusivo como as eSF referidas
(CARNEIRO JUNIOR et al., 2006). Mais tarde, outros municípios como Rio de Janeiro, Porto Alegre e Curitiba
implantam suas primeiras equipes de Saúde da Família para população em situação de rua. Além do município de
Belo Horizonte, os municípios de São Paulo, Porto Alegre e Recife também realizam censos municipais específicos
para contagem e estudo desse grupo social.
Em 2007, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome realizou censo para PSR, que
procedeu à contagem de todas as pessoas em situação de rua acima de 18 anos, em um universo de 71 municípios
com população total superior a 300 mil habitantes à época, e reconheceu os quatro censos realizados
autonomamente pelos municípios citados (BRASIL, 2009).
323
Foram identificadas 31.922 pessoas, o que equivale a 0,061% dessas cidades. Tais dados, oriundos do Sumário
Executivo do Censo (BRASIL, 2009), ainda que desatualizados por terem sido levantados em 2007, constituem
referência nacional para se compreender um pouco melhor as características da população em situação de rua nos
grandes centros urbanos e serviram como referência para o governo federal reformular e sistematizar políticas
públicas intersetoriais para a inclusão de pessoas em situação de rua. Também serviram para estimular a
realização de outros censos municipais e distritais e induzir novos caminhos de entendimento e abordagem dos
problemas sociais inerentes.
Caracterização da
População em Situação de Rua Antonio Garcia Reis Junior
“Lutar pela igualdade sempre que as diferenças nos
discriminem,lutar pelas diferenças sempre que a igualdade
nos descaracterize”. (Boa ventura de Sousa Santos)
O censo para população em situação de rua realizado pelo governo federal em 2007 oferece várias informações
para melhor compreensão a respeito das características desse grupo social em 71 municípios brasileiros. O perfil
socioeconômico encontrado pela pesquisa sugere que a população em situação de rua em 2007 era
predominantemente masculina (82%), mais da metade (53%) possuía entre 25 e 44 anos, aproximadamente 69%
se declararam afrodescendentes (29,5% se declararam pretas e 39,1% pardas) e que a maioria (52,6%) recebia
entre R$ 20,00 e R$ 80,00 semanais.
Em relação à formação escolar, 74% dos entrevistados sabiam ler e escrever; 17,1% não sabiam
escrever; 8,3% apenas assinavam o próprio nome; e a imensa maioria não estudava por ocasião da
pesquisa (95%).
Os principais motivos pelos quais essas pessoas passaram a viver e morar na rua se referiam aos
problemas de alcoolismo e/ou drogas (35,5%); desemprego (29,8%); e desavenças com pai/mãe/irmãos (29,1%); e,
dos entrevistados no censo, 71,3% citaram pelo menos um desses três motivos, que a pesquisa destaca que
podem estar correlacionados entre si ou um ser consequência do outro.
Sobre a trajetória, 45,8% dos entrevistados sempre viveram no município em que moravam; 56%
vieram de municípios do mesmo Estado de moradia à época; e 72%, de áreas urbanas. Dos que já moraram em
outra(s) cidade(s), 45,3% se deslocaram em função da procura de oportunidades de trabalho e o segundo principal
motivo foram as desavenças familiares (18,4%). Do total de indivíduos pesquisados, 48,4% estavam há mais de
dois anos dormindo na rua ou em albergue.
Em relação ao local onde dormiam, a maioria costumava dormir na rua (69,6%); um grupo relativamente menor
(22,1%), em albergues ou outras instituições; e apenas 8,3% costumavam alternar, ora dormindo na rua, ora em
albergues. Entre aqueles que manifestaram preferência por dormir em albergue, 69,3% apontaram a violência como
o principal motivo da não preferência por dormir na rua e o segundo principal motivo foi o desconforto (45,2%).
Entre aqueles que manifestaram preferência por dormir na rua, 44,3% apontaram a falta de liberdade como o
principal motivo da não preferência por dormir em albergue. O segundo principal motivo foi o horário (27,1%) e o
terceiro a proibição do uso de álcool e drogas (21,4%), ambos igualmente relacionados com a falta de liberdade.
324
Sobre os vínculos familiares, 51,9% dos entrevistados possuíam algum parente residente na cidade onde se
encontravam, porém 38,9% deles não mantinham contato com esses parentes e 14,5% mantinham contato em
períodos espaçados (de dois em dois meses até um ano); 39,2% consideram como bom ou muito bom o
relacionamento que mantinha com os parentes que viviam na mesma cidade, enquanto 29,3% consideravam esse
relacionamento ruim ou péssimo.
Sobre o trabalho e renda, a população em situação de rua é composta, em grande parte, por trabalhadores, já que
70,9% exerciam alguma atividade remunerada. Dessas atividades, destacavam-se: catador de materiais recicláveis
(27,5%), flanelinha (14,1%), construção civil (6,3%), limpeza (4,2%) e carregador/estivador (3,1%). Apenas 15,7%
das pessoas pediam dinheiro como principal meio para a sobrevivência. Esses dados são importantes para
desmistifi car o fato de que a PSR é composta por “mendigos” e “pedintes” (BRASIL, 2009). Em relação à
alimentação, a maioria (79,6%) conseguia fazer ao menos uma refeição por dia, sendo que 27,4% destes
compravam comida com seu próprio dinheiro. Contudo, 19% não conseguiam se alimentar todos os dias (ao menos
uma refeição por dia).
