Você está na página 1de 367

CURSO: MULTIPLICADORES DE DIREITOS HUMANOS

POP RUA
GE POP RUA 2019:
SUMÁRIO

1. CURSO: SOCIEDADE E TOTALIDADE ................................................ 02


Prof. Carlos Eduardo Carvalho de Santana
8 horas

2. CURSO: FAMÍLIA...................................................................................... 61
Profa. Vanessa Ribeiro Simon
8 horas

3. CURSO: GÊNERO, RAÇA E CLASSE .................................................. 192


Profa. Josimara Aparecida Delgado e Convidados
16 horas

4. CURSO: SAÚDE MENTAL E A RUA .................................................... 266


Profa. Edna Amado e Convidados
12 horas

5. CURSO: SUJEITO E A RUA ................................................................... 292


Profa. Maria Sueli Sobral (Equipes de Rua) e Convidados(as)
16 horas

ANEXOS .......................................................................................................... 361


2
3

PLANO DE AULA DO CURSO- Núcleo Pop Rua

Curso Historia da Formação do Povo Brasileiro e suas relações com a Educação.


CH Teórica CH Prática CH Total
Professor(a)
03 /04 - Manhã - Textos - Salvador (leitura obrigatória) e Presença indígena

em Salvador (leitura opcional)

03 / 04 - tarde - Violência (Leitura obrigatória) e violência simbólica (leitura opcional)

04 / 04 - educação escolar e Direitos Humanos (leitura obrigatória)

Dia da
Nº Data Conteúdo/Atividade Referência Bibliográfica
Semana
03/04 4ª Formação do Povo CUNHA, Manuela Carneiro. Negros, Estrangeiros., São
Brasileiro Paulo. 1988.
MATOSO, Kátia de Queiros. Ser Escravo no Brasil. 3ª
edição. Editora Brasiliense.São Paulo.SP. 1990.
QUERINO. Manuel. Costumes Africanos no
Brasil.Volume XIX. 2ª Edição. Editora
Massangama.Recife-PE. 1988.
SANTANA, Carlos E. C. de. Lajes dos Negros: Quilombo
da Liberdade, In Coletânea de Textos – Educação na
Bahia. Editora da UNEB, Salvador-Ba. 2001.
01 ________ Carnaval, identidade e educação: Um olhar
sobre os blocos afros In Sementes: Cadernos de
Pesquisa, Salvador. 2002
________ Malê Debalê: Lugar de aprender, Lugar de
ensinar. Disponível em
http://www.africaeafricanidades.com, acesso em 26 de
agosto de 2010.
_____________________________________, In
Coletânea de Textos – Educação na Bahia. Editora da
UNEB, Salvador-Ba. 2001

03/04 4ª Formação do Povo Idem


02
Brasileiro
03/04 4ª Formação da sociedade Idem
03
soteropolitana
03/04 4ª Formação da sociedade Idem
04
soteropolitana
03/04 4ª Violências simbólicas e Idem
desconstrução das
05
identidades dos sujeitos
históricos
03/04 4ª Violências simbólicas e Idem
desconstrução das
06
identidades dos sujeitos
históricos
03/04 4ª Violências simbólicas e Idem
07
desconstrução das
4
identidades dos sujeitos
históricos
03/04 4ª Violências simbólicas e idem
desconstrução das
08
identidades dos sujeitos
históricos
04/04 5º Papel da escola na Idem
09 preservação da nossa
historia
04/04 5º Papel da escola na Idem
10 preservação da nossa
historia
04/04 5º Papel da escola na Idem
11 preservação da nossa
historia
04/04 5º Papel da escola na idem
12 preservação da nossa
historia
5

EDUCAÇÃO ESCOLAR E DIREITOS HUMANOS: NECESSIDADES DE UMA


APROXIMAÇÃO
1
Jenerton Arlan Schütz

2
Cláudia Fuchs

RESUMO: O presente texto, de cunho bibliográfico, tem por objetivo apresentar reflexões
acerca dos desafios e das possibilidades da efetivação de uma Educação em e para os Direitos
Humanos (DH) na escola contemporânea. Todavia, a noção de uma educação que se volte aos
DH ainda não é realidade na prática nem no currículo brasileiro. Num momento em que
vivenciamos a crise de valores públicos e privados e da sociedade como um todo, torna-se
necessário que os temas de igualdade, liberdade e dignidade humana não estejam apenas
inscritos nos documentos/textos legais, mas que ultrapassem barreiras e sejam internalizados
por todos aqueles que, de modo formal ou informal, se responsabilizam pelas novas gerações
e o mundo comum.

Palavras-chave: Educação. Direitos Humanos. Responsabilização.

39

SCHOOL EDUCATION AND HUMAN RIGHTS: NEEDS OF AN APPROACH

ABSTRACT: The purpose of this text is to present reflections on the challenges and
possibilities for the implementation of Education in and for Human Rights (DH) in
contemporary school. However, the notion of an education that goes back to the DH is still
not reality in practice nor in the Brazilian curriculum. At a time when we are experiencing the
crisis of public and private values and of society as a whole, it is necessary that issues of
equality, freedom and human dignity are not only recorded in the legal documents / texts but
that they overcome barriers and are internalized by all those who, formally or informally, take
responsibility for the new generations and the common world.

Keywords: Education. Human rights. Accountability.

1 Doutorando em Educação nas Ciências (UNIJUI), Mestre em Educação nas Ciências (UNIJUI),
Especialista em Metodologia de Ensino de História pela Uniasselvi e Licenciado em História e
Sociologia pela mesma Instituição. Bolsista CAPES. E-mail: jenerton.xitz@hotmail.com

2 Pós-graduanda em Gestão Escolar (Uniasselvi), Graduada em Pedagogia (Centro Universitário FAI-


Itapiranga/SC), Professora na Rede Municipal de Ensino do Município de Ijuí/RS. E-mail:
claudia_fr17@hotmail.com

Revista Perspectiva Sociológica, n.º 20, 2º sem. 2017, pp. 39-52.


6

INTRODUÇÃO

A tematização e discussão sobre os Direitos Humanos (DH) iniciou-se após o genocídio


conferido pelo regime nazista durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o que culminou na
Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948 e, posteriormente, em 1993
ratificada na Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) de Viena. Tais declarações
passaram a introduzir uma concepção de direitos universais e inalienáveis.

Por isso, o tema dos DH tornou-se foco de preocupações no século XXI, ele tem sido
debatido em várias conferências internacionais, também é objeto de políticas públicas em
várias nações do mundo e, passa a ser objeto de estudo para inúmeros pesquisadores, pois, os
DH envolvem o nosso cotidiano e estão relacionados com a educação, com o trabalho, a
exclusão social, a diversidade, a igualdade, a alteridade, a ética, etc.

Diante do debate, a educação é um pré-requisito para adquirir a liberdade civil, uma vez

que os direitos civis são destinados para o uso de indivíduos com mentalidades alargadas, que

aprenderam a ler, escrever, calcular e, principalmente, refletir sobre suas ações. Não obstante,

a implementação de uma Educação em e para os DH torna-se urgente, visto que a sociedade em


geral já experimentou inúmeras formas de distorções na compreensão da realidade social, isto 40

3
é, uma verdadeira falseabilidade da consciência que impossibilita e impede a reflexão. Nesse

ambiente de distorções e de falsa consciência, ou melhor, nestes “tempos sombrios” de que fala
4
Bertolt Brecht , estes tempos onde a radicalidade se opõem à uma Educação em e para os DH,

torna-se fundamental apostar na educação das gerações vindouras.

Por isso, pensar uma Educação em e para os DH surge como possibilidade de inverter
essa falseabilidade da consciência, propondo e estabelecendo caminhos possíveis para um
mundo comum, onde o humano esteja acima do mercado, dos obstáculos da globalização
neoliberal, objetivando intermediar um processo crítico-reflexivo da realidade.

Portanto, o presente o texto, a partir de referencial teórico, pretende tematizar a


possibilidade de uma Educação em e para os DH. A justificativa remete-se a importância que,
num momento em que vivenciamos a crise de valores públicos e privados e da sociedade como
um todo, torna-se necessário que os temas de igualdade, liberdade e dignidade humana não
estejam apenas inscritos nos documentos/textos legais, mas que ultrapassem barreiras e sejam

3
Referimo-nos, por exemplo, à alienação, às barbáries, à sociedade administrada de que nos fala Adorno
(1996).

4
Ver texto disponível em: < http://www.modevida.com/wp/wp-content/uploads/2016/03/Brecht.pdf>.

Revista Perspectiva Sociológica, n.º 20, 2º sem. 2017, pp. 39-52.


7

internalizados por todos aqueles que, de modo formal ou informal, se responsabilizam pelas
novas gerações e o mundo comum.

CONCEITUANDO OS DIREITOS HUMANOS

Os Direitos Humanos (DH) podem ser compreendidos como direitos do


homem/cidadão, entretanto, com reação ao conceito, na obra A Era Dos Direitos (2004),
Bobbio considera que a palavra “direito” presente na expressão “direito do homem” é um
debate constante e bastante confuso. São muitas as definições, contudo, todas basicamente
com o mesmo sentido, isto é, que são direitos do homem aqueles direitos que cabem ao
homem enquanto ser humano. Bobbio (2004) ainda ressalta que estes direitos não são fruto de
uma concessão da sociedade política, todavia, são direitos que a sociedade política precisa e
deve aplicar e garantir.

Nesse sentido, não sendo os DH uma concessão da sociedade política, eles são fruto de
construções históricas marcadas por confrontos e contradições da realidade, após a ocorrência de
injustiças e constantes desigualdades o debate sobre a necessidade de exigir direitos a estes
41
indivíduos que sofreram com essas e outras violências. Ademais, os DH, por mais fundamentais
que possam ser, são construções históricas, isto é, nascem em diferentes conjunturas, caracterizadas
por lutas em defesa de novas liberdades contra antigos modos de poder, por isso, nascem de forma
gradual e lenta.

Para Garcia e Lazari (2014, p. 33), os DH “[...] são aqueles inerentes ao homem
enquanto condição para sua dignidade que, usualmente são descritos em documentos
internacionalmente para que seja mais seguramente garantidos”, grosso modo, podem ser
conceituados como a categoria jurídica instituída com a finalidade de proteger a dignidade
humana em todas as suas dimensões.

A doutrina constitucional reconhece três níveis de direitos considerados fundamentais,


conceituados por, primeira, segunda e terceira geração e, para alguns pesquisadores, também
há uma quarta geração, podendo ser considerados também como dimensões de direitos
fundamentais.

Dessa maneira, os direitos de primeira geração referem-se às liberdades individuais, ou


seja, liberdades de expressão, de consciências, físicas, propriedade. Enquanto a segunda
geração refere-se ao grupo ou sociedade de indivíduos, dito de outra forma, seriam os direitos

Revista Perspectiva Sociológica, n.º 20, 2º sem. 2017, pp. 39-52.


8

sociais (econômicos, culturais e sociais). A terceira geração de direitos refere-se aos direitos
de solidariedade e fraternidade, ou seja, os direitos ao desenvolvimento ou progresso, ao meio
ambiente saudável, à paz, à autodeterminação dos povos. Todavia, há também aqueles direitos
introduzidos no âmbito jurídico pela globalização política, isto é, os direitos de quarta
geração, que são aqueles direitos que se referem à democracia, informação e ao pluralismo,
em outras palavras, seriam os direitos do gênero humano.

Nesse contexto, Bobbio (2004) estabelece que os direitos da primeira geração são
aqueles que correspondem aos direitos de liberdade, logo, não é o Estado que age; os direitos
de segunda geração são denominados pelo autor como direitos sociais, o que corresponde ao
agir (positivo) do Estado; os direitos de terceira geração constituem-se, ainda, como uma
categoria vaga e heterogênea, referindo-se aos direitos do homem em âmbito internacional,
como viver uma vida digna, num ambiente sem poluição; nos direitos de quarta geração, o
autor considera que estes referem-se as possibilidades de promover manipulações genéticas
em cada indivíduo, referindo-se a configuração dos estudos que envolvem a bioengenharia, a
biotecnologia, a bioética.

Em suma, os direitos de “primeira geração” referem-se aos direitos civis e políticos,

42

direitos que tratam das liberdades individuais básicas: à vida, à expressão, participar da
elaboração de leis de sua comunidade política (direta ou indiretamente), formando uma
sociedade aberta e um Estado de Direito; a “segunda geração” de direitos está relacionada aos
direitos econômico-sociais ou simplesmente direitos sociais, tornam o Estado devedor de sua
população, tendo como obrigação realizar ações para garantir um mínimo de igualdade e de
bem-estar social; os direitos da “terceira geração”, referem-se aos direitos do homem no
âmbito internacional, destarte, estão presentes na consciência coletiva da população que passa
a exigir tais direitos do Estado com maior frequência. Referem-se aos direitos de ter um meio
ambiente não poluído/contaminado e viver em uma sociedade harmônica; os direitos da
“quarta geração” são ligados ao pluralismo e à democracia, isto é, a possibilidade de ser
diferente, direito à informação, à pluralidade (nos mais diversos modos), ao respeito das
minorias e apátridas, em suma, podemos dizer que a “quarta geração” se refere aos direitos
das gerações vindouras. Por isso, cabe à atual geração a responsabilidade e compromisso com
o mundo, a fim de que este seja igual, ou melhor, do que aquele que recebemos das gerações
passadas, isso implica na discussão e transversalidade de todas as outras gerações de direitos.

Revista Perspectiva Sociológica, n.º 20, 2º sem. 2017, pp. 39-52.


9

Como observa Norberto Bobbio (2004), a DUDH é muito mais do que uma sugestão,
ela a busca por um valor ético, um programa que age em conjunto com/para toda a
humanidade. A declaração é uma prova histórica do consenso mundial sobre um sistema de
valores. Por isso que, quando olhamos para a declaração temos o sentimento que há muitos
direitos deixados de lado/fora, todavia, é preciso também compreender que os que estão
presentes ainda não se efetivaram por completo em todas as sociedades e a conquista destes
não ocorreu sem um longo processo de lutas.

Assim, diante da contextualização conceitual dos DH, torna-se imprescindível pensar a


educação nesta empreitada, uma vez que na Declaração Universal dos Direitos Humanos
(DUDH) de 1948, o direito à educação encontra-se destinado para “[...] o pleno
desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos
humanos e pelas liberdades fundamentais” (Art. 26). Desse modo, uma Educação em e para
os DH já consta como preocupação na DUDH, trazendo, inclusive, importantes considerações
aos docentes:

[...] Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultam

em atos bárbaros que ultrajam a consciência da humanidade e que o 43 advento de


um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da
liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a
mais alta aspiração do homem comum [...], uma compreensão comum desses
direitos e liberdades é da mais alta importância

para o pleno cumprimento desse compromisso (DECLARAÇÃO


UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948).

No momento em que a sociedade perde a capacidade de ação na busca pela solidariedade e


dignidade humana, e passa a justificar o uso extremo do arbítrio e da força, a coletividade perde
sua autonomia política, sua capacidade de estar-entre-homens, de sentir, pensar e agir (ARENDT,
2009). Não obstante, as experiências totalitárias do século passado nos mostram como se
multiplicaram as constantes práticas genocidas e os massacres em massa, justamente em um
momento em que a humanidade se preocupou em criar e efetivar mecanismos de proteção
internacional para defender a dignidade humana, as liberdades e direitos dos povos.

Portanto, uma Educação em e para os DH torna-se fundamental, pois, em nome de


burocracias, regras, compromissos e visões “egocêntricas”, estamos dispostos a aceitar

Revista Perspectiva Sociológica, n.º 20, 2º sem. 2017, pp. 39-52.


10

5
atrocidades , o perigo à recaída da barbárie ainda é eminente: “Qualquer debate sobre os ideais

da educação é vão e indiferente em comparação com este: que Auschwitz não se repita.”
(ADORNO, 1995, p. 104), grosso modo, “a exigência que Auschwitz não se repita é a
primeira de todas para a educação” (ADORNO, 2006, p. 119).

POSSIBILIDADES DE EDUCAR EM E PARA OS DIREITOS HUMANOS

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 declara a universalidade e


indivisibilidade dos DH e entrega ao Estado a tarefa e responsabilidade de educar (dever) e de
ser educado/ensinado (direito) em DH. Nesse sentido, Andrade (2013, p. 24), considera que os
DH devem ser promovidos e também propagados na educação, pois, “sem dúvida, o campo
educacional tem muito a contribuir nesta tarefa de promoção dos direitos humanos”.

Por isso, a educação é, antes de qualquer coisa, um compromisso com o Outro, com a
pessoa, com o ser humano, logo, ninguém dela escapa. Não obstante, sendo ela um
compromisso com o Outro, ela não só pode como precisa desempenhar um papel fundamental
na construção e no desenvolvimento de uma consciência cidadã, alicerçada na preocupação e

na defesa dos DH. 44 Conforme o Art. 205 da Constituição Federal, “a educação, direito de todos e
dever do

Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando o


pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho” (BRASIL, 2007), estabelecendo uma direção clara em favor de
uma educação que se preocupe com a defesa dos DH.

Ademais, concordamos com Bittar (2011) quando indaga: Por que devemos educar em
DH, articulando a capacidade de sentir e pensar, de vivenciar e pensar de modo crítico a realidade
humana? E como, nas experiências autoritárias, os indivíduos que exerciam suas funções
conseguem justificar a desresponsabilização pelos atos e crimes contra a humanidade?

No escrito Educação após Auschwitz (2006), Adorno alerta para o crescente potencial
autoritário que paira e se reproduz na sociedade moderna. Por isso, é fundamental reconhecer e
desenvolver a consciência dos mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer barbáries

5
Basta lembrarmos do caso de Adolf Eichmann, analisado por Hannah Arendt na obra Eichmann em
Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (1999).

Revista Perspectiva Sociológica, n.º 20, 2º sem. 2017, pp. 39-52.


11

contra a humanidade, ou seja, são incapazes de autorreflexão crítica, ou, nas palavras de
Agamben (2003), exercem simplesmente o dever de ofício, separando-os da consciência ética.

Não obstante, é de suma importância lembrar da contribuição adorniana para que


Auschwitz não se repita: é necessário aprender e exercer o difícil direito de resistir à violência
e à opressão, como também construir uma cultura republicana do respeito às leis e à
responsabilização pessoal (ADORNO, 2006).

Comprova-se a necessidade de se educar em e para os DH, uma vez que tal movimento
deve possuir como objetivo a discussão dos conhecimentos historicamente construídos pela
humanidade sobre os DH, além de reafirmar valores e práticas que possam consolidar a
cultura dos direitos e o exercício do respeito, bem como promover a valorização das
diversidades – de cunho étnico-racial, religioso, cultural, gênero, orientação sexual, entre
outros, somente assim criamos condições para que Auschwitz não se repita.

No artigo de Höffe, intitulado em Valores em Instituições Democráticas de Ensino, o


autor considera que:

Pode ser considerado justo, ou seja, portador pessoal da virtude da justiça, aquele

que, embora mais poderoso e inteligente, não busca dominar os outros, 45 mas
orienta sua ação (por exemplo, de legislador, de juiz, de pai/mãe, de professor ou de
concidadão) na ideia da justiça política, mesmo quando a legislação for falha,
passível de diferentes interpretações ou ineficiente. (HÖFFE, 2004, p. 472).

As instituições escolares contemporâneas devem sempre se mover sobre o chão da


constituição e respeitar, tanto na transmissão de saberes quanto em seus relacionamentos, os
valores básicos de uma sociedade democrática. Destarte, a educação não pode se restringir à
instrumentalização dos indivíduos para a sociedade, devendo sempre respeitar as dimensões
de direitos.

Nesse sentido, a educação que se faz em e para os DH deve ser compreendida como
uma “ação pedagógica conscientizadora e libertadora, voltada para o respeito e valorização da
diversidade, aos conceitos de sustentabilidade e de formação da cidadania ativa” (BRASIL,
2009, p. 25), compreendendo que este processo não está limitado ao espaço escolar, mesmo
que seja neste espaço onde ocorre a sua sistematização.

Revista Perspectiva Sociológica, n.º 20, 2º sem. 2017, pp. 39-52.


12

Por isso, uma Educação em e para os DH será sempre um processo discursivo contra o
6
biopoder , em outras palavras, de toda forma de poder que age sobre a sociedade e os
indivíduos, buscando o controle pleno por parte do Estado. Em Foucault, essa resistência
contra o biopoder expressa-se da seguinte maneira:

[...] contra esse poder ainda novo no século XIX, as forças que resistem se
apoiaram exatamente naquilo que ele investe – isto é, na vida e no homem
enquanto ser vivo. Desde o século passado, as grandes lutas que põem em
questão o sistema geral de poder já não se fazem em nome dos antigos
direitos, ou em função do sonho milenar de um ciclo dos tempos e de uma
idade do ouro. Já não se espera mais o imperador dos pobres, nem o rei dos
últimos dias, nem mesmo o restabelecimento apenas das justiças que se
creem ancestrais; o que é reivindicado e serve de objetivo é a vida, entendida
como as necessidades fundamentais a essência concreta do homem, a
realização das suas virtualidades, a plenitude do possível. Pouco importa que
se trate ou não de utopia; temos aí um processo bem real de luta; a vida
como objeto político foi de algum modo tomada ao pé da letra e voltada
contra o sistema que tentava controlá-la. (Foucault, 2010, p. 136).

Por conseguinte, a Educação em e para os DH será o meio pelo qual o indivíduo, sujeito de
7
direito, empoderado , logo, consciente de seus direitos, irá se apropriar do discurso dominante sobre

os direitos humanos a fim de acioná-lo a seu favor e contra as práticas 46 totalitárias da biopolítica
[ou do biopoder] contemporânea.

Nessa direção, em complementariedade, Maués e Weyl (2007) destacam que uma


educação em DH requer reflexão em torno das condições de possibilidades, de reprodução e
de justificação das formas simbólicas, sociais e políticas permissivas, que, geralmente, tornam
banal a violação da natureza e vulgarizam diversas violações e passam a naturalizar as
relações humanas de submissão, exclusão, exploração, discriminação, violência, preconceito,
apagamento etc.

No artigo Educação em Direitos Humanos: para uma cultura da paz, os autores


Gorzevski e Touchen (2008) defendem que uma educação em e para os DH é essencial para a
formação intelectual e cultural a respeito da dignidade humana, por meio da promoção e da
vivência de atitudes e comportamentos, valores e hábitos, como igualdade e solidariedade,
tolerância e paz.

6
O biopoder se mostra em sua dupla face: como poder sobre a vida (as políticas da vida biológica,
entre elas as políticas da sexualidade) e como poder sobre a morte (o racismo). Trata-se,
definitivamente da estatização da vida biologicamente considerada, isto é, do homem como ser vivente
(CASTRO, 2009).

7
O significado aqui empregado refere-se à consciência social dos DH.

Revista Perspectiva Sociológica, n.º 20, 2º sem. 2017, pp. 39-52.


13

Não obstante, segundo Claude (2005), a educação em DH se constitui num direito


social, econômico e cultural, o direito social porque, no contexto da comunidade, busca
promover o pleno desenvolvimento da personalidade humana; direito econômico, pois passa a
favorecer a auto-suficiência econômica por meio do emprego ou do trabalho autônomo; e, o
direito cultural, já que a comunidade internacional orientou a educação no sentido de construir
uma cultura universal de DH.

Ademais, uma Educação em e para os DH se insere numa abordagem teórica crítica da


educação, por isso, Candau considera que o potencial crítico e transformador da Educação em
DH tem um aspecto sócio-crítico da educação. Assim, uma educação nesta perspectiva,
potencializa uma atitude questionadora, passa a introduzir a necessidade de mudanças, tanto
no currículo explícito, como também no currículo oculto, afetando a cultura escolar
(CANDAU, 1998).

Diante do exposto, as instituições escolares passam a se engajar em prol de uma formação


geral, que esteja empenhada e convergente com a promoção de uma conduta fundada em
princípios e valores éticos, valorizando os direitos e deveres fundamentais da pessoa
(CARVALHO, 2007), pois, sem este esforço por parte da instituição escolar, o aperfeiçoamento
47

isolado de docentes não garante uma eventual melhoria do professor encontre na prática diária
as condições ideais/propícias para melhor o ensino (AZANHA, 1995).

Consequentemente, uma Educação em e para os DH deve impregnar o cotidiano


escolar por meio de sua tematização curricular e do fomento de práticas escolas em
consonância com os seus princípios (CARVALHO, 2007), realizando o aprimoramento da
conduta dos jovens/recém-chegados, buscando dar prioridade ao processo de conscientização,
de forma com que os alunos apreendam que a liberdade de uns não é nada sem a liberdade de
todos; que a liberdade não é nada sem igualdade; que a igualdade necessita estar no coração e
na cabeça de cada um e não pode ser adquirida por compra ou imposição (RIBEIRO, 1981).

Por isso, consideramos que uma Educação que se diz preocupada com os DH, deve ser
promovida tanto nas escolas como também fora delas, com estrita preservação da verdade e
da memória, através da formação problematizadora em DH de educadores e educandos,
baseando-se, fundamentalmente, na diversidade de formas, seja em publicações, teatros,
vídeos, danças, seminários, internet, palestras, pesquisas etc, dando-se sempre a ênfase à
cultura institucional e ao fomento de práticas em consonância com os princípios éticos.

Revista Perspectiva Sociológica, n.º 20, 2º sem. 2017, pp. 39-52.


14

Essa busca essencialmente valiosa entre memória e educação em e para os DH, é


incorporada nas palavras de Bobbio, onde:

O grande patrimônio do ser humano está no mundo maravilho da memória,


fonte inesgotável de reflexões sobre nós mesmo, sobre o universo em que
vivemos sobre as pessoas e os acontecimentos que, ao longo do caminho,
atraíram nossa atenção. [...] o mundo do passado é aquele no qual,
recorrendo as nossas lembranças, podemos buscar refúgio dentro de nós
mesmo, debruçar-nos sobre nós mesmo e nele reconstruir nossa identidade.
(Bobbio, 1997, pp. 53-54).

Nesse sentido, a reconstituição da memória é, portanto, um instrumento essencial e


inafastável. Uma vez que é ela que constitui o sentimento de identidade, de pertencimento,
tanto individual como coletivamente, na medida em que é também um fator de extrema
importância para a continuidade do mundo humano/comum.

Ademais, uma educação que se diz em e para os DH, mas não trabalha o ato de pensar,
também a partir do Outro, deixa-se embair na boa sorte do que encontra como constituído nas
subjetividades unificadoras e totalizadoras dos processos educacionais, e na perda do sentido
do humano reduzindo a possibilidade da alteridade. Portanto, o professor como mediador, tem

48
o desafio de em cada encontro (aula, discussão etc.) colocar-se aberto à alteridade pela
interpelação que vem do Outro, pois esta rompe um pouco ou completamente o plano que apreende
a relação. A educação em e para os DH é, necessariamente, um empreendimento coletivo. Para
educar – e para ser educado – é necessário que haja ao menos duas singularidades em contato.
Educar é um encontro de singularidades.

Portanto, numa educação anônima, para parafrasear Arendt (2013), não há pessoas que
se revelam, nem experiências sobre as quais possamos pensar e nas quais possamos encontrar
algum sentido para a educação e o Outro. Muitas vezes, há experiências e momentos
significativos que surgem, de modo inesperado, em alguma escola, em alguma sala de aula -
algumas luzes, como diz Arendt. Assim, quem pensa o Outro e nele sua educação, tem de
tomar cuidado para não apagar essas luzes, pois elas nos lembram a tarefa da educação: cuidar
de um mundo que não dispensa as pessoas (o Outro), mas depende delas, estas são as
possibilidades do vir-a-ser Educação em e para os DH.

Pois, nas palavras de Hannah Arendt (2013, p. 247), “a educação é o ponto em que
decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos responsabilidade por ele [...] e [...]
onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo.”

Revista Perspectiva Sociológica, n.º 20, 2º sem. 2017, pp. 39-52.


15

Uma educação comprometida com os DH e o mundo comum (eu, o Outro, e tantos outros), dá
as boas-vindas a todos na esperança de que possam amá-lo à sua maneira singular.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As possibilidades de se educar em e para os DH, buscando construir e formar sujeitos


pluridimensionais de DH, requer a humanização do humano que está inserido no ambienta
natural e cultural. Nesse sentido, os processos educativos estão inseridos no amplo espectro da
interação humana e se desdobram em aprendizagem e vivências.

A Educação em e para os DH, constrói-se na base de uma compreensão pluridimensional


do sujeito de direitos, promovendo os espaços de aprendizagem como exercício de reflexão e ação
crítica. Por isso, a tarefa de acolher os novos e mostrar a eles como o mundo é e introduzi-los
8
nesse mundo público, através da transmissão dos saberes teoréticos , é papel da escola. É a escola
que deve apresentar aos mais novos as tradições, as histórias, suas conquistas e os conflitos, é ela
que cuida do mundo que confiaremos às próximas gerações, agregando para a continuidade dele.
É a partir da educação que também se acolhe os recém-chegados, que têm o direito de conhecer o
mundo, de se apropriar dele para depois buscarem seus próprios caminhos
49
e intervir naquilo que compartilham com os outros (SCHÜTZ, 2016).

Logo, uma Educação em e para os DH impõe a necessidade de uma nova pedagogia.


Necessitamos de uma pedagogia que não oculte as barbáries e os gritos dos excluídos, que não
consiga ordenar, nomear, definir ou tornar congruentes os silêncios, os gestos, os olhares e as
palavras do Outro. Uma pedagogia do Outro que volta e reverbera permanentemente é a
pedagogia de um tempo Outro, de um Outro tempo, de uma espacialidade outra, de uma outra
espacialidade. Uma pedagogia que talvez não tenha existido nunca (SKLIAR, 2003).

É uma pedagogia que construa a participação na alteridade, constituindo seres


relacionáveis com posturas e posições plurais capazes de escapar da massificação e dos
esquematismos individualista; uma pedagogia que compreenda os dissensos e os conflitos, que
crie mediações adequadas à sua resolução; uma pedagogia que esteja aberta para o mundo
comum, o que significa dizer que a Educação em e para os DH forma sujeitos cooperativos com

8
Transmite-se saberes teoréticos, isto é, teoréticos vem da palavra teoria, que é uma palavra
lindíssima, que, por sua vez, vem do étimo grego theoria, que significa visão, contemplação. Por isso,
o ensino é definido como o processo de “dar a ver”. Dar a ver, exatamente, por esses saberes que
introduzem uma visibilidade do mundo e dos seres que o habitam, visibilidade essa que tem como
característica fundamental poder ser objeto de transmissão discursiva. (POMBO, 2002).
Revista Perspectiva Sociológica, n.º 20, 2º sem. 2017, pp. 39-52.
16

a consolidação de condições histórias para efetivar amplamente todos os DH de todas as


pessoas.

Portanto, educar nesta perspectiva é, essencialmente, estar aberto para o novo, para o

Outro, pois, como reitera Hannah Arendt:

[...] todo fim da história constitui necessariamente um novo começo: esse


começo é a promessa, a única mensagem que o fim pode produzir. O
começo, antes de tornar-se evento histórico, é a suprema capacidade do
homem; politicamente, equivale à liberdade do homem. Initium ut esset
homo creatus est – “o homem foi criado para que houvesse um começo”,
disse Agostinho. Cada novo nascimento garante esse começo; ele é na
verdade, cada um de nós. (ARENDT, 2009, p. 531).

Por isso, a nossa esperança reside nos novos, por serem iniciadores, por nascerem não
somente para a vida (nascimento), mas também para o mundo (natalidade), são capazes de
interromper processos históricos e, futuramente transformar o mundo e quem sabe criar espaços
novos de interação e convivência. Pois, é isso que lembra a tarefa da educação: cuidar do mundo
e acolher as crianças e jovens que vêm a fazer parte dele, e possibilitar o “direito a ter direitos.”
(ARENDT, 2009, p. 330). 50

Fica aqui o registro para que as preocupações assumidas neste estudo, e as


inquietações e a ânsia por novos horizontes provocativos, possam levar a outros caminhos,
novas pesquisas, novos problemas e possibilidades.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor. Palavras e Sinais: modelos críticos 2. Tradução de Maria Helena Ruschel.

Petrópolis: Vozes, 1995.

_____. Teoria da semicultura. Tradução de Newton Ramos de Oliveira com colaboração de


Bruno Pucci e Cláudia Moura Abreu. Educação e Sociedade. Ano XVII, n. 56, p. 24-56, 1996.

_____. Educação e Emancipação. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006.

AGAMBEN, Giorgio. Opus Dei: Arqueologia do Ofício. Trad. De Daniel Arruda Nascimento.
São Paulo: Boitempo, 2003.

ANDRADE, Marcelo. É a educação em direitos humanos? Em busca de razões suficientes


para se justificar o direito de formar-se como humano. Revista Educação, Porto Alegre, p. 21-
27, jan./abr.2013.

Revista Perspectiva Sociológica, n.º 20, 2º sem. 2017, pp. 39-52.


17

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo e totalitarismo.


Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

_____. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueira.
São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

_____. ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. 7. ed. São
Paulo: Perspectiva, 2013.

ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos


Humanos, adotada e proclamada pela resolução 217 A (III), 1948.

AZANHA, J. M. Educação: Temas Polêmicos. São Paulo: Martins Fonte, 1995.

BITTAR, Eduardo C.B. Democracia, Justiça e Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2011.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

_____. O Tempo da Memória. De senectude e outros escritos autobiográficos. 9. ed. Rio de


Janeiro: Campus; 1997.

BRASIL. (Constituição, 1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 40. ed.
São Paulo: Saraiva, 2007.

_____. Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. 5. tir. atual. Brasília:


MEC/SEDH, 2009.

51
CANDAU, Vera Maria. Educação em direitos humanos: desafios para a formação de
professores. Novamérica, n. 78, p. 36-39, 1998.

CARVALHO, José S. F. de (coord..). Uma ideia em formação continuada em direitos


humanos. In: SILVEIRA, R. M. G. et al. Educação em direitos humanos: fundamentos
teórico-metodológicos. João Pessoa: Editora Universitária, 2007.

CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault: um percurso por seus temas, conceitos e autores.
Trad. Ingrid. M. Xavier. Belo Horizonte-MG: Autêntica. 2009.