Sobre suas condições de saúde, 29,7% dos entrevistados afi rmaram ter algum problema de saúde,
cujos problemas mais prevalentes foram: hipertensão (10,1%), problema psiquiátrico/mental (6,1%),
HIV/aids (5,1%) e problemas de visão/cegueira (4,6%).
Dos entrevistados, 18,7% faziam uso de algum medicamento. Postos/centros de saúde eram as principais vias de
acesso a esses medicamentos. Daqueles que os utilizavam, 48,6% afirmaram consegui-los por esse meio. Quando
doentes, 43,8% procuravam em primeiro lugar o hospital/emergência. Em segundo lugar, 27,4% procuravam o
posto de saúde. Esse dado demonstra o quanto os Consultórios de Rua e outras estratégias de atenção primária
devem se aproximar do usuário em situação de rua.
Sobre os hábitos de higiene, os principais locais utilizados por esse público para tomar banho foram
a rua (32,6%), os albergues/abrigos (31,4%), os banheiros públicos (14,2%) e a casa de parentes ou amigos
(5,2%). Os principais locais utilizados para fazer suas necessidades fisiológicas foram a rua (32,5%), os
albergues/abrigos (25,2%), os banheiros públicos (21,3%), os estabelecimentos comerciais (9,4%) e a casa de
parentes ou amigos (2,7%).
Sobre a posse de documentação, 24,8% das pessoas em situação de rua não possuíam quaisquer
documentos de identificação, o que dificulta a obtenção de emprego formal, o acesso aos serviços e programas
governamentais e o exercício da cidadania. A grande maioria não era atingida pela cobertura dos programas
governamentais: 88,5% afirmaram não receber qualquer benefício dos órgãos governamentais.
Em relação às discriminações sofridas, as pessoas citaram, em ordem de prevalência, serem impedidas de entrar
em estabelecimento comercial, shopping center, transporte coletivo, bancos, órgãos públicos, receber atendimento
na rede de saúde e tirar documentos. Apesar de esses dados extraídos do sumário executivo do censo de
população em situação de rua (BRASIL, 2009) constituírem um diagnóstico da realidade da população em situação
de rua em muitos
municípios brasileiros, é importante considerar que o período apurado pode não mais retratar a realidade atual,
tendo em vista a característica migratória dessa população, a mudança de estratégicas públicas dirigidas a ela e
outras variáveis sociais que dão novas facetas ao fenômeno. Assim, a equipe do Consultório na Rua deve se
esforçar em buscar outros diagnósticos acadêmicos e institucionais para melhorar seu olhar técnico e humano
sobre essa população.
VÍNCULO NO ATENDIMENTO À
POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA Júlio Lanceloti
Os muitos anos em que convivo com a população em situação de rua me ensinaram bastante. Aprendi que é
impossível conviver sem estabelecer vínculos que humanizem e facilitem o encontro
e possibilitem respostas. Estabelecer vínculos é uma aprendizagem possível e uma dimensão humana que
podemos desenvolver. Alguns pressupostos são necessários: o despojamento e a empatia, a capacidade de
compreender sem julgar e o respeito, que estabelece limites.
Sabemos que não somos capazes de estabelecer vínculos positivos com todas as pessoas, por
isso é bom trabalhar em equipes que avaliam constantemente suas ações. Não podemos tudo, precisamos
conhecer nossos limites e possibilidades.
325
O vínculo é irmão da gratuidade, sabe esperar o tempo do outro, perceber os pequenos passos que possibilitam,
não é imediatista nem coisifica as pessoas para contabilizar êxitos e respostas
obtidas. A convivência com a população em situação de rua ensina a caminhar sempre, sem desanimar, e a
construir caminhos partilhados. Mesmo quando se tem pressa, como em situações de saúde e aderência ao
tratamento, não é o cuidado não utilitarista, mas a resposta que humaniza e vincula que pode oferecer as melhores
conquistas.
Muitas vezes, vemos o problema como se nele se esgotasse a pessoa. Sempre repetimos, por
exemplo, o problema não é o crack, é a vida. Queremos resolver o sintoma, e não a questão fundamental. As
questões fundamentais podem ser entendidas e encaminhadas a partir da vinculação, que, muitas vezes, é a
melhor medicação, pelo menos para começar!
Quando a população em situação de rua percebe o cuidado para consigo, é que você olha para a vida, e não só
para a ferida, ela se deixa ver. A ferida ou a doença é mais do que a dor de estar doente, é a dor de existir na
situação que provoca essa dor e sobreviver assim. Nossa capacitação técnica tem que ser acompanhada da nossa
capacidade de acolher sem tantos critérios para excluir!
Os vínculos são inclusivos, importantes não tanto em programas e projetos, mas no existir para o outro. A
população de rua está cansada de ser tratada de maneira fria e tecnicista, não se estabelece vínculo que humaniza
em atendimento compartimentalizado onde a pessoa é encaminhada, e não acompanhada, onde se transforma em
dados, fichas e deixa de ser o que é: pessoa.
Pessoa em um emaranhado existencial que nem sempre é possível decifrar, mas que é possível
compreender, aos poucos. Vínculo exige perseverança e permanência, estabilidade que gera segurança,
previsibilidade mesmo nos desafios que enfrentamos no dia a dia do trabalho e do viver. Vínculo revela
conhecimento e reconhecimento. Não estranheza, mas pertença! Só quem pertence ao nosso mundo de
significados estabelece vínculos conosco, e só assim estabelecemos vínculos com o outro.
A população em situação de rua desafia nossa capacidade de aceitação e convivência. Os que mais necessitam, os
que estão em situação de maior risco, muitas vezes, são os que mais resistem, são também os que mais nos
humanizam e preparam para as melhores ações. Vinculação também é escolha, é seleção. Escolhamos, pois, os
que nos humanizam e disponibilizam, sem medo.