CLAUDE, Richard Pierre. Direito à educação e educação para os direitos humanos. Revista
internacional de direitos humanos: SUR, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 37-63, 1 sem. 2005.

FOUCAULT, Michel. Estratégia, Poder-Saber. Manoel de Barros Motta (org.). Trad. Vera
Lúcia A. Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. Coleção ditos e escritos IV.

GARCIA, Bruna Pinotti; LAZARI, Rafael José Nadim de. Manual de direitos humanos. Salvador:
JusPodivm, 2014.

GORCZEVSKI, Clovis; TAUCHEN, Gionara; Educação em Direitos Humanos: para uma


cultura da paz. Revista Educação, Porto Alegre, v. 31, n. 1, p. 66/74, jan./abr. 2008.

HÖFFE, Otfried. Valores em instituições democráticas de ensino. Educ. Soc. [online]. vol. 25,
n. 87, pp. 463-479, 2004.

Revista Perspectiva Sociológica, n.º 20, 2º sem. 2017, pp. 39-52.


18

MAUÉS, Antonio; Weyl Paulo. Fundamentos e marcos jurídicos da educação em direitos


humanos. In: SILVEIRA, Maria Godoy, et al. Educação em Direitos Humanos: Fundamentos
teórico-metodológicos. João Pessoa: Editora Universitária, 2007.

POMBO, Olga. A Escola, a Recta e o Círculo. Lisboa: Relógio d’Água, 2002.

RIBEIRO, João U. Política: quem manda, por que manda, como manda. Ensaios. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

SCHÜTZ, J. A. Educação e cidadania: reflexões à luz de Hannah Arendt. 2016. Dissertação


de Mestrado. Programa de Pós-graduação em Educação nas Ciências. Universidade do
Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí), Ijuí, 2016.

SKLIAR, Carlos. Pedagogia (improvável) da diferença: e se o outro não estivesse aí? Tradução

de Giane Lessa. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

52

Revista Perspectiva Sociológica, n.º 20, 2º sem. 2017, pp. 39-52.


19

Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X

VIOLÊNCIA SIMBÓLICA NO CONTEXTO ESCOLAR: DISCRIMINAÇÃO,


INCLUSÃO E O DIREITO À EDUCAÇÃO

SYMBOLIC VIOLENCE IN SCHOOL CONTEXT: DISCRIMINATION, INCLUSION


AND THE RIGHT TO EDUCATION


Adrielly Rocha Tiradentes

Resumo: Pierre Bourdieu, trabalha o conceito de Violência Simbólica bem como os


mecanismos sutilmente utilizados para sua interposição e legitimação. Diante do contexto
escolar plural e multifacetado, percebe-se a desvalorização e discriminação da diversidade em
vários aspectos, sejam eles físicos ou intelectuais. Deste modo, objetiva-se realizar uma
abordagem conceitual a respeito da Violência Simbólica e o modo em que ocorre sua
legitimação no âmbito escolar. Por derradeiro, serão apontados possíveis caminhos para uma
educação que não engesse a forma de pensar de cada aluno, valorizando sua origem, cultura e
individualidade, bem como, colaborando para promover uma educação emancipadora.

Palavras-Chave: VIOLÊNCIA SIMBÓLICA. DISCRIMINAÇÃO. ESCOLA.

EMANCIPAÇÃO.

Abstract: Pierre Bourdieu, French sociologist, works the concept of Symbolic Violence and
the mechanisms used subtly to his interposition and legitimacy. Before the plural and
multifaceted school context, we see the discrimination and devaluation of diversity in many
ways, whether physical or intellects. Thus, a small conceptual approach regarding the
Symbolic Violence and the way in which is its legitimacy in the school will be made. By last,


Graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2011), onde foi
bolsista integral pelo PROUNI. Pós-graduada em Direito Público pela UNIPAC/FACEB-MG.
Mestranda em Constitucionalismo e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas
(Beneficiária taxa CAPES) Editora Associada da Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas.
Pesquisadora do grupo de pesquisa "Sapere Aude" - Reflexões Críticas sobre Direitos Fundamentais e
Garantias Constitucionais. Integrante do grupo de estudos "Direito Internacional, Constituição e

suspensão de direitos". Advogada inscrita nos quadros da OAB/MG sob o número 135.429.
20

Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X

possible paths will be appointed for an education that not engesse the way of thinking of each
student, valuing their origin, culture and individuality, as well as helping to promote an
emancipatory education.

Keywords: SYMBOLIC VIOLENCE. DISCRIMINATION. SCHOOL. EMANCIPATION.

1. INTRODUÇÃO

Pierre Bourdieu no decorrer de sua extensa trajetória científica, identifica um


fenômeno que poder ser verificado em vários setores sociais: A Violência Simbólica. Tal
trata-se de um mecanismo utilizado de forma sutil por classes dominantes a fim de legitimar
certas crenças, comportamentos ou tradições. Os dominados (que acabam por reproduzir essas
estruturas de forma inconsciente) legitimam essa imposição por pensá-las inevitáveis, ou, até
mesmo, naturais.

O âmbito escolar, conforme aponta Bourdieu, é um meio onde se verifica


nitidamente a presença da Violência Simbólica, eis que, trata-se de um dos campos mais
eficazes para legitimar as reproduções das estruturas sociais. Segundo o sociólogo francês, a
escola orienta sua estrutura pedagógica em prol daqueles que pertencem à classe dominante,
respaldando ainda mais a estrutura preconizada por tais.

Logo, percebe-se que a presença de tal mecanismo no âmbito escolar impõe uma
série de barreiras e problemas para a efetivação de um ensino multidisciplinar que valorize e
avalie cada aluno em suas especificidades.

Com intuito de esmiuçar parte do tema, objetiva-se analisar esse mecanismo


denominado Violência Simbólica que se manifesta de várias maneiras no âmbito escolar,
esfera qual, na atual conjectura plural e multifacetada, necessitaria servir como meio de
integração social.

Para tanto, será feito um aporte à abordagem trazida por Pierre Bourdieu, o modo
como se legitima tal mecanismo e, por derradeiro, maneiras de neutralizar o efeito de tal
violência, propiciando um ambiente escolar inclusivo e multifacetado.
21

Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X

O presente trabalho é resultado de uma pesquisa qualitativa e bibliográfica,


utilizando literatura jurídica pátria e estrangeira com a finalidade de demonstrar a influência
do mecanismo denominado Violência Simbólica nas dependências da esfera escolar, tendo
como base de estudo livros e artigos científicos sobre o tema.

2. VIOLÊNCIA SIMBÓLICA: CONTEXTUALIZÃO E ABORDAGEM


TRAZIDA POR PIERRE BOURDIEU

O fenômeno denominado Violência Simbólica foi elaborado pelo sociólogo francês


Pierre Bourdieu. Fazendo uma breve menção à sua trajetória, percebe-se que Bourdieu
dedicou-se aos estudos da manutenção e reprodução das esferas sociais, bem como na forma
que estas se davam.

Vindo de família de camponeses, Pierre Félix Bourdieu teve a oportunidade de cursar


no melhor instituto de ensino superior da França, pois, seu desempenho escolar despertou
atenção naquele que, anteriormente ao ingresso na Escola Normal Superior, providenciou sua
entrada em uma escola preparatória.

No tramitar de sua caminhada, Bourdieu desenvolveu uma série de conceitos a fim


de explicitar o modo em que se operava a reprodução das estruturas sociais, e, como estas
tinham a ser impostas por classes dominantes. Nesse patamar, descreve o conceito de
Violência Simbólica, como sendo o processo de fabricação de crenças, diretrizes,
ordenamentos no âmbito social.

Tais elementos induzem os indivíduos a se posicionarem em um determinado espaço


de acordo com as premissas previamente formuladas pela classe dominante. Ou seja, além de
reproduzirem esses padrões do discurso dominante, conferem-lhe também legitimidade,
considerando-os naturais e até mesmo inevitáveis.

Segundo o autor, a violência Simbólica é parte de um processo nominado de


“arbitrário cultural”, o qual é imposto pela classe dominante hegemônica. Segundo os
22

Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X

parâmetros dessa definição, exprime-se a ideia de que existe uma cultura inferior e uma
superior, onde, a cultura superior é pertencente à classe mais elevada socialmente e/ou
financeiramente, e, a cultura inferior, pertencente à classe mais popular. Vejamos sua
definição sobre o fenômeno supra citado:

Violência suave que ocorre onde se apresentam encobertas as relações de


poder que regem os agentes e a ordem da sociedade global. Nesse sentido, o
reconhecimento da legitimidade dos valores produzidos e administrados pela
classe dominante implica o ‘desconhecimento’ social do espaço, onde se
trava, simbolicamente, a luta de classes. (BOURDIEU 1989. p. 15)

Esse tipo de violência está presente em vários setores sociais, sendo mais comum do
que muitos podem observar. Seja no âmbito familiar, escolar, ou até mesmo na reprodução de
padrões e costumes sociais.

Arendt e Bourdieu dissertam que o papel da violência na história deve ultrapassar a


relação entre política e guerra, ou, até mesmo, violência e poder, pois, a violência visível e
concreta desaparece, dando lugar à violência implícita, a qual não deixa de ser menos cruel.
Sendo assim, para estes autores esse tipo de violência revela-se como um espaço propício para
práticas explícitas de discriminação, perpetuando-se no próprio meio social. (NEURA,
PASSOS, 2008).

Percebe-se, por derradeiro, que vários dos comportamentos notados hoje no meio
social, são frutos dessa violência que atua de forma tênue, seja na legitimação para aferição de
conhecimento escolar, ou, até mesmo na valoração e modo que os indivíduos de determinada
classe devem se comportar. Observando isto, percebe-se uma certa correspondência àquilo
que fora exposto por Bourdieu, uma vez que, para ele, a reprodução de aspectos culturais não
se dá apenas na esfera econômica, mas também na esfera cultural.

Importa ressaltar, que,

Para que a dominação simbólica funcione, é necessário que os dominados


tenham incorporado as estruturas segundo as quais os dominantes os
apreendem; que a submissão não seja um acto de consciência susceptível de
ser compreendido na lógica do constrangimento ou na lógica do
conhecimento. (BOURDIEU, 2002, p. 231)

Seguindo essa lógica, observa-se que tal mecanismo é simplesmente instituído, sem
23

Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X

qualquer respaldo que não seja o interesse da classe dominante. Logo, tal violência é
produzida e reproduzida no meio social. Reproduzida e não ensinada, eis que, se ensinada
fosse, daria margem para discordâncias, o que não se permite. Nesse aspecto, a violência
simbólica passa quase que encobertamente na rotina do dia-a-dia, seja nos hábitos ou
costumes da sociedade. Seja nas leis produzidas, nas decisões do judiciário, e, inclusive, na
esfera escolar, como será visto adiante.

5 INSTITUTO ESCOLAR E A LEGITIMAÇÃO DA VIOLÊNCIA SIMBÓLICA.


Figura 1: A violência simbólica no âmbito escolar.

Figura 1: A violência simbólica no âmbito escolar.

Fonte: <http://cinismoilustrado.com/>. Acesso em 26/08/2015.

Bourdieu discorreu sobre a escola e seu papel na legitimação da violência simbólica,


a qual, além de disseminar um padrão único de ensino (aquele determinado com base nos
designíos da classe dominante), atuava como importante instrumento de conservação social,
difundindo, principalmente, o caráter da meritocracia para legitimar as desigualdades
24

Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X

verificadas no meio escolar.

Mas não é suficiente enunciar o fato da desigualdade diante da escola, é


necessário descrever os mecanismos objetivos que determinam a eliminação
contínua das crianças desfavorecidas. (BOURDIEU, 1998, p. 41)

A violência no âmbito escolar pode ser verificada de várias maneiras: desde o


tratamento diferenciado dispensado a determinados alunos, até ao conteúdo pragmático que
faz parte do plano pedagógico. Ressaltando-se que, este, não leva em consideração a
amplitude das variadas formas de se aprender, compreender, fixando apenas um plano de
ensino para toda a extensão dos alunos e suas singularidades, o que, em grande parte das
vezes favorece àqueles que já possuem vantagem, qual sejam, os alunos de classe dominante.

A escola, neste turno, porta-se como instrumento para manipulação desse modo de
“aprender”, impulsionando os alunos a serem meros reprodutores de conhecimento,
desprezando suas peculiaridades e especificidades. Tal procedimento é perfeitamente
adequado à ótica que perfaz o plano escolar no que tange à perpetuação da forma de pensar da
classe dominante, tornando totalmente dispensável a interação de educandos de classes
populares no que se perquire as atividades do campo.

Visualiza-se nesta lógica, o poder arbitrário pelo qual se reveste a conduta escolar, a
qual é responsável pela inculcação e imposição de arbítrios culturais, conteúdos, métodos
avaliativos ou de trabalho.

O processo pedagógico torna ainda mais discrepante as diferenças encontradas no


convívio escolar, e, aqueles que são tidos como dominados nesse processo, acabam por
aceitar, na maioria das vezes tacitamente, a imposição das diretrizes ordenadas.

Os dominados contribuem, com freqüência à sua revelia, outras vezes contra


sua vontade, para sua própria dominação, aceitando tacitamente, como que
por antecipação, os limites impostos; tal reconhecimento prático assume,
muitas vezes, a forma da emoção corporal (vergonha, timidez, ansiedade,
culpabilidade), em geral associada à impressão de uma regressão a relações
arcaicas, aquelas características da infância e do universo familiar. Tal
emoção se revela por meio de manifestações visíveis, como enrubescer, o
embaraço verbal, o desajeitamento, o tremor, diversas maneiras de se
submeter, mesmo contra a vontade e a contragosto, ao juízo dominante, ou
de sentir, por vezes em pleno conflito interior e na "fratura do eu", a
cumplicidade subterrânea mantida entre um corpo capaz de desguiar das
diretrizes
25

Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X

da consciência e da vontade e a violência das censuras inerentes às


estruturas sociais. (BOURDIEU, 1997. p. 206)

A partir do momento em que se tem um plano escolar a ser seguido de forma única e
engessada, as possibilidades de usar as diferenças como complementariedade são nulas,
motivo pelo qual a diversidade cultural e social dos alunos são assujeitadas à um único
patamar.

Esse contexto é sem dúvidas, propulsor para as mais variadas formas de


discriminação, sejam elas em relação à raça, cor, sexo ou gênero. Contrapartida é elemento
primordial que respalda a equidade formal – medida de justiça e mérito – preconizada pela
escola.

A perpetuação das desigualdades não é tema colocado em pauta de discussão, eis


que, além de não ser um assunto de interesse da classe dominante, a sociedade sedimentou o
entendimento de que igualdade que se presa é a formal, ou, em miúdes, aquela propulsora da
meritocracia. Nesse diapasão, se forem consideradas as desigualdades sociais diante da escola
e cultura, conclui-se que, a igualdade formal à qual se respalda o sistema escolar é injusta de
fato, pois, em uma sociedade dita democrática, tal protege a mantença dos privilégios em
detrimento à transmissão aberta dos mesmos. (BOURDIEU, 1998, p. 53)

O método para favorecer a permanência e reprodução do status social no âmbito


escolar não requer nada além do que tratar todos os alunos de forma igual, ignorando o meio
de onde vieram, e, consequentemente, as desigualdades sociais entre as diferentes classes
sociais. Não é ao acaso que tornou-se obrigatório o uso de uniformes entre os alunos; uma
forma nítida de igualá-los externamente. Ou, acaso não seria a disposição de uma sala de aula
(professor à frente dos alunos) um modo sutil de impor a superioridade do prelecionador aos
aprendizes (estes visualizados na mesma amplitude seguindo o parâmetro de disposição das
carteiras escolares)? Desde pequenos aspectos aos mais notórios percebe-se a manipulação
dentro do sistema de educação.

Se a escola atribui vantagem àqueles que já a detém, muito mais propício que os
pertencentes à classe dominante alcancem mais facilmente as metas estipuladas pela
instituição, corroborando com a ideia de mérito trazida em seu bojo. Doravante, aqueles que
pertencem a classe subalternizada, terão que se readequar ao plano apontado, uma vez que,
26

Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X

para tais, a escola representa uma ruptura no que tange aos valores e saberes de suas práticas,
dificultando então que estes atinjam os êxitos nos termos propostos pela escola.

O professor que, ao julgar aparentemente “dons inatos”, medem pelos


critérios do ethos da elite cultivada, condutas inspiradas por um ethos
ascético do trabalho executado laboriosa e dificilmente, opõe dois tipos de
relação com um cultura à qual indivíduos de meios sociais diferentes estão
desigualmente destinados desde o nascimento. A cultura da elite é tão
próxima da cultura escolar que as crianças originárias de um meio pequeno-
burguês (ou, a fortiori, camponês e operário) não pode adquirir, senão
penosamente, o que é herdado pelos filhos das classes cultivadas: o estilo, o
bom-gosto, o talento, em síntese, essas atitudes e aptidões que só parecem
naturais e naturalmente exigíveis dos membros da classe cultivada, porque
constituem a “cultura” (no sentido empregado pelos etnólogos) dessa classe.
(BOURDIEU, 1998, p. 55)

Diante desse apontamento, Bourdieu destaca o fardo que os alunos de classes menos
favorecidas enfrentam tanto no decorrer do período letivo quanto no término dessa trajetória,
ocasião em que a própria instituição de ensino consegue dar às suas atitudes a aparência de
que são democraticamente instituídas.

Mas a diversificação oficial (em ramos de ensino) ou oficiosa (em


estabelecimentos ou classes escolares sutilmente hierarquizadas, em especial
através das línguas vivas) tem também como efeito contribuir para recriar
um princípio, particularmente dissimulado, de diferenciação: os alunos “bem
nascidos”, que receberam da família um senso perspicaz do investimento,
assim como os exemplos ou conselhos capazes de ampará-lo em caso de
incerteza, estão em condições de aplicar seus investimentos no bom
momento e no lugar certo, ou seja, nos bons ramos de ensino, nos bons
estabelecimentos, nas boas seções, etc.; ao contrário, aqueles que são
procedentes de famílias mais desprovidas e, em particular, os filhos de
imigrantes, muitas vezes são obrigados a se submeter às injunções da
instituição escolar ou ao acaso para encontrar seu caminho num universo
cada vez mais complexo e são, assim, votados a investir, na hora errada e no
lugar errado, um capital cultural, no final de contas, extremamente reduzido.
[...] E fazem com que o sistema de ensino, amplamente aberto a todos e, no
entanto, estritamente reservado a alguns, consiga a façanha de reunir
aparências de “democratização” com a realidade da reprodução que se
realiza em um grau superior de dissimulação, portanto, com um efeito
acentuado de legitimação social. (BOURDIEU, 1998, p. 223)

No que perquire ao contexto destacado, percebe-se que no momento em que os


indivíduos acessam esse campo educacional (o qual está predisposto à certas determinâncias,
contendo, inclusive, suas próprias regras e métodos) com toda a “carga” cultural que lhes é
peculiar, sendo o campo uma instância hegemônica fechada, qualquer tentativa de resistência
27

Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X

a esse homogeneidade será reportada ilegal, inadequada ou fora dos parâmetros. E é nesse
aspecto que atua a violência simbólica legitimada no seio escolar: moldando o indivíduo à
realidade preconizada por aqueles que dominam o meio social.

Ocorre que, diante do aparente caráter democrático que se reveste os atos


pedagógicos, o próprio indivíduo reputa natural as eventuais consequências oriundas do seu
desempenho escolar, uma vez que a própria escola trabalha, de forma sutil, para legitimar o
modo discriminatório em que se dá a organização de suas estruturas.

Teoricamente, através da educação, o indivíduo deveria emancipar-se de toda forma


de domínio, colocando em xeque conhecimentos ou determinações, identificando, pois, as
situações que o colocam como vítima da violência simbólica. Porém, do que se depreende no
atual contexto, a escola tem se configurado como um poderoso instrumento apto a legitimar
todo esse mecanismo de reprodução de estruturas sociais, não lecionando, pois, no sentido de
formar cidadãos críticos.

4. A ESCOLA COMO MEIO DE SOCIALIZAÇÃO E INCLUSÃO SOCIAL

Conforme se depreende das considerações feitas acima, Bourdieu descreve em suas


obras o modo como a escola atua no que se perquire à reprodução de mecanismos sociais,
resultando então, na legitimação do caráter excludente em que atua a instituição.

Não obstante, em uma sociedade plural e multifacetada, a qual abarca os mais


diversos modos de cultura e hábitos, imperioso a necessidade de um ensino que promova
autonomia, respeitando a individualidade e singularidade de cada aluno. Mister destacar, que
o ensino deverá auxiliar na emancipação do aluno, contribuindo de forma eficaz no
desenvolvimento de suas capacidades, tornando-o um ser pensante, crítico, apto a refletir e
construir seu próprio conhecimento. Sendo assim, a educação a ser promovida pela escola
deverá ter sempre como foco a cidadania, mantendo suas rédeas sempre fixadas no respeito à
todas as culturas.

Porém, um aparato necessário deverá ser feito antes de indicar as hipóteses aptas
para se chegar a um nível emancipatório satisfatório no âmbito escolar: construir uma nova
forma de olhar a coletividade.
28

Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X

A palavra coletividade muita das vezes é associada à expressão homogeneidade,


ideia compatível com o interesse em manter estruturas sociais em prol da classe dominante.
Porém, tratam-se de institutos completamente diferentes, e é justamente essa premissa que
necessita ser revista.

Quando se lança mão da “coletividade”, pressupõe-se interesse de maiorias, como se


os indivíduos que dela fizessem parte tivessem características, experiências e conhecimentos
padrões. Vê-se a coletividade como um todo homogêneo, uma massa unificada, grande parte
das vezes desprovida de quaisquer peculiaridades. Nesse aspecto, aposta-se na defesa de
interesses da maioria, como se as necessidades também fossem similares.

Ocorre que não há espaço para tal concepção, principalmente tratando-se do âmbito
escolar. Como se percebe, na totalidade de um grupo escolar encontram-se os mais variados
elementos que atestam sua heterogeneidade, tais como: a origem familiar (formação, etnia,
localização), os diferentes credos, culturas; elementos que por si só tornam peculiar cada
experiência de vida e conhecimento que o aluno carrega.

Noutro ponto, não se pode reduzir esse complexo círculo à uma esfera uniforme e
homogênea, quando se proclama defender algo em prol da maioria (como se as formas de ver
e conhecer o mundo fossem iguais em todas as pessoas, desconsiderando a autopoiese). Nesse
sentido:

Estamos vivendo um tempo de crise global, em que os velhos paradigmas da


modernidade estão sendo contestados e em que o conhecimento, matéria
prima da educação escolar, está passando por uma re-interpretação. Um
novo paradigma do conhecimento está surgindo das interfaces e das novas
conexões que se formam entre saberes outrora isolados e partidos e dos
encontros da subjetividade humana com o cotidiano, o social, o cultural.
Redes cada vez mais complexas de relações, geradas pela velocidade das
comunicações e informações estão rompendo as fronteiras das disciplinas e
estabelecendo novos marcos de compreensão entre as pessoas e do mundo
em que vivemos. (MANTOAN, 2010, p. 2)

Logo, pessoas e grupos sociais não são iguais perante a escola, e, possuem também
tratamento diferenciado. Tais elementos trazem certos percalços à lógica de padronização do
ensino como meio mais eficaz à estimular a educação e cidadania. Necessário pois, levar em
conta as desigualdades e diferenças que permeiam o convívio escolar, para que, assim,
trabalhe-se a possibilidade de instauração de um contexto escolar mais solidário, fraterno,
29

Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X

inclusivo, acarretando diretamente na produção de uma educação transformadora, para além


da convencionalidade arbitrada pelas classes dominantes.

Não raras vezes em que a Violência Simbólica se manifesta nos arredores escolares
nas mais variadas maneiras. São frequentes os casos envolvendo o recente fenômeno
denominado buylling, seja ele na forma de preconceito racial ou de gênero, e, o que se
percebe, é que a própria instituição escolar não está pronta pra lidar como a diversidade,
tampouco com sua concretude.

Cabe então uma abordagem e apontamento das falhas e/ou omissões que permeiam o
contexto escolar, pois, este, é o lugar onde o indivíduo galga seus primeiros degraus para
estabelecer suas relações de conhecimento, correlacionando parâmetros e aprendendo a
assimilar ensinamentos.

Certo é que a própria escola detém um sistema simbólico de cultura. Esse sistema
trata-se de uma estruturação construída pela própria comunidade acadêmica diretamente
influenciada pelas forças dominantes. Porém, essa realidade que da primazia à
homogeneização, acaba por tornar inviável a exposição e aceitação da diversidade nos mais
variados contextos, sendo, pois, um “padrão” completamente fora de esquadro e inapto a
viabilizar o crescimento pessoal e intelectual dos alunos.

Um ponto difícil de ser rechaçado se concentra na própria aceitação por parte dos
alunos pertencentes à classe dominada. Como se depreende, a classe dominante impõe certos
parâmetros e ordenanças implicitamente, os quais são tidos como legítimos e naturais para
aqueles que se submetem à essas estipulações. E, para ilustrar a assertiva, um caso ocorrido
em maio deste ano 2015 ilustra perfeitamente a situação.

Uma criança de 12 anos, negra, chamada Lorena, constantemente sofria racismo e


buylling por parte de muitos colegas na escola em que frequentava em São Bernardo dos
Campos, no ABC Paulista. Com o comportamento mudado e mais acalentado, o que não era
do seu feitio, sua mãe veio tomar conhecimento da causa no dia em que recebeu uma ligação
oriunda da instituição escolar informando que a filha, Lorena, deveria ser transferida de
escola, pois os seus “colegas” não se “adaptaram” a ela.

O desenvolver indignante da história é que Lorena havia procurado a direção da


escola para relatar as constantes agressões verbais que vinha recebendo em virtude de sua cor
e cabelo. Através de uma acareação precedida pela diretora do colégio, onde Lorena apontou
30

Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X

àqueles que cometiam as agressões, a situação tornou proporções mais drásticas. Além de ter
aumentando os insultos (por ter nomeado os autores), a jovem aluna ainda teve que pedir
desculpa aos seus próprios agressores (determinação da própria diretota). Resultado refletido
em Lorena: Febre alta, inaptidão em comparecer as aulas e estresse pós-traumático.

Devido à proporção que a situação tomou nas redes sociais e, diante da inércia da
escola em tomar atitudes cabíveis, houve intervenção do Conselho Tutelar e do Departamento
de Ações Afirmativas de São Bernardo do Campo, momento qual ocorreu a mudança de
postura e devida responsabilização dos envolvidos direta ou indiretamente no infortúnio. Após
a tramitação desse processo, a coordenadora pedagógica da escola entrou em contato com a
vítima para que essa não deixasse a instituição.

Mui embora a instituição tenha feito algumas ressalvas em relação ao ocorrido (o que

6 perfeitamente presumível, tendo em vista a ínfima possibilidade de assumirem a


responsabilidade pelo omissão diante do ocorrido), esse é um exemplo claro onde se encontra
presente o mecanismo denominado Violência Simbólica.

Em um primeiro momento vê-se a subalternização da aluna negra em função de sua


cor, e, em um segundo momento, a legitimação da violência através da conduta da diretora em
forçar Lorena a pedir desculpa a seus próprios agressores.

Atitudes como essa são corriqueiramente verificadas em vários ambientes, e mais


ainda na esfera escolar. Porém não poucas vezes são silenciadas, pois, ainda existe uma forte
estruturação imposta por aqueles que desde primórdios vem sustentando o ideal da
homogeneidade e legitimando a interposição da Violência Simbólica, prezando a mantença do
padrão de “normalidade” construído.

Bauman usa de uma analogia feita ao conto “A terra dos cegos” para explicitar a
questão da normalidade como uma construção social, feita sob medida para aqueles que
integram o círculo social. No momento em que a “anormalidade” se choca com a ordem
construída, ou seja, com as expectativas dos “normais” (ou maioria), tem-se a discriminação
em desfavor dessa “anormalidade”, atitude que nada mais é que um meio de preservar a
ordem, uma criação sociocultural. (BAUMAN, 2012, p.72)

Nesse aporte, vai mais além:


31

Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X

A ordem é feita sob medida para a maioria, de modo que aqueles que são
relativamente poucos e não se dispõe a obedecê-la constituem uma minoria
fácil de desvalorizar como um “desvio marginal” – e portanto fácil de
identificar, localizar, desarmar e subjugar. Selecionar, identificar e excluir a
“margem da anormalidade” é um resultado necessário do processo de
construção da ordem e um custo inevitável de sua perpetuação. (BAUMAN,
2012, p. 73)

Ocasiões como essa desembocam também naquilo que se denomina estigmatização


do indivíduo, ou seja, a atribuição de rótulos depreciativos ao indivíduo que o torna
inabilitado para a aceitação social plena.

No cotidiano escolar, é bastante comum alunos como alvos de


estigmatização por aqueles que se consideram perfeitos, sejam professores
ou seus próprios pares. Qualquer traço que fuja dos padrões “normais” pode
levar um grupo ao preconceito e à discriminação provocando a exclusão do
“diferente” e este, muitas vezes, passa a assumir a condição de incapaz, de
desacreditado. É possível afirmar, portanto, que a violência simbólica
também se dá, nos julgamentos interpessoais que são, frequentemente,
influenciados por estereótipos, que rotulam e estigmatizam os alunos.
(BORBA, RUSSO, 2011, p. 33)

Educar, mediar ensinamentos não são sinônimos de convivência sem percalços. O


ambiente escolar é um espaço onde se encontram as mais variadas realidades, sendo
totalmente complexo e multifacetado, razão pela qual sempre haverão conflitos. Mas esse não

8 o problema em si. A chave da questão se encontra no modo em como a escola lidará com a
diversidade, viabilizando ou não sua concretude.

Não é forçoso o entendimento de que cada agrupamento social possui sua


singularidade e especificidade. E é justamente por isso que não se pode conceber um processo
educacional onde as variações e diversidades culturais sofram o processo de invisibilidade. E
necessário que o “educar” considere a amplitude dessas variáveis, para que haja o sentimento
de pertença por parte dos alunos.

Para desenvolver um ambiente escolar apto a lidar com as esparsas variáveis,


necessário será o esforço coletivo engajado e comprometido com o ideal de formar cidadãos
que pensam criticamente por si, lutando contra toda a forma de pretensão em modular ou
objetificar a mente humana.
32

Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao trazer o conceito denominado “Violência Simbólica”, percebe-se o modo e os


parâmetro pelos quais esse mecanismo de dominação pode se instalar, bem como, demonstra
as esferas em que muito tem visto sua preponderância.

No presente ensaio foi trazido o modo em que a violência simbólica (entendida por
um mecanismo utilizado de forma sutil por classes dominantes a fim de legitimar certas
crenças, comportamentos ou tradições), se instala no meio escolar, e, quais os efeitos
decorrentes de sua instauração.

Diante da legitimação que o próprio sistema escolar atribui ao mecanismo, seja


disseminando um único padrão de ensino, ou, até mesmo contribuindo através de suas
estruturações para a conservação social, percebe-se a desvalorização, estigmatização e
discriminação daqueles alunos que não se amoldam aos padrões estipulados.

Demonstrado tais fatos, necessário o abandono de práticas que direta ou


indiretamente corroboram com a instalação de práticas discriminatórias, deixando à margem
alunos que possuem hábitos e culturas diversas daquelas premeditadas nos planos de ensino.

A Escola nessa seara, deverá servir como meio de integração social, e não como
meio apto à fomentar à discriminação, principalmente nos fatores que versam sobre gênero,
raça, cor ou credo.

Dever-se-á fornecer meios, mesmo que necessários nas mais diversas formas, para
formar um cidadão consciente, apto a discernir e lutar em desfavor de práticas que, embora
sutis, engessam e legitimam práticas de violência simbólica.

Tal assertiva funda-se na própria Carta Magna brasileira, a qual aponta a educação
como direito fundamental. Ademais, cuidando-se da especificidade deste direito para crianças,
o Estatuto da Criança e do adolescente preza, como um dos seus baluartes, a não
discriminação e valorização de todas as culturas no seio social e escolar.

Uma educação transformadora, emancipadora, para além das estruturações


construídas através dos mecanismos de violência simbólica, só será concretizada a partir do
momento em que forem respeitadas as particularidades e singularidades de cada aluno,
possibilitando então, a integração e sentimento de pertença deste ao seio escolar.
33

Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X

REFERÊNCIAS

ABRAMOVAY, Miriam. O bê-á-bá da intolerância e da discriminação. Disponível em: <


http://www.unicef.org/brazil/pt/Cap_02.pdf> Acesso em: 26/08/2015.

BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco; JUBILUT, Liliana Lyra; MAGALHÃES, José
Luiz Quadros de Magalhães. Direito à diferença. 1ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2013, v. 1, 2, e
3.

BAUMAN, Zygmunt. Sobre educação e juventude. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, v. único.

BORBA, Jorge Falcão. RUSSO, Maria José de Oliveira. Contradições na escola: a violência
no lugar do desenvolvimento humano. Revista múltiplas leituras.V.4, N.2, 2011.
Disponível em: < http://www.bibliotekevirtual.org/index.php/2013-02-07-03-02-35/2013-02-
07-03-03-11/654-ml/v04n02/5607-contradicoes-na-escola-a-violencia-no-lugar-do-
desenvolvimento-humano.html> Acesso em: 26/08/2015.

BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. 2ª Ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1998, v. único.

BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil
LTDA, 1997, v. único.

BOURDIEU, Pierre. A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens
simbólicos. São Paulo: Zouk, 2002.

BOURDIEU, Pierre. Poder simbólico. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil
LTDA, 1989, v. único.

FIGUEIREDO, Eduardo Henrique Lopes; MONACO, Gustavo Ferraz de Campos;


MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Constitucionalismo e Democracia. 1ª Ed. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2012, v. único.

GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª


Ed. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1988, v. único.

MARKOFF, John. Democracia: transformações passadas, desafios presentes e


perspectivas futuras. Dossiê. p.18-50. Ano 15, nº 32, já./abr.2013. Disponível em: <
http://www.scielo.br/pdf/soc/v15n32/03.pdf > Acesso em: 26/08/2015.

NEURA, Cézar. PASSOS, Luiz Augusto. Violência simbólica nos rituais legitimadores dos
processos escolares – Fenômeno bullying no ambiente escolar. Disponível em:
<http://www.pucpr.br/eventos/educere/educere2008/anais/pdf/255_754.pdf> Acesso em:
26/08/2015.

PEREIRA, Jacira Helena do Valle. Violência simbólica em escolas de fronteira: em


questão as diferenças étnico-culturais. Educação & Linguagem.V.14, N.23-24, jan./dez.
2011; ISSN 2176-1043. Disponível em: < https://www.metodista.br/revistas/revistas-
ims/index.php/EL/article/viewArticle/2909> Acesso em: 26/08/2015.
34

Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro – n. 12 – Agosto / Dez. 2015 – ISSN 2176-977X

STIVAL, Maria Cristina Elias Esper. FORTUNATO, Sarita Aparecida de Oliveira.


Dominação e reprodução na escola: Visão de Pierre Bourdieu. Disponível em: <
http://www.pucpr.br/eventos/educere/educere2008/anais/pdf/676_924.pdf> Acesso em:
26/08/2015.

SANTOS, Telma Aparecida da Silva. A mídia e sua relação com a violência simbólica no
contexto escolar. Encontros de pesquisa em educação.V.1, N.1, 2013. Disponível em: <
http://revistas.uniube.br/index.php/anais/article/view/805/923> Acesso em: 26/08/2015.

MANTOAN, Maria Teresa Eglér. O direito de ser, sendo diferente, na escola

É Por uma escola das diferenças. Disponível em: <


http://proex.pucminas.br/sociedadeinclusiva/Blog:%20Direito%20de%20se%20Diferente/O%
20Direito%20de%20Ser,%20sendo%20Diferente,%20na%20Escola.pdf> Acesso em: 26/08/2015.

CARVALHO, Tatiane Kelly Pinto de. Violência simbólica em contextos escolares: o


discurso de autoridade no filme “Entre os muros da Escola”. Poíesis Pedagógica - V.9,
N.2 ago/dez.2011; pp.102-119. Disponível em:
<http://www.revistas.ufg.br/index.php/poiesis/article/view/17304> Acesso em: 26/08/2015.

Brasil: vítima de racismo em escola, menina é obrigada a pedir desculpas aos agressores.
Disponível em: < https://pt.globalvoices.org/2015/05/06/brasil-vitima-de-racismo-em-escola-
menina-e-obrigada-a-pedir-desculpas-aos-agressores/> Acesso em: 26/08/2015.
35

IV ENECULT - Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura


28 a 30 de maio de 2008

Faculdade de Comunicação/UFBa, Salvador-Bahia-Brasil.

ÍNDIOS EM SALVADOR (IDENTIDADE, MEMÓRIA E ALTERIDADE)


1
José de Arimatéa Nogueira Alves

RESUMO

Palavras-chave: Salvador, cultura, identidade, memória e alteridade

O contato colonial eurotupinambá iniciado antes da fundação de Salvador, ampliado após a


chegada dos escravos africanos, causou um brutal impacto e desorganização sócio-cultural na
vida dos tupinambá. O processo civilizatório sob coação, a cristianização compulsória e a
conjuntura econômico-operacional consolidada entre os séculos XVI e XVIII plasmou uma
sociedade mestiça. É certo que a população de Salvador é mestiça; no entanto é possível
levantar dados humanos, históricos e culturais (materiais e simbólicos) comprobatórios da
veracidade da declaração dos “indígenas” e dos “índiodescendentes” domiciliados, hoje, em
Salvador.

1. INTRODUÇÃO

“O “esquecimento” funciona no contexto do discurso como uma elaborada técnica de


desmemoria que alcança toda a consciência social de uma região”.

Dirceu Lindoso, em A Utopia Armada (pg.26).

As discussões obsessivas sobre “raças” estão superadas; hoje sequer há unanimidade sobre o
conceito de “raça”; o interesse pela etnia-identidade amplia-se.

Naturalmente, as pessoas estão sempre mais interessadas pelas discussões da sua realidade ou
do seu entorno. Nisso reside, talvez, o fato de que os ENECULT realizados em 2005 e 2006
terem acatado as resenhas sobre o “PCI - Projeto Cara de Índio”. Desta feita (se me for dado
oportunidade) pretendo apresentar mais reflexões de caráter filosófico-antropológico sem, no
entanto, desprezar as contribuições do campo da antropologia cultural e da história. Afinal,
percebo que algumas pessoas continuam céticas até no campo acadêmico (é o caso da reitoria
da UNEB), enquanto outras contestam francamente (inclusive um antropólogo da ANAI, por
incrível que possa parecer) a existência de índios (e de índiodescendentes) na cidade de
Salvador.

4 ANTECEDENTES (UM POUCO DE HISTÓRIA)

6 1. Salvador, uma aldeia eurotupinambá (século XVI)

7
*Diretor Presidente da UNID – União Nacional dos Índiodescendentes (Salvador)
– email: unidbrasil@yahoo.com.br
36

Diversos estudos descrevem a presença de povos nativos no território atual de Salvador, bem
antes da chegada dos povos ibéricos. É sabido que antes dos tupinambá, outros povos (tupi,
tupina, tupinae etc) ocuparam o litoral da Bahia. Há um dado muito interessante, destacado
por alguns pesquisadores, inclusive pelo antropólogo baiano Antônio Risério (“UMA
HISTÓRIA DA CIDADE DA BAHIA”), sobre a “aldeia eurotupinambá” existente antes da
fundação de Salvador, conforme relato de alguns navegadores, dentre os quais Martim Afonso
de Souza e Simão Alcazaba, em 1533 e 1535, respectivamente. Em 01 de novembro de 1501 a
expedição de Gonçalo Coelho “Comerciou com índios e fixou um marco de pedra numa ponta
rochosa, que, por isso mesmo, veio a se chamar “Ponta do Padrão”, onde fica atualmente o
Farol da Barra” (pg. 53 da op. cit.).

2.2. A Capitania da Bahia de Todos os Santos

Em abril de1534, na cidade de Évora, a coroa portuguesa concedeu a Francisco Pereira


Coutinho uma carta doação exploratória da área que se estendia do rio São Francisco à Baía
de Todos os Santos. Em 1536 o donatário desembarcou na aldeia “eurotupinambá”;
estabeleceu contato e aliança com o seu patrício Diogo Álvares, o Caramuru. Índios
tupinambá e mamelucos (filhos de união com Paraguassu e possivelmente outras) permitiram
ao “Rusticão” (apelido do donatário) estabelecer-se, possivelmente, nas proximidades da Vila
Velha. Nessa época foram instalados os primeiros engenhos de açúcar. O levante tupinambá,
certamente o primeiro no recôncavo, destroçou a primeira investida colonizadora. Caramuru,
que acompanhou o Rusticão na sua última viagem (retornando da Capitania de Ilhéus) não
conseguiu evitar o destino trágico do vitorioso cavaleiro das guerras da Índia. Afirma o
historiador Santos Vilhena que o citado donatário lusitano foi sepultado “nos ventres dos
gentios que então habitavam aquela ilha” (referindo-se à Itaparica, local da tragédia).

2.3. O Governo Geral, fundação da cidade.

Em dezembro de 1548, D. João III, após retomar a Capitania da Baía de Todos os Santos,
decidiu criar um Governo Geral no Brasil. Caramuru mais uma vez foi convocado para apoiar
a nova empreitada. Em 29 de março de 1549 uma esquadra de naus e caravelas, com um
batalhão de mil homens (funcionários, negociantes, padres, operários, tripulantes e
degredados) fundeou na Baía de Todos os Santos. Tomé de Souza e seus expedicionários,
com a colaboração do povo da aldeia de Caramuru, iniciaram a construção da “cidade da
Bahia”. A casa do governador, muralhas e cercas contra os ataques dos tupinambá, câmara
municipal, a “Sé de palha”, a ponte de atracamento naval etc foram erigidos com o barro e a
madeira da terra.
37

Vários acontecimentos marcaram a segunda metade do século XVI, além das primeiras
tentativas de invasão dos holandeses, da unificação dos reinos de Portugal e Espanha (1580-
1640), a brutal guerra de extermínio dos índios, promovida pelo Mém de Sá etc motivam a
migração de povos ibéricos para o Brasil. O trabalho de cristianização dos jesuítas contribuiu
para a desestruturação social e cultural dos povos indígenas no recôncavo e no resto do Brasil.
A “cristianização” significava “amansamento”, subjugação e servidão da população restante
das aldeias destroçadas..

9 OUTROS RECORTES DA HISTÓRIA INDÍGENA, EM SALVADOR

2
É 1. A fusão de “raças” e culturas

O território onde está encravado Salvador pertencia totalmente aos tupinambá até o começo
do século XVI. Como dito, o primeiro donatário ao desembarcar nessa terra encontrou uma
aldeia eurotupinambá. Os tupinambá de Salvador e de outras partes confrontaram e reagiram
violentamente à presença dos “brancos” apesar da presença do português Diogo Álvares, o
Caramuru, com sua aldeia “eurotupinambá”.

Quando da chegada de Tomé de Souza, em 1549, já estava em curso uma “colonização


acidental”, usando expressão colhida de Guillermo GUICCI (“Viajantes do Maravilhoso
Novo Mundo”). João Azevedo Fernandes, por sua vez, fez uma recomposição aproximada, de
gênero feminino, da cultura tupinambá e sobre o que ocorreu na transição ente os séculos XVI
e XVII, não apenas no recôncavo baiano e na cidade de Salvador: “...- muitos europeus se
“indianizaram”, casando com as índias e participando dos costumes nativos, e não estou aqui
me limitando aos casos bem conhecidos de João Ramalho e Diogo Álvares” (“De Cunhã à
Mameluca”, pg. 217).

Somente após meio século de contato eurotupinambá, época suficiente para a conformação de
duas gerações (segunda metade do século XVI) chegaram os povos africanos, escravizados. A
partir desse momento são dadas as condições para ampliação da miscigenação:
3
índiodescendentes, afroindígenas, afrobrasileiros e mulatos .

9 2. Índios na história geral de Salvador

2
Utilizo a palavra “raça” [ainda empregada, amplamente, no campo acadêmico] como recurso
operativo e contrastante da origem dos grupos humanos (nativo-indígena, europeu e africano).

3
Considero o termo “mulato” mais adequado que “pardo”, palavra que propicia interpretações
trânsfugas; a interpretação de que a palavra mulato(a) decorre da história da violência sexual praticada
contra as mulheres de cor preta, tidas como “montaria sexual”. Considero mais razoável que seja uma
alusão à hibridagem, mestiçagem ou “cor de mula”, mulus (no latim), muwallad (mestiçagem entre
árabes) ou muladi (mestiçagem entre árabes cristão), da primeira das quais deriva, em português, a
palavra muar, designativa de uma espécie de híbrida da raça cavalar; no Dicionário Caldas Aulete
encontramos mais uma significação de “mulato”, sem nenhuma conotação depreciativa: “variedade de
pêssegos grandes, na região de Leiria” – cidade fundada bem antes de Salvador (pg. 2438).
38

A presença indígena está mais ou menos registrada, desde a partir da primeira metade do
século XVI, nas crônicas de missionários, documentos oficiais e de viajantes. Depois do
escrivão de Tomé de Souza outros importantes relatos foram feitos por Manoel da Nóbrega,
Anchieta e Vieira e outros missionários. Seguem-se Frei Vicente do Salvador (com relatos dos
séculos XVI e XVII), Luis dos Santos Vilhena (século XVIII). Cito ainda Thedoro Sampaio,
nascido no século XIX, em Santo Amaro (que escreveu “O Tupi na Geografia Nacional”, em
1969 e a “A História da Fundação da Cidade do Salvador”); Pedro Calmon (também nascido
no século XIX, que escreveu “História da Casa da Torre”); Luiz Henrique Dias Tavares;
Antônio Risério e outros.

3.3.Índios na literatura de Salvador

A literatura não foi pródiga para com a história dos nossos índios. Há uma fase da literatura
brasileira chamada de “indianista” (Gonçalves de Magalhães, Gonçalves Dias, José de
Alencar etc) com interessantes registros da temática indígena, embora romanceada. Tem
grande valor literário e histórico a crônica e a poética de Gregório de Mattos Guerra
(Salvador: 1636 / Recife: 1696). O poeta alcunhado “boca de brasa” (e também de “Pica-
Flor”) fez muito uso do vocabulário tupi em muitas das suas criações. Escrevia ele, na
segunda metade do século XVII: “Um calção de pindoba a meia zorra / Camisa de urucu,
mantéu de arara./ Em lugar de cotó, arco e taquara, / Penacho de guará em vez de gorra[...]

/ De Paiaiá tornou-se Abaeté. [...] / Não sei onde acabou, ou em que guerra, / Só sei que deste
Adão de Massapé, / Procedem os fidalgos desta terra”; e em outro poema sobre OS
PRINCIPAIS DA BAHIA, CHAMADOS OS CARAMURUS: [...] “A linha feminina é
carimã / Moqueca, pititinga, caruru / Mingau de puba, e vinho de caju / Pisado num pilão de
Pirajá.[...] O branco é um maraú, que veio aqui; / Ela é uma índia de Maré, / Cabepá, Aricobé,
4
Cobé...
3.4.Índios nas guerras de Salvador

Batalhões indígenas foram muitos utilizados pelos lusos e por outros estrangeiros (franceses,
holandeses e espanhóis) que disputavam a posse da terra ou nas guerras contra vários povos
indígenas. Em Salvador não poderia ser diferente. Santos Vilhena (A BAHIA DO SÉCULO
XVIII – Editora Itapuã/Salvador/1969, pgs. 51 e 55) fala dos batalhões indígenas utilizados
como guardas, em Salvador, no século XVII. Frei Vicente do Salvador, em sua HISTÓRIA
DO BRASIL (escrita em 1627) foi testemunho da resistência à invasão holandesa de 1624,
anotando: “... o governador mandou outra companhia ao porto de Vila Velha, que é meia

4
Em www.sonetos.com.br; só indicado o título do segundo poema; não sublinhados.
39

légua da cidade {refere-se à área Do Carmo e do Terreiro de Jesus] e o escrivão da Câmara


[...] com mais de cem arcabuzeiros e sessenta índios flecheiros...”. Com relação à invasão dos
holandeses, convém considerar a informação de que segundo relato de Frei Vicente Salvador
e outros historiadores, o comandante das forças batavas, coronel Johan Van Dorth,
governador Holandês no Brasil, foi trucidado (perversamente mutilado, segundo relatos) por
um “maioral” que comandava um batalhão indígena (o seu substituto, Albert Shouten,
também foi morto, posteriormente).

Os relatos mais detalhados sobre a guerra contra os portugueses na Bahia, nos anos de
1822/1823, inclusive feitos por Pedro Calmon e de Luiz Henrique Tavares, dão conta de pelo
menos um batalhão de “índios flecheiros”.

4. O TUPI NA NOSSA LÍNGUA

Houaiss, célebre filólogo, afirma, no prefácio-estudo do “Dicionário Histórico das Palavras de


Origem Tupi” (organizado por Antônio Geraldo da Cunha): “... único milagre da nossa
história é que temos uma língua comum [...] que potencializa mais de um milhar de milhões
de seres humanos, acaso linguisticamente indianizados, mas no outro sentido do índio, o
primeiro (pg.12)”. Enfim, a língua de qualquer povo tem um enorme peso cultural, difícil de
ser mensurado em todas as suas dimensões, pois ajuda “... à compreensão da nossa
demografia, da nossa economia histórica, lingüística, histórica, literária, cultural e o que mais
5
for nas amplas áreas das chamadas ciências sociais” (pg. 11) .

Por não estarem grafadas, as línguas dos nossos nativos não resistiram ao impacto causado
pelo encontro (também confronto) com os portugueses. O tupi resistiu um pouco mais pelo
fato de que os jesuítas resolveram utilizá-lo como língua geral, para o que elaboraram um
códice lingüístico-tupinambá, utilizado como língua franca até a segunda metade do século
XVII.

Apesar da opressão e do choque cultural ainda hoje mais de duzentos povos indígenas do
Brasil (com número de indivíduos que varia de uma dezena a alguns milhares) falam uma
língua nativa dentre as cerca de cento e oitenta faladas. A maioria dos falantes de línguas
indígenas concentra-se no Norte do Brasil. No Dicionário Contemporâneo de Língua
Portuguesa Caldas Aulete, encontra-se a seguinte seqüência de palavras: “Teju, Tijuaçu,
Tejubina, Tejubu, Tejuco, Tejunhana, Tejupar e Tejupim” (pgs. 3522/3), todas de raiz
tupínica. Houaiss informa-nos ainda que no “... registro do Atlas do Brasil ao milionésimo
consta de cerca de sessenta mil unidades (com as repetições do mesmo topônimo [...]) em que

5
Itálicos, negritos e sublinhamento não constam nos originais.
40

o percentual de origem tupi e brasílica é alentado”, e que nós, brasileiros, “... somos seres [...]
linguisticamente indianizados...” (op. cit. pgs. 10 e 12).

5. ZONEAMENTO CULTURAL, MISCIGENAÇÃO E ACULTURAÇÃO.

Qualquer estudo sobre população e cultura carece de embasamento científico-acadêmico para


que possa ter credibilidade. Por essa razão, busco ajustar as minhas afirmações ao estudos do
campo científico (histórico, demográfico, antropológicos etc).

5.1. Salvador: área de cultura indígena

Para o interesse estrito desta resenha interessa demonstrar que Salvador, sua Região
Metropolitana (séc. XX) e o Recôncavo Baiano desde que foram citados pela primeira vez
estão integrados, claramente, a uma “região de cultura indígena”, a saber:

Mapa I – “Distribuição das nações Tupi-Guarani da Costa (Início do século XVI)”, publicado
em “Fragmentos de História e Cultura Tupinambá etc”, de Carlos Fausto, e em “De Cunhã à
Mameluca”, de João Azevedo Fernandes, pg. 283.

Mapa II – O “Mapa Etno-Histórico do Brasil e Regiões Adjacentes – Adaptado do Mapa de


Curt Nimuendaju/1944”, editado pelo IBGE, indica a presença de povos tupinambá (ao Norte,
Sul e Oeste - fundos da Baia de Todos os Santos) no ano de 1759.

Mapa III – Mapa, “Áreas Culturais Indígenas do Brasil – 1900/1959”, de Eduardo Galvão, em
que Salvador e a sua RM estão perfeitamente abrangidos pela área “nº 11”. (conforme “Índios
do Brasil”, de Júlio Cezar Melatti, pg. 45).

5.2. Miscigenação e Aculturação

O encontro entre ibéricos e indígenas ocorreu de forma imperativa e subordinante, ou seja,


com o recurso da violência. Os nativos foram expulsos das suas áreas tradicionais,
escravizados, subjugados ou transformados em servos. Já na segunda metade do século XVI
os africanos arrancados da sua terra começaram a ser trazidos, escravizados, destinados
majoritariamente aos engenhos de açúcar que foram implantados a partir da localidade (hoje
zona comercial de Salvador) chamada “Água de Meninos”.

No entanto, a miscigenação e a aculturação não são processos apenas genéticos. Roger


Bastide, em seu manual de Antropologia Aplicada coloca essa questão em bons termos ao
refletir sobre a interação dos “... elementos histórico-culturais (valores, ideologia, estilo de
vida[...] sociológicos (... relação dos grupos, a organização rural ou urbana, etc), [...]
psicológicos (isto é, a inteligência e a personalidade de seus membros) e,
finalmente[...],físicos (saúde, raça, meio geográfico)[...] que define todos esses elementos por
sua interdependência, dentro deste sistema único” (pg. 123), em síntese: “... o homem é duplo
– e que se ele é cultura, é também natureza” (pg. 144).
41

O desdobramento humano (demográfico e sócio-cultural) das “protocélulas eurotupinambá”, a


exemplo da de Salvador (com o Diogo Álvares e Paraguaçu), bem como a localizada no
sudeste (com João Ramalho e a índia Mbici), matrizes com alta vocação reprodutiva, podem
ser estudados ao longo de quinhentos anos. Bastide cita os estudos de Herskovits (pg. 127, op.
citada) para sublinhar “... o caráter inconsciente deste processo primário...”, referindo-se à
“resistência à mudança”, “distorções das transferências culturais”, “reinterpretações” e
“sincretismo”, todos processos complexos. Vale afirmar que a chegada dos africanos, a partir
de Salvador e de outros pontos, complexificou e enriqueceu a miscigenação dessa cidade.

5.2.1. Nossas adoráveis mulheres canibais

João Azevedo Fernandes estudou, na citada “De Cunha à Mameluca”, o processo


transcultural, focalizando o universo feminino, que se irradiou a partir e através das
tupinambá antropófagas. Cabia a essas mulheres não apenas a preparação do ritual, mas
também a execução do ritual antropofágico, condenado pelos “civilizados” e rigorosamente
combatido pelos jesuítas, notadamente por Nóbrega e Anchieta, esse último “... um judeu
basco, que falava latim, escrevendo em tupi”, conforme afirma RISÉRIO (op. cit. pg. 215).
Enfim, ao abandonar o ritual (macabro, para nós “civilizados”) as mulheres tupinambá
perderam status e respeitabilidade tribal, inclusive a solidariedade dos homens tupinambá,
familiares e parceiros. A iconografia histórica oferece-nos valiosos elementos que se prestam
ao estudo da evolução da mulher na sociedade, inclusive as mulheres tupinambá, tapuia e
mameluca. A propósito, encontramos no citado livro de FENANDES, página 282 (figura 2) e
de 290 a 292, respectivamente, a interessante seqüência iconográfica: América (Phillipe Galla,
1579-1600), Mulher Tupinambá (A. Eckhout, 1641), Mulher Tapuia (A. Eckhout, 1643) e
Mulher Mameluca (A. Eckhout, 1641). Daí considero pertinente fazer a seguinte indagação: o
que as mulheres de Salvador herdaram das nossas “adoráveis” antropófagas?

6. ÍNDIOS EM SALVADOR, HOJE (SÉCULO XXI)

Os dados apresentado, além dos citados a seguir, confirmam plenamente a existência de uma
população “indígena” e “índiodescendente”, em Salvador:

6.1. Censo do IBGE (Bahia e Salvador)

O censo realizado pelo IBGE em 2000 (assim como o de 1999) por si só possui credibilidade
política e método científico reconhecido internacionalmente. Com relação à população
“indígena” da Bahia, que totalizou 64.240 indivíduos, convém apresentar o seguinte quadro:
Salvador: 18.712 (29 %), Municípios da RM: 23.006 (36 %) e Demais Municípios (35%).
Resta afirmar que, no ano de 2000, 65% da população baiana (41.712 pessoas) autodefinida
indígena residia em Salvador e na sua Região Metropolitana (Camaçari, Candeias, Dias
42

d’Ávila, Itaparica, Lauro de Freitas, Mata de São João, Madre de Deus, São Francisco do
Conde, São Sebastião do Passé e Simões Filho).

6.2. Reconhecimento institucional

Pelo menos as seguintes instituições reconhecem oficialmente a população “indígena” e


“índiodescendente”, em Salvador: UFBA (conforme “Programa de Ações Afirmativas”
aprovado em 17 de março de 2004); CEFET/BAHIA (adota as mesmas categorias étnico-
identitárias, para efeito de aplicação da política de “cotas” no vestibular); Prefeitura
Municipal (Lei 6.779/2005 – incentivos fiscais) e o Ministério Público – Bahia (aceita a
inscrição de “índiodescendentes” no processo seletivo de estagiários). Em 10 de agosto de
2005 o vereador Odiosvaldo Vigas apresentou Projeto de Lei (PL 08/2005) visando incluir na
LOM um capítulo específico (“XII – Do Índio”). Em maio de 2005, dezessete vereadores
assinaram um Projeto de Lei propondo alteração na Lei Orgânica Municipal mediante a
inclusão de um representante da Fundação Gregório de Matos no “Conselho Municipal do
Carnaval”, alegando a existência dos “... blocos de índios e afro...” citando o “Apaches do
Tororó”.

6.3. Ações promovidas pela UNID

A UNID – União Nacional dos Índiodescendentes, fundada em 2002, tem sede à Avenida Sete
de Setembro, 62, Sala 317, Edf. SULACAP, centro de Salvador, estatuto, registro cartorial,
CNPJ, e não tens fins lucrativos. Essa entidade integrou o Fórum de Entidades e Movimentos
de Direitos Humanos – FEMDH e a Comissão que discutiu e aprovou a “Política de Ações
Afirmativas da UFBA”, em 17 de abril de 2004, incluindo o sistema de cotas para negros,
índios e índiodescentes oriundos da rede pública de ensino. Os dirigentes e associados e
associados da UNID participam de congressos, seminários, palestras e atua em defesa da
cultura dos povos indígenas contemporâneos. A entidade entende que cabe a cada cidadão
reconhecer-se como “indígena” ou “índiodescendente”, o que decorre do direito sagrado de
autodefinição previsto na Constituição Federal e na Resolução 169 da ONU. Os
“índiodescendentes” estão amparados pelo princípio do direito (“quem pode mais, pode
menos”) aplicável à Resolução 169, da ONU. Afinal, não se pode negar ao cidadão o direito
de autodefinir “índiodescendente” quando até poderia autodefinir-se como “indígena”.

6.3.1. PCI – Projeto Cara de Índio

Coube ao autor desta resenha a concepção, a coordenação e execução (parcial) do Projeto


Cara de Índio – PCI, primeiro esforço intelectual e militante de estudo e cadastramento (fase
prévia da realização da pesquisa com metodologia específica). A falta de financiamento do
projeto que determinou a sua realização parcial, com recursos próprios (do autor) não impediu
43

a apresentação e a discussão do PCI no I e no II ENECULT – Encontro de Estudos Culturais,


realizados pela Faculdade de Comunicação da UFBA em 2005 e 2006, respectivamente.

6.3.2. PCI – Banco de Dados

Com recursos próprios e a colaboração de alguns parceiros (remunerados ou não) elaboramos


o banco cadastral de “indígenas” e “índiodescendentes” (inclusive afroindígenas) de Salvador.
Amostras foram coletadas em todas as dezessete AR - Administrações Regionais – PMS,
totalizando quase 3.000 fichas com dados específicos (nome, endereço, sexo, idade,
escolaridade e profissão).

6.3.3. Difusão da temática “indígena” e “índiodescendente”

Nos anos 2004, 2005 e 2006, a diretoria da UNID, em cooperação com outras entidades,
coordenou a realização da SEMANA DA CONSCIÊNCIA INDÍGENA, sem nenhum ônus
para o setor público, fato inédito, em Salvador. Essa entidade também participou, de forma
organizada, juntamente com dezenas de militantes, do “Grito dos Excluídos”, em 2004, 2005
e 2006, com faixas e palavras de ordem em defesa dos povos indígenas.

6.3.4. Em defesa da “Reserva Caramuru – Paraguassu”

Sob a coordenação da pessoa que escreve esta resenha, com a participação da UNID,
Sindicato dos Bancários da Bahia, FEMDH, assessoria parlamentar do Deputado Estadual
Yulo Oitica fundou-se, em meados de 2003, um “Comitê em Defesa dos Índios Pataxó” e
outros da Reserva Caramuru – Paraguassu”. Milhares de cartas padronizadas foram enviadas
ao STF, por várias vias, pedindo justiça e agilização no julgamento da Ação Ordinária
Originária nº 312, que tramita há 25 anos. Petições juntadas ao processo em 20/nov/03 ( nºs
148.367 a 369), 16/jan/04 (nºs 163.358 a 360) e em outras datas.

6.4. Outras fontes reveladoras da cultura indígena.

Ainda que uma simples autodeclaração (item “6.1”) tenha força moral e política, outras fontes
de natureza cultural, tais como a língua (item “4”), artefatos, signos, pistas etc, originados na
vida econômica e social, produtiva e artística e no campo da arqueologia podem (e devem) ser
listadas em favor da visibilidade de qualquer expressão étnico-identitária. Em Buenos Aires, o
arqueólogo Schávelzon busca “... reconstruir, através de pequenos objetos e de pistas [...]
práticas negras existentes no passado da capital argentina” (A Utopia Brasileira e os
Movimentos Negros, Antônio Risério, pg. 412). Portanto, seguindo essa linha, para concluir,
listamos os seguintes elementos comprobatórios da ação e da presença indígena em Salvador:
6.4.1. Retrato Molecular do Brasil

Os estudos populacionais realizados pelo doutor Sérgio Pena (UFMG), conhecido como
“Retrato Molecular do Brasil”, são de grande importância para o conhecimento da nossa
44

população. Marcelo Leite afirma, em artigo publicado na Folha de São Paulo (Caderno Folha
Ciência) de 26 de março de 2000, sobre o estudo do Dr. Sérgio Pena e sua equipe: “Hoje,
como há na população um terço de haplótipos indígenas (mtDNA), isso corresponde a algo
como 50 milhões de linhagem ameríndia ou pelo menos dez vezes mais do que havia quando
a Terra dos Papagaios foi descoberta”, comentando os dados do citado estudo.

Salvador não é apenas um dos territórios onde germinou o protoplasma da nossa população
indígeno-mestiça, mas também é um território onde vive parcela dessa população.

6.4.2. Ícones e signos urbanos, indígenas.

Em torno do Campo Grande há, no mínimo, três referências culturais e construtivas alusivas à
cultura indígena (as primeiras citadas), além de outras:

a) panteão ao “Dois de Julho”: talvez seja o monumento nacional em que a figura de um índio

– centralizado e no alto – está postada em maior destaque;

b) belo painel pintado por Caribé (aproximadamente 3 x 4 m), colorido, com a temática
indígena, na entrada do edifício “Tupinambá” (Rua João das Botas);

c) portaria do condomínio residencial “Bartira”, sito à Rua Leovigildo Filgueiras.

d) fonte hídrica e luminosa, com estátua de índia no topo, localizada defronte ao Quartel da
Polícia Militar da Bahia, sito à Praça Aspilcueta Navarro (Aflitos – Centro);

e) possivelmente o maior painel de Caribé, com temática indígena, esteja localizado no Cine
2
Glauber Rocha (Praça Castro Alves), com aproximadamente 40m , sito no salão de projeção
– edifício atualmente em obras de ampliação e adaptação;

f) estátua de argamassa/cimento, tamanho natural de um índio jovem, portando adereços


típicos, externamente, à altura do segundo andar do edifício sede da “Casa do Caboclo”, um
casarão de três andares construído no começo do século XX (1912), sito na confluência das
ruas Conselheiro Dantas com a Ourives, no bairro Comércio;
6
g) monumento “Rupestre Brasileiro” (Itacoatiara) , bela instalação de ferro e cimento, doada
2
e edificada por Siron Franco em uma encosta de aproximadamente 500m , defronte ao Dique
do Tororó, no começo desta década (lamentavelmente, hoje, com apenas cerca de 70% das
peças originais; as demais peças foram roubadas).

6.4.3. Antropônimos, topônimos e geônimos de origem indígena.

Salvador tem Rua dos Índios (bairro Cidade Nova), Rua dos Canibais (bairro Pernambués),
Condomínio Aldeia Jaguaripe ou ainda um bairro (Jardim Brasília - Saramandaia) com várias

6
“Itacoatiara”: derivado de itá (pedra) + kua´tiara (pintura), cf. Dicionário Histórico das Palavras
Portuguesas de Origem Tupi, de Antônio Geraldo da Cunha (pg.158)
45

ruas “indígenas” (Acajutiba, Botuporã, Canarana, Guaratinga, Guarirú, Ibicuí, Jaguaquara,


Jequiriçá, Maracani, Paratinga, Pirapora, Tamboatá, Taperoá, Tapiramutá etc).

Faço algumas indicações (inclusive derivadas ou corruptelas) que possam ilustrar esse
marcador sócio-cultural:

I. Nomes das pessoas domiciliadas em Salvador, conforme diversas fontes (cartórios, Banco
de Dados Cadastrais da UNID, imprensa e outras): Anari, Aranda (s), Ari, Araci, Bartira,
Buriti, Canindé, Caramuru, Caubi, Guaracy(i), Y(I)ramá, Ian (derivado de Iã?), Itaparica,
I(y)ara, I(y)ano, Jaguarci (y), Juracy(i), Jurema, Juss(ç)ara, Karaí (y), Karipuna, May(i)ra,
Maués, Missu, Moaci(y)r, Moema, Naira, Naíra, Paraguassu (também com ç), Paraná, Peri
(y), Petitinga, Poti(y), Tainá, Taiana, Tabajara, Ubiratã(n), Yuri (guarani, além de russo) etc.

II. Nomes de locais (bairros, praças, ruas, travessas etc) e acidentes geográficos: Aldeias
Jaguaripe (condomínio residencial), Apipema, Aratu, Baependi, Caetés, Camarajib(p)e,
Capanema, Capimirim, Carijós, Cunha (ã), Gamboa, Goitacás, Guarani, Guaratinga, Guaporé,
Humaitá, Iguatemi (Centro comercial, empresarial e bairro), Ipirá, Itaparica, Itabira, Itaboray,
Itapoã, Itapuã (an), Jaborandi, Jequitaia, Juá, Juamirim, Jurunas, Marajó, Mauá, Mecejana,
Paramana (Ilha), Paripe, Periperi, Pernambués, Pernambuco, Piauí, Pirassununga, Sergy,
Sucupira, Tapuia, Tibiriçá, Tupi (y), Tupinambá, Urubupanga (Urubupungá?), Xavantes etc
6.4.4. Carnaval da Bahia

O Carnaval, foi introduzido no Brasil pelos portugueses. “Combatido como jogo selvagem, o
entrudo prevaleceu até quando apareceram elementos de brincar menos agressivos...”
(Larousse Cultural – Antropologia e Folclore, pg. 12). O carnaval da Bahia, hoje, é o carnaval
do Brasil reconhecido em todos os continentes, ao lado do carnaval “carioca”, estudado por
dezenas de antropólogos e sociólogos. Toda a fisionomia e todos os elementos dessa festa
sincrética são “multi” (racial e cultural) e envolve todas as classes sociais. Segundo RISÉRIO
(op. cit., pg. 145), “A paixão dos nossos indígenas do litoral – tupinambás e tupiniquins – pela
dança, pela música e pela retórica, pela eloqüência discursiva [os nossos políticos, também,
digo eu] tornou-se proverbial entre os estudiosos”. Dentre todas as considerações e reflexões
que podem ser feitas em torno do carnaval há uma “básica”, que remete ao seu caráter
dionísico e selvagem, com danças e com mortes: a antropofagia sincrética tupinambá-mestiça.
7
Alô Comanches e Apaches do Tororó!
7. RESISTÊNCIA À PRESENÇA E À EXPRESSÃO INDÍGENA, EM SALVADOR.