A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO
DE RUA E SEUS TERRITÓRIOSAlexandre Trino
Rosana Ballestero Rodrigues
Antonio Garcia Reis Junior
Entendendo que o indivíduo em situação de rua, no seu processo de exclusão, sofre rupturas familiares, sociais e
afetivas,tendo que necessariamente vivenciar novas formas de se relacionar em contextos sociais marcados pela
desumanização e caracterizados por estigmas, violência e segregação, o que o incita a ressignificar sua inserção
no andar a vida, consideramos importante ressaltar o gráfico a seguir, no qual a psicodinâmica da vida nas ruas 1
representa um conceito de construção de resiliência e que deve ser entendido pelo profissional sob o prisma de
como essa população se move nos seus contextos relacionais.
Diante dessa realidade, o indivíduo sente a necessidade da busca de mecanismos psíquicos de adaptação que
possibilitam conviver com a nova realidade que a ele se impõe, construindo uma
resiliência, que, como define Grotberg (1995), é a “capacidade universal humana para enfrentar as
adversidades da vida, superá-las ou até ser transformado por elas”, implementando em si novos
recursos de mediação.
A figura acima nos faz refletir sobre a necessidade do enfrentamento dessa realidade, com políticas que
compreendam o contexto da psicodinâmica da vida nas ruas, por meio de estratégias como os Consultórios na Rua.
Esses dispositivos desenvolvem ações integrais de saúde in locu, visando a serem resolutivos perante as
necessidades de saúde da população em situação de rua (PSR), realizando uma abordagem ampliada, que
possibilite a essa população o acesso ao cuidado da sua saúde como um direito, e não mais como uma “caridade”
ofertada. O direito à atenção integral à saúde, estendido a todo e qualquer brasileiro, é um princípio preconizado
pelo SUS, advindo do sentido de democracia a ser incorporado pela sociedade e garantido pelo Estado.
326
Os Consultórios na Rua são formados por equipes multiprofissionais dentro dos moldes instituídos pela Política
Nacional de Atenção Básica (2011), e suas equipes deverão realizar as atividades de forma itinerante e, quando
necessário, utilizar as instalações das Unidades Básicas de Saúde (UBS) do território adscrito ao qual se fez
abordagem, desenvolvendo ações em parceria com as equipes das unidades.
Levando-se em consideração ser característica dessa população a circulação constante por diversos territórios, é
de suma importância a articulação da rede de serviços no sentido de efetivar a coordenação do cuidado e
fortalecimento do vínculo não só pela equipe do Consultório na Rua, como também pelas equipes das UBS, de
modo que estas também sejam referência e se responsabilizem pelo usuário.
Algumas estratégias são essenciais para o trabalho com a PSR. Além de os profissionais de saúde necessitarem de
abordagem diferenciada, há ferramentas e estratégias que podem subsidiar as equipes na abordagem específica.
Inicialmente, é preciso reconhecer quem é essa população em situação de rua, por meio de diagnósticos, censos,
cartografias, mapeamento de área, ou seja, diferentes nomes e mecanismos para que a equipe de saúde possa
identificar quem são as pessoas em situação de rua, onde elas costumam ficar, como se relacionam com a
comunidade, os serviços públicos e estabelecimentos privados, como acessam os programas assistenciais, quais
são as dificuldades que apresentam, quais os recursos comunitários disponíveis e que parcerias intersetoriais e
interinstitucionais podem ser firmadas. Além dos estudos já citados na caracterização dessa população, a equipe
deve tentar buscar dados de base local que sofistiquem sua compreensão sobre a clientela pela qual se
responsabiliza, seja por meio de censos locais, estudos de organizações não governamentais e da sociedade civil
como um todo, seja por meio de estudos antropológicos, sociológicos e etnográficos, conforme o de Mendes (2007).
Os problemas de saúde demandados pela PSR têm origem em situações complexas, cuja resposta necessita de
intervenções articuladas entre os gestores, profissionais de saúde e com diversos outros setores. Nesse contexto,
todas as variáveis envolvidas no uso e tráfico de drogas, a dificuldade de prevenção de certos agravos
transmissíveis (como DST, dengue, leptospirose, tuberculose, dermatoses) e agravos em saúde mental e a ruptura
de vínculos na relação familiar são exemplos de que a equipe deve buscar envolver outros atores para conseguir
realizar atenção integral à saúde dessas pessoas.
Os profissionais de saúde devem buscar parcerias para o enfrentamento dos determinantes sociais do
adoecimento, tais como problemas na limpeza urbana, falta de recursos para a economia solidária e escassez de
equipamentos sociais direcionados ao apoio da população em situação de rua, de modo a oferecer melhores
respostas a essas pessoas, contribuindo de forma mais efetiva para o desempenho clínico-assistencial.
Parece haver consenso sobre a importância da assistência em saúde não levar em conta somente
os fatores biológicos, mas incorporar a estes os condicionantes e determinantes sociais do processo
saúde–doença, bem como a subjetividade dos sujeitos, possibilitando, assim, uma produção de saúde integral mais
efetiva.