7
Os Tupinambás, assim como os Comanches e os Apaches (povos do EE.UU), são ameríndios.
46

Falar da importância da cultura e de afirmação indígena em Salvador, hoje, é um desafio que


encontra resistência surda (porém forte e efetiva) por parte de pessoas ou grupos que não se
definem como “indígenas” ou “índiodescendentes”. Essas pessoas não receptivas à
visibilidade do povo e da cultura indígena alegam, sem razão, a inexistência de aldeia
indígenas em Salvador. São razões que não resistem à defesa mais elementar; afinal, aqui
8
também não existem “quilombos”, “castros” e “mouraria” é apenas o nome de um bairro.

No âmbito da municipalidade para constatar que as mensagens de políticas de governo


voltadas à inclusão ou à reparação social excluem, em geral, os “indígenas” (e/ou
“índiodescendentes”), “mestiços” e “brancos”, mesmos os miseráveis. Sim, todos devem ser
incluídos nas políticas de inclusão social, étnica-identidade não poder ser nenhum “prêmio”
ou “castigo”, afinal, 54% da população brasileira se autodeclarou “branca” – 91,3 milhões –
no censo de 2000/IBGE). Fugir a esse debate é prestar um desserviço à história política e à
evolução do pensamento. Os fatos em si são mais importantes que laudatórios. Os “casos” a
seguir foram selecionados sem obedecer a nenhum critério prévio:

Caso A - A reitoria da UNEB afrontou a Constituição Federal quando deixou de responder


ofícios e e-mail da UNID – União Nacional de Índiodescendentes propondo estudo da
viabilidade para incluir os “índiodescendentes” ao lado dos “índios” e dos “negros”, na
condição de beneficiários da política de cotas (em 2006 foi enviado e-mail e protocolado
correspondências no Gabinete do Reitor Lourisvaldo Valentim).

9
Caso B – A comissão de educadores e consultores designada pela Secretaria de Educação da
Prefeitura Municipal de Salvador (Secretária: Olívia Santana), em 2005, para implantar a Lei
10.639/03, desconsiderou importantes diretrizes da Resolução nº1, de 17 de junho de 2004, do
Conselho Nacional de Educação - CNE. A Resolução define as “Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da Cultura
Afrobrasileira”, considerando que a Lei 10.639 não é auto-aplicável, e declara no caput do
Art. 2º que a citada lei se destina a “promover a educação de cidadãos atuantes e conscientes
no seio da sociedade multicultural e pluriétnica, prossegue, mediante “... a divulgação e a
produção de conhecimentos, bem como atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos
quanto a pluralidade étnico-racial” (Parágrafo 1º). O parágrafo 2º do Regulamento nº1
reafirma amplitude educacional da Lei quando que postula o “...reconhecimento e valorização

8
Tipo de aldeia primitiva da região da antiga Gália, atualmente Galícia, na Espanha.
9
Consultores que receberam agradecimento pela participação no projeto de implantação do ensino
da Lei 10.639/03: Mary Garcia Castro, Maria de Lurdes Siqueira, João José Reis, Yeda Pessoa de
Castro, Muniz Gonçalves Ferreira, Marly Geralda Teixeira, Valdina Oliveira Pinto, Vanda
Machado e Lázaro Raimundo dos Passos Cunha.
47

da identidade, história e cultura dos afrobrasileiros, bem como a garantia de reconhecimento e


igualdade de valorização das raízes africanas da nação brasileira, AO LADO DAS
INDÍGENAS, EUROPÉIAS E ASIÁTICAS”. A minha crítica, sucintamente, é a seguinte: A
SEC-PMS desprezou a diretriz histórico-cultural contida na Resolução do CNE (Nº1) que
regulamenta a Lei 10.639/03 e reafirma o perfil multicultural e pluriétnico da nossa sociedade,
desprezando, dentre outros, os seguintes fatos: a) Os africanos defrontaram-se, ao
desembarcar no Brasil, com as culturas indígenas (além da ibérica), estabeleceram trocas e
influências recíprocas ao longo dos últimos quatro séculos; b) O perfil da população indígena:
populacionalmente expressiva até meados do século XVI (estimada em cerca de cinco
milhões de indivíduos), culturalmente heterogênea (portanto, rica e diversificada), falando
mais de 1.000 línguas (cerca de 180, em 2008); era mão-de-obra escrava (ou submissa), até
meados do século XIX; c) “Negros da terra” (indígenas) e “da África”, ao lado de mamelucos
e mulatos, combateram e dizimaram povos indígenas, quilombos e exércitos estrangeiros
(inclusive portugueses, além de franceses e holandeses), nas guerras de libertação (século
XIX); d) Importantes conflitos como a “Guerra de Canudos”, a guerra do Paraguai, dos
“Cabanos” (Amazônia, Alagoas e Pernambuco, nos quais morreram mais de 50.000 pessoas)
e as lutas pela independência de Portugal. A manifesta má vontade para com as questões
indígenas pode ser percebido na afirmação da respeitável especialista Yeda Pessoa de Castro
(africanista por excelência), ao afirmar que as influências das línguas indígenas sobre a nossa
língua culta (o português) é “...menos extensa e mais localizada” (Coleção de Fascículo – vol.
“7”, pg.8) - Pasta de Textos da Professora e do Professor. Ora, Houaiss e Antônio G. da
Cunha (op.cit.), Ramirez (Línguas Arawak da Amazônia), Theodoro Sampaio (O Tupi na
Geografia Nacional), Edelweiss, certamente não concordariam com essa afirmação. Ademais,
nada foi dito sobre a religiosidade indígena ou tupinambá, muito menos sobre os mitos/lendas
de origem afro-indígena-brasileira; o fascículo produzido pela profa. Valdina O. Pinto,
(“Educação para Convivência pacífica entre religiões”), é diminuto (apenas quatro laudas e
um quarto), a despeito de toda a sua qualidade intelectual e moral não poderia ter excluído da
sua bibliografia estudos clássicos como os realizados sobre a “Santidade de Jaguaripe”
(Ronald Vainfans), “A Religião dos Tupinambás” (Alfred Metraux) dentre outros); Caso C –
Nos últimos três anos ocorreram fatos lamentáveis no âmbito municipal; continuo buscando
explicações (inutilmente, ao que parece) sobre as razões que determinaram a retirada da
10
ordem do dia da Câmara Municipal de Salvador (2005) o Projeto de Lei que propunha a

10
Presidente da Câmara Municipal que garantiu ação política pela aprovação do Projeto de Lei listado
na ordem
48

instituição da Semana Municipal da Consciência Indígena, mesmo após receber parecer


favorável em todas as comissões. Nem a promessa pública do presidente da Câmara
(legislatura 2005-2008), respondendo pedido verbal do presidente da UNID, teve força para
esclarecer desaparecimento de um PL que já recebera parecer favorável em todas as
comissões; pura omissão dos partidos políticos que postularam a proposta. Caso D - O
presidente da UNID tentou, inutilmente, ao longo de 2005, permissão para fixar um maracá
indígena na sala de recepção da Secretario Municipal da Igualdade Racial, durante a gestão do
Sr. Gilmar Santiago. O dirigente da UNID considerava que o colocação de um maracá
indígena ao lado de uma instalação afrobrasileira (ainda existente naquele espaço) teria a
força simbólica da união dos povos historicamente oprimidos (índios e negros). Hoje já não
fico chocado com a visão reacionária e populista de certos dirigentes esquerdistas. Caso E –
Em 18 de fevereiro de 2005, a UNID solicitou, através do ofício Unid-Cades 2005/124, apoio
técnico e logístico à coordenação de Ações de Descentralização Regional – CADES/PMS,
visando realizar a primeira etapa do PCI – Projeto Cara de Índio, sem onerar o orçamento
municipal. O citado expediente jamais foi respondido, porém algum “recado” foi repassado
pela coordenadora (Marta Rodrigues) à Secretaria Municipal de Reparação – SEMUR (Gestão
do Sr. Gilmar Santiago), que por sua vez não demonstrou nenhum empenho em favor do
citado projeto, felizmente realizado, posteriormente com recursos da UNID, entre o final 2005
e 2006. Mas a luta pela dignidade dos homens não comporta apenas frustrações (“choro”,
“lamentações” etc); requer ações permanentes, dinâmicas e éticas (debates, denúncias
públicas, estudos e pesquisas). Espero que os casos acima relatados, com caráter de
“denúncia”, constituam uma contribuição à transparência da história da luta “racial-
identitária” em Salvador, onde não-indígenas comportam-se, equivocadamente e em prejuízo
de outros grupos étnico-identitários, buscando espaços políticos e hegemonia,
11
desconsiderando o caráter multiétnico, multicultural ou ainda sincrético do município.

8. CONCLUSÃO – Há muito a ser feito pela cultura e pela identidade indígena, em Salvador,
afinal “...defuntos são aqueles que perderam a memória”, conforme Mircea Elíade (in Mito e
Realidade, pg. 109). Salvador, Bahia, fevereiro de 2008 - Consultoria: José Carlos Bahiana
Machado Filho (cultura indígena); Revisão léxica, normalização e editoração do texto:
Natássia Guedes Alves. Revisão geral: Maria Angélica Guedes Alves.

BIBLIOGRAFIA

do dia: Valdenor Cardoso.


11
Prefeito de Salvador no período das ocorrências citadas: João Henrique Barradas Carneiro.
49

ALVES, José de Arimatéa Nogueira. PCI – Projeto Cara de Índio. Salvador, 2006. ARANHA,
Maria Lúcia de A. & MARTINS, Maria Helena P. Filosofando – Introdução à Filosofia. São
Paulo: Moderna, 2002.

BASTIDE, Roger. Antropologia Aplicada. São Paulo: Perspectiva, 1979.

BRANDÃO, Maria de Azevedo. “A cidade contra o Recôncavo”. In: Revista Bahia, 28.
Salvador: Fundação Cultural da Bahia, jan/1999.

CALMON, Pedro. História da Casa da Torre. Salvador: FCBA, 1983.

DIEGUES JÚNIOR, Manuel. Etnias e Culturas no Brasil. RJ: Bibl. do Exército, 1980.

DIVERSOS, Pasta de Textos da Professora e do Professor, Salvador: PMS/SEC, 2006.

ELÍADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 2006.

FLORESTAN, Fernandes. A Origem Social dos Tupinambá. S Paulo: UnB, 1989.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 2004.

GUICCI, Guilhermo. Viajantes do Maravilhoso Novo Mundo. SP: Cia de Letras, 1992.
LINDOSO, Dirceu. A Utopia Armada (A Cabanagem alagoana – pernambucana). Maceió:
Universidade Federal de Alagoas, 2005.

MELATTI, Júlio Cezar. Índios do Brasil. São Paulo: Hucitec/UnB, 1993.

NIMUENDAJU, Curt. Mapa Etno-histórico do Brasil - Regiões Adjacentes (1ª edição: 1944).
Brasília/DF: IBGE, 1987.

OLSON, Steve. A História da Humanidade. São Paulo: Campus, 2003.

PRODI, Giorgi. O Indivíduo e sua Marca. São Paulo: UNESP, 1993.

RIBEIRO, Darcy. As Américas e a Civilização. Petrópolis/RJ: Vozes, 1977.

--------- -------- O Povo Brasileiro. São Paulo: Cia de Letras, 1997.

--------- -------- Sobre o Òbvio. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

RISÉRIO, Antônio. A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros. SP: 34, 2007.

-------- -------- Uma História da Cidade da Bahia. Rio e Janeiro: Versal, 2004.

SALVADOR, Frei Vicente. História do Brasil (1627): www.dominiopublico.gov.br.


SAMPAIO, Theodoro. A História da Fundação da Cidade do Salvador. Salvador: Gráfica
Beneditina, 1949.

TAVARES, Luiz Henrique Dias. História da Bahia. Salvador: UFBA, 2001.


VILHENA, Luiz dos Santos. A Bahia do Século XVIII. Salvador: Itapuã,
1969. DICIONÁRIOS E ENCICLOPÉDIAS:

AULETE, Caldas. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa (5 volumes). Rio de


Janeiro: Delta, 1985.
50

CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Histórico das Palavras de Origem Tupi. São Paulo:
Melhoramento/UnB, 1978.

DIVERSOS. Enciclopédia Compacta- Brasil Temático. São Paulo: Nova Cultural, 1995.
51
52
Salvador Bahia - BA
Histórico

Primeiro contato dos descobridores portugueses com as terras da atual cidade do


Salvador ocorreu quando da viagem da nau que levou ao Reino a boa nova do descobrimento.
A expedição que viera de Portugal para reconhecer a nova conquista da coroa. a 1º de
novembro de 1501, encontrou uma baía ampla, cheia de ilhas e muitos habitantes, à qual, sob
inspiração da própria data, dera o nome de "Baía de Todos os Santos". Um marco de pedra foi,
então, assentado no extremo sul do promontório - lugar hoje ocupado pela fortaleza e farol de
Santo Antônio da Barra - assinalando as novas terras incorporadas ao patrimônio de Portugal.
Tempos após a descoberta do Brasil. o governo português passou a cuidar do
aproveitamento e colonização das terras. A cobiça d os corsários, e até de governos de outras
nações poderosas, pelas riquezas da colônia de além -mar, criou obstáculos ao pleno domínio
lusitano, já de si difícil pela extensão do litoral, rusticidade do meio e hostilidade dos nativos.
Como a defesa do litoral não trouxera bons resultados imediatos, surgiu o piano de fundação, na
costa atlântica, de vários núcleos permanentes de população. Com esse objetivo, D. JOÃO
organizou em 1530 a expedição de Martim Afonso de Sousa, e posteriormente instituiu o
sistema de Capitanias hereditárias. algumas das quais não alcançaram o êxito esperado, como
a da Bahia, doada a Francisco Pereira Coutinho, não obstante a inestimável ajuda assegurada
por Diogo Alvares Corrêa, o Caramuru, que ali naufragara e vivia prestigiado entre os
nativos.
Mais tarde, o soberano português resolveucriar um Governo Geral com jurisdição sobre
todo o território. Coube a instalação do Gove rno da colônia a Tomé de Sousa, que deixou
Lisboa a 1º de fevereiro de 1549, com pessoas de serviço. degredados e colonos-missionários.
artífices, funcionários e soldados. o Regimento que entregara a Tomé de Sousa. dizia D. JOÃO
III: "A baía de Todos os Santo s é o Iugar mais conveniente da costa do Brasil para se poder
fazer a dita povoação e assento. assim pela disposição do ponto e rios que nela entram. como
pela bondade e abundância e a saúde da terra e por outros respeitos, hei por meu serviço que
na dita baía se faça a dita povoação e assento." A escolha do soberano foi assim explicada,
com uma viva imagem literária, por Frei Vicente do Salvador: "o Rei criou a Bahia para que
fosse como o coração no meio do corpo,".
Cabe a Tomé de Sousa a glória da fundação da cidade, embora tenha havido outro
núcleo de povoação, a Vila do Pereira. Não se conhece, todavia, documento que estabeleça a
data oficial de sua instalação, sendo apontadas as de 29 de março -- chegada de Tomé de
Sousa; 13 de junho - dia de Corpus Christi. quando se realizou a primeira procissão em caráter
solene, que ficou desde então sob o patrocínio da Câmara Municipal; 1º de novembro - dia de
Todos os Santos, a que se atribui a instalação da Câmara. Oficialmente. comemora-se a
fundação no dia 29 de março. data inconteste da chegada de Tomé de Sousa.
Fundada a cidade, começaram a erguer-se os fortes, igrejas, aldeias de taipa e colmo.
cercas de defesa. Foi-se espalhando, com o braço do índio cativo, a plantação da cana-de-
açúcar, sertão a dentro, não obstante as lutas com piratas e corsários. No século XVII a guerra
com os invasores holandeses fez Salvador perder seu aspecto silencioso e tranqüilo,
transformando-se, por algum tempo, num movimentado centro de atividade bélica.
Cessadas as hostilidades, a cidade expandiu-se: foi uma era de construção de palácios.
santuários, conventos; a vida intelectual intensificou-se com a fundação de Academias; a
Diocese da Bahia foi elevada à categoria de Arcebispado, metropolitana do Estado do Brasil.
Em 1763, por motivos de ordem econômica e política, foi transferida a Capital do
Brasil para o Rio de Janeiro.
Uma conspiração de tendência libertária me 1798, trouxe novos dias de agitação e
intranqüilidade. Fracassado o levante. que previa a proclamação da "República Bahiense", a
devassa apurou a participação de elementos das classes de projeção, foram seus chefes
53

ostensivos, porém, humildes alfaiates, razão por quê o movimento passou à história como a
"Revolução dos Alfaiates".
Antes mesmo de proclamada a independência do País, já se lutava nas ruas de Salvador pela
nossa emancipação política; depois. n os arredores da cidade travaram-se as vitoriosas batalhas de
Cabrito e Pirajá, que culminaram, a 2 de julho de 1823 - data triunfal da entradas das tropas
libertadoras - , com a consolidação da Independência Nacional.
Bem diferente foi a reação à notícia da Proclamação da República, que só provocou
estupefação e ressentimentos. Apesar das manifestaç ões históricas de republicanismo e da série de
motins e revoluções fracassadas, a cidade permanecia fiel ao regime monarquista, chegando mesmo
a esboçar-se uma tentativa de articu lação do Norte do País para uma reação favorável à monarquia.
No período republicano a fisionomia urbana da cidade sofreu modificações sensíveis a
começar com as obras do Porto, que lhe ampliaram a área com aterros necessários a construção do
ancoradouro. De 1912 a 1914 deu-se a abertura da Avenida Sete de Setembro, do Largo do Teatro
(atual Praça Castro Alves) até o Farol da Barra. Nessa época também se verificou a demolição das
histórica igrejas da Ajud a, de São Pedro e do Rosário de João Pereira. Nos últimos vinte anos a
cidade vem-se expandindo, sobretudo na direção dos seus arrabaldes (Barra, Graça, Itapagipe,
Mares, Brotas, Liberdade, São Caetano, Pituba e Itapoã), com a abertura de novas ruas e avenidas,
visando, principalmente. ao aproveitamento dos vales.

Gentílico: soteropolitano
Formação Administrativa
Fundada em 1549, com a denominação de Salvador e nã o São Salvador ou cidade do
Salvador.
Em 1549, e lei municipal de 05-08-1892, é criado o distrito de Vitória e anexado ao
município de Salvador.
Em 1552, e lei municipal de 05-08-1892, é criado o distrito de Sé e anexado ao município de
Salvador.
Anteriormente a 1608, e lei municipal de 05-08-1892, foram criados os distritos de Cotegipe,
Itapoã, Matoim, Paripe, Passé e Pirajá anexados ao município de Salvador.
Em 1623, lei municipal de 05-08-1892, é criado o distrito de Conceição da Praia e anexado
ao município de Salvador.
Em 1648, e lei municipal de 05-08-1892, é criado o distrito de Santo Antônio Além do
Carmo e anexado ao município de Salvador.
Foi Capital do Brasil até 1673.
Pelo alvará de 20-07-1679, e lei municipal de 05-08-1892, forma criados os distritos de
Santana e São Pedro e anexados ao município de Salvador.
Em 1718, e lei municipal de 05-08-1892, foram criados os distritos de Brotas e Rua do Paço
e anexados ao município de Salvador.
Em 1720, e lei municipal de 05-08-1892, é criado o distrito de Pilar e anexado ao município
de Salvador.
Em 1760, e lei municipal de 05-08-1892, é criado o distrito de Penha de Itapagipe e anexado
ao município de Salvador.
Pelo decreto de 19-07-1832, e lei municipal de 05-08-1892, é criado o distrito de Maré e
anexado ao município de Salvador.
Pela lei provincial nº 1110, de 06-05-1870, e lei municipal de 05-08-1892, é criado o distrito
de Mares e anexado ao município de Salvador.
Pela lei municipal nº 310, de 22-10-1897, é criado o distrito de Nazaré e anexado ao
município de Salvador.
Em divisão administrativa referente ao ano de 1 911, o município é constituído de 20 distritos:
Salvador, Brotas, Conceição da Praia, Cotegipe, Itapoã, Maré, Mares, Matoim,
54

Nazaré, Paripe, Passé Penha de Itapagipe, Pilar, Pirajá, Rua do Paço, Santana, Santo Antônio
Além do Carmo, São Pedro, Sé e Vitória.
Pela lei municipal nº 1077, de 03-08-1920, é criado o distrito de Aratu e anexado ao
município de Salvador.
Pelo decreto nº 7479, de 08-07-1931, foram anexados ao município Salvador as Ilhas de Bom
Jesus, Frades, Madre de Deus e Santo Antônio .
Em divisão administrativa referente ao a no de 1933, o município é Capital do Estado e
aparece constituído de 24 distritos: Salvador, Aratu, Brotas, Candeias, Conceição da Praia, Cotegipe,
Itapoã, Maré, Mares, Matoim, Paripe, Passé, Nazaré, Penha de Itapagipe, Pilar, Pirajá, Plataforma,
Rua do Paço, Santana, Santo Amaro do Ipitanga, Santo Antônio Além do Carmo, São Pedro, Sé e
Vitória.
Em divisão territorial datadas de 31-XII -1936 e 31-XII-1937, o município é constituído de 12
distritos urbanos e 12 suburbanos, assim denominados: Brotas, Conceição da Praia, Mares, Nazaré,
Penha (ex-Penha de Itapagipe) Pilar,Rua do Paço, Santana, Santo Antônio, São Pedro, Sé e Vitória.
distritos suburbanos: Arat u, Candeias, Cotegipe, Itapoã, Maré, Matoim, Paripe, Passé, Pirajá,
Periperi, Plataformae Santo Amaro de Ipitanga.
Pelo decreto-lei estadual nº 10724, de 30-03-1938, os distritos foram reduzido à categoria de
zonas.
No quadro fixado para vigorar no período de 1939-1943, o município é constituído do distrito
sede e subdividido em 24 zonas: Brotas, Conceição da Praia, Mares, Nazaré, Penha, Pilar, Rua do
Paço, Santana, Santo Antônio, São Ped ro, Sé e Vitória. distritos suburbanos:
Aratu, Candeias, Cotegipe, Itapoã, Maré, Matoim, Paripe, Passé, Pirajá, Periperi, Plataforma e
Santo Amaro do Ipitanga.
Pelo decreto-lei estadual nº 141, de 31-12-1943, retificado pelo decreto estadual nº 12978, de
01-06-1944, a zona de Itapoã passou a gra far Itapuã.
De Acordo com artigo 23, do Ato das Disposições constitucionais Transitórias, de 02-08-
1947, que alterou a divisão territorial vigente em 1944-1948, o município de Salvador adquiriu os
distritos de Suape e Senhor dos Passos, foram transferidos do município São Francisco do Conde,
como simples subdistritos e com os nomes, respectivamente: Madre de Deus e Bom Jesus.
Em divisão territorial datada de 1-VII-1 950, o município é constituído do distrito sede. Pela
lei estadual nº 628, de 30-12-1953, foram criados os distritos de Águas Comprida, Ipitanga e Madre
de Deus e Nossa Senhora das Candeias todos (ex-povoados) e anexados ao município de Salvador.
Em divisão territorial datada de 1-VII-1 955, o município é constituído de 5 distritos:
Salvador, Água Comprida, Ipitanga, Madre de Deus e Nossa Senhora das Candeias.
Pela lei estadual nº 1028, de 14-08-1958, desmembra do município de Salvador o distrito de
Nossa Senhora das Candeias. Elevado à c ategoria de município com a denominação de Candeias.
Em divisão territorial datada de 1-VII-1 960, o município é constituído de 4 distritos:
Salvador, Água Comprida, Ipitanga e Madre de Deus.
Pela lei estadual nº 1538, de 07-11-1961, desmembra do município de Salvador o distrito de
Água Comprida. Elevado à categoria de m unicípio com a denominação de Simões Filho.
Pela lei estadual nº 1753, de 17-07-1962, desmembra do município de Salvador o distrito de
Ipitanga. Elevado à categoria de municí pio com a denominação de Lauro de Freitas.
Em divisão territorial datada de 31-XII- 1963, o município é constituído de 2 distritos:
distritos: Salvador e Madre de Deus.
Assim permanecendo em divisão territoria l datada de 1-I-1979.
Em divisão territorial datada de 1988, o município permanece com 2 distritos: Salvador e
Madre de Deus e com 22 subdistritos: Amaralina, Brotas, Conceição da Praia, Itapoá, Maré, Mares,
Nazaré, Brotas, Candeias, Conceição da Praia, Cotegipe, Itapuã, Maré,
Mares, Nazaré, Paripe, Passo, Penha, Periperi, Pilar, Pirajá, Plataforma, Santana, Santo
Antônio, São Caetano, São Cristóvão, São Pedro, Sé, Valéria e Vitória.
55

Pela lei estadual nº 5016, de 13-06-1989, desmembra do município de Salvador o distrito de


Madre de Deus. Elevado à categoria de município.
Em divisão territorial datada de 1991, o município é constituído do distrito sede. E mais 22
subdistritos: Amaralina, Brotas, Conceição da Praia, Itapoá, Maré, Mares, Nazaré, Brotas, Candeias,
Conceição da Praia, Cotegipe, Itapoan, Maré, Mares, Nazaré, Paripe, Passo, Penha, Periperi, Pilar,
Pirajá, Plataforma, Santana, Santo Antônio, São Caetano, São Cristóvão, São Pedro, Sé, Valéria e
Vitória.
Assim permanecendo em divisão territorial datada de 2007.
56

ANOTAÇÕES – CURSO 01
57
58
59
60
61
62
63
AMAZON CRIA 1000 POSTOS DE TRABALHO EM MANCHESTER
Posted on novembro 28, 2018 by Maria

Amazon está abrindo seu primeiro centro de distribuição no noroeste da


Inglaterra, a criação de 1.000 novos postos de trabalho em Manchester durante
os próximos três anos!

A varejista on-line está recrutando gerentes de operações e engenheiros,


pessoas para trabalhar em RH e IT, e o recrutamento será aberto ainda este
ano.

Mike Kane, um dos membros parlamentares de Wythenshawe, Reindo Unido,


disse que o movimento era “uma notícia fantástica” para seus eleitores,
acrescentando: “Este investimento é mais um grande passo no renascimento da
Wythenshawe.”

Amazon cria 1000 postos de trabalho em Manchester

O centro irá juntar-se a outros 10 centros de atendimento da Amazon no Reino


Unido, incluindo outros em lugares como Doncasterm, Hemel Hempstead,
Milton Keynes e Peterborough.

A medida faz parte do plano da Amazon para expandir em todo o Reino


Unido este ano, a criação de 2.500 postos de trabalho permanentes.
64
A empresa está contratando em sua sede em Londres, em três centros de
pesquisa e desenvolvimento em Cambridge, Edimburgo e Londres, em seu
centro de atendimento ao cliente em Edimburgo e em armazéns em todo o país.
A Amazon também está recrutando pessoas para apoiar uma nova região do
centro de dados do Reino Unido.

No próximo ano, a empresa pretende abrir uma nova sede, que vai abrigar
5.000 funcionários em Old Street, centro de Londres.

A empresa transnacional de comércio electrônico causou barulho no na área


de supermercadosna semana passada, através da assinatura de um acordo para
vender comida de Morrisons, a quarta maior cadeia de supermercados do Reino
Unido.

Amazon também está com esperança em criar roupas da própria marca,


promovendo e entrando nos negócios de moda com Marks & Spencer.
65

As casas vistas de dentro e de fora


66

Organização

Carlos Fortuna

Nº 21
Julho, 2018

1
67

Propriedade e Edição/Property and Edition

Centro de Estudos Sociais/Centre for Social Studies

Laboratório Associado/Associate Laboratory

Universidade de Coimbra/University of Coimbra

www.ces.uc.pt

Colégio de S. Jerónimo, Apartado 3087

3000-995 Coimbra - Portugal

E-mail: cescontexto@ces.uc.pt

Tel: +351 239 855573 Fax: +351 239 855589

Comissão Editorial/Editorial Board

Coordenação Geral/General Coordination: Sílvia Portugal

Coordenação Debates/Debates Collection Coordination: Ana Raquel Matos

ISSN 2182-908X

© Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, 2018


68

Índice

Nota de abertura .................................................................................................................................... 3

Carlos Fortuna
As casas em dois sentidos ................................................................................................................... 4

Madalena Duarte
Violência dentro das casas .................................................................................................................. 8

Sílvia Portugal
O cuidado em casa e o cuidado da casa ........................................................................................... 16

Carolina Anselmo
Mudar de casa ..................................................................................................................................... 19

Bruno Franco Alves


Conexões Público-Privado ................................................................................................................ 24

Violeta Rodríguez
Morar fora de casa: uma experiêrncia de resistência no Bairro da Merced, Centro Histórico da
Cidade do México .............................................................................................................................. 28

Rómulo Oliveira
Janela de classe e o olhar no olho da casa ....................................................................................... 33

Adelino Gonçalves
O(s) lado(s) de fora da casa ............................................................................................................... 43

José Manuel Mendes


Os “sem-casa” ... e depois? ................................................................................................................. 46

Graça Índias Cordeiro


A rua e a casa, que relação? .............................................................................................................. 49

Paulo Peixoto
A casa despida..................................................................................................................................... 53

2
69

Nota de abertura

5 uma enorme satisfação abrir este dia de reflexão sociológica, cruzada com outras visões ou
orientações, sobre “As casas vistas por dentro e por fora”. Inserida na 20ª Semana Cultural de

Universidade de Coimbra, esta primeira sessão como as duas seguintes vão dar-nos suficiente
matéria para equacionar as diversíssimas variantes em que a “casa” se revela enquanto
oikosesfera – espaço de interação social interna –, mas também como feixe de relações
exodomésticas ou espaço arquitetónico com modulações várias.

Se a isto juntarmos escalas históricas e geográficas diversas, as “casas” de que vamos


falar durante todo o dia revelar-se-ão autênticos factos sociais globais ao estilo que Marcel
Mauss glosou para sugerir como o ínfimo pode conter o mundo. Tudo isto nos diz respeito
neste dia de discussão. Por isso, não surpreenderá que nas intervenções de hoje perpasse uma
aproximação à familiar “casa portuguesa, com certeza”, mas também a outras “casas”
inesperadas e impensadas, onde só é possível entrar em pensamento.

Começaremos com uma reflexão sobre o que passa “dentro” de casa. Sim, a violência
doméstica de todos os dias, mas também o cuidar da casa e de outros dentro dela.

Passaremos, de seguida, a discutir o compromisso ambíguo da casa com os seus “dentros” e


os seus “foras”. Os seus desfechos são indeterminados, ao ponto de tornar legítimo perguntar
se se pode sair para dentro das casas ou entrar para fora delas? Terminaremos com uma
discussão acerca da casa vista de “fora” e como ela se pode, sem paredes nem fronteiras,
transfigurar no seu próprio exterior intruso.

Caros e caras colegas, cumprimento-vos com alegria. Do mesmo modo que cumprimento
a Vice-Reitoria para a Cultura da UC, a FEUC e o CES que apadrinham este dia de
abordagem sociocultural das casas. A eles junto a menção habitual ao Doutoramento em
Sociologia: Cidades e Culturas Urbanas que é o grande abrigo onde nos reunimos hoje.

Carlos Fortuna

3
70

As casas em dois sentidos

Carlos Fortuna, Centro de Estudos Sociais e Faculdade de Economia da


Universidade de Coimbra
cjfortuna@gmail.com

Oh as casas as casas as casas


as casas nascem vivem e morrem
Enquanto vivas distinguem-se umas das outras
distinguem-se designadamente pelo cheiro
variam até de sala pra sala

Ruy Belo, Oh as casas as casas as casas


Todos os Poemas
Lisboa, Assírio & Alvim, 2000

Nesta intervenção farei uma breve alusão à casa a partir da aproximação de duas dimensões
sensoriais particulares: a visão e a audição. A inspiração para tal decorre do próprio poeta
Ruy Belo que no seu Oh as casas as casas as casas reconhece – em boa hora adotado como
marca inspiradora desta 20ª Semana Cultural de UC – que é sensorial a marca distintiva de
umas e de outras casas.

Começarei por fazer notar a importância da dimensão sociocomunicativa trazida pela


introdução da televisão no espaço doméstico que continua objeto de escassos trabalhos sobre
o impacto televisivo no desenrolar das sociabilidades e das interações sociais em espaços
restritos.

A casa e o sentido da visão


Como regra da sua relação com a casa, a TV surge um intruso que atrai as atenções da
comunidade familiar e condiciona o comportamento dos seus membros. Trata-se de uma
réplica do que antes teria originado uma primeira geração de instrumentos tecnológicos como
o telefone e a rádio. Introduziram uma relação de abertura inesperada ao exterior que
converteu a casa a um lugar de experimentação de uma cultura cosmopolita.
nesta base que surge a ideia de casa como oximoro, ou seja, entendida como “casa total”, a
fazer ressoar o que Marshall Macluhan havia designado por “aldeia global”.
A TV, com a sua abertura da casa ao mundo, fez diminuir o entendimento da casa como
microespaço de recato familiar. Gradualmente, e de forma muito acentuada a partir da década
de 1980, a ideia casa-fortaleza foi substituída por uma outra: a da casa-fraqueza. Esta última
assenta na contínua “entrada” em casa da segunda geração de dispositivos de comunicação

(computador, telemóvel, internet, e seus derivados comunicacionais) que, se assim se pode


dizer, fizeram com que o íntimo e familiar se pudesse agora desenrolar à vista de todos.
Assim ocorreu pelo menos na larga maioria das casas de classe média.

Nestas, o consumo doméstico da TV veio causar uma profunda transformação do espaço


da casa. O sinal mais relevante dessa transformação reside na necessidade de criar espaço
para a TV, de modo a que todos os membros família pudessem usufruir daquela novidade em
simultâneo. O resultado foi o surgimento da “sala da televisão”, e o seu rearranjo espacial
4
71

interno. Anteriormente ao surgimento do aparelho de TV, a função recreativa da família


desenrolava-se na “sala de estar” com uma configuração própria – cadeiras em redor de uma
mesa central – destinada a colocar uns em frente dos outros, numa relação direta face-a-face
em que decorria a conversação familiar.

Fig. 1 - “Sala de estar” anterior à TV Fig. 2 - “Sala da televisão”

O advento da TV alterou esta disposição física dos membros da família, já que o novo
aparelho veio conquistar a centralidade posicional para ficar ao alcance da visão de toda a
gente. Cadeiras e sofás passaram a estar alinhados lado a lado, para facilitar o visionamento,
em resultado do que as pessoas abdicaram de se olhar de modo frontal e passaram a olhar-se
de relance, exercitando a sua visão periférica, em sinal (involuntário?) de desatenção
interpessoal, dada a proeminência espacial estratégica do “aparelho”.

Esta centralidade estratégica da TV não era apenas espacial, já que a imagem-som da


televisão ganha proeminência e marginaliza os temas domésticos que antes imperavam (a
escola do filho, o emprego do pai, a doença da avó, etc…). Agora é o mundo lá fora, as suas
imagens e relatos, que comanda e dirige a cadência e a vivência familiares que, deste modo,
se revela, como nunca, permeável ao exterior.

Este “frio” e a distância crescentes do relacionamento intra-familiar que a TV provocou


haveria de ser reforçado com o acesso aos novos dispositivos de comunicação. À medida que
aumentava a área média dos apartamentos de classe média, multiplicavam-se as divisões
internas – o quarto do filho, da filha, dos pais, dos avós – e singularizavam-se as funções de
cada uma, em detrimento das anteriores funções partilhadas pelo coletivo familiar. Em
especial os quartos dos jovens tornam-se verdadeiras fortalezas, onde se isolam para
comunicar com o mundo lá de fora. Encontramos aqui uma outra ambiguidade dentro da
casa: o isolamento pessoal entendido como pré-condição da possível comunicação social com
outros.

8 sobejamente conhecida a crítica que este isolamento dos jovens em casa tem gerado:
quebra de laços, hiper-individualismo, atomismo excessivo, perda de competências
comunicativas, etc. No fundo, não se distingue de forma essencial da avaliação crítica que a
sociologia fez sobre os primórdios da busca da afirmação individual dos sujeitos na
modernidade, quer se trate da fuga à “tirania da comunidade” como estratégia de afirmação
da individualidade de que fala Richard Sennett, quer da clássica “multidão de isolados” (The
lonely crowd), abordada por David Riesman no dealbar da sociedade de massas.

Tenho sustentado que este refúgio dos jovens no seu espaço íntimo dentro de casa revela
uma natureza diferente do convencional entendimento que tende a atribuir-lhe um sentido de
5
72

puro individualismo e isolamento. De modo muito breve, direi que esta fuga expressa antes
uma escolha preferencial de um grupo social em vez de outro, uma deslocação da família
para os amigos virtuais. Quero admitir com isto que o isolamento deliberado dos jovens de
hoje pode conter um capital renovado de experiência social e de abertura ao mundo que tem
sido negligenciado ou incompreendido. A hipótese que gosto de alimentar é a de que,
encerrados nos seus quartos, os jovens de hoje, possam estar a manipular com inusitada e
reconhecida mestria os dispositivos comunicacionais (computador, vídeo, smartphones,
tablets, twitter, facebook, instagram) que os ligam intensamente a outros e possam estar,
assim, a cerzir um novo e insuspeitado ethos cosmopolita e progressista. Quiçá um ethos
transclassista, feito de distâncias tornadas próximas, em tudo semelhante ao que alguns
sociólogos chamam “políticas de piedade”.

A casa e o sentido da audição


Estar “dentro” de casa é, ou pode ser, como outros/as participantes irão mostrar nestas
sessões, equivalente a estar “fora”, no espaço público das ruas e praças e das interações
múltiplas. Isso tem muito que ver com a função da TV, no decurso das últimas seis ou sete
décadas. Na linguagem que venho a utilizar dir-se-ia que a “casa” deixou de ser a
impenetrável fortaleza como se imaginou outrora. Se insistirmos na lógica do sensorial, o que
antes se disse da TV como dispositivo visual, pode complexificar-se se convertermos o
mesmo aparelho não em dispositivo gerador de imagens, mas em dispositivo auditivo, que
capta pelo que comunica sonoramente.
Vamos por partes. Desde há quase duzentos anos que as paisagens sonoras penetram,
imperturbável, o suposto recatado silêncio do domicílio. A irritação de vários setores sociais
europeus bem-pensantes com o ruído urbano encontra-se devidamente documentada:
filósofos que condenam a atroz sonoridade do chicote vibrado pelos carroceiros sobre os
animais das carroças que passam; burgueses que incriminam os ruídos provocados por
populares para tornarem reconhecida a sua existência; políticos que denegam os pregões do
negócio popular de rua; empresários que inventam soluções contra as infiltrações sonoras
oriundas da rua… Ao contrário deste mal-estar social, no campo das artes encontram-se
sinais de profunda complacência com os novos ruídos urbanos. Os futuristas de princípios e
meados do séc. XX, foram os que mais aclamaram a
chegada do ruído metálico causado pela indústria e os
transportes modernos. Uns, como Luigi Russolo no seu
L’arte dei Rumori, procuraram imitá-lo musicalmente
como sinal de aclamação dos tempos vindouros. Outros,
como Umberto Boccioni, tentaram pintar os ruídos da rua
e a sua imparável entrada em casa como frenético e
disforme articulado de cores. Entre nós, deve-se ao Álvaro
de Campos da Ode Triunfal um dos mais erotizados
cânticos ao ruído mecânico em que o poeta aspira ser
possuído por ruidosas rodas, máquinas e motores.
Quero com isto referir-me à pouco celebrada sonoridade
da TV enquanto dispositivo doméstico. Na verdade, não é
apenas o visionamento das imagens televisivas que está
em causa. É também o modo, digamos alternativo, como
nos entregamos à imagem da TV em casa. Ver televisão Fig. 3 - “La strada entra nella casa”
pelo “canto do olho” é uma forma Umberto Boccioni (1911)

expedita de reclassificar o lugar da televisão no espaço


doméstico. Com este olhar a TV de
6
73

relance, deslocamo-nos da imagem para o enunciado sonoro que emite e fundimos os


sentidos da visão com o da audição. É corrente que no desenrolar de muitas atividades
domésticas a que nos entregamos deixemos a TV ligada. Dela recebemos apenas o som
enquanto nos dedicamos a atividades outras. É absorvido com a mesma passividade relativa
com que se liga o rádio a conduzir o automóvel ou a estudar. Só quando, pontualmente, o
som da TV nos faz despertar para o conteúdo da notícia é que olhamos atentos para a imagem
projetada. O som claramente domina a imagem, o que é mais uma inesperada ambiguidade
que deixo registada: a televisão como objeto sonoro, mais que objeto visual. Com tal
metamorfose queremos tão só que o som e os ruídos tele-transmitidos a partir de fora
penetrem o domicílio, em manifesta consonância com o que Boccioni retratara. E assim
damos como provada a ideia de um disseminado horror social ao silêncio em que a TV tanto
se adequa. O ruído fora e dentro da casa é manifestamente um sinal inelutável da nossa
condição atual. Não só da nossa condição social mais geral, mas também da nossa condição
particular de animais domésticos, refugiados no aconchegante barulho das nossas casas.

7
74

Violência dentro das Casas

Madalena Duarte, Centro de Estudos Sociais e Faculdade de Economia da

Universidade de Coimbra
m.madalenaduarte@gmail.com

O medo do crime é um problema sociológico ao qual tem vindo a ser dada crescente atenção
interdisciplinar. A criminologia feminista do século XX desafiou claramente a total natureza
masculina das teorias do crime, chamando a atenção à repetida omissão e deturpação das
mulheres na teoria criminológica (Chesney-Lind, 2006). Os alertas feministas focaram-se
primeiramente na vitimação de mulheres e no silêncio exercido sobre a mesma. É deste modo
que encontramos diversos trabalhos nas áreas da agressão e abuso sexual, e violência nas
relações de intimidade (e.g., Buzawa e Buzawa, 1990; Estrich, 1987; Rhode, 1997). Estes
trabalhos fizeram emergir a consciência que, comparativamente aos homens, não só
estatisticamente as mulheres têm uma maior probabilidade de serem vítimas de um qualquer
crime, como também que o próprio medo é genderizado, isto é, as mulheres têm mais receio
de serem vítimas de crime (em particular de crimes violentos e crimes sexuais).

Neste breve ensaio procura-se refletir sobre estas questões abordadas pela criminologia
feminista com as lentes da sociologia do espaço, conceito de Simmel, nomeadamente
abordando as geografias do crime. Como estudo de caso, em jeito de contextualização das
pistas reflexivas apresentadas, selecionou-se a violência nas relações de intimidade.

Das geografias do crime às geografias do medo das mulheres


As geografias sociais do medo das mulheres (Pain, 1997; Hille, 1999) constituem um campo
ainda parcamente estudado no âmbito das criminologias e relativamente negligenciado para
os feminismos que trabalham sobre a violência exercida contra mulheres nas relações de
intimidade. Entre outras razões, tal deve-se ao enfoque dessas geografias no espaço público.
Obviamente que, ainda assim, as pistas dadas por essa literatura são de enorme relevância,
denotando o modo como há uma “expressão espacial do patriarcado” (Valentine, 1989) que
remete as mulheres para papéis e lugares estereotipados, e que, no que concerne ao medo,
1
influenciam a perceção das mulheres quanto aos riscos que correm, ao modo como se devem
proteger, e, portanto, persuadem a sua experiência do medo. A título de exemplo, refira-se a
acrescida insegurança que sentem em bairros conhecidos por um significativo índice de
criminalidade, ruas escuras ou desertas, zonas onde há uma grande concentração de homens e
uma quase total ausência de mulheres e nos espaços públicos durante a noite.

Supõe-se, consequentemente, que a perceção social do medo seja dirimida quando estas
mulheres chegam a casa, ao seu espaço privado, um local tido como seguro. Contudo, para
muitas mulheres, as suas casas, com o ideal romântico da privacidade, podem ser mais
10
Independentemente de as mulheres de classes sociais mais baixas tenderem, em geral, a sofrer mais violência,
numa intersecção entre classe social e género, como Crenshaw (1991) argumenta, também teremos de ter em consideração
que as experiências de medo vivenciadas por mulheres pobres e a sua capacidade de ligar com tais situações poderão ser
diferentes daquelas das mulheres com mais recursos e redes sociais mais influentes. Outras variáveis podem ainda ser
consideradas, como nacionalidade, etnia, religião, etc..

8
75

perigosas do que qualquer espaço público. A violência contra as mulheres nas relações de
intimidade é paradigmática destas ténues fronteiras entre o público e o privado.

A violência nas relações de intimidade: os muros do espaço privado


A distinção habermasiana entre esfera pública e esfera privada – para vários autores (e.g.
Bobbio, 1992: 13) marcante dos vários processos da organização das sociedades na
modernidade ocidental –, consiste em considerar "o privado" como uma ou várias esferas da
vida social nas quais a intrusão ou interferência, sobretudo estatais, em relação à liberdade
requerem uma justificação especial (aqui falamos essencialmente da família); e "o público”
como uma esfera geralmente ou justificadamente mais acessível e, por isso, de fácil
intervenção. Muitos teóricos políticos, nomeadamente os “contratualistas,” assumiram estas
duas esferas como separadas e operando segundo princípios diferenciados. Ao fazê-lo, estes
“teóricos elaboram argumentos explícitos sobre a família, e alguns relacionados à natureza da
mulher” (Olkin, 2008: 308).

A sociedade civil moderna, já distinta da concebida por Locke ou Rousseau, não é


estruturada pelo parentesco nem pelo poder do paternalismo; no mundo moderno, as
mulheres são subordinadas aos homens por serem mulheres. A passagem das famílias
paternais para as famílias conjugais modernas pressupôs que se considerasse necessariamente
o contrato de casamento como parte integrante do contrato original (Pateman, 1988). Deste
modo, no espaço doméstico a forma institucional privilegiada é o casamento e a família e as
diferenças sexuais e geracionais são as mais prementes. Como nos elucida Anália Torres,
elaborando uma análise a partir da perspetiva durkhemiana de família, o casamento implica
uma ideia de autonomia e de uma subdivisão tácita do direito à privacidade entre aquilo que é
a preservação da intimidade, do pudor, da vergonha, e a necessidade de proteção dos mais
frágeis, usando a expressão da autora (Torres, 2001: 15).
Ora, como elucida a análise histórico-jurídica de Reva Siegel (1996), a perda de
legitimidade do direito a bater na mulher, dominante até ao século XIX, foi substituída
progressivamente precisamente pela afirmação do direito à privacidade, emergindo a
intimidade afetiva como uma retórica adequada para legitimar a impunidade da violência nos
tempos modernos. Predominava a rule of love:

Estes juristas (…) abandonaram a ideia de hierarquia e começaram a usar a ideia de interioridade
para descrever a relação de casamento (…) invocando os sentimentos e espaços de
domesticidade. Depois de traduzido de uma linguagem antiquada para uma linguagem mais
contemporânea de género, a justificação do Estado para o tratamento diferenciado da violência
doméstica de outros tipos de abusos pareceu razoável (…). (Siegel, 1996: 2120)

Os argumentos de harmonia familiar e proteção de sentimentos, abrigados sob o chapéu


do direito à privacidade, subsistiram ao longo da história como justificação para a ausência de
uma intervenção protetora das mulheres por parte do Estado contra a violência doméstica,
contra a violação no casamento, ao mesmo tempo que não se reconhecia mais ao homem o
direito de exercer tal violência (Siegel, 1996; Schneider, 2002).
Deste modo, talvez um dos mais importantes aspetos da crítica feita pelo feminismo
radical assente na reconstrução da teoria política e, necessariamente, numa problematização
desta dicotomia. Como referiu Pateman, "a separação e a oposição entre as esferas pública e
privada na teoria e na prática liberal [...] é, em última análise, aquilo a que se refere o
movimento feminista" (1983: 281). Assim, numa tentativa de politizar o pessoal, as
feministas, sobretudo radicais, procuraram demonstrar que o poder e as práticas políticas e
económicas estão estritamente relacionados com as estruturas e práticas da esfera doméstica e

9
76

que, consequentemente, a injustiça das leis existentes se deve a uma estrutura omnipresente
da dominação masculina – patriarcado - que começa no espaço privado e se expande para a
2
esfera pública e instituições políticas. A bandeira feminista "o pessoal é político" surge
historicamente, entre outras reivindicações, para proteger as mulheres da impunidade da
violência sofrida pelos homens no espaço privado.

“Lar, doce lar”: espaços de violência dentro de casa


Na língua inglesa distingue-se house e home, palavras que em português corresponderiam a
casa e lar. Se bem que casa pode remeter para uma construção material e lar para uma
construção simbólica, erigida por princípios e valores (conceito que tem raízes sólidas no
Estado Novo, inclusive na letra da lei), ambas são usualmente usadas como sinónimos. Mas,
efetivamente, lar, tal como home, são realidades mais idealizadas. Na verdade, e utilizando
algo da poética do espaço interior de Bachelard (1974), o lar (embora o autor se refira a casa)
É um espaço prenhe de representações simbólicas, no qual se pretende refletir uma
identidade (seja como indivíduos isolados, seja como casal ou família mais alargada) que
provoque sentimentos no presente, evoque experiências passadas, construindo memórias
afetivas, e crie expetativas futuras:

A casa, além de proteção, é essencialmente lugar de devaneio e cada lugarzinho é um universo


inteiro de intimidades, segredos. Pois todo o espaço é espaço vivido. E o vivido contém os nossos
dramas reais, mas principalmente o imaginário. A casa é sempre sonhada, é um estado de alma.
Desse modo, a casa deve ser considerada não como um lugar, mas como uma alegoria do sujeito.
A casa é a própria pessoa. (Couto, 2010: 209)

Mas se Bachelard olha para os espaços interiores quase exclusivamente como espaços
felizes, a violência doméstica (num sentido mais abrangente, incluindo abusos sobre pessoas
idosas ou crianças) ou nas relações de intimidade, torna evidente que estes também podem
tornar-se espaços hostis e “interiorizar”/ “domesticizar” as geografias do medo. Por isso,
quando surgem casos de violência no lar, a sua imagem romanticizada fica abalada no
imaginário individual, mas também coletivo, enquanto representação social.
3
De forma a melhor ilustrar este ponto, optei por recorrer a excertos de entrevistas
realizadas com mulheres vítimas de violência numa relação de intimidade, procurando
encontrar ligações entre os espaços, a violência sofrida, mas também as estratégias de
negociação, resistência e sobrevivência desenvolvidas nesses mesmos espaços.
Nas narrativas de algumas mulheres encontramos determinados lugares interiores e/ou
sons, associados à chegada quotidiana do agressor e, portanto, à instalação de uma rotina no
tempo e no espaço do medo:

A nossa casa tinha dois andares e os quartos, os nossos e os dos dois rapazes, eram na parte de
cima, e eu lembro-me sempre que, quando chegava às dez, onze da noite – porque ele a dada
altura já nem durante a semana jantava em casa – já estávamos nós nos quartos. Eles com as
portas trancadas. Eu não podia trancar a minha porque o quarto também era dele, e quando o
sentíamos a subir as escadas… era como se
10
Este slogan tem correspondência com "o económico é político" enquanto afirmação central ao desafio que a
esquerda coloca ao liberalismo.
11
As entrevistas foram feitas no âmbito da tese de doutoramento por mim realizada, “Por um direito sem margens: o
papel do direito na violência contra as mulheres”, e do projeto “Trajetórias de Esperança: itinerários institucionais de
mulheres vítimas de violência doméstica”, ambos financiados pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. As entrevistas,
com duração média aproximada entre três e quatro horas, foram realizadas entre Janeiro de 2008 e Dezembro de 2011, a
mulheres com idades, nacionalidades, classe social e origem geográfica diferenciadas. Os nomes destas mulheres são
fictícios.
10
77

fosse um ladrão. Se calhar, digo-lhe sinceramente, tinha menos medo se fosse um ladrão. Ele fazia
barulho a subir as escadas de propósito para nos aterrorizar. (Francisca, 61 anos)
Noutros discursos, é possível verificar uma imagem distorcida de alguns espaços onde,
para algumas mulheres, a violência sofrida foi, por razões que são suas, mais dolorosa e
marcada nos seus discursos. O quarto, espaço de intimidade por excelência do casal, é o lugar
da casa mais evidenciado:

Como tive os dois abortos, acabei por não ter filhos, não me apeguei a nada daquela casa e não quis
voltar para lá. Quis esquecer a raiva, a ele, tudo. (…) Onde eu sofri mais foi no nosso quarto que é
onde o casal supostamente deve ser mais feliz, não é? É o único espaço mais, digamos assim, dos
dois. Mas aquilo… Ele dizia que eu não prestava para nada, “Tu és uma porcaria, tu nem te sabes
arranjar, até tenho nojo de ti”. Ele dizia muitas vezes que tinha nojo de mim. E pronto, era um viver
muito mau. Ele chegava a casa nem “bom dia”, nem “boa tarde”, nem um beijo. Nada. Eu dizia que
ele não gostava de mim. Mesmo no relacionamento íntimo eu via que ele também não gostava de
mim. Eu cheguei a fazer coisas, tudo por tudo, que nunca tinha feito na minha vida … comprar
lingerie daquelas, pronto, que qualquer homem gosta e ele: tu não prestas. E eu senti-me muito
deprimida. […] Por isso psicologicamente … era ao ponto de me dizer “Tu metes-me nojo dos pés
à cabeça! Tu és um monstro. Tu és uma nojenta. Tu és uma porcaria.” – tudo assim do pior mesmo!
(Joana, 44 anos)
Já éramos casados […] ele saia com os amigos, ia para discotecas e eu ficava sozinha durante a
noite com o meu menino. E a minha mãe dizia-me que aquilo não era vida, um homem casado até
às tantas da noite… A minha mãe dizia-me, mas eu defendia-o e dizia que tinha ido sair com os
amigos, mas eu dizia-lhe a ele que não era justo, que eu também era nova e também gostava de sair
e de conviver. E ele dizia-me que eu era gorda e que tinha de ficar em casa, que em casa era o meu
lugar. E eu ficava ali, no quarto, toda a noite, sozinha. Todas as noites. (Alice, 53 anos)
Ele quando tinha aquelas venetas dele, ele espadeirava cadeira, sofás, rebentava com as portas, não
me deixava dormir, beliscava-me toda para eu não dormir, nem me deixava descansar a mim nem
deixava descansar os filhos. (…) Deixámos de dormir no quarto, os meninos eram pequeninos
ainda, porque de noite ninguém parava, e o nosso sítio de dormir era na sala, quando ele ia de
manhã para a fábrica. (Ana, 26 anos)

Obviamente que o quarto foi, nas histórias de algumas mulheres entrevistadas, lugar
também de violência sexual. Mas a impossibilidade do quarto do casal enquanto lugar de
construção de uma intimidade previsível parece surgir como uma violência per se.
Noutras entrevistas foram percetíveis as múltiplas estratégias desenvolvidas pelas
mulheres, quer de sobrevivência, quer de escape à violência (que, não raras vezes, tinha de ser
planeado). Rotinas relacionadas com espaços que tiveram de ser alteradas, como vimos no caso
de Ana, que passou a dormir na sala, mas também objetos que passaram a ser escondidos, salas
esvaziadas, casas silenciadas para não incomodar o agressor ou alertar a vizinhança:

Eu fui casada durante 14 anos e nesse tempo fui sempre vítima de violência doméstica, até que
cheguei a um ponto que já não aguentei mais. No namoro as coisas correram bem, depois no
casamento é que as coisas se complicaram. Casei com 16 anos, eu estava cega. Ele era mais velho
do que eu cinco anos. Eu sempre me gostei de arranjar para ele, pôr-me bonita, sabe? E lá me
pintava na casa de banho. Ao início, ele gostava. Depois, começou a ficar com ciúmes. Um dia,
íamos sair, ele entra pela casa banho, estava eu a pentear-me… Estava grávida de 6 meses, a minha
cara ficou… a menina sabe o que é um bicho? A cara toda inchada, toda cheia de hematomas, nem
conseguia abrir os olhos, eles tiraram-me fotos, eu quando vi uma foto de como estava até me
assustei com a cara que tinha… O procurador mostrou-me essa foto e eu disse: “credo, eu sou um
bicho”, estava horrorosa. Quando cheguei a casa a primeira coisa que eu fiz foi tirar o espelho da
casa de banho. Até de lá sair, nunca mais teve espelho aquela casa de banho. (Maria, 44 anos)
Quando arrendámos a nossa casa, decorei-a com muito gosto e, se calhar é um defeito meu, mas eu
tinha muita coisa, muita quinquilharia como se diz, sobretudo na sala, mas na cozinha também,
também coisas

11
78

que me foram dando. Antes de me começar a bater a mim, houve um tempo que ele partia as coisas
que eu mais gostava. […] Depois, batia-me, maltratava-me, batia-me com todos os objetos que
vinham à mão, candeeiro, cadeiras, estragou um rádio que me atirou, mas bateu na porta, tudo o que
houvesse, mas ele batia-me com o objetivo de me matar. Comecei a tirar tudo de lá. A sala já só
tinha a televisão, os sofás e pouco mais. (Dora, 37 anos)

Isso ele nunca fez [bater]. A violência que ele exerceu sobre mim foi sempre psicológica e começou
quando fui promovida no emprego. […] Há coisas que tiveram de mudar até nos divorciarmos. Eu
exigi que ele não dormisse no meu quarto (veja que estou a dizer meu e não nosso) e eu deixei de
tomar pequeno almoço sentada na cozinha, mas em pé e de frente para a porta. Porque ele, mais do
que uma vez, antes de eu sair para o trabalho, quando sabia que tinha alguma reunião, veio por trás
de mim e rebentou um pacote de leite e cima de mim ou despejou café para eu chegar atrasada.
(Catarina, 42 anos)

Os casos de violência relatados por estas e outras mulheres revelam que da violência sofrida
dentro de casa emergem, pelo menos, duas contingências: ou quem sofre violência constrói um
processo de rutura com a casa enquanto sua alegoria (e, não seguem na esteira de Borges quando
inicia o seu poema “A Elegia da lembrança impossível”, ao dizer “o que não daria eu pela
memória”); ou sabe que tem de sair daquela casa para escapar à violência que lhe é infligida.

Geografias da Violência Doméstica


Alguns autores e autoras falam-nos de Geografias da Violência Doméstica (e.g. Warrington,
2002) para explicar que muitas mulheres que fogem de suas casas (ou cuja única solução
institucional que lhes é oferecida é a saída das suas casas) para escapar a uma situação de
violência, acabam por ir para espaços onde continuam a viver de modo muito restritivo. Tal pode
dever-se, é certo, à proximidade ameaçadora do agressor – que impossibilita que fiquem junto
daquelas pessoas que lhes são mais próximas –; e do papel das “terceiras partes” para recuperar
aqui o conceito de Renate Klein (1998), como família, vizinhos/as, amigos/as ou colegas de
trabalho, que podem incentivar ou constranger a denúncia, e no apoio dado, ou não, durante a
sua trajetória de escape. Mas prende-se, igualmente, com os espaços institucionais – chamados
Casas Abrigo – que são disponibilizados a essas mulheres e que deveriam ser, por princípio, o
último reduto para uma vítima de violência doméstica (como indica o Esquema 1).

Esquema 1

12
79

Não cabe aqui falar dos vários problemas inerentes a esses espaços institucionais (e aos das
organizações governamentais e não governamentais com os quais se articulam) e que devem ser
discutidos em termos de políticas públicas (ver Santos et al, 2012). Apenas sublinhar que estes
são, compreensivelmente, espaços estranhos a estas mulheres, na sua dimensão física, mas
também simbólica. Espaços que se apresentam com regras, com pessoas que não fazem parte do
seu círculo íntimo, com hierarquias, sem memórias, com um presente receoso e com um futuro
incerto. As entrevistas de mulheres que passaram por estes espaços mostram testemunhos muito
diversos e várias passaram, ao longo da sua trajetória de escape

2 violência, por mais do que uma casa abrigo. Refira-se a título de exemplo duas experiências
significativamente distintas:

Não, tenho um quarto só para mim. Onde estamos tem um quarto por família, se for uma mãe com 3
filhos

/ um quarto para a mãe para os 3 filhos, para mim também, estou só eu. Ainda bem que tenho um
quarto só para mim, quando posso fechar a porta e pensar: “estou no meu quarto, estou sozinha”, dá
para desligar um bocadinho. (Paula, 41 anos)

Quando entrei, até me assustei com as condições (…). Parecia uma vivenda com dois pisos, uma
casa de banho para cada andar, 4 quartos em cima, em cada quarto duas camas para duas famílias. Eu
estive num quarto com duas crianças e do meu lado, outra senhora com duas crianças. Uma casa de
banho para 4 quartos, 7 ou 8 famílias para essa casa de banho. Estive aí 2 meses, graças a deus saí de
lá. (…) Lá era assim: às 6 horas tinha de acordar para tomar banho, como era só uma casa de banho,
imagina todos… Depois, a cozinha era numa garagem grande. Não deixavam ficar no quarto, no
quarto era só a partir das 10 horas da noite para dormir, com as luzes apagadas e pronto. Não
podíamos estar no quarto durante o dia, nem quando as crianças estavam doentes, nem nada. No
inverno era frio. Naquela cozinha, naquela garagem, pingava, cheirava horrivelmente; sentadas lá no
sofá sem fazer nada, pingava em cima de nós, em cima da comida, tudo molhado… (Susana, 33
anos)

A identificação de experiências tão diferentes, não obstante a existência de um regulamento


nacional destes espaços, merece considerações em termos do foco em que incide este ensaio.

As mulheres continuam a ser objeto de um poder patriarcal pré-moderno, usando o termo de


Foucault, ao serem vítimas de violência por parte dos homens e, apesar de atualmente já
poderem recorrer a instâncias soberanas (e.g. polícias e tribunais) e espaços de acolhimento
(casas-abrigo) para obter proteção e justiça, não raras vezes acabam por ser revitimadas. Mas
este poder pré-moderno caminha em paralelo com uma modernização do poder, muito próxima
daquela que também Foucault nos oferece; isto é, o poder violento, pessoal e visível do
patriarcado tem sido progressivamente acompanhado (o autor diria substituído) pelo mais
anónimo, invisível e, num certo sentido, compreensível poder disciplinar das instituições e suas
práticas. Numa lógica institucional pouco flexível, e por agora exclusivamente numa perspetiva
da sociologia do espaço, a casa-lar que se torna palco de memórias de violência física,
psicológica, sexual, verbal, pode não estar muito distante da casa-abrigo que promove a
violência-institucional. Neste sentido, será de refletir, se no âmbito da violência doméstica, a
violência dentro das casas encontra eco numa adaptação do great carceral continuum de
Foucault (2013).

13
80

Referências bibliográficas

Bachelard, Gaston (2008), A Poética do Espaço.[2ª Edição] São Paulo: Martins Fontes.

Bobbio, Norberto (1992), A Era dos Direitos. Brasil: Editora Campos.

Buzawa, Eve S.; Buzawa, Carl G. (1990), Domestic Violence. The Criminal Justice Response.
Newbury Park, CA: Sage.

Chesney-Lind, Meda (2006), “Patriarchy, Crime, and Justice: Feminist Criminology in an Era of
Backlash”, Feminist Criminology, 1(1), 6-26.

Couto, Edvaldo Sousa (2010), “Fisiognomias do interiéur: aproximações entre Benjamin e


Bachelard”, in Sant’Anna, Catarina (org.), Para ler Gaston Bachelard. Salvador: EDUFBA 199-
214.

Crenshaw, Kimberlé W. (1991), “Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and
Violence against Women of Color”, Stanford Law Review, 43(6), 1241–1299.

Estrich, Susan (1987), Real Rape. Cambridge: Harvard University Press.

Foucault, Michel (2013), Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Lisboa: Edições 70.

Hille, Koskela (2016), “‘gendered exclusions’: women's fear of violence and changing
relations to space”, Geografiska Annaler: Series B, Human Geography, 81:2, 111-124.

Klein, Renate (org.) (1998), Multidisciplinary Perspectives on Family Violence. London:


Routledge, 176-191.

Okin, Susan (1989), Justice, gender and the family. Princeton: Basic Books.

Okin, Susan (2008), “Gênero, o público e o privado”, Revista Estudos Feministas, 16(2), 305-
332.

Pain, Rachel H. (1997), “Social Geographies of Women's Fear of Crime”, Transactions of the
Institute of British Geographers, 22 (2), 231-244.

Pateman, Carole (1988), The Sexual Contract. Oxford: Basil Blackwell Ltd.

Pateman, Carole (1983) "Feminist Critiques of the Public/Private Dichotomy", in Benn, Stanley
I.; Gaus, Gerald F. (eds.), Public and Private in Social Life. London: Croom Helm. 304-305.

Rhode, Deborah (1997) Speaking of Sex: the denial of gender inequality. Cambridge, MA:
Harvard University Press.

14
81

Santos, Boaventura de Sousa; Duarte, Madalena; Oliveira, Ana; Santos, Cecília; Dias, João
Paulo (2012), Trajetórias de Esperança: itinerários institucionais de mulheres em situação de
violência doméstica. Coimbra: CES.

Schneider, Elizabeth (2002), Battered women and feminist lawmaking. New Haven, Conn:
Yale University Press.

Siegel, Reva B. (1996), “The Rule of Love: Wife Beating as Prerogative and Privacy",

Faculty Scholarship Series. Paper 1092, disponível em


http://digitalcommons.law.yale.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=2092&context=fss_papers.

Torres, Anália (2001), Sociologia do Casamento. A família e a questão feminina. Oeiras:

Celta Editora.

Valentine, Gill (1989) “The Geography of Women's Fear”, Area, 21(4), 385-390.

Warrington, Molly (2001), “‘I must get out’: the geographies of domestic violence”,
Transactions, 26, 365-382.

15
82

O cuidado em casa e o cuidado da casa


Sílvia Portugal, Centro de estudos Sociais e Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra
sp@fe.uc.pt

1. O cuidado
Falar sobre o cuidado e a casa implica colocar algumas questões simples: O que é o cuidado?

Quem cuida e quem é cuidado? Onde se cuida? Como se cuida? Porque se cuida?

O que é o cuidado?

Uma consulta rápida on-line ao Dicionário Priberam da Língua Portuguesa


(https://www.priberam.pt/dlpo/cuidado) obtém os seguintes resultados: Substantivo masculino 1.
cautela, precaução; 2. inquietação; 3. diligência; desvelo. Interjeição expressão usada para pedir
advertência ou cautela em relação a algo = Atenção!. Verbo transitivo 1. Imaginar; supor;
pensar; 2. Ter cuidado em; tratar de. Verbo intransitivo Interessar-se por; trabalhar.

As definições do Dicionário dão conta dos diferentes elementos que fazem do cuidado um
objecto complexo: acções, pensamentos, sentimentos, emoções, tarefas, actividades, trabalho.

Olhar o cuidado, considerando essa complexidade e mostrando (in)visibilidades, dentro e


fora de casa, deve muito ao pensamento feminista e, mais recentemente, ao que podemos
denominar como “paradigma do cuidado”: uma abordagem sociológica e filosófica que analisa e
reflecte simultaneamente sobre praxis e pensamento, sobre acção e emoção.

Autoras como Carol Gilligan, Joan Tronto, Patricia Paperman, Sandra Laugier, Pascale
Moulinier trouxeram para o centro dos debates a importância dos laços sociais e das relações
pessoais para a reflexão acerca das tarefas de cuidado. As autoras feministas mostraram como a
“ética do cuidado” tece proximidades e constrói conceitos diferentes de ética e de justiça,
configurando uma “ética situada”, atenta às características do outro e focada na relação
interpessoal.

O trabalho de cuidado é um trabalho árduo, que implica tempo, dedicação, sacrifício. É


muitas vezes um trabalho sujo, com cheiros repulsivos, sons desagradáveis, imagens
repugnantes. Os sentimentos oscilam entre o amor, a compaixão, a preocupação e a raiva, a
incompreensão, o desespero.

Incoerências, incongruências, contradições – a experiência de cuidar e de ser cuidado


encontra na figura linguística do paradoxo um elemento analítico essencial.

Quem cuida e quem é cuidado?