Apesar desse pretenso consenso, nos serviços de saúde, a ideia de assistência ainda não contempla,
necessariamente, atendimento humanizado. Para isso, o acolher, o acesso e o vínculo, enquanto prática política e
terapêutica, precisam fazer parte da agenda em saúde na perspectiva de enxergar o sujeito de direito com vistas a
garantir os princípios de universalidade, integralidade e equidade no acesso, respaldados pela Constituição de
1988, pela Lei Orgânica do Sistema Único de Saúde (SUS) de 1990 e reforçados pela nova Política Nacional de
Atenção Básica de 2011.Nesse sentido, ressaltamos ainda o Decreto nº7.508/2011,que cria as regiões de saúde e
define a oferta de serviços e a relação hierarquizada deles, estabelecendo a atenção básica como porta de entrada
preferencial do SUS, pela qual os pacientes podem ter acesso aos serviços de saúde.
Na dimensão do acesso do usuário em situação de rua, vale ressaltar que esse grupo social normalmente se
reporta ao serviço de saúde em situações emergenciais, não reconhecendo seu corpo doente até que o sintoma
paralise suas atividades diárias. Assim, diante das especificidades do atendimento a essa população, mesmo sem
consulta marcada ou encaminhamento para marcação de consulta – no fluxo hierarquizado de referência e
contrarreferência –, esse usuário deve ser acolhido para que consiga alguma orientação, conforto e
encaminhamento para a resolução de seu problema. Caso contrário, sua circulação/acesso pela rede poderá ficar
impossibilitada perante os inúmeros procedimentos impessoais e burocratizados.
O fato de ter ocorrido procura pelo serviço sinaliza reconhecimento pelo usuário da oportunidade de
cuidado, de construção de vínculos positivos. Abaixo, citamos alguns pontos importantes para auxiliar o profissional
de saúde no atendimento integral à PSR:
• Concepção de saúde não centrada somente na assistência aos doentes, mas, sobretudo, na promoção de
saúde e no resgate da qualidade de vida, com intervenção nos fatores que a colocam em risco;
• Incorporação das ações programáticas, incluindo acesso às redes sociais;
• Desenvolvimento de ações intersetoriais;
• Consciência dos aspectos que condicionam e determinam um dado estado de saúde e dos recursos
existentes para sua prevenção, promoção e recuperação;
327
• Para a organização desse modelo, é fundamental que sejam pensadas as “linhas do cuidado” (da criança,
do adolescente, do adulto, do idoso etc.);
• O trabalho em equipe é um de seus fundamentos mais importantes.
Considerando as fases das diretrizes do cuidado junto à população em situação de rua, o diagnóstico situacional
inclui, além da escuta direta das pessoas que compõem nosso público-alvo, a utilização das informações colhidas
em território no processo de cartografia, tais como: locais de maior concentração e faixas etárias da população em
situação de rua, fluxos de trânsito vinculados aos horários associados à alimentação, ao sono, presença de
policiamento e tráfico/consumo de drogas, detectando também as áreas críticas, no que se refere à violência,
observando demandas de saúde, coexistência de transtornos mentais sem tratamento, prostituição e uso abusivo
de álcool e drogas.
A dinâmica desses percursos, a escuta dessas demandas e o estabelecimento necessário de compromisso diante
de algumas delas, de acompanhamento contínuo, podem representar para a equipe a necessidade de intensificar a
sua presença em determinados territórios. O conhecimento gradativo, a apresentação do serviço, a constituição de
etapas fundamentais da formação do vínculo para acompanhamento tornam, ainda mais singular, cada microárea.
Com base nessas informações, a fase do diagnóstico instrumentaliza o planejamento das ações da equipe do
Consultório na Rua, com vistas a reconhecer as especificidades das subáreas identificadas no território, com fluxo e
perfil diferenciados, nas quais os processos de trabalho devem ser focados, gerando práticas orientadas às
demandas de cada uma das realidades observadas. Assim contextualizado, o diagnóstico deve possibilitar à equipe
um olhar focado em um tripé: território, grupo social e singularidade do sujeito.
Território: compreendendo-o como processo e para além de sua extensão geográfica, representa uma
complexidade de fatores que, no diagnóstico situacional da rua, devem ser considerados. Frente aos diversos
perfis e olhares, a equipe do Consultório na Rua deve ampliar sua percepção no sentido de reconhecer nesse
contexto as variáveis sociais, culturais, demográficas, sanitárias, administrativas, políticas, econômicas, entre
outras, de valiosa importância na construção do planejamento da equipe.
Desta forma, a noção de território em suas várias dimensões, tais como o “território físico” (material, visível e
delimitado), o “território como espaço-processo” (construído cultural e socialmente, de forma dinâmica) e o “território
existencial” (referido às conexões produzidas pelos indivíduos e grupos na busca de sentidos para a vida). Na
prática, é importante perceber como essas diferentes perspectivas coexistem, se interpenetram e, às vezes, se
tensionam.
Um exemplo é o que ocorre nas chamadas “cidades-dormitório”, e outro é o dos territórios escolhidos/inventados
pelas pessoas em situação de rua (BRASIL, 2012). Autores como Barcellos (2007), Mendes (2007), Mehry (2002) e
outros consideram que, no campo da saúde, o território e suas variáveis representam um fator relevante para a
compreensão do conceito de risco, pois levam em consideração múltiplas dimensões das condições de vida que
cercam as pessoas em seus contextos sociais.
Assim, citamos abaixo alguns pontos importantes relacionados ao território que devem ser observados pela equipe
na realização do diagnóstico:
Grupo social: considerando ser a população em situação de rua, um grupo social que tem a maioria de seus
direitos negados por um processo de exclusão social, ao qual Castel (1997, p. 28-29) denomina de
“sobrantes”, indivíduos “que foram inválidos pela conjuntura econômica e social dos últimos vinte anos e que
se encontram completamente atomizados, rejeitados de circuitos que uma utilidade social poderia atribuir-
lhes”.