A resposta à pergunta “quem cuida?” é óbvia: são as mulheres. As tarefas de cuidado são
marcadas por uma profunda desigualdade sexual, que as atribui, nos domínios do simbólico e da
prática, às mulheres. Na experiência feminina, o cuidado da casa e dos outros estão
intrinsecamente conectados. Como afirma Ann Oakley, a principal característica do trabalho

16
83

doméstico é ser um “trabalho de mulheres”. Assume-se à partida que desde que existam
mulheres numa casa serão elas a realizá-lo, o pressuposto sendo que as mulheres podem
desempenhar essas tarefas naturalmente e os homens não.

Quanto à questão “quem é cuidado?” a resposta é: todos! E não apenas “alguns”, os


“vulneráveis” – os doentes, os velhos, as crianças, as pessoas com deficiência. A resposta
“todos” implica: a) reconhecer a vulnerabilidade dos seres humanos como parte do seu ciclo de
vida e não apenas como resultado de acidentes ou de situações de risco; b) a extensão a não
humanos: animais, plantas, objectos (a casa, os móveis, a loiça, o automóvel, etc.).

O paradigma do cuidado valoriza o cuidado, coloca o foco na relação, quebra dicotomias


entre os que (não) necessitam. As relações de cuidado são relações de proximidade, muitas vezes
relações de parentesco, muitas vezes situadas no espaço doméstico. As relações de cuidado
implicam conhecimento, interconhecimento e reconhecimento. Trazem para o centro, a
importância dos laços que nos ligam aos outros, mesmo quando contraditórios ou conflituais.

Como e porquê se cuida?

Na casa e da casa cuida-se com base na tradição, no saber apre(e)ndido na experiência, na


reprodução de gestos vistos fazer múltiplas vezes. Cuida-se de geração em geração, entre
gerações. Cuida-se “dos nossos”, cuida-se “como deve ser”. A praxis alimenta-se do simbólico.

As relações de cuidado alimentam-se da dádiva e da reciprocidade. A tríade identificada por


Marcel Mauss – “dar, receber, retribuir” – tem, no cuidado em casa, contornos muito específicos.
Na reciprocidade familiar, por um lado, dádiva e retribuição fazem circular e equivaler coisas
muito diferentes; por outro lado, entre dom e contra-dom, o tempo pode correr sem que o ciclo se
quebre.

Na reciprocidade familiar não conta o que se troca, nem quando se troca. Nesta dádiva, o
tempo conta tanto menos quanto mais se confia no outro. Mediada pela afectividade e pela
confiança, a reciprocidade realiza-se muitas vezes à “escala de uma vida” e transforma o apoio
numa espécie de “crédito a longo prazo” que não necessita de ser retribuído no imediato, nem de
ser simétrico: o contra-dom pode vir muito mais tarde ou mesmo ser destinado a outra pessoa.

Por um lado, nesta concepção inscreve-se uma ideia clara da evolução das posições de
receptor e de dador ao longo da vida, de pais e filhos. Na infância e juventude, os filhos são
apenas receptores, na idade adulta são receptores e dadores, de uma forma assimétrica, até que os
pais atingem a velhice, e nessa altura passam estes a ser os receptores. Por outro lado, são
contempladas pessoas que não têm possibilidade de reciprocar e que serão sempre receptoras.

As relações de cuidado são também relações onde se jogam relações de poder e de


dominação. O cuidado em casa é acompanhado por aquilo a que Claude Martin chama “direito
de intromissão”, que contrasta com princípios de autonomia e de independência. Assim, este
revela-se um domínio de tensão, dado que entram em cena normas conflituantes, de
individualidade, de liberdade e de obrigação.

2. A casa e o cuidado
Olhar o cuidado “dentro de casa”, implica, também, ter que olhar para fora dela. Implica integrar
uma escala macro e articular escalas analíticas – do micro do espaço doméstico e das

17
84

relações familiares, ao transnacional, dos fluxos migratórios de mulheres migrantes


desqualificadas, que prestam cuidados a outros em países longínquos dos seus.

Perguntar quem se ocupa de quem e como? Implica pensar a organização social e política
das actividades de cuidado, olhar as desigualdades estruturais e as políticas públicas. Ou seja,
analisar o modo como as responsabilidades do cuidado são distribuídas e quais os agentes que
tomam decisões sobre essas responsabilidades – Estado, mercado, comunidade, família.

O cuidado em casa é também importante para discutir o que Wellman chama a “economia
política da comunidade”, ou seja, o lugar das redes pessoais nos sistemas de produção e
reprodução social. As mulheres têm, em grande parte, sido utilizadas como “exército de reserva”
para a reprodução das famílias, fornecendo, a baixos custos, serviços de qualidade elevada e com
grande flexibilidade de utilização, o que se, por um lado, beneficia as famílias, por outro lado,
não deixa de beneficiar também as outras esferas de produção de bem-estar, nomeadamente a
estatal, aliviando-a de responsabilidades.

A evolução histórica das actividades de cuidado e as transformações económicas e sociais a


elas ligadas tiveram três consequências fundamentais: a) a transferência de muitas tarefas de
cuidado para “fora da casa” – a educação das crianças; a hospitalização dos doentes; a
institucionalização dos velhos, etc.; b) a profissionalização da actividade de cuidado – a
passagem da arte clássica de cuidar para as profissões de cuidador/a, num movimento simultâneo
de qualificação e distinção do profissional e de desqualificação de quem cuida “dentro de casa” e
do trabalho não remunerado das tarefas de cuidado; c) a regulação do que se passa “dentro de
casa” – o processo civilizacional de que fala Norbert Elias implicou uma forte “higienização”
das condutas domésticas e dos modos de cuidar. Dos ensinamentos da puericultura, estudados
por Luc Boltanski nos anos 60, à hegemonia do saber médico no tratamento das doenças, o
cuidado na casa tem sido alvo de processos de colonização do privado pelo público.

No entanto, este movimento não se faz sentir sem a persistente resistência das famílias – a
recusa da institucionalização dos idosos, o pluralismo terapêutico, as apropriações do espaço
doméstico distintas do seu desenho funcional arquitectónico, etc., revelam a continuidade de
modos de fazer que nos obrigam a espreitar para dentro de casa, se queremos verdadeiramente
conhecer como se cuida nas sociedades contemporâneas.

18
85

Mudar de casa
Carolina Anselmo, Centro de Estudos Sociais e Faculdade de Economia da

Universidade de Coimbra
ccanselmo@gmail.com
O que nos leva a mudar de casa? Algumas respostas rápidas, com pouca reflexão logo podem
emergir: uma pessoa pode querer morar sozinha, morar com alguém, morar próxima ao local de
trabalho, morar com menores custos, morar com mais espaço, mudar de cidade ou mesmo de
país. Podemos também pensar que as mudanças nem sempre estão relacionadas a um
deslocamento para outros espaços, e sim, a transformações de um espaço. Ou seja, o mudar de
casa pode significar mudar a casa: demolir uma parede, trocar um móvel, colocar quadro na
parede ou um enfeite em algum canto. Tanto o mudar de casa quanto o mudar a casa pode ser
relacionar a transformações para maior acolhimento, descanso ou identificação com o espaço.

Mas por que voltar nossa atenção para um ato tão banal, ou melhor, tão pessoal como esse
de mudar de casa? Poderíamos responder essa pergunta trazendo alguns argumentos colocados
no texto Padrões de mudanças de casa e eventos de vida – uma análise das carreiras
habitacionais, escrito por Magda Nico. A socióloga, ao analisar a sociedade portuguesa, entende
que perceber o momento de vida em que as pessoas mudam de casa, a duração e condição de
permanência em uma residência ou os eventos que impulsionam as trocas de casa podem
contribuir para o estudo de mudanças sociais (Nico, 2014). Fatores como por exemplo a família,
o trabalho, a saúde ou envelhecimento podem ser estudados de forma relacionada ao ato de
mudar de casa. Mudamos, portanto, por razões privadas e familiares, ou públicas e profissionais.

Fora do contexto europeu, outras análises poderiam ser feitas em situações urbanas
diferentes, como por exemplo, as mudanças que acontecerem no Aglomerado da Serra, uma das
1
maiores favelas da cidade de Belo Horizonte, com aproximadamente 50.000 habitantes.
2
O motivo das mudanças de casas que acontecerem ali, no período entre 2006 e 2010,
fugiram ao poder de decisão de cada morador que não tiveram a opção de ir ou ficar. Tal favela
3
passou por obras de reestruturação urbana, parte de um programa chamado Vila Viva, que
demandou a demolição de muitas casas, seja para abertura de ruas, por precariedade da
construção, risco de instabilidade geológica ou mesmo por higienização de algumas áreas e
maior controle policial. Explicita-se aqui outro ponto: mudar de casa pode ser uma ação
voluntária ou involuntária e essa também é uma categoria a ser analisada quando focamos tal
assunto.
4
Dados recolhidos em 2010, ano em que a pesquisa no território estava sendo desenvolvida. Ver Anselmo (2011).

4
As mudanças de casa estavam relacionadas com um projeto de urbanização que aconteceu em um período mais alargado do que
esse. Entre os anos citados (de 2006 e 2010) houve foi uma uma aproximação minha com parte das pessoas que mudaram de
casa.

4
O projeto Vila Viva engloba obras de saneamento, remoção de famílias, construção de unidades habitacionais, erradicaçãode
áreas de risco, reestruturação do sistema viário, urbanização de becos, implantação de parques e equipamentos para prática de
esporte. O projeto é um seguimento do Plano Global especícfico que foi um estudo aprofundado da realidade de vilas e favelas de
Belo Horizonte realizado em três etapas: levantamento de dados, elaboração de diagnóstico integrado dos principais problemas
da área de estudo e definições de prioridades locais. Ambos os projetos são de iniciativa do governo municipal de Belo
Horizonte.

19
86

Voltemos então as casas, foco da discussão desse texto. Quando vistas de fora e de longe se
mostram muito semelhantes: as formas, as texturas, as cores, os tamanhos das janelas, as
coberturas, os afastamentos entre elas. Mas se nos aproximarmos um pouco, veremos que há
diferenças. E não são poucas. Existem casas mais precárias, sem acabamentos, sem vedações,
sem acessos estruturados. Existem também casas rebocadas, pintadas, com jardim cuidado,
garagem (Imagem 1). Existem variações também nos estilos e formas das construções que
podem ser mais arredondadas, com mais cores e detalhes (Imagem 2) enquanto outras são mais
retangulares e sem qualquer inventividade.

Se vistas por dentro, as casas talvez possam apresentar diferenças ainda mais acentuadas.
Os tamanhos, as divisões internas, o padrão de acabamento, o padrão de higiene, os móveis e os
objetos de cada família. Existem casas com chão em terra batida, outras com cimento, outras
com acabamentos. Em algumas delas as pessoas dormem no chão. Em outras já encontramos
muitos móveis. As casas de banho por vezes são internas, outras externas. Existem casas com
quartos separados para pessoas diferentes da família. Em outras, todos dormem juntos em um
mesmo espaço. Há casas que estão se consolidando e outras que já estão erguidas há muito
tempo. Há casas com mais ou menos objetos e enfeites. Há casas sem pintura, outras pintadas de
uma só, outras mais coloridas (Imagens 3, 4 e 5).

Imagens 1 e 2 - Casas vistas de fora. Aglomerado da Serra, Belo Horizonte, 2010

Fonte: Arquivo pessoal.

Imagens 3, 4 e 5 - Casas vistas de dentro. Aglomerado da Serra, Belo Horizonte, 2010

Fonte: Arquivo pessoal.

20
87

Em muitos dos casos pode se notar que a casa se estende para fora das suas paredes
externas, seja para um quintal onde se lava e seca roupa, seja para criar animais, seja para
cultivar ou preparar alimento, para divertir reunindo as pessoas, tocando música ou com
brincadeiras infantis. A casa se estende para fora porque as portas estão sempre abertas, porque
os vizinhos se encontram, convivem, se ajudam. Ou ainda porque a casa também é lugar de
trabalho. O dono do bar, da mercearia, do cabelereiro, do vendedor de gás, de material de
construção, do marceneiro, do serralheiro, da cozinheira, de qualquer pequeno comércio e
serviço que são meios de sobrevivência de muitos ali. A casa é lugar de morar e de trabalhar.

Nota-se, portanto, que são muitas as diferenças entre as casas, o que revela os diversos
padrões de vida e os modos de morar na favela, na cidade. No texto intitulado Quem mora nas
favelas de Silke Kapp e Margarete Silva (2012) criticam a ideia que muitos de nós temos de
homogeinizar as pessoas, as casas e a vida na favela, além de associarmos sempre a uma ideia de
extrema pobreza que nem sempre é verdade.

Retornemos às mudanças. Quando em 2006 vieram as obras de urbanização algumas dessas


pessoas se mudaram involuntariamente. As casas ou barracos de muitos foram demolidos e em
troca as famílias ganharam um apartamento em prédios situados relativamente próximos de onde
estavam as antigas casas. As novas casas passam a ser um apartamento de dois ou três quartos,
2
com aproximadamente 45 m , em um prédio de quatro andares com dois ou quatro apartamentos
por andar (Imagem 6 e 7).

Imagens 6 e 7 - Novas habitações construídas pelo programa Vila Viva. Aglomerado da Serra, Belo Horizonte, 2010
Fonte: Arquivo pessoal.

Para olhos acostumados com padrões e maneiras de morar de uma cidade formal, as novas
condições de moradia parecem mais confortáveis do que as havia nos barracos. Mas ao
entrevistar alguns moradores nos deparamos com depoimentos como esses a seguir:

Se você perguntasse assim: entre o apartamento e continuar com o seu barracão... Se você perguntar
todo mundo aqui, entre a sua casa e o seu barracão, o que você queria? Continuar lá e eles
legalizarem lá e você continuar lá? Eu com certeza ia preferir lá. (trecho do depoimento moradora
entrevistada 1)

Eu não quero ficar mais não. Completou dois anos eu estou saíndo. O que você quer é liberdade para
os filhos, se você não tem... Para que você precisa ter quarto dividido, para quê? Acho que isso daí...
A

21
88

melhor coisa é a felicidade, da gente e dos filhos. Vivíamos todos no mesmo espaço, mas você quer
4
saber? A felicidade estava toda lá. (trecho do depoimento moradora 2)

Nem todos os moradores tiveram a mesma opinião. Alguns entendem que mudar da casa, ou
do barraco, para o apartamento representava uma ascensão social. Mas, o fato é que depois de
ouvir 30 moradores, a maioria preferia os barracos aos apartamentos. E qual o porquê de tal
escolha? Resumidamente, pode-se dizer que o motivo está relacionado com os diferentes perfis
de pessoas e famílias que ocupam os prédios. Os hábitos são muito distintos e há extrema
dificuldade de lidar com o coletivo, embora haja um grande sentimento de comunidade. Por
exemplo, em um predinho estava uma senhora que tinha desvios de comportamento e levava lixo
para sua casa, no mesmo andar morava uma família com oito pessoas de diferentes idades, no
andar de cima um senhor que trabalhava com transporte com carroças e não tinha lugar em casa
para o seu cavalo.

As limitações construtivas do apartamento que impedem a transformação da casa são das


principais e mais recorrentes queixas que são feitas.

Lá eu podia fazer um puxadinho, crescer um terraço, aqui eu não posso nada. Entendeu? Não posso
nada. Não posso pensar em aumentar nada. Então eu acho que assim... Eu vou morar em três quartos,
sala e cozinha para o resto da minha vida. Não posso fazer nada. O máximo que posso mudar é de
cor. Não é? (trecho do depoimento moradora entrevistada 1)

Na sua casa qualquer problema que dá você vai lá arruma, você cuida. Porque você quer mais é sua
casa arrumadinha. Isso aqui não é da gente. Você não pode fazer nada! (trecho do depoimento
moradora entrevistada 2)

Ficou explícito que as pessoas ali preferiam mudar a casa ao invés de mudar de casa. Não
querem se manter em condições insalubres ou desprotegidas, mas sim, poder melhorar a sua
casa, para manter seus hábitos que não cabem na rigidez formal que o apartamento oferece.
Querem e precisam aumentar ou diminuir seus espaços conforme a família cresce, conforme
surge a necessidade de alugar um cômodo para completar a renda, para manter sua atividade de
trabalho, para cultivo dos alimentos e animais, para fazerem as festas nos quintais.

Há um incômodo enorme em não poder transformar a casa. Mas, sendo os predinhos a


realidade atual dos moradores, como lidam com suas novas habitações? Uma vez que a casa é
essa, surge uma relação possível com o que De Certeau chama de maneiras de utilizar a ordem
imposta. Nas palavras do autor: “sem sair do lugar onde tem que viver e que lhe impõe uma lei;
ele aí instaura pluralidade e criatividade. Por uma arte de intermediação ele tira daí efeitos
imprevisíveis” (Certeau, 2008: 93)

Por mais que muitos dos moradores digam que sua casa começa da porta do apartamento
para dentro, há diversas apropriações e usos dos espaços coletivos. As portas dos apartamentos
estão quase sempre abertas, muitos objetos pessoais como armários, plantas, cadeiras,
brinquedos das crianças, ficam no hall e nas escadas, como se a casa se estendesse para além da
porta. Muitas roupas são estendidas para secar fora do prédio, muitos churrascos e festas são
feitos nas áreas comuns que não teriam esse uso previsto. As regras de como morar nos
predinhos são rígidas e entregues em um manual quando as pessoas se mudam e exigiriam
mudança de comportamento de muitos. Mas os comportamentos imprevisíveis, desviantes,
clandestinos se manifestam.
5
Foram feitos ajustes gramaticais das falas na transcrição.

22
89

5
h) notável como as apropriações dos espaços da nova casa funcionam como táticas
(Certeau, 2008) e como resistências às imposições formais e de uso dadas. A ocupação dos
edifícios pode ser vista quase como uma repetição da maneira de viver e de morar nos becos.
As novas casas vistas de dentro e de fora são diferentes dos barracos antigos. Mas a casa que
se estende e se reconfigura segue, não muda.

Vemos, então, que mudar de casa pode nos revelar diferentes questões, sejam aquelas
esboçadas no início desse texto, seja no caso das mudanças compulsórias que acabo de
apresentar. São muitas as maneiras de morar. São muitas as formas das casas e seus usos. Como
arquiteta e urbanista que projeta e define espaços, me parece importante estar atenta às casas (as
diferentes casas) e às maneiras de habitar. Estar atenta aos cotidianos, aos desvios para evitar
produzir e reproduzir lógicas impositivas e repressoras de vidas, de casas, de modos de morar.
Isso porque, concordando com Lefebvre (1991), as ações triviais cotidianas constituem as bases
das experiências sociais e da verdadeira contestação política. Quando essas ações são anuladas
por imposições fisicamente formais, o urbanismo praticado nega a possibilidade dessa disciplina
ser um discurso humano e social.

Para finalizar, deixo um poema de Matilde Campilho, chamado Two-lane blacktop:

Aprenderei a amar as casas


quando entender que as casas
são feitas de gente

que foi feita por gente


e que contém em si a possibilidade
de fazer gente. (Campiho, 2014)

Referências bibliográficas
Anselmo, Carolina (2011), Arte como campo expandido do urbanismo: um estudo de caso no

Aglomerado da Serra. Dissertação de mestrado. [vol. 1] Porto: FBAUP.

Campilho, Matilde (2014), Jóquei. Lisboa: Edições Tinta-da-China.

Certeau, Michel de (2008), A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petropolis: Vozes.

Lefebvre, Henri (1991), A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Atica

Kapp, Silke; Silva, Margarete (2012), “Quem mora das favelas?”, E-metrópolis revista de
estudos urbano e regionais, 9(3), 28-35. Acesso a 28/05/2018, disponível em
http://emetropolis.net/system/edicoes/arquivo_pdfs/000/000/008/original/emetropolis_n09.pd
f?1447896326.

Nico, Magda (2014), “Padrões de mudança de casa e eventos de vida: uma análise das carreiras
habitacionais”, Sociologia, XVIII, 103-127. Acesso a 28/05/2018, disponível em
http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/12737.pdf.

6
Tática seria uma maneira criativa de utilizar ou desviar daquilo que foi imposto (Certeau, 1998).

23
90

Conexões Público-Privado
Bruno Franco Alves, Centro de Estudos Sociais e Faculdade de Economia da

Universidade de Coimbra
bruno.franco@ufjf.edu.br

A reflexão sobre os domínios das esferas pública e privada é uma marca presente nas ciências
sociais e humanas. Várias são as abordagens, perspectivas e olhares sobre essa questão deveras
discutida. Regra geral, essa relação é realizada de forma dicotômica, situando as casas como
lócus do privado e as ruas como o espaço público por excelência. O que se pretende realizar aqui
é repensar o lugar da casa nessa relação entre o público e o privado. O título do próprio
seminário, “As casas vistas de dentro e de fora”, já carrega em si a sugestão de que as casas não
possuem uma única dimensão. As casas são múltiplas e, a mesma casa, também pode abrigar
sentidos diferentes conforme são vistas por dentro e por fora.

Dessa forma, pode-se questionar: As casas sempre foram ou são o templo da intimidade?
Quem enxerga o lado de dentro das casas? É preciso adentrar nas casas para conhecê-las ou
podemos conhecê-las por dentro, mesmo estando de fora? Caminhamos no sentido do
fechamento das casas como recanto das famílias ou as casas ainda permanecem abertas, agora
com novas “portas” tecnológicas que permitem adentrá-las, vivenciá-las e conhecê-las? Qual o
sentido da dicotomia entre a casa e a rua?

Para essas pensar sobre essas e outras questões acerca da casa, podemos partir da porta como
uma pretensa divisão entre o público e o privado. Isso porque é a porta o elemento material que
obstaculiza a passagem entre esses dois mundos, cindindo o espaço e delimitando fronteiras.
Conforme já apontava Georg Simmel (1996 [1909]), ao contrário da ponte que mostra como o
ser humano é capaz de unificar o que está naturalmente cindido, a porta mostra como o homem é
capaz de cindir a uniformidade contínua do ser natural, resguardando a passagem entre mundo
interior da casa ao mundo exterior.
Em geral, na Idade Média as aberturas da casa para o exterior eram escassas e de
dimensões modestas, provavelmente para mantê-las protegidas do frio durante o inverno. A
porta, na entrada da casa, era a sua principal abertura, por vezes a única, já que as janelas nesse
período assumiam uma condição acessória (Conde, 2011a: 63).
Nesse período, as casas correntes eram moradias unicelulares, isto é, formadas por um
espaço contíguo, sem divisões internas, compartilhado por tudo e todos: família, animais,
produtos e instrumentos de trabalho. Não havia espaços apropriados individualmente e nem
funcionalmente espacializados. Além disso, a casa era o local de relações e sociabilidades
múltiplas: era local de repouso, mas também de trabalho, de produção, de consumo; era local de
relações familiares, mas também de relações mercantis e de convivências com os outros.
(ibidem: 71). Não obstante ao fato da casa demarcar um território sobre o qual geralmente o
homem exercia o seu controle, havendo uma diferenciação entre esse espaço e aquele que lhe era
exterior, a casa ainda não tem o seu sentido ligado à proteção da intimidade, sendo que muitas
das atividades quotidianas do citadino medieval invadiam a rua, a travessa, o adro (Trindade,
2002: 96)
Nos fins da Idade Média, as casas na cidade começam a ganhar algumas divisórias que
separam o espaço do trabalho do espaço habitacional ou, em alguns casos, passam a contar com
vários planos, geralmente ficando o térreo destinado às atividades profissionais e a

24
91

abertura ao público – espaço semipúblico – e o sobrado à vida familiar – espaço doméstico,


privado (Conde, 2011a: 73).

A privacidade vai aumentando com a verticalização e compartimentação da casa, mas ainda


se encontra longe de significar a proteção da intimidade. O tamanho médio dos terrenos em que
as casas eram construídas raramente ultrapassava os 50 m2 (ibidem: 68) mantendo-se a casa
como um espaço multifuncional e de uso familiar.

Entre os séculos XVI e XVIII ocorrem importantes mudanças que vão sedimentando os
caminhos para o incremento da privacidade. Neste período, multiplicam-se as divisões interiores
e aumenta a especialização funcional dos diversos compartimentos das casas das classes mais
abastadas (Cunha e Monteiro, 2011: 224). Já nas habitações populares, mesmo no século XVIII e
início do século XIX, as portas podiam estar frequentemente abertas e muitas das casas
permaneciam sem uma especialização funcional, por conta do seu tamanho reduzido. A casa era
tida por esses grupos populares como espaço de abrigo e não como reduto de intimidade, tanto
que muitas das atividades domésticas como o lazer, cozinhar, comer, rezar e até as necessidades
fisiológicas, ainda eram realizadas na própria rua (Olival, 2011: 270).

Não obstante a multiplicidade de contextos, é consenso que a casa chega ao século XIX já
como como espaço de intimidade, da vida privada. Trata-se aqui, especificamente, da casa
burguesa, que passa a ser o lugar de residência das famílias nucleares compostas de pais e filhos
solteiros, promovendo a separação física desta familia em relação ao resto da sociedade e
protegendo a sua vida íntima. Acentua-se a contraposição entre público e privado, valorizando-se
o privado como espaço de maior liberdade para o indivíduo em relação à vida comunitária. Com
a intensificação das interações sociais, dos códigos sociais que regiam as relações públicas, a
casa aparece como espaço de refúgio desses olhares, de recolhimento e proteção contra o
escrutínio da vida social, por isso de maior liberdade.

Nos dias atuais a casa permanece como reduto da intimidade familiar, como local seguro e
confiável onde seus habitantes se protegem contra a vida exterior. Esse movimento, sobretudo
nos países com altos índices de violência, é acompanhado por um processo paulatino de
isolamento das casas e dos seus moradores em relação às ruas e à própria vizinhança. As cidades
de muros, onde as casas são fechadas com muros, grades e portões, tal como descreve Teresa
Caldeira (2000), simbolizam bem esse processo.

Dentro dessa casa contemporânea, fechada ao mundo exterior, há também uma crescente
sobreposição entre as privacidades de seus habitantes. A busca de realização e de projetos
individuais de cada ente da família faz com que o espaço comum da casa seja modelado de
forma a comportar essas múltiplas intimidades, o que é revelado pela maior compartimentação e
pelas mudanças arquitetônicas em seu interior: a existência da suíte conjugal, que permite aos
pais não mais partilhar do banheiro com os filhos; a construção do banheiro social, que restringe
o acesso dos visitantes à zona dos quartos; a criação de novas suítes para os filhos; o aumento da
dimensão dos quartos/suítes que passam a ser espaço de fruição da intimidade individual; a
compartimentação da suíte do casal em ambientes distintos para cada um dos cônjuges; o recheio
dos quartos que passou a contar com diversos equipamentos antes usados de forma coletiva pela
família como televisão, som portátil e computador (Pereira, 2011).

Seguindo esse caminho, poder-se-ia chegar à conclusão de que ao longo da história as casas
caminharam em direção ao seu fechamento, tanto ao mundo exterior como na própria relação
interna entre seus moradores, sempre com vistas a maximizar as intimidades que protege e
demarcar de forma nítida o domínio do público e do privado. No entanto, essa história passou a
contar com um elemento novo e que foi capaz de alterar significativamente
25
92

a nossa forma de viver e de habitar: a profusão do acesso à internet e dos dispositivos móveis
conectados à rede mundial.

Segundo dados da International Telecommunication Union-ITU, agência da Organização


das Nações Unidas para tecnologias da informação e comunicação, 3,5 bilhões de pessoas
possuíam acesso à internet em 2017, o que corresponde a 48% da população mundial. Entre os
jovens com idade entre os 15 e 24 anos esse percentual sobe para 70,6%. Já as famílias com
acesso à internet em casa somam 53,6%, chegando o índice a 84,4% nos países desenvolvidos.

O uso da internet por um número cada vez maior de pessoas, especialmente com a
popularização dos dispositivos móveis e das redes sociais digitais como o Facebook, Instagram e
o Whatsapp, permite o intenso compartilhamento de mensagens de texto, fotos, áudios e vídeos.
A casa não fica imune a esse fluxo comunicacional e ganha novas “portas”, “frestas” e “janelas”,
agora voltadas para uma realidade que é virtualizada. A exposição cada vez maior da vida
privada, do interior da casa, das suas rotinas, dos seus moradores para a audiência das redes
sociais digitais, que é pulverizada e muitas vezes desconhecida, atua, de certo modo, como uma
renúncia à privacidade protegida pela casa em troca do reconhecimento da audiência pública.

Nessa sociedade em que o exibicionismo e a necessidade de ser visto, receber likes e


curtidas torna-se uma necessidade, a casa readquire contornos públicos. Tal como no conceito de
Hannah Arendt, a casa vem a público, pode ser vista e ouvida por todos e tem a maior
divulgação possível (Arendt, 2007: 59). Mesmo os conteúdos dos perfis privados mantidos nas
redes sociais digitais podem ser divulgados com o emprego de simples recursos tecnológicos,
como os prints das imagens e dos textos postados, ganhando o domínio geral.

Como bem afirma o historiador português Manuel Conde, a casa, urbana ou rural, comum
ou qualificada, é como um microcosmo da sociedade, profundamente reveladora dessa, dos
espaços e dos tempos em que se ergueu e perdurou (Conde, 2011b: 14). A casa de nossos dias é
um espelho do seu tempo, tempo em que a rigidez dos conceitos se esbate, de contradições como
aquela que faz com que a casa passa a ser ao mesmo tempo espaço público e privado, onde a
intimidade é ao mesmo tempo resguardada e compartilhada conforme o desejo dos indivíduos
que a habitam.

Referências bibliográficas
Arendt, Hannah (2007), A condição humana. [10ª ed]. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

Caldeira, Teresa Pires do Rio (2000), Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em
São Paulo. São Paulo: Ed.34/Edusp.

Conde, Manuel Sílvio Alves (2011a), “A casa”, in Sousa, Bernardo Vasconcelos (Coord.),
História da Vida Privada em Portugal: A idade média. Maia: Círculo de Leitores e Temas e
Debates, 54-77.

Conde, Manuel Sílvio Alves (2011b), Construir, habitar: a casa medieval. Braga: CITCEM
– Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória».

Cunha, Mafalda Soares; Monteiro, Nuno Gonçalo (2011), “As grandes casas”, in Monteiro,
Nuno Gonçalo (Coord.), História da Vida Privada em Portugal: A idade moderna. Maia:
Círculo de Leitores e Temas e Debates, 202-243.

26
93

International Telecommunication Union (2017), “Measuring the Information Society Report


2017”, 1, p. 154. Consultado a 22 de novembro de 2017, disponível:
https://www.itu.int/en/ITUD/Statistics/Documents/publications/misr2017/MISR2017_Volum
e1.pdf.

Pereira, Sandra Marques (2011), “Cenários do cotidiano doméstico: modos de habitar”, in

Almeida, A. N. (ed.), História da Vida Privada em Portugal: os nossos dias. Maia: Círculo de
Leitores e Temas e Debates,16–47.

Olival, Fernanda (2011), “Os lugares e espaços do privado nos grupos populares e intermédios”,
in Monteiro, Nuno Gonçalo (Coord.), História da Vida Privada em Portugal: A idade moderna.
Maia: Círculo de Leitores e Temas e Debates, 244-275.

Trindade, Luísa (2002), A casa corrente em Coimbra dos finais da idade média aos inícios da
época moderna. Coimbra: Câmara Municipal de Coimbra.

27
94

Morar fora de casa: uma experiência de resistência no Bairro da


Merced, Centro Histórico da Cidade do México

Violeta Rodríguez, Centro de Estudos Sociais e Faculdade de Economia da


Universidade de Coimbra
violeta.rodriguez.becerril81@gmail.com

Flota un olor a sopa de pasta


las ruínas no son ruínas,
el deterioro es sólo de la piedra inconsolable
la gente llega, vive, sufre, se muere.

vienen los otros a ocupar su sitio


la casa arruinada sigue viviendo.
José Carlos Becerra

Este texto recolhe partes de uma investigação sobre efeitos do processo de gentrificação sobre o
espaço público a partir da experiência de despejo que acompanhei no bairro de La Merced, no
Centro Histórico da Cidade do México em 2011. O que se descreve de seguida tem como ponto
de partida a expulsão dos moradores de uma casa do bairro, a que chamaremos “nossa casa”.
Estes moradores foram expulsos do prédio que habitavam havia mais de duas décadas. Em um
ato de resistência, construíram a sua "nova casa”, uma instalação precária feita de placas de
cartão e madeira localizada a um canto da praça situada em frente da sua antiga casa. Essa
ocupação informal do espaço público alterou a relação das pessoas despejadas com os restantes
moradores do bairro, e gerou novos usos e significados do espaço, assim como do mobiliário
urbano, ilustrado aqui pela praça pública e a sua fonte central. O percurso através da história
dessas casas será feito como tentativa de responder a uma série de questões sobre a relação da
casa com a cidade e o bairro e, por outro lado, como entender a "casa" como espaço, a um
tempo, doméstico e coletivo onde várias tensões e afetividades são colocadas.

Onde é a sua casa?


Uma das primeiras perguntas que se faz quando falamos da nossa casa é sobre o seu endereço.
Nos bairros da Cidade do México temos uma pergunta que à primeira vista é enganadoramente
simples: qual é teu código postal? Isto significa que a pessoa tem que mostrar um conhecimento
das práticas identitárias, dos códigos e da linguagem do bairro. As respostas dos moradores a
esta pergunta são um certificado da sua pertença ao lugar. A casa que me ocupa neste texto
sendo muito afastada, encontra-se situada num dos bairros mais representativos do Centro
Histórico da Cidade do México: O bairro da Merced. Aqui se fixaram muitos migrantes
indígenas e estrangeiros, oriundos da Arménia, de Espanha e do Líbano e o bairro é conhecido
como lugar de comércio, com um dos mercados mais importantes da cidade, uma zona de
papelarias e de lojas de objetos religiosos, sendo que

28
95

uma parte do bairro constitui ponto para o comércio sexual1. O bairro da Merced ou “La
Meche”, como é popular e afetivamente chamado, é um espaço multicultural e socialmente
complexo. O dia-a-dia do bairro tem um fluxo contínuo e acelerado de pessoas com intensos
intercâmbios materiais e simbólicos. Na maioria dos seus edifícios existem hoje lojas ou
armazéns de reconhecido valor histórico e patrimonial.