No entanto, apesar da realidade citada acima, verificamos que pela convivência grupal – que é necessidade
fundamental do ser humano – na rua essa população ressignifica suas relações sociais, constituindo novos grupos
que se caracterizam por identidades definidoras de comportamento e da necessidade da sobrevivência.
328
Assim, é comum encontrarmos os indivíduos em situação de rua acompanhados ou próximos das mesmas
pessoas, dormindo nos mesmos lugares, reconstruindo vínculos afetivos, que em muitas das vezes reproduzem o
contexto familiar, até com denominações peculiares, tais como: família da rua, irmão da rua, mãe/pai da rua, filho da
rua.
Dessa forma, citamos abaixo alguns pontos importantes relacionados ao grupo social que devem ser observados
pela equipe na realização do diagnóstico:
Singularidade do sujeito: cada ser humano traz consigo a marca da sua história e trajetória de vida, o que
determina a sua singularidade. A partir desse princípio, o profissional de saúde que trabalha com população em
situação de rua não pode deixar de considerar todos os aspectos subjetivos que contribuem para construir a
identidade do sujeito e o lugar que hoje ocupa na sociedade e em seu contexto de vida.
Reconhecer que o indivíduo em situação de rua tem uma história que em algum momento o levou para a rua, é
fator primordial para a realização do diagnóstico por parte do profissional de saúde. Vale ressaltar que nos dias de
hoje encontramos nos contextos urbanos os chamados “filhos” e “netos” da rua, pessoas que já nasceram e se
criaram em situação de rua, tendo menores oportunidades de inclusão social. Dessa forma, citamos abaixo alguns
pontos importantes relacionados à singularidade do sujeito que devem ser observados pela equipe na realização do
diagnóstico:
Para realizar o diagnóstico conforme acima descrito, a equipe deverá construir um planejamento de ações diárias,
como um roteiro a ser seguido em território na abordagem ao usuário. Esse roteiro deve contemplar os pontos de
atendimento que serão realizados pela equipe a cada dia da semana, bem como outros fatores relacionados ao seu
processo de trabalho no contexto de cada território, levando em consideração os diferentes perfis de grupo e
observando os critérios para a gestão de riscos eminentes no atendimento in loco.
A seguir, desenvolvemos orientações de ferramentas para processos de trabalho que devem nortear as equipes do
Consultório na Rua no que se refere à cartografia, abordagem e acolhimento.
329
Cartografia
Iacã Macerata
Claudia de Paula
Laila Louzada
Ana Lúcia Gomes
Entendemos Cartografia como a leitura de diversos mapas existentes no território traduzindo-se por
informações, impressões, observações, sinalizações, sentimentos que contribuem para a construção de um certo
campo produtor de subjetividades e devem ser levados em consideração no dinamismo dos diversos contextos da
rua.
A grande função da cartografia é criar uma imagem para a equipe que não necessariamente vai dar conta de todos
os fatores que componham esse território; a equipe deve procurar se familiarizar com ele. Pode fazer desenhos da
área, construindo uma imagem própria do território, e essa imagem é dinâmica, vai mudar e é importante que mude.
A primeira etapa da construção do diagnóstico é a cartografia do campo de atuação das Equipes dos Consultórios
na Rua. O diagnóstico possibilita aos profissionais aproximarem-se do território, sistematizando suas percepções
acerca das condições geográficas, epidemiológicas, culturais, sociais e econômicas que repercutem no modo de
vida daqueles que habitam esse espaço (BARCELLOS; MONKEN apud FONSECA, 2007). E, ainda, entender os
processos e fatores que constroem esse território da maneira como ele nos apresenta.
A segunda etapa é o momento em que a equipe se aproxima das pessoas que compõem o campo de atuação do
território cartografado e escuta suas demandas manifestas, iniciando um processo de vinculação, para,
posteriormente, construir nessa relação de vínculo as demandas desse público. É importante que a presença dos
profissionais não represente – e nem seja – um fator ameaçador para aquele território. Isso coloca em risco a
possibilidade do desenvolvimento do trabalho.
A cartografia integra perspectivas, olhares, paisagens de vida, buscando, dessa forma, mapear com respeito e
competência as diversas camadas de significações apresentadas pela rua. Em um primeiro momento, a escuta é
mais geral, é em verdade a construção de um olhar abrangente do território – a cartografia – dizendo respeito ao
território de forma mais ampla. Em um segundo momento, constrói-se o diagnóstico e a escuta é feita diretamente
com as pessoas que compõem o público-alvo, a partir da formação de vínculo e de uma relação de cuidado. O
diagnóstico, elaborado através da cartografia, levanta e constrói, nessa relação, as demandas desse público e com
esse público.
É necessário conhecer e familiarizar-se minimamente com o território no qual se vai atuar. Essa cartografia que aqui
apresentamos diz respeito ao conhecimento e à apropriação desse território pelas equipes do Consultório na Rua,
uma via fundamental para o acolhimento da população e para a construção do processo de trabalho.
Nessa cartografia, as equipes tratam de identificar pontos importantes relativos à população em situação de rua nos
territórios, no que diz respeito à concentração dessa população em pontos específicos, ao perfil dela em cada uma
das regiões identificadas, aos fatores de risco à saúde e fatores de vulnerabilidade nos territórios, as instituições
parceiras que atuam com a referida população, as instituições que podem vir a se constituírem como parceiras, e
aos espaços e fóruns de discussão acerca deste público e/ou de questões que atravessam essa temática.