A “nossa casa” situa-se numa das zonas mais representativas do bairro – a praça “La
Aguilita” – formalmente chamada praça Gustavo Baz. Alguns dos espaços da Cidade do México
têm mais de uma designação em resultado de afetos e das histórias que ali tiveram lugar e que
fazem parte do capital simbólico dos lugares. A praça La Aguilita é conhecida por conter um dos
mitos fundadores da cidade. Com efeito, diz-se que foi ali que os aztecas encontraram a águia
engolindo uma serpente, o signo que mais tarde viria a ser o marcador simbólico da fundação da
Grande Tenochtitlan, hoje Cidade do México. Perto da casa encontra-se a fonte central da praça
que faz referência a este mito fundador, com a representação da águia, da serpente e de um cacto,
além das áreas verdes e canteiros. A “nossa casa” é a que se situa do lado esquerdo da fotografia
da praça.

Imagem 1 - Praça La Aguilita no bairro da Merced, Centro Histórico da Cidade de México

Como é a “nossa casa”?


Um segundo ponto que pretendo questionar é a fachada das casas. Nas cidades latino-americanas
este aspeto é muito importante devido à falta de ordem dos números e nomes das ruas. Por
exemplo, é comum que um nome de rua se repita ou que as casas partilhem o mesmo número, o
que torna difícil identificar as moradas precisas. As particularidades das casas adquirem, assim,
uma dimensão diferente, sendo que para as localizar se pergunta pela cor da fachada, a cor da
porta, ou o número de janelas que têm. A identidade da casa é um referente espacial.

A “nossa casa” é um desses casos de moradias sem código postal nem endereço. A este
respeito, podemos recordar que o sociólogo Pierre Bourdieu sublinha que, na ordem jurídica e
simbólica, uma pessoa sem endereço postal, praticamente, não tem existência no espaço social.
Por ironia parece que esta avaliação se aplica diretamente à experiência desta “nossa casa” que,
sem a “existência social” referida por Bourdieu, se tornou presa fácil dos interesses que
acabaram por desalojar as seis famílias que ali moravam.

7 Podem ser consultados os documentários Los armenios en la Merced, produzido pelo Colegio de Michoacán e Plaza La
Soledad, da fotógrafa Maya Goded.

29
96

Os moradores desta casa, tendo sido expulsos dos seus apartamentos, procuraram
reconstituir a disposição original do espaço coletivo, mas também do espaço interno de cada
unidade familiar, quando se viram obrigados a morar no espaço público. A “nova” casa coletiva
em que passaram a residir os desalojados da “nossa casa” foi construída num tempo muito curto,
aproveitando os bocados cartão e outros materiais das papelarias do bairro, assim como diversos
bocados de madeira, plásticos e ferros. O teto tinha diversas cores e as divisórias entre os quartos
eram feitas de pedaços de tecido. A área ocupada pela casa estendia-se ao longo de uma parcela
lateral da praça, numa extensão de cerca de 25 por cinco metros. No conjunto da “nova” casa
moraram dez pessoas, sendo a maioria mulheres e crianças.

Imagens 2 e 3 - A “nova” casa na Praça La Aguilita,


Bairro da Merced, Centro Histórico da Cidade de México, 2011
Fonte: Arquivo pessoal da autora.

As formas da casa
Um terceiro aspecto refere-se à funcionalidade da casa, à suas forma, número de quartos, de
salas de banho e dimensão da cozinha. As fotos que apresento são do exterior da casa, uma vez
que, durante a investigação, combinei com os moradores que não tiraria fotos do seu interior,
embora pudesse descrever a organização interna do espaço. A “nova” casa tinha uma cozinha, o
espaço maior de toda a casa, uma sala comum de televisão, três quartos e uma pequena sala de
banho. A cozinha era o espaço de maior socialização e de partilha das atividades do conjunto dos
moradores. As crianças brincavam no exterior da casa que na verdade era constituído pelo
espaço da praça, o mesmo onde sempre tinham brincado antes, mas que agora era convertido em
quintal da “nova” casa.

No seu todo, a praça La Aguilita sempre funcionou como o quintal de todas as casas em
redor. Já a fonte da praça foi agora convertida em lugar da lavagem de roupas e dos utensílios de
cozinha e, por vezes, era mesmo usada como casa de banho. Por um tempo, a praça foi de fato
uma extensão da própria casa.

Nos primeiros meses de cerca de meio ano da sua instalação precária na praça, os moradores
beneficiaram do apoio dos vizinhos. Com o passar do tempo, estes não deixaram de revelar
algum incómodo com a presença da nova “moradia” em pleno espaço público, como que a
subscrever a expressão de uma vizinha, para quem “a solidariedade tem data de

30
97

caducidade”. A ocupação da praça foi a resposta encontrada pelos moradores da “nossa casa”
para reagir às ações de despejo que se foram multiplicando por todo o bairro da Merced.

A comunidade dividiu-se em resultado de um processo de gentrificação que ainda não está


terminado. Além disso, alguns usos privados, que veremos adiante, do espaço público da praça
dissolveram a noção de fronteira entre o que é público e privado, o que deu origem ao
surgimento de novas conflitualidades. Este foi o caso das práticas associadas ao espaço íntimo
como, por exemplo, tomar banho na fonte pública, suscitaram reações pouco amistosas por parte
da vizinhança.

Enquanto o interior da “nova” casa, com as suas paredes improvisadas, concedia um certo
grau de privacidade e segurança aos moradores, o mesmo não sucedia em relação à hostilidade
exterior que as mesmas frágeis paredes se mostravam incapazes de suster. Afinal, a situação era
muito ambígua politicamente: as pessoas encontravam-se literalmente a viver a situação dupla de
conforto e segurança dentro da “nova” casa e de desconforto e insegurança fora dela.

Imagem 4 - Cartaz fora da casa, 2011

Fonte: Arquivo pessoal da autora.

As “almas do lugar”
Depois de alguns meses passados na sua “nova” casa, os moradores foram desalojados de novo.
Os objetos que foram parte das suas vidas quotidianas foram então deixados para trás,
abandonados na praça. Estes despojos eram agora tudo o que assinalava a ação corajosa de
resistência ao despejo inicial da “nossa” casa. Tal como afirma Michel De Certeau (2000: 137),
se os objetos urbanos são o equivalente às “almas do lugar”, neste caso os móveis abandonados
representam as almas das casas desses moradores despejados – tanto da “nossa”, como da “nova”
casa. São o sinal último e os testemunhos da sua presença no lugar, das suas afetividades e
histórias entrelaçadas no espaço do bairro. A poltrona da casa, a mesma em que se sentaram os
membros da família, os convidados e as personagens do bairro ficou desamparada no lixo. Com
ela, também as lembranças articuladas nos parcos móveis ficaram por ali empilhadas… deixadas
ao abandono.

Foi tudo o que, depois de breve ausência de duas semanas, a investigadora encontrou
quando regressou a La Aguilita.

31
98

Imagens 5 e 6 - Restos do mobiliário das casas, Praça “La Aguilita”, 2011


Fonte: Arquivo pessoal da autora.

A velha “nossa” casa ficou sem moradores por muito tempo, em ruínas e solitária. Até que
fosse renovada, a rádio comunitária do bairro usou os estores em ruína das suas janelas para
expor parte da sua “galeria noturna”, um exercício de fotografia de arte-resistência a mostrar a
dinâmica vida social de um bairro ameaçado. A casa arruinada, que em tempos foi a “nossa
casa”, continua a viver. A resistir.

Imagem 7 - Primeira Casa, Bairro da Merced, 2011

Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Referências bibliográficas
Bourdieu, Pierre (2010), “Efectos de lugar”, in Bourdieu, Pierre, La miseria del mundo. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 119‐12

Becerra, José Carlos (1976), “Vecindades del centro” [Islas a la deriva], Revista Tarde y
Temprano, 176.

De Certeau, Michel (2000), La invención de lo cotidiano. Las artes de hacer. México:


Universidad Iberoamericana.

32
99

Janela de classe e o olhar no olho da casa

Rómulo de Oliveira, Centro de Estudos Sociais e Faculdade de Economia da

Universidade de Coimbra
lo.ol.andrade@gmail.com

A caverna é o primeiro local na história que associamos e percebemos como a casa. Apesar de
não ser o primeiro abrigo é o primordial ao se constituir em casa ora temporária, dada a as
condições sazonais e os recursos disponíveis no território, ora permanente, como afirma
Jarzombek (2013). Deste lugar, o que importa à presente reflexão é um elemento de transição,
uma abertura na barreira posta na fronteira do dentro e fora. A janela tem este significado e na
caverna era fundido à porta como única entrada, única saída, ao separar mundos.

As primeiras janelas, encontradas e escavadas. O esforço de criá-las


Em algum momento, esta fusão entre janela e porta foi desfeita no abrigo e morada ancestral,
que ocorria no subterrâneo e obscuro sítio que nos protegia. É provável que as primeiras janelas
encontradas e incorporadas ao viver primitivo aos poucos assumiram funções especiais à
sobrevivência. Adquiriram importância visível e, consequentemente, empreendeu-se esforços
notáveis no trabalho de escavar, numa tarefa complexa que envolvia certos riscos,
conhecimentos, ferramentas e técnicas.

Desta perspectiva assumida para este texto, percebe-se a especialização derivada da


necessidade de funções separadas, apartadas, esvaziadas das aberturas únicas da caverna. As
novas aberturas ganham significações pelo tamanho e posição que ocupam na terra, na rocha que
divide o dentro e fora, tendo como bom exemplo a paisagem produzida pelo povo Navajo em
Bandelier National Monument em Santa Fé, nos Estados Unidos.

Bandelier National Monument


Fonte: https://www.atlasobscura.com/places/bandalier-national-monument

As janelas em tamanhos e posições diferenciadas dão a entender que são como elementos de
controle ambiental dos abrigos, em uma revolução do cotidiano dos grupos primitivos que
buscavam mais espaços internos para a realização de atividades longe das intempéries. A

33
100

criação artificial da janela, além de necessidade, é impulso interessante e acaba por nos povoar e
instigar crenças e credos.
Prolongando a reflexão que se levanta, esta criação, como toda criação humana que busca
reproduzir algo natural de forma artificial, teve maior repercussão a partir do domínio da
tecnologia do fogo, quando o ambiente protegido naturalmente das intempéries do vento e chuva
em sua eterna guarda não era tão imprescindível para manter a chama. Da caverna, da luz, da
chama, da luta anterior a existência da janela, um insight surge de outra luz moderna projetada
na escuridão. O cinema recorda esta pré-história em A Guerra do Fogo (1981) de Jean-Jacques
Arnaud e a luta do Cro-Magnon em manter a chama acessa e aprender a produzi-la. Ao perdê-la
se lança em uma jornada na qual encontra novas tecnologias e abrigos acima da terra, retornando
com os aprendizados.
Repisando a idéia agora apresentada como enunciado: a janela que se escava acompanha a
evolução civilizatória e o domínio de muitas tecnologias da construção e controle ambiental, pela
possibilidade de se identificar um planeamento no esforço para escavar e abrir um buraco em
parede, em terra ou em rocha, definindo tamanho, altura e posição que, aos poucos, são
aprendidos e compreendidos num processo de saber.

Tentador também é recorrer a outra abertura/janela que proporciona irradiações pela história
e pelo pensamento humano, como nas reflexões dos reflexos presentes em A República (2014) de
Platão em que sombras, ruídos e movimentos do cotidiano que são a realidade da caverna,
acabam por se transformar em outra realidade quando há liberdade de um homem que caminha
para fora e traz as novidades. O homem livre voltado para a luz transpassa a porta/janela
oferecendo a todos a idéia de transformação pela libertação. A realidade muda pelo fato de se
voltar para a entrada e saída da caverna, ou mesmo olhar através dela.

Janelas em diferentes funções, como filtro transparente


Assim, as janelas antes encontradas, depois escavadas, começam a ser criadas nos abrigos
construídos na superfície, sob critérios e vontade dos grupos sociais, para dar lugar à vida
cotidiana, em acompanhamento à complexidade de novas atividades de sobrevivência, num
aprendizado milenar de construir e constituir as aberturas em paredes e rochas (Jazombeck,
2013; Ching et al., 2017). Em outras palavras, a evolução no interior do abrigo com divisão de
atividades e funções, adquire um significado que ligamos à casa.

Neste processo de divisão do espaço doméstico para cada função uma nova e diferente
janela é produzida e materializada: janela para sala, janela para quarto, janela para cozinha,
janela para casa de banho, janela para arte e janela para olhar o céu. Há janelas para todas as
funções.

O elemento janela ganha um espaço na sociedade e por isso, empreender um esforço para
seu entendimento como objeto e lugar faz sentido, o que é observado em autores como Georg
Simmel e Henri Lefebvre. Na diferenciação que faz da porta que possui o significado de um rito
de passagem, de entrada e saída, de transposição, Simmel (1996) vê que representa a
transparência, o desvendamento de uma intensa interação contida que não convoca,
necessariamente, a transmutação do indivíduo privado em sujeito social. Permite, talvez, um
alargamento deste indivíduo privado, se a posição da janela descortina uma paisagem importante
à presença social.
Tanto Simmel (1996) quanto Lefebvre (2004) identificam na janela esta posição de
observação, um caminho para o olhar. É fato que Simmel prefere a porta, pois a janela permite
uma sociação com o outro do mundo exterior sem trocas imediatas e, sob esta percepção, a porta
carrega a ideia de ponto de troca total, sê dentro, sê fora. De um lado ou de

34
101

outro. Privado e Público. Contudo, Lefebvre (2004) concebe a janela possuidora de uma
característica demasiado importante por posicionar o observador em ponto privilegiado, no qual
o distanciamento relativo permite a identificação dos ruídos que tomam conta da rua, do espaço
público. Este filtro contribui para a percepção do contexto, o que impulsiona a admitir a janela
como um critério metodológico de investigação para a ritmanálise (Lefebvre, 2004).

Em A Dialética da Duração (1988), Gaston Bachelard já busca tratar as primeiras


características da ritmanálise que atribui ao português Lúcio Alberto Pinheiro dos Santos,
erradicado no Brasil. Os ritmos, para Bachelard, se associam à métrica poética, acompanhando
os tempos do cotidiano. É desta combinação entre poética e ritmo, que aplica

8 sua fenomenologia no espaço da casa descrito em A Poética do Espaço (1993), compreendido


como uma representação psicanalítica do sujeito. Seu argumento usa a fenomenologia para
apresentar uma leitura poetizada dos compartimentos como integrantes do Id, Ego e Superego, o
que nos instiga a olhar a janela como olho da casa.

O fôlego inicial, dado por imagens pré-históricas e uma identificação conceitual e filosófica
que reconhece na janela um objeto e local integrado ao indivíduo e sua história, alimenta um
certo espírito do texto no qual olhar para as janelas e identificar significados, histórias,
tecnologias das diversas janelas, motivos e formas para que foram criadas, interessa. As suas
primeiras funções, a identificação com o sujeito e a transformação social resultante de contínuas
e diferentes apropriações, vêm agora tomar lugar na continuação da análise.

Janelas vistas das janelas: janela indiscreta que enquadra momentos e ritmos
cotidianos. A janela faz parte da cena e interage
Esta poética de olhar para as outras janelas, desnudando as novas funções, é o que nos induz a
admitir um olhar indiscreto e recíproco, fomentado por outras intimidades incorporadas em
nossas vidas e nas paisagens cotidianas pela amplitude da janela. Observamos os vizinhos
através da janela da casa e, assim, apreendemos a transpassar o olhar pelo olho da nossa casa e
pelo olho da casa do vizinho.

As janelas vistas da janela é o significado de Janela Indiscreta (1954) que perscruta a vida
da vizinhança, presente nas dezenas de janelas postas ao olhar privado, a partir de uma
intimidade em contato direto com a intimidade das outras janelas, seja do outro lado da rua, da
praça, em distâncias de ruas e quarteirões, é que temos hoje ao nosso dispor vidas expostas.

Cena de Rear Window (1954)

Fonte: http://onthesetofnewyork.com/rearwindow.html

35
102

A genialidade de Alfred Hitchcock ante o tema, nos motiva ao movimento junto à janela em
posição dinâmica e não em posição estática qualquer pois somos atores de um jogo de
observador e observado estando sempre em dupla posição. Não há turno entre um e outro, ou
seja, o ator e o observador ocorrem em simultaneidade. Somos o Músico criando incessante
melodia em busca do sucesso; o Recém Casal em núpcias que aos poucos ganha a rotina
matrimonial; a Miss Torso e seus admiradores que aos poucos se vão; a Coração Solitário que
passa o tempo à procura do romance de sua vida; entre outros tantos personagens.

Com Hitchcock, as dinâmicas expostas por esta abertura da parede que separa espaços do
que convencionamos ser o lugar da vida íntima e privada, nos provoca a reposicionar o posto de
investigação para o desafio de ler histórias contadas em recortes e momentos. Ainda nos faz
reconhecer e admitir que a janela pode, considerando Latour (2008), ser o objeto em uma análise
de actor-rede de periodicidade imediata ou de complexa periodicidade tão alongada quanto o
processo civilizacional.

Um objeto que permite a compreensão de um grupo e uma rede, seja no processo de sua
instalação no edifício, ou no momento posterior, nos processos de registros cotidianos
interessantes em são criadas circunstâncias de acordo com quem observa, importando sua
posição, suas características físicas e tecnológicas, se aproximando desta feita da lógica analítica
da Teoria Actor-Rede (TAR).

Entretanto, por mais instigante que seja a operacionalização da metodologia da TAR, a


análise segue pelos ritmos e recortes da cena urbana resultado do enquadrado e não enquadrado
pela janela, dos efeitos de sua existência, de uma identificação a quem esta abertura está a servir.
A posição da janela importa.

Por isto, recorre-se a uma breve história da janela associada ao ato do olhar a partir de seu
olho caseiro para outro olho caseiro ou, transpassando dezenas de outros olhos caseiros em
registro contínuo de uma fachada. A janela-vitrine.

Janela vitrine. Além de olhar, contemplar; a janela é lugar para ser


contemplado, olhado
Há também o momento de se expor à janela com propósito de ser olhado, numa janela vitrine.
Mesmo percebendo que estamos constantemente, no tempo de nossas vidas, postos a ser
observados, normalizando esta realidade, como se em vitrines de rua estivéssemos expostos,
queremos apresentar algo admitido por Bourdieu (2007) no ato da distinção. Uma apresentação
social atraente suficiente para passarmos ao largo e espreitarmos para ver a novidade, ou nos
deter para saber o que ocorre, seja para reconhecer ou ser reconhecido. A vitrine, neste caso, é de
dupla ligação, somos também o objeto de espreita e intuímos e utilizamos esta sensação e este
saber para nos expor e nos colocar para o outro que nos observa, marcando nossa posição,
demonstrando nosso habitus.

Há exemplos ao longo da história. Por trás da janela fechada, a mulher no século XIX põe-se
à janela sob a vigilância do marido. Bem vestida, emoldurada por cortinas de cetim, seda e
bordados, observa o movimento da rua e imagina os cheiros e ruídos, numa participação desejosa
à distância, enquanto o jovem aristocrata em janelas escancaradas se coloca em posição de
conquista e sem barreiras. Domina a nova urbanidade desta cidade moderna, que surge a partir
das grandes transformações urbanas do modelo de Hausmann.

36
103

Femme à la fenêtre (1880); Jeune homme à la fenêtre (1875)


Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Gustave_Caillebotte

Isto é o que registram as delicadas e perceptivas pinturas de Gustave Caillebotte, à esquerda


(Intérieur, Femme à la Fenêtre, 1880), e à direita (Jeune homme à la fenêtre, 1875). O jogo de
dominação e classe ficam claros e colocados. Por um lado, não sabemos quem são a mulher ou o
jovem, as faces não se revelam, mas sabemos quem é o homem por trás da mulher e sua
autoridade fica estabelecida. Por outro, a janela vitrine é a janela da classe poderosa à época das
grandes transformações do século XIX. O luxo, a amplitude, a altura e a distância da rua
representam distinção e poder, pois, só era possível ver aqueles que estão à janela quando estes o
permitiam e o desejavam, quando autorizavam ou eram autorizados à exposição.

As janelas do outro lado da rua, dos outros edifícios são outros olhos da mesma classe, não
precisam de tantos ritos para se aproximar. Assim, os olhos das casas estão sempre próximos,
vistos e protegidos pelos da mesma classe e extrato social em uma exposição constante, desejada
para se afirmar entre pares, ao demonstrar suas posses, apresentando o que compõe sua casa ao
deixar seus recheios à vista, antes emoldurados por belas cortinas rendadas e de veludo.

Em classe diferente, a janela é a representação de uma carência, é o próprio luxo. Não há


tantas janelas em Liverpool ou Manchester desta mesma época, como relata Engels (2008) na
mais forte descrição das condições da classe operária inglesa, o que marca o passado industrial e
urbano do século XIX.

Entretanto, quase um século depois, em Liverpool, durante os anos 70 do século XX,


reproduz-se em similaridade as vivências expostas por Engels, em que a condição da classe
operária ainda disputa melhor espaço. Na disputa de luz vinda de uma janela que tem que
aquecer uma família surge um fator de resiliência que identificamos como o holding de
Winnicott (1988), observado na medida de uma janela e na cena enquadrada pela luz em que
uma avó e netos estão à espera dos que buscam o sustento. Uma cena que invoca a dádiva de
Mauss (1988) e a dívida positiva de Godbout (2000).

Liverpool
Fonte: http://streetsofliverpool.co.uk/tag/liverpool-pics/page/6/

37
104

Estas imagens nos provocam e induzem a uma defesa que ter janela acabou por pressupor
poder económico, uma definição da posição social de uma família. Assim como ter ou não ter
casa, e na medida intermediária ter ou não ter janela se materializou como fator determinante em
uma narrativa de diferenciação de propriedade e posição social. A janela é de classe.
Esta leitura se apoia em outro fato concreto. A sociedade inglesa, entre 1696 e 1851, sofreu
com uma tributação hoje considerada absurda, ou no mínimo inusitada, que traduz um contexto e
uma classe. Window Tax, o imposto sobre a janela, permite uma perceção da dimensão social
que a janela adquiriu.
Entender seu surgimento auxilia na leitura. O rei William III da Inglaterra, na necessidade
de reorganizar a arrecadação da Coroa, após cortes determinados pela Câmara de Comuns,
encaminha proposta ao Parlamento de novo tributo, por meio do Act for granting to His Majesty
severall Rates or Duties upon Houses for making good the Deficiency of the clipped Money, que
impõe cobrança sobre os imóveis dado o número de janelas.
Segundo Oates e Schwarb (2015), este tributo surge em substituição ao tributo sobre fogos –
hearth tax –, que durou de 1662 a 1689, em que se cobrava por cada lareira ou outros fogos
encontrados na habitação (Marshall, 1936; Green, 2010), o que obrigava ao coletor – chimney
man – a adentrar a casa para verificação, ato percebido como criminoso à santidade e intimidade
das famílias. O novo tributo apresentava-se de forma simples e eficiente por sua estrutura de
cobrança determinada por faixa: até 10, entre 10 e 20 e mais que 20. Segundo Oates e Schwarb,
estas faixas foram alteradas inúmeras vezes, passando a até 10, entre 10 e 14, entre 15 e 19 e
mais que 20. Um dos primeiros impostos sobre propriedade pago ao Estado, com a peculiaridade
de que não era cobrado ao proprietário, mas ao ocupante.
Com 155 anos de duração na Inglaterra (1696-1851), o tributo provocou um profundo efeito
na sociedade inglesa, nos projetos e construções que observavam a quantidade de janelas pelas
faixas (idem), com modificação paulatina dos hábitos, num aprendizado de longo prazo, nos
termos admitidos Elias (1993), influindo sobretudo na classe operária nas formas de coabitação,
de compartir e viver nas moradias urbanas.
Em nossa perceção houve a reincorporação da escuridão aos lares operários, em um retorno
a caverna. Escuridão e compartilhamento de casas por diversas famílias. Nos lares operários a
escassez de janelas marca a construção de habitus em um processo de longo tempo, de quatro a
cinco gerações, que nasceram sob os efeitos do imposto numa construção. Aqui podemos admitir
que Bourdieu e Elias estabelecem um diálogo.

Em A Riqueza das Nações, Adam Smith, de forma sucinta, argumenta sobre o efeito do
imposto na vida dos ocupantes, buscando demonstrar que a variação do valor económico de
possíveis rendas auferidas de um imóvel rural e de um imóvel urbano não eram compatíveis com
a tributação gerada, tendo como critério, apenas o número de janelas. Para Smith parecia-lhe
incabível a fórmula, pois incidia com maior peso nas propriedades rurais e naqueles que
possuíam menos possibilidades de auferir renda.

Janelas emparedadas, custos sociais e custos da classe. Janelas da revolução à


janela moderna no mundo operário
Vários países utilizaram a tributação sobre janelas com variações quanto e a quem era devido o
pagamento. A França proporciona uma boa referência por disseminar a aplicação da arrecadação
nos territórios ocupados na época napoleónica e por ser um dos países que mais tarde aboliu a
taxação (1798-1926).

No caso da França o imposto era cobrado ao proprietário e a fuga à tributação caracterizou-


se por uma solução individual com o emparedamento de janelas, modificando a

38
105

paisagem urbana de Paris em determinados pontos. Hoje, as janelas emparedadas são uma
curiosidade parisiense.
As fachadas se tornam cegas à rua e, mais uma vez, remontamos a imagem da caverna com
apenas entrada e poucas aberturas, as quais são disputadas por famílias de uma classe de
operários urbanos dos séculos XVII, XVIII, XIX e início do século XX, que compartilham casas
em estado precário.
Esta condição de escuridão e insalubridade que a falta de luminosidade e ventilação causam
à vida dos habitantes era evidente e torna-se foco da crítica para aqueles que propunham
mudanças radicais nas cidades e nas casas. Dentre estes críticos é importante destacar os
integrantes do movimento moderno na virada do século XIX e XX.
A Bauhaus e os primeiros Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna - CIAM
(Mumford, 2002) preconizavam a nova casa, a moradia para os trabalhadores. Ernst May, por
exemplo, já transformava em realidade esta perspetiva na cidade de Frankfurt pelos planos
urbanos e casas operárias. O II CIAM em 1928, sob o tema – Die Wohnung für das
Existenzminimum – (Apartamento para o mínimo de subsistência ou habitação mínima) e Le
Corbusier com Por uma Arquitetura, são manifestações de libertação das janelas, que declaram o
que os operários deveriam exigir, como mais e maiores janelas.

L'Unite d’habitation - Marselha, França. Le Corbusier


Fontes: Foto 1 e 2: http://www.fondationlecorbusier.fr; abaixo: https://histarq.wordpress.com/2012/11/23/aula-5-le-

corbusier-2a-parte-1930-1960/

As novas janelas deveriam entrar no repertório da Arquitetura e não é por menos que o
edifício manifesto de Le Corbusier, L'Unite d’habitation de Marselha, era o modelo da
modernidade pretendida, com uma única janela que se estendia por toda a unidade.
Era a revolução da luz para a classe operária francesa e um exemplo da arquitetura moderna.
Edifícios no mundo seguem a fórmula dos panos de vidro que agora compunham as
fachadas nas mais diversas edificações. Nos casos em que se seguiu a fórmula corbusiana, o que
separa agora as pequenas unidades de habitação social da rua é um pano de vidro que compõe a
janela-parede.

A luz entra como nunca na casa operária e a intimidade é também escancarada, as histórias
familiares agora são inteiras e apresentadas a todos, em uma performance cotidiana, às vezes
escondida por uma cortina que se abre e fecha durante parte do dia. À noite, esta cortina se torna
um teatro de sombras.

39
106

Um novo léxico estético toma conta do mundo e tem diversos representantes e, no Brasil,
um outro edifício manifesto da Arquitetura Moderna, ganha a interpretação em curvas e desenho.
O Copan, projeto de 1954 em São Paulo, é o exemplo de Oscar Niemeyer para a arquitetura
moderna aplicada à habitação social, em pleno centro da capital paulistana.

Edifício Conpan - São Paulo. Oscar Niemeyer


Fontes: https://analisisdelproyectodearquitecturaypaisaje.wordpress.com/2012/12/25/27-copan-oscar-niemeyer/

A fachada já não era mais uma expressão qualquer e os olhos da casa, as janelas, não mais
eram vistos como uma representação imagética que podia dar uma leitura humanizada ao
edifício.

Parecia que a luz não sairia das casas, mas o Copan, entre tantos outros edifícios, não
escapou às críticas que o movimento moderno acabou por incentivar a uma arquitetura
internacional. Uma estética global que carecia de história e identidade cultural com o território
em que surgia (Frampton, 2000).

A crítica contribui para algumas preocupações pragmáticas no contexto da sociedade,


questionando alguns axiomas, como a janela ampla, ao evocar, na atualidade, uma releitura
baseada na minimização dos custos de produção. As janelas, agora, janelas a partir de cautelosas
planilhas para que não cause impacto nos valores finais de comercialização do produto/objeto
casa.
A poética se perde em técnica, no processo atual de produção de cidades e moradias em que
as discussões sobre a viabilidade habitacional conquista escala global, em que as disputas por
espaços e localidades passíveis ao morar interferem nas ações governamentais e comunitárias,
em que as diversas formas de morar tendem a uma homogeneização com o objetivo de aquisição
de propriedade (Tibaijuka, 2013).

Os novos projetos reorientam a estética, compatibilizando-a com uma redução dos olhos.
Tais projetos agora miram numa estética que seja viável num orçamento imediato, afastando
critérios de ganhos de longo prazo que se detêm na qualidade e acesso da luz, fruição da
paisagem que não ganha peso na planilha de custo.

Janelas à noite. Um fim de texto


Neste breve texto, analisou-se a janela como elo entre o dentro e o fora da casa.

No percurso foi importante identificar abordagens possíveis como a Ritmanálise (Lefebvre,


2004; Bachelard, 1988) e a Teoria do Actor-Rede (Latour, 2008), bem como reconhecer que o
contributo de Elias (1993) quanto à análise de tempos longos que possibilitam uma leitura de
evolução da sociedade e do processo de distinção (Bourdieu 2007) apresentam a janela como um
elemento adaptável a uma representação e identificação de classe.

40
107

Não por menos que ao tomar a Window Tax inglesa e francesa, reconheceram-se influências
importantes na origem de alguns elementos e axiomas do movimento moderno associado ao CIAM.
Se, considerada esta única influência, já seria relevante a digressão inicial, entretanto
empreenderam-se outras questões como a exposição e sociações que a janela permite. Exercícios de
poder puderam ser encontrados, considerando o critério de avaliação de riqueza na Inglaterra
durante 155 anos por contagem de quantidade de janelas, independente dos tamanhos e localidades.
Como interação em Simmel (1996) e ponto de observação social em Lefebvre (2004), poderia
ser facilmente associada ao elemento de vigília social e construção de laços que Jacobs (2000)
observa necessários e que foram fragilizados nos bairros sociais modernistas das cidades
americanas. A janela como olho social.
Por fim, a casa e seus componentes são ricos em desafios de análise sociológica e a janela se
apresentou como pertinente a uma leitura inusitada com uma evolução que se confunde com
critérios de identificação de classe. Novas janelas podem surgir como os ecrãs de nossos
computadores e smatphones, mas a tradicional abertura da parede ainda tem muito que contar.

Referências bibliográficas
Bachelard, G. (1988), A dialética da duração. São Paulo: Ática.
Bachelard, G. (1993), A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes.
Bourdieu, P. (2007), A distinção. São Paulo: Edusp.
Carlson, R. H. (2005) A brief history of property tax. Fair and Equitable, 2. Consultado a 12 junho
de 2018, disponível em https://www.amanj.org/sites/default/files/files/Carlson.pdf.
Ching, F. D. K., Jarzombek, M. M; Prakash, V. (2017), A global history of architecture. Hoboken,
USA: John Wiley & Sons.
Elias, N. (1993), O processo civilizador [Vol. 1]. São Paulo: Zahar.
Engels, F. (2008), A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo.
Frampton, K.; Fischer, J. (2000), História crítica da arquitetura moderna. São Paulo:
Martins Fontes.
Green, A. (2010), The Economic History Review, 63(1), 239-240. Consultado a 12 de junho de
2018, disponível em: http://www.jstor.org/stable/27771579.
Godbout, J. T. (2000), Le don, la dette et l’identité. Paris: La Découverte
Jacobs, J. (2000), Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes.
Jarzombek, M. M. (2013), Architecture of first societies: A global perspective. Hoboken:
John Wiley & Sons.
Latour, B. (2008), Reensamblar lo social - una introducción a la teoría del actor-red. Buenos
Aires: Manantial.
Le Corbusier (1994), Por uma arquitetura. São Paulo: Perspectiva.
Lefebvre, H. (2004), Rhythmanalysis: Space, time and everyday life. London: A&C Black.
Marshall, L. M. (1936), “The levying of the hearth tax, 1662-1688”, The English Historical Review,
51(204), 628-646. Consultado a 12 de junho de 2018, disponível em
41
108

https://www.jstor.org/stable/554438?seq=1#page_scan_tab_contents.

Mauss, Marcel (1988), Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70.

Mumford, E. P. (2002), The CIAM discourse on urbanism, 1928-1960. Cambridge, USA:


MIT press.

Oates, W. E.; Schwab, R. M. (2015), “The window tax: A case study in excess burden”, Journal
of Economic Perspectives, 29(1), 163-80. DOI: 10.1257/jep.29.1.163. Consultado a 9 de abril de
2018, disponível em https://www.aeaweb.org/articles?id=10.1257/jep.29.1.163.

Platão, A. (2014), A República. São Paulo: Martins Fontes.

Simmel, G. (1996), “A ponte e a porta”, Revista de Ciências Sociais - Política & Trabalho,

12, concultado a 6 de maio de 2018, disponível em


http://www.periodicos.ufpb.br/index.php/politicaetrabalho/article/view/6379/19750.

Smith, A. (2017), A riqueza das nações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Tibaijuka, A. (2013), Building prosperity: Housing and economic development. London:


Earthscan.

Winnicott, D. W. (1988), Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago.

Filmes

Arnaud, J. (1981), Le Guerre du Feu [Film]. França e Canadá: Jean-Jacques Arnaud.

Alfred, H. (1954), Rear Window [Film]. Hollywood, USA: Alfred Hitchcock.

42
109

O(s) lado(s) de fora das casas


Adelino Gonçalves, Centro de Estudos Sociais e Departamento de Arquitetura da
Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra
santos.goncalves@gmail.com
As casas existem sem as cidades. Aliás, são imensas as casas que existem por si só, sem
urbanidade ao seu redor, além dos caminhos que servem o seu acesso e os trilhos das paisagens
em que se inscrevem. Destas casas isoladas, algumas agarram-se tão intensamente a estas
paisagens que o(s) seu(s) lado(s) de dentro e o(s) seu(s) lado(s) de fora se tornam indissociáveis
e assim sintetizam uma relação com o mundo, construída a partir de um lugar.

Por sua vez, as cidades não existem sem as casas. Todas as atividades que fazem vibrar a
vida urbana dependem delas. É dentro das casas ou nos espaços urbanos que elas conformam

– no(s) seu(s) lado(s) de fora – que toda a vida urbana se desenrola. Ora precisamente porque as
casas são o suporte da vida urbana, mudam no tempo. Transformam-se e inovam-se para servir
melhor aquelas atividades acompanhando a sua evolução, pois perecem se não mudarem. Por
isso é que a mudança está inscrita no ADN das cidades e faz com que estas sejam um processo.
Que não tenham um começo, nem tenham um final, mas sejam tão só um processo. Um processo
de transformações que tem lugar nos espaços social, económico e cultural e se interliga com as
mudanças no espaço físico, com velocidades, ritmos e dimensões variáveis.

Destas mudanças, as mais evidentes e quiçá as menos cerebrais – porque facilmente


comensuráveis – são as que acontecem no espaço físico e se traduzem no seu crescimento ou na
sua renovação, ou seja, na construção de casas novas, de raiz ou em substituição de casas
demolidas. Barcelona de Cerdá e Paris de Haussmann (ainda) são apoteoses históricas destes
dois tipos de contributos para a mudança do espaço físico das cidades que se podem medir e
registar objetivamente.

Mas há outras mudanças no espaço físico com expressões diferentes e temporalidades


próprias que não são registadas como estas ou que parece que não importa registar. Umas são
subtis, outras nem tanto, mas todas elas são entendidas ou aceites como “mudanças naturais”.

Todas elas transformam o espaço físico, mas o resultado das mudanças que provocam não é
questionado. Não intriga, nem estimula.

O envelhecimento dos materiais que revestem as casas ou a alteração das suas tonalidades
devida às águas da chuva, por exemplo, são mudanças subtis encaradas com naturalidade porque
se processam num tempo longo, no primeiro caso, ou apenas porque têm lugar de uma forma
ocasional e temporária, no segundo. Por sua vez, as necessidades de aumento do espaço
doméstico ou de trabalho, assim como o cuidado por recuperar os materiais envelhecidos ou
degradados que revestem as casas, muitas vezes levam a mudanças que não são subtis e até
podem perturbar o equilíbrio dos espaços urbanos que ajudaram a construir. Porém, dentro de
certos limites, nem estas mudanças causam intriga.

Por tudo isto, cabe perguntar como é que a cidade lida com a sua mudança? Porque é que a
mudança do(s) lado(s) de fora das casas não é sempre razão para uma intriga? Porque é que a
perturbação do equilíbrio de um espaço urbano não motiva reações? Porque é que a construção
desse equilíbrio não é motivo para uma aspiração permanente para orientar o processo da
cidade?
43
110

Apenas “porque sim”?


Como decorre do poema de Ruy Belo (1998: 41) que deu o mote à semana cultural da
Universidade de Coimbra em 2018, o espaço físico da cidade não existiria sem (a arquitetura
d)as casas: sem casas não haveria ruas, as ruas onde passamos uns pelos outros, mas passamos
principalmente por nós. Ou seja, sem as casas, não haveria espaço(s) público(s) e, extrapolando,
sem o(s) lado(s) de dentro das casas, não existiria(m) o(s) lado(s) de fora. Sem o íntimo, não
haveria o partilhado e sem o privado, não haveria o público.
Dever-se-á então a esta indissociabilidade, o silêncio sobre as “mudanças não
comensuráveis” ou as “mudanças naturais” no processo das cidades? Como se este processo
fosse uma “máquina impossível”, como a de Man Ray (1920), ou uma “máquina desejante” de
Deleuze e Guatari (1996)? Como se o processo da cidade fosse “maquínico”, simultaneamente
determinando e sendo determinado sem que se saiba, ou se tenha mesmo que saber, que
elemento ou que peça da máquina se deve controlar para que o equilíbrio do espaço físico da
cidade seja uma aspiração permanente?
Mesmo não funcionando, a imagem da “máquina impossível” de Man Ray ou a “máquina
desejante” de Deleuze e Guatari, não deixam de ser máquinas. Do mesmo modo, os espaços
urbanos continuam a ter nomes substantivos, mesmo que alguns dos seus elementos perturbem o
seu equilíbrio ou a sua identidade formal, ou seja, mesmo que alguma(s) das suas casas tenha(m)
lados de fora que perturbem a coerência do conjunto. Mesmo sem equilíbrio, as ruas são ruas, ou
as praças são praças.
De certa maneira, deve ser isto que explica que algumas mudanças no espaço físico das
cidades não causem intriga ou não provoquem reações, pois mesmo sem equilíbrio, a substância
dos espaços urbanos faz-se presente.
Mas porque é que a substância é suficiente, quando a cidade, sendo um processo, pode
oferecer equilíbrio e identidade formal aos seus espaços urbanos?
Além dos exemplos referidos de silêncio sobre algumas mudanças que têm lugar nos
espaços urbanos, qual é a intriga criada pelo entaipamento de vãos das casas, sabendo que isso
significa que o(s) lado(s) de fora das casas deixam de ser animados por elas? De igual modo,
qual é a reação suscitada pela mudança que a instalação de publicidade a produtos ou casas
comerciais provoca no(s) lado(s) de fora das casas? A publicidade é uma “imposição” de um tipo
específico de interesses privados, sobre os espaços comuns ou partilhados. Qual é a escala
admissível para o privado se impor ao público no processo da cidade? Qual é a reação à perda de
qualidade ou de conforto visual dos espaços urbanos que resulta deste tipo de mudanças? Quem
é que reage e como é que reage?

Figura 1 - Estádio Cidade de Coimbra, Rua Figura 2 - Estrada da Beira, Coimbra.


Dom João III. Fonte: Adelino Gonçalves, 2017.
Fonte: Adelino Gonçalves, 2018.
44
111

Em suma, qual é o incómodo que causa a falta de equilíbrio ou de identidade formal dos
espaços urbanos, ou seja, dos espaços conformados pelo(s) lado(s) de fora das casas? Estes
espaços têm um léxico que não depende dos significantes da “língua comum” que existe para os
“contentores” das casas. As paredes, os telhados, as portas ou as janelas, fazem parte do léxico
da arquitetura das casas, um léxico variado, mas fechado, que é partilhado com “sotaques”
diferentes em função das geografias. Mas os significantes do léxico dos espaços urbanos – rua,
praça, avenida, travessa, largo... – são muito diferentes. São relacionais. Não dependem
individualmente dos significantes da arquitetura das casas, mas sim das relações entre todos eles,
ou seja, dependem do processo com que são construídos ou reconstruídos.

Por tudo isto, o silêncio sobre certas mudanças no espaço físico nas cidades, é sinónimo de
uma (certa) cultura urbana: silenciosa. Uma cultura arriscada, pois não interliga as mudanças nos
demais espaços social, cultural e económico. Uma cultura arriscada porque sem mudança, não há
cidade e sem projeto a mudança não é uma construção, é simples alteridade.

Referências bibliográficas
Belo, Rui (1998), “Oh as casas as casas as casas”. Obra Poética de Ruy Belo. Lisboa: Ed.

Presença, 40-41.

Deleuze, Gilles; Guattari, Félix (1996), O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia. Lisboa:

Assírio & Alvim.

45
112

Os “sem-casa”... e depois?
José Manuel Mendes, Centro de Estudos Sociais e Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra
jomendes@fe.uc.pt
No seu famoso ensaio A casa ou o mundo às avessas (La maison ou le monde renversé
(Bourdieu, 1972), Pierre Bourdieu, a partir de uma reflexão sobre a cultura cabila, estabelece as
bases de análise de uma economia simbólica do espaço a que chamamos casa. A casa é definida
como um microcosmos onde se pode ler as relações de poder, a hierarquização do mundo social
e, também, as formas de resistência pessoal e social nos diferentes lugares e momentos de
intimidade ou de convívio associados a esse microcosmos. Ausentes da reflexão de Bourdieu
estão as formas de poder relacionadas com o patriarcado ou o colonialismo.

A componente política da casa, ou mais concretamente do domicílio, emerge no Ocidente a


partir das propostas de Montesquieu. No capítulo XXIII da sua obra O Espírito das Leis,
intitulado “Dos espiões na monarquia”, Montesquieu pergunta:

São necessários espiões na monarquia? Não é a prática normal dos bons príncipes. Quando um
homem é fiel às leis, cumpriu com o que deve ao príncipe. É pelo menos necessário que ele tenha sua
casa como asilo, e o resto de sua conduta em segurança. (Montesquieu, 1996)

Aqui se define o princípio jurídico da inviolabilidade do domicílio, e a noção de uma


sociedade civil constituída por indivíduos e famílias congregados no mote: “uma casa, uma
chave”.

Como indicador da reversibilidade dos direitos adquiridos, a União Europeia implementou a


partir de 1 de janeiro de 2004 o Mandado de Detenção Europeu, que permite rusgas e capturas
no domicílio durante o período da noite. Este Mandado é uma consequência direta do 11 de
setembro e da concretização de uma política securitária no espaço europeu. Em conformidade, a
Constituição portuguesa foi alterada em 2003, permitindo rusgas policiais com mandado à noite,
no período das 21 às 7h.

O princípio da inviabilidade do domicílio, proposto por Montesquieu, era, assim, consumido


pela lógica securitária.

Nesta segunda parte do texto, recorro a quatro casos de pessoas e famílias afetadas pelo
incêndio de junho de 2017 em Pedrógão Grande, e das várias formas que pode assumir o
conceito de casa, o valor simbólico e emocional das memórias associado a esse espaço.

Caso 1
A família, depois de um dia de expetativa e de incerteza, e com o ruído inusitado do incêndio
que se pressentia desde as 16 horas e que se aproximava da aldeia a uma velocidade nunca vista,
decidiu abandonar a casa para um lugar mais seguro. A violência do incêndio e o fumo denso
levariam ao despiste da viatura em fuga, de que resultariam a morte de uma criança e de um
adulto, escapando com vida outros dois adultos.

Meses depois do ocorrido, na casa da família, que permaneceu incólume ao incêndio, todos
os espaços em que a criança brincara nesse sábado à tarde continuam intactos,

46
113

intocáveis, ainda com os brinquedos espalhados pela sala de estar, e o quarto como que parado
no tempo. No caso desta família, a perpetuação da memória alicerça-se na estática simbólica e
material da casa.

Caso 2
1
O incêndio de junho de 2017 destruiu por completo a casa da família Antunes. Além de um dos
seus membros ter ficado gravemente ferido, permanecendo por vários dias hospitalizado, a
questão premente era onde ficarem alojados logo na primeira noite e nos dias seguintes. Após a
recusa de um familiar que residia na mesma aldeia de os acolher, revelando quão ténues podem
ser os laços e as redes sociais, acabaram por se alojar numa casa emprestada por uma pessoa
conhecida noutra aldeia próxima.

O estranhamento do espaço e do lugar conduziriam à ostracização posterior no acesso aos


bens gratuitamente oferecidos por muitos voluntários que se deslocaram à aldeia. E a família
passou a viver uma vida paralela, em que não tocava ou utilizava os eletrodomésticos, os
utensílios ou as mercearias pré-existentes na casa emprestada. A vida quotidiana ficou suspensa,
à espera da reconstrução da casa perdida e do reatamento dos laços sociais e dos ritmos e rituais
habituais.

Caso 3
Um cidadão inglês tinha adquirido há alguns anos, no centro da aldeia, uma casa de dois pisos de
traça tradicional e em xisto, em busca de uma forma de vida alternativa, longe da agitação de
uma grande metrópole inglesa onde viva anteriormente. O incêndio de junho de 2017 destruiu-
lhe a casa e obrigou-o a residir em vários lugares, conforme a bondade e a disponibilidade de
conhecidos e vizinhos.

Para ele, a reconstrução da casa tornou-se uma prioridade. Para sua surpresa, os apoios
oficiais obrigavam à reconstrução seguindo uma tipologia pré-formatada de uma casa térrea e
com um único quarto, numa lógica padronizada e adequada à composição do seu agregado
familiar. Iniciavam-se, assim, negociações com as autoridades competentes para a possibilidade
de utilização do apoio oficial na reconstrução integral da casa, com pagamento do valor
suplementar ao estipulado pelo próprio. Estávamos perante um exemplo de diplomacia de
desastre, pois todo o processo teve o acompanhamento da embaixada do país de origem e o
princípio de invocação da cidadania europeia.

Caso 4
A lógica estatal de reconstrução das casas destruídas pelo incêndio é vitoriosa e heteroimposta. A
família Marques também perdeu a sua casa no incêndio. O casal e um filho adulto aguardam a
reconstrução da sua casa, enquanto residem uma casa de um familiar. Como aqui não impera a
diplomacia de desastre, a reconstrução será seguida com aplicação de uma tipologia T2. Mas
surge um contratempo. Como um dos adultos é portador deficiência física, há necessidade de
negociar a construção de uma rampa de acesso à casa e de alargar os espaços de circulação e as
portas no interior da mesma para passagem da cadeira de rodas em que o mesmo se faz
transportar. O sofrimento da perda original da casa

11
Utilizamos pseudónimos para a identificação das famílias.

47
114

prolonga-se da desrealização material e simbólica de um espaço definido nas suas prioridades


por outros.

Em jeito de conclusão
Os casos relatados remetem para o conceito de heterotopia, recuperado por Henri Lefebvre e
numa lógica de produção de lugares ou espaços contrastantes ou mutuamente repelentes (1991:
2
163; 366). Mas, mais relevante em Lefebvre é a ideia central de que os lugares podem ser
sempre analisados como espaços dominados ou apropriados (1991: 164). Os espaços dominantes
e dominados são transformados e mediados pela tecnologia e pelas práticas, e são fortemente
marcados pela história e pelo poder político (Ibidem). Os espaços apropriados, que só podem ser
apreendidos através de um estudo crítico do espaço, assemelham-se a uma obra de arte, embora
se manifestem na sua concretude (Lefebvre, 1991: 165). Para Lefebvre o espaço apropriado é
sempre um espaço de prazer.

Para Lefebvre, “Any revolutionary 'project' today, whether utopian or realistic, must, if it is
to avoid hopeless banality, make the reappropriation of the body, in association with the
reappropriation of space, into a nonnegotiable part of its agenda” (1991: 166).

Relevante na nossa discussão é salientar que em Lefebvre as diferenças emergem ou


perduram nas margens dos domínios homogeneizados, como resistências ou como externalidades
(laterais, heterotópicas, heterológicas), ou seja, o que é diferente começa sempre por ser excluído
(1991: 373).

Como irão as pessoas e as famílias nos casos aqui relatados apropriarem-se dos novos
espaços das suas novas casas, como os vão tornar em espaços de prazer, de significado, de
identidade e de futuro? Quais os processos sociais subjacentes que permitirão a tecedura e a
consolidação dos laços e das redes sociais?

Referências bibliográficas
Bourdieu, Pierre (1972) “La maison ou le monde renversé”, in Esquisse d’une théorie de la
pratique. Précedé de trois essais d’ ethnologie kabyle. Paris: Librairie Droz, 45-59.

Lefebvre, Henri (1991) The Production of Space. Oxford, UK: Blackwell.

Montesequieu (1996) O Espírito das Leis. São Paulo: Martins Fontes 1748 .

9.
Lefebvre propõe uma tipologia com três tipos de lugares ou espaços: isotopias, ou lugares ou espaços análogos; heterotopias,
ou lugares ou espaços contrastantes ou mutuamente repelentes; e, utopias, ou lugares ou espaços investidos pelo simbólico e pelo
imaginário (1991: 163; 366).

48
115

A rua e a casa, que relação?

Graça Índias Cordeiro, ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa


graca.cordeiro@iscte-iul.pt

Na apresentação que Roberto DaMatta, antropólogo brasileiro, faz da reedição em 2003 da obra
clássica de Gilberto Freyre, Sobrados e Mucambos (1939), elege a casa “como categoria
sociocultural, agência de sentimentos e instituição económica” que se constitui como o ponto de
partida analítico para pensar as noções nativas de ‘casa’ e ‘rua’, usando-as como “portas e
janelas para traduzir o sistema brasileiro” (DaMatta, 2003: 17). A casa, seja a casa-grande mais
rural ou o sobrado mais urbano é, neste sistema, mais do que local de moradia; é a “escola,
igreja, banco, partido político, hospital, casa comercial, hospício, local de diversão, parlamento,
restaurante e o que mais se queira...”, isto é, “uma instituição sem rival na sociedade brasileira”
(idem: 18). Como bem refere Gilberto Freyre nesta obra: “O patriarcalismo brasileiro, vindo dos
engenhos para os sobrados, não se entregou logo à rua; por muito tempo foram quase inimigos, o
sobrado e a rua (Freyre, 2003: 139). Na sua interpretação, Roberto da Matta insiste em que a
verdadeira oposição à noção brasileira de ‘casa’ seria, mais do que o mucambo ou a favela, a rua,
como polo de vida pública e política, regida por regras em tudo diferentes das que existem no
espaço doméstico da casa. Antes do mais, a rua é o lugar em que a ‘pessoa’ da casa se transforma
em “indivíduo-cidadão” (DaMatta, 2003: 13).

12 o mesmo DaMatta quem afirma na sua obra, também ela já clássica, A casa & a Rua, o
seguinte:

Casa e rua são categorias sociológicas (...) que não designam simplesmente espaços geográficos ou
coisas físicas comensuráveis, mas acima de tudo entidades morais, domínios culturais
institucionalizados (...) capazes de despertar emoções, reações, leis, orações, músicas e imagens
esteticamente emolduradas e inspiradas. (...) se a casa está, conforme disse Gilberto Freyre,
relacionada à senzala e ao mocambo, ela também só faz sentido quando em oposição ao mundo
exterior: ao universo da rua. (DaMatta, 1987: 15-16)

Foi este o desafio que aceitei do meu colega e amigo Carlos Fortuna, para participar nesta
conversa em torno das casas vistas de dentro e de fora: olhar a relação casa/rua como uma boa
relação para pensar o plural das nossas cidades (Fortuna & Leite, 2009) nos seus diferentes usos
e representações. Ou, por outras palavras, pensar a rua e a casa em conjunto, na
indissociabilidade de uma relação, mostra que são as casas que dão a estrutura e o sentido às
ruas. Uma rua é feita de casas, de edifícios que podem assumir a forma de prédios, vivendas,
barracas, ou outras formas de habitat, pelo que não conseguimos pensar casa e rua de forma
separada e oposta.

Comecemos, pois, por falar da rua.

As cidades têm sido preferencialmente olhadas através do seu espaço público, sendo as ruas,
avenidas, praças, jardins, alguns dos pontos centrais desta atenção sobre a sua vida social. Não
apenas as ruas e praças a céu aberto têm suscitado interesse, como também outros espaços
públicos e semipúblicos abertos aos habitantes e visitantes, nas modalidades próprias de
convivialidade, comensalidade ou outros prazeres sensoriais, normalmente associados ao tempo
livre, lúdico e de lazer, tão característicos da vida citadina. Mercados, lojas, cafés, restaurantes,
tabernas, livrarias, salas de concerto, museus, bibliotecas, ginásios, são apenas

49
116

alguns dos tipos de ‘casas’ que prolongam, de certa forma, o espaço público urbano, alimentando
sociabilidades urbanas de vários tipos. A rua representada como espaço de sociabilidade pública
é já um dado adquirido, apesar das diferenças nacionais, regionais, locais das suas imagens e
representações.
A este propósito, relembro o texto de Tim Sieber, antropólogo norte americano, que bem
mostra o contraste entre a visão negativa da ‘vida de rua’ associada à marginalidade, pobreza e
delinquência, na tradição científicas e literária norte-americana, e uma visão mais positiva das
sociabilidades urbanas construídas em torno da ideia de ‘rua tradicional’ como espaço
polifuncional de muitas atividades e relações, na Europa do Sul, com particular atenção para a
cidade de Lisboa (Sieber, 2008).

Efetivamente, a rua tem sido um dos elementos fundamentais na definição da identidade de


cada cidade, com uma função icónica relevante na sua representação. É um dos espaços urbanos
mais importante, porventura o mais visível de todos, o espaço por definição da diversidade social
e cultural urbana composta por uma variedade infinita de tipos sociais que fascinam os que se
deleitam a olhar e observar a cidade. É pelas ruas que a cidade se vai conhecendo. A descrição
das cidades começa com a descrição da sua população tal como ela se dá a ver no espaço publico
da rua: quem nela vive, quem a percorre, que atividades ela acolhe, o que se festeja e como, o
que ela representa. A rua impõe-se, sempre, com a sua paisagem diversificada, também ao nível
sensorial, particularmente enaltecida nas áreas antigas das cidades com mais história... Acresce o
facto de que a rua é, simultaneamente, um dos mais poderosos instrumentos de descrição e
conhecimento das cidades – da sua história, das suas vivências, do seu pulsar – pois é através
delas que, para lá do deleite que proporciona a sua observação, que as cidades se dão a conhecer
de um modo mais completo e unificador, como espaço de circulação e como orientação do
crescimento urbano, tornando-as inteligíveis. Neste sentido, podemos afirmar que a rua pode ser
entendida como um ‘topos estruturante das próprias cidades’ (Cordeiro, 2007).

Ora... as ruas são feitas de casas, seja qual for o tipo e função das mesmas.

A ligação entre ambas é física, moral, social, cultural. De entre as múltiplas dimensões que
podemos encontrar nesta relação, eu gostaria de me deter sobre um dos seus planos mais
invisíveis e menos explorados, que é o que se constitui em torno de uma miríade de relações de
nível mais comunitário ou, até, familiar, fazendo com que esta sociabilidade ‘de rua’ seja mais
intimamente dependente da vida doméstica das casas e suas vizinhanças, fazendo com que a
própria distinção entre público/privado perca, em muitos casos, pertinência e, até, sentido.

Para isso, gostaria de revisitar, em forma de quase apenas referências, dois textos que
trabalham algumas subtilezas desta ligação e, assim, nos ajudam a refletir sobre a complexidade
de uma relação, para lá da oposição dual sempre tão referida polarizando (e purificando) o
contraste publico/privado. A morada como forma de identificação socialmente construída (Vidal,
2008) e a apropriação comunitária da rua através de rituais religiosos (Cachado, 2008). Ambos
os textos estão publicados no mesmo livro-coletânea sobre a rua (Cordeiro e Vidal, 2008) que
inclui o texto de Tim Sieber anteriormente citado.
Do lado da história, Fredéric Vidal mostra como a identificação da morada em Lisboa foi
socialmente construída através de diferentes práticas de negociação ao longo do século XIX. A
partir de uma análise que cruza diferentes fontes, tais como a organização da posta domiciliária”
as declarações em registos paroquiais e a perceção do espaço em textos literários, o autor mostra
como os domicílios são pontos fulcrais de um processo de negociação que vai dando forma à
ideia de rua, central na organização racional do espaço urbano novecentista, através da
constituição de moradas, ajustando os ‘modelos normativos’ e ‘lógicas de tipo comunitário’
(Vidal, 2008).

50
117

Do lado da antropologia, Rita Cachado analisa etnograficamente as práticas hindus do bairro


da Quinta da Vitoria (Loures), um bairro de barracas parcialmente destruído, e o modo como
uma rua particular, na fronteira entre este bairro precário e o bairro social de realojamento
contíguo, se torna particularmente visível através da ritualização cíclica em torno de duas
celebrações, o holi, no final do Inverno, e o janmastami, no Verão. Através destes rituais, a rua,
que se encontra numa fronteira entre bairros e entre concelhos (Loures e Lisboa), surge como
uma ligação entre “as casas e o templo”, ilustrando a íntima relação que existe entre o espaço
mais publico da rua/bairro e o espaço mais doméstico da casa (Cachado, 2008).

Estas duas pesquisas dialogam com uma outra pesquisa sobre Lisboa que, através do estudo
histórico e etnográfico das festas dos ‘santos de junho’ num dos bairros mais antigos de Lisboa, a
Bica, mostra como as casas se apropriam da rua, revelando a imbricação de relações familiares e
de parentesco com as relações de vizinhança, numa tessitura emaranhada de afinidade,
solidariedades e conflitos que dão identidade ao território mais publico da rua e do bairro
(Cordeiro, 1997).

Regressando à citação inicial de Roberto DaMatta, posso, então, dizer que o mesmo desafio
que nos leva a pensar a relação entre casa e rua, leva-nos, igualmente a pensar a cidade a partir
desta relação. Tanto a rua como a casa são duas ‘espécies de espaços’ (Pérec, 1974) pequenas,
fragmentares, confinadas a certas fatias de território que nos ajudam a decompor essa entidade
complexa que é a cidade em unidades mais próximas dos citadinos. A ligação entre a casa e a rua
ajuda-nos, pois, a chegar ao terceiro elemento, ao citadino que é quem estabelece uma ligação
entre ambas, esta relação nos dá uma visão de pormenor sobre as cidades, mais relacional e, por
isso, mais dinâmica.

Referências bibliográficas
Cachado, Rita d’Ávila (2008), “Entre as casas e o templo, a rua: comunidade hindu e interações
de bairro”, in G.I. Cordeiro e F. Vidal (org.), A rua. Espaço, tempo, sociabilidade. Lisboa:
Livros Horizonte, 129-142.

Cordeiro, Graça I. (1997), Um lugar na cidade. Quotidiano, memória e representação no bairro


da Bica. Lisboa: Dom Quixote.

Cordeiro, Graça I. (2007), “Entre a rua e a paisagem. Reflexões em torno da urbanidade de


Lisboa”, Ler História, 52: 57-72

Cordeiro, Graça I.; Vidal, Frédéric (org.) (2008), A rua. Espaço, tempo, sociabilidade.
Lisboa: Livros Horizonte.

Cordeiro, Graça I.; Vidal, Frédéric (2008), “Introdução”, in G.I. Cordeiro e F. Vidal (org.), A
rua. Espaço, tempo, sociabilidade. Lisboa: Livros Horizonte, 9-16.

DaMatta, Roberto (1987), A casa & a rua. Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de
Janeiro: Guanabara.

DaMatta, Roberto (2003), “O Brasil como morada. Apresentação para Sobrados e mucambos”,
in Freyre, Gilberto (2003) [1939], Sobrados e mucambos. Decadência patriarcal rural e
desenvolvimento do urbano. São Paulo: Global Editora, 11-22

51
118

Fortuna, Carlos; Leite, Rogério (2009), Plural de cidade: novos léxicos urbanos. Coimbra:
Almedina

Freyre, Gilberto (2003) [1939], Sobrados e mucambos. Decadência patriarcal rural e


desenvolvimento do urbano. [14ªedição] São Paulo: Global Editora.

Pérec, Georges (1974), Espèces d’Espaces. Paris: Galilée.

Sieber, Tim (2008), “Ruas da cidade e sociabilidade pública: um olhar a partir de Lisboa”, in

G.I. Cordeiro e F. Vidal (org.), A rua. Espaço, tempo, sociabilidade. Lisboa: Livros Horizonte,
47-64.

Vidal, Frédéric (2008), “A rua como lugar de referência: identificando domicílios em Lisboa”, in
G.I. Cordeiro e F. Vidal (org.), A rua. Espaço, tempo, sociabilidade. Lisboa: Livros Horizonte,
65-78.

52
119

A casa despida*

Paulo Peixoto, Centro de Estudos Sociais e Faculdade de Economia da Universidade


de Coimbra
pp@uc.pt
A Internet das coisas é como a invenção da
sanita. Não muda os hábitos das pessoas.
Apenas as mantém dentro de casa. De uma
outra casa.

Cerca de 4 anos antes de eu ter nascido, Alfred Hitchcock disse, no New York Journal-American,
que a televisão – à época, a caixa que tinha chegado para mudar o mundo – representava a
mesma coisa que a invenção da sanita, na exata medida em que não vinha mudar os hábitos das
pessoas, servindo apenas para as manter dentro de casa. Mais de meio século depois, poderíamos
“nuanciar” a frase de Hitchcock para a adaptar aos dias que correm, onde a Internet das coisas se
substituiu à televisão como instrumento que vem mudar o mundo. Ainda que seja exagerado
assumir que a televisão e a Internet das coisas não vieram mudar os hábitos das pessoas,
interessa-nos, neste texto, reter a analogia para discutir o estatuto da casa no contexto da
mudança das noções de ‘intimo”, de ‘privado’ e de ‘público’. Para encerrar a dimensão
‘escatológica’ já neste primeiro parágrafo, reiteramos apenas, como lembra Monique Eleb (1995)
em “A fronteira móvel entre a vida privada e a vida pública na casa”, que a designação de
‘privada’ atribuída ao WC se deve precisamente ao facto de, não obstante a progressiva
individualização dos espaços domésticos, se tratar do único lugar onde realmente estamos
sozinhos. Esse processo civilizacional que traz consigo as noções de íntimo e de privado, no seio
do qual a casa desempenha um papel central, tem sido amplamente discutido nas ciências sociais
(Duby e Ariés, 1990; Elias, 2006; Mattoso, 2011a, 2011b).

A casa despida, a que me refiro neste texto, é a casa que se mostra e, mais que isso, a casa
que se expõe. A casa que se despe, sobretudo, através dos dispositivos tecnológicos que invadem
as nossas vidas quotidianas com promessas de reforço do conforto doméstico e que nos
acompanham em cada movimento e em casa inação. Que registam o nosso ‘respirar natural’ e os
nossos ‘sinais vitais’, quase inconscientes, traduzindo-os em ‘dados’, mesmo enquanto
dormimos. É a domus da domótica, do controlo automatizado, que permite ‘simplificar as nossas
vidas trazendo conforto e segurança’. É a casa da inteligência artificial que, através da Internet
que está cada vez mais em todas as coisas, transfere para os objetos do nosso quotidiano o poder
de gestão dos nossos comportamentos. A casa despida redefine as linhas de fronteira entre
público e privado. Torna fluidas, senão desajustadas, as noções de ‘dentro’ e de ‘fora’.

As décadas que nos aguardam vão ser formatadas e condicionadas pela recolha de dados
(Klous e Wielaard, 2016). A revolução digital em curso não vai apenas trazer mais

* Este texto reproduz, com adaptações, mantendo o tom coloquial, a apresentação oral proferida em “As casas vistas de dentro e
de fora”. Evento integrado na 20ª Semana Cultural da Universidade de Coimbra [Oh as casas]. FEUC, 12 de abril de 2018.

53
120

informação para as nossas vidas, maior velocidade de ligação e uma acrescida dependência de
memórias externas. Ela está a conduzir-nos para um estado de docilidade, dir-se-ia de servidão
voluntária (Vion-Dury, 2016), de uma transparência ‘nudificante’, cujo resultado final é o
desaparecimento da vida privada e a renúncia irreversível à nossa liberdade individual. A
Internet das coisas está sobretudo apostada em invadir e em tomar conta dos espaços de
preservação da privacidade e de culto da intimidade (a casa, o automóvel, os dispositivos
pessoais eletrónicos móveis…), uma vez que é aí que se pode recolher a informação crítica que é
potencialmente geradora de maior valor de mercado.
Do ‘quem cala consente’ estamos a passar ao ‘quem fala consente’, pois é quem mais fala
(seja de que forma for) na Internet que mais acaba por ter de consentir. ‘Ter de consentir’
é uma expressão que adquire particular relevância. Consentimos em relação à política de
privacidade dos sites em que navegamos. Aceitamos facilmente conceder todas as autorizações
que nos são pedidas pelas aplicações que descarregamos para os nossos dispositivos eletrónicos
móveis. Validamos termos e condições de tudo e de mais alguma coisa. Compramos cada vez
mais, não apenas produtos, mas objetos ligados em rede que trazem consigo cedências
voluntárias de invasão da nossa privacidade. Paradoxalmente, nessa sociedade do consentimento,
quanto mais somos chamados a consentir, menos nos preocupamos com aquilo que consentimos
(Peixoto, 2017).
É uma sociedade em que o direito de uso traz consigo a contrapartida do consentimento,
uma vez que se está progressivamente a substituir o custo financeiro pelo consentimento
explícito. Não consentir significa quase sempre não poder usar. Mas essa contrapartida converte
o desejado e socialmente valorizado ‘poder de compartilhar’ no incontornável dever de
compartilhar. Uma vez que na sociedade da Internet das coisas o consentimento se torna
obrigatório, assistimos a uma crescente banalização do ato de consentir. Consentimos cada vez
mais leviana e acriticamente. A questão é que, nessa imprudência, o preço que pagamos por
aquilo que consentimos se torna aparentemente irrelevante perante o poder e a liberdade de usar
‘sem pagar’(idem). Esta é a sociedade em que estão a ser socializadas as novas gerações. Que
essa leviandade ocorra nos espaços da intimidade, sob a proteção da crença que ‘a nossa casa é o
nosso castelo’, é algo que revela, por um lado, a leveza e a ausência de sentido crítico das nossas
condutas e, por outro lado, o poder adquirido pelas forças que se apoderam da privacidade dos
indivíduos.

Para refletir sobre a ideia da casa despida, podemos perguntar-nos em que circunstância
é apropriado qualificar um espaço como doméstico? Se a ‘casa’ ainda é, ou se é sempre,
sinónimo de espaço privado? Se o ‘estar em casa’ remete apenas para a intimidade, para o
‘dentro’? Que relações devem existir entre o dentro e o fora para que o espaço seja habitado em
situação percecionada de bem-estar, para que o possamos representar e praticar como um ‘estar’
ou um ‘sentir-se em casa’? (Bryson, 2010; Dugain e Labbé, 2016)
Se a televisão domesticou a vida, levando-a para dentro de casa, a Internet das coisas está a
fomentar a fragmentação, a ductilidade e a supressão do espaço doméstico