Ressaltamos que, para este trabalho, faz-se necessário que a equipe tenha uma postura de atenção e análise dos
movimentos que geralmente passam despercebidos por quem transita apressadamente por esses territórios. A
função do observador deve ser simplesmente observar, e tentar perceber o que não estava muito visível ao olhar
comum que se tem sobre a rua, porém não devemos descartar o contato com a população de rua.
Para a sistematização das observações, os profissionais podem utilizar o instrumento roteiro de campo, contendo
itens relacionados ao percurso realizado, perfil da população em situação de rua, vulnerabilidades identificadas
nesse público e equipamentos sociais presentes na área. Além desse instrumento, o grupo pode registrar
percepções aleatórias que surjam ao se inserirem nesses territórios, o que produz impressões acerca das
dinâmicas destes, ajudando no processo de apropriação dessas áreas por parte da equipe. Lembramos que a
dinâmica da rua apresenta-se de forma distinta em diferentes horários, portanto as áreas devem ser percorridas em
diferentes turnos, a fim de observar a dinâmica da população em situação de rua no território.
Os territórios não são totalidades estáticas, e sim campos vivos e dinâmicos. Justamente por isso entendemos a
cartografia não como um desenho imutável, mas sim incluindo em seu formato as dinâmicas, os movimentos, os
processos de determinado território. A construção da cartografia como primeira etapa do diagnóstico deve contar
com a participação de todos os membros da equipe do Consultório na Rua, sendo que, nesse momento, todos
deverão atuar na mesma função, embora com olhares e perspectivas diversas. Essa cartografia é, portanto, a
tentativa de construir um olhar comum, que não necessariamente é um olhar homogêneo, mas uma perspectiva
compartilhada, que comporta a diversidade de olhares e que é pactuada e validada no coletivo das equipes. Essa
pactuação coletiva tem a intenção de ser a principal ferramenta para realização de um planejamento/plano de
trabalho para a tomada de decisões e validação dos processos de trabalho da equipe e na equipe.
Certo dia, uma equipe da assistência social em abordagem à população de rua ligou para a equipe de saúde da
atenção básica pedindo avaliação de um paciente, desconhecido, deitado na rua há alguns dias. Lá chegando, o
médico e a enfermeira encontraram-no confuso, com higiene precária e com sinais de pneumonia. Eles o levaram
até o serviço de urgência de referência, mas a equipe de acolhimento recusava-se a atendê-lo, pois não tinha
documentos.
A equipe se responsabilizou pelo usuário, conseguindo que ele fosse admitido. No acolhimento, o médico recusou-
se a avaliá-lo pelo estado de higiene precária. A equipe deu banho no paciente em banheiro indicado pelo
assistente social. Finalmente avaliado e medicado, foi internado. Diariamente, o ACS visitava o paciente, que teve
seu estado físico e mental melhorado, o que permitiu sua identificação. Após a alta, começou a ser acompanhado
regularmente pela equipe da atenção básica.
Acolhimento é muito mais do que receber o usuário de forma acolhedora. Acolher é compreender a sua demanda
para além da queixa principal apresentada, é perceber esse cidadão no seu contexto social e inseri-lo em uma rede
de atenção à saúde em que a atenção básica é a coordenadora do cuidado.
Na abordagem inicial do usuário, a equipe deve priorizar uma observação e escuta qualificada, que
necessariamente passam pela valorização e respeito aos diversos saberes e modos de viver dos indivíduos,
possibilitando a construção de vínculos de confiança junto a essa população, que se reproduz em processos
relacionais no cuidado integral à saúde.
Quando se trata de população em situação de rua (PSR), a abordagem e o acolhimento são de fundamental
importância para a produção do cuidado, tendo em vista que esse grupo social é historicamente marcado por um
processo de exclusão dos serviços de saúde, onde a sua presença se traduz em forte incômodo tanto para os
profissionais de saúde quanto para os demais usuários, ficando quase sempre renegado o seu direito à atenção
integral à saúde e, quando muito, apenas é atendido nas emergências.
Dessa forma, a PSR, além de enfrentar uma variedade de barreiras para uso dos serviços de saúde, como a
limitação, muitas vezes, tem dificuldade de identificar o local apropriado para procurar assistência. São poucas as
equipes de saúde específicas e as eSF tradicionais, com a lógica hegemônica da territorialização rígida, nem
sempre têm as portas abertas a esse grupo social. Os serviços de urgência, em sua maioria, são distantes e
inacessíveis. Longas esperas podem significar perda de refeições ou acesso a abrigamento. Processos
complicados de registro que exigem identificação são fatores que desencorajam a busca. A falta de
simpatia/sensibilidade da equipe ou a inabilidade de um único local atender à variedade de problemas apresentados
pelos moradores de rua são barreiras adicionais.
Algumas barreiras para a assistência:
A produção de uma rede de cuidado traz consigo a proposta da humanização de ações e serviços de saúde e,
como consequência, a responsabilização de todos os trabalhadores e gestores em construir, com os usuários,
transformações concretas na prática cotidiana das unidades de saúde. Dessa forma, a rede de cuidado implica a
reorganização da atenção em saúde em todos os níveis, no âmbito do SUS, garantindo a integralidade e
coordenação do cuidado como diretrizes importantes para a atual Política Nacional de Atenção Básica do Ministério
da Saúde.
USUÁRIOS: Crianças, adolescentes, jovens, adultos, idosos (as) e famílias que utilizam espaços
públicos como forma de moradia e/ou sobrevivência.
OBJETIVOS:
Construir o processo de saída das ruas e possibilitar condições de acesso à rede de
serviços e à benefícios assistenciais;
Identificar famílias e indivíduos com direitos violados, a natureza das violações, as
condições em que vivem, estratégias de sobrevivência, procedências, aspirações,
desejos e relações estabelecidas com as instituições;
Promover ações de sensibilização para divulgação do trabalho realizado, direitos e
necessidades de inclusão social e estabelecimento de parcerias;
Promover ações para a reinserção familiar e comunitária.
PROVISÕES
Segurança de Acolhida:
Ser acolhido nos serviços em condições de dignidade;
Ter reparados ou minimizados os danos por vivências de violência e abusos;
Ter sua identidade, integridade e história de vida preservadas.
Condições: Famílias e/ou indivíduos que utilizam os espaços públicos como forma de moradia
e/ou sobrevivência.
Articulação em rede:
Serviços socioassistenciais de Proteção Social Básica e Proteção Social Especial;
Serviços de políticas públicas setoriais;
Sociedade civil organizada;
Demais órgãos do Sistema de Garantia de Direitos;
Instituições de Ensino e Pesquisa;
Serviços, programas e projetos de instituições não governamentais e comunitárias.
Contribuir para:
Redução das violações dos direitos socioassistenciais, seus agravamentos ou
reincidência;
Proteção social a famílias e indivíduos;
Identificação de situações de violação de direitos;
Redução do número de pessoas em situação de rua.
334
Introdução
Esta conversa foi motivada pelo fato de não se ter referencial teórico específico
para tal atividade com a população em situação de rua, uma vez que este
fenômeno só começa a ganhar notoriedade a partir de 2008, com a divulgação da
pesquisa nacional sobre população de rua, realizada pelo Ministério de
desenvolvimento social e combate à Fome – MDS.
conquista da confiança, para então contribuir para a efetiva saída das ruas de
maneira digna. Desse modo, o que se tem aqui é um trabalho pioneiro de
sistematização de como executar os trabalhos de abordagem social na
perspectiva da humanização.
Os relatórios precisam ser nítidos, de modo que qualquer pessoa que os leia
compreenda exatamente quais foram os procedimentos adotados pela equipe.
Quanto mais riqueza de detalhes e meios de verificação dos casos atendidos,
melhor.
Vestuário
Não utilizar máscaras cirúrgicas ou luvas para se aproximar das pessoas. Você não
faz parte de uma equipe de saúde, mas de abordagem social. Salvo que o contato
com a pessoa seja inevitável para prestar socorro, encaminhar para algum lugar
em uma situação em que a mesma não consiga se conduzir por conta própria, ou
ainda em casos em que há comprovado risco de contágio pelo toque.
339
Contudo, estas situações devem ser entendidas como exceções, pois dependem
de uma análise fundamentada; as luvas ou máscaras devem ser postas ao se
deparar com um caso concreto comprovado, não como equipamento obrigatório
para o desenvolvimento do trabalho. A utilização desnecessária desses recursos
transmite ao usuário a mensagem de que você está receoso (a) em se aproximar
dele (a), dificultando a criação dos laços de confiança.
Aproximação
Quem vai abordar também precisa estar bem psicologicamente, se sentir seguro
(a) do que quer desenvolver. Há uma carga emocional muito forte neste trabalho,
a equipe deve, sempre que possível, se reunir antes de iniciar suas atividades
para se fortalecer, sondar como estão os seus membros emocionalmente, se
estão prontos naquele dia.
O primeiro contato deve ser feito sempre cuidadosamente, desejar bom dia, boa
tarde ou boa noite, esperando a reação. Haverá casos em que alguns contatos se
limitarão a estes cumprimentos por algumas vezes consecutivas – em certos
momentos sem resposta, até que a pessoa se sinta à vontade para adentrar em
outras informações a seu respeito, como nome, origem e história de vida. Após
ter vencido esta primeira etapa de aproximação (alguns chamam esse momento
inicial de “paquera pedagógica”1), a equipe poderá iniciar um diálogo mais
confiante.
Iniciando o diálogo
O diálogo precisa ser claro com a pessoa em situação de rua, mas se deve atentar
que as primeiras conversas não precisam ser invasivas, na verdade, é melhor
1
Ancorado em pressupostos como Paulo Freire, Lacan, Vygotsky, Pieget, Wallon e outro, o Projeto Axé, entidade
que trabalha com crianças e adolescentes em situação de rua no Estado da Bahia e uma das entidades conveniadas
no âmbito do Programa Bahia Acolhe, aparece como precursor do conceito em algumas literaturas. Para saber mais
ver Antonio Pereira. Os educadores e suas representações sociais da base epistemológica da Pedagogia Social do
Projeto Axé. Disponível em http://www.proceedings.scielo.br/pdf/cips/n3/n3a01.pdf. Acesso em 02/03/2013.
341
deixar que ele (a) fale o que quiser primeiro, procure saber o nome da pessoa e a
chame sempre pelo nome fornecido, caso seja adulto, “senhor fulano”, “senhora
beltrano” e assim por diante.
Caso a pessoa o (a) cumprimente, aperte a mão dele (a) sem ressalvas, você
poderá higienizar suas mãos após a abordagem em local fora do campo de visão
da pessoa em situação de rua. Comportamentos e olhares de nojo, retração ou
discriminação de qualquer natureza comprometerão o diálogo.
Evite comer qualquer coisa enquanto está conversando com a pessoa, lembre
que talvez ele (a) não tenha se alimentado ainda. Procure se alimentar sempre
fora do campo de visão da pessoa e em horários determinados pela equipe, neste
momento você deve estar concentrado (a) no diálogo.
É importante levar em consideração que o horário noturno não deve passar das
22:00h. A partir desse horário as pessoas em situação de rua já estão
acomodadas em seus lugares para descansar e não é conveniente incomodá-las,
isso pode gerar reações inesperadas e até perigosas para quem aborda. Neste
sentido, obedecer a um horário inteligente para abordagem, respeita a
individualidade dos sujeitos, facilita a constituição de laços de confiança, otimiza
os trabalhos de encaminhamentos à rede de proteção social e garante a
salvaguarda de todos, proporcionando um trabalho mais seguro, eficiente e
eficaz.
Encaminhamentos
Seja para qual serviço for que o usuário seja encaminhado, o Centro Pop melhor
localizado, em relação à referência geográfica aonde o usuário costuma ficar deve
ser acionado para acompanhar os desdobramentos, até porque certos
encaminhamentos à rede de proteção social só poderão ser realizados por esta
equipe de referência.
2
Entenda-se como rede de proteção social todos os equipamentos e serviços ligados às diversas políticas setoriais:
assistência social, saúde, trabalho e outras.
343
É sempre útil, como já frisado, que o abordador conheça bem a rede de proteção
social, mas, além disso, que também conheça o limite e alcance dessa rede.
Equívocos ocorrem porque o serviço de abordagem acaba sendo confundido com
outros serviços de atendimento na rua. Um exemplo simples é que a abordagem
é frequentemente acionada para atender casos clínicos, tipo os que deveriam ser
atendidos pelo SAMU.
ruas devem ter participação proativa nesse processo, a partir da vivência nos
territórios.
Por definição, a proatividade diz respeito a uma postura de alerta, amparada por
capacidade técnica para responder, antecipadamente, às mudanças que se avizinham
346
O conceito de ética preciso diz respeito à capacidade que todo ser humano tem de agir
baseado nos valores universalizantes do respeito ao outro, da solidariedade e da
cooperação. A ética não é uma abstração e nem deve ser idealizada, ela se concretiza
no cotidiano das relações sociais.
A comunidade local precisa ser informada e sensibilizada sobre o trabalho que está
sendo realizado pela equipe do Serviço de Abordagem Social, podendo se constituir
como uma importante parceira. Ao conhecer o Serviço e compreender as condições e
necessidades das pessoas em situação de risco nos espaços públicos, é possível que
a comunidade dos territórios de atuação do Serviço desmistifique e supere concepções
baseadas em procedimentos de “limpeza” e “higienização”, ou seja, com ações focadas
somente na retirada das pessoas dos espaços públicos.
Cada sujeito é único, singular. Em função das diferentes histórias de vida e dos
diversos motivos que levam pessoas e famílias a estarem ou a buscarem nos espaços
públicos meios de sobrevivência, cada situação precisa ser olhada particularmente. Os
atendimentos realizados no Serviço de Abordagem Social precisam ser específicos, de
modo a acolher as necessidades individuais, respeitando as escolhas e o momento em
que cada sujeito encontra-se. A escuta e a participação das pessoas e famílias nas
definições dos melhores encaminhamentos são procedimentos importantes a serem
considerados pela equipe do serviço.
• Trabalho em rede
ANOTAÇÕES – CURSO 5
357
358
359
360
361
ANEXOS
362
PROGRAMAÇÃO E FORMADORES:
GE Pop Rua 2019 - Formação da Rede de Serviços do Centro Histórico
72 horas de Minicursos com temas transversais a Situação de rua, para formar Multiplicadores
de Direitos Humanos - Pop Rua .
PROGRAMAÇÃO E FORMADORES
28 de março
03 e 04 de abril
Rua Pedro Lessa, nº 123, Canela. Salvador / BA. CEP: 40.110-050. Tel.: (71) 3116-6012
363
10 de abril
11, 17 e 18 de abril
Profa. Josimara Aparecida Delgado e convidadas: Possui Doutorado em Serviço Social pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (2007). Tem experiência na área do Serviço Social,
com enfoque nos Fundamentos do Serviço Social e em Políticas Sociais, especialmente na
Rua Pedro Lessa, nº 123, Canela. Salvador / BA. CEP: 40.110-050. Tel.: (71) 3116-6012
364
24 e 25 de abril
Profa. Edna Amado, Assistente Social e fundadora do Núcleo pela Superação dos
Manicômios (Nesm), filiado à Rede Nacional Internxúcleos da Luta Antimanicomial. Edna
Amado é referência nacional para profissionais e estudantes de saúde mental. "Trabalhou
durante 50 anos no Hospital Juliano Moreira e fora dele. Coordenou o Cena: Serviço
Substitutivo em saúde mental, reconhecido nacionalmente como Serviço de excelência.
02, 08 e 09 de maio
Profa. Sueli Oliveira, mulher com trajetória de rua, integrante do Movimento Nacional da
População de Rua, convidadas (os) e equipes de rua.
Rua Pedro Lessa, nº 123, Canela. Salvador / BA. CEP: 40.110-050. Tel.: (71) 3116-6012
365
AVALIAÇÃO de 12 horas
Rua Pedro Lessa, nº 123, Canela. Salvador / BA. CEP: 40.110-050. Tel.: (71) 3116-6012
366
Sandra M. C. de Carvalho
Mestra em Políticas Sociais e Cidadania
Líder do Grupo de Pesquisa População de Rua e Direitos Humanos (Grupo Pop Rua)
Rua Pedro Lessa, nº 123, Canela. Salvador / BA. CEP: 40.110-050. Tel.: (71) 3116-6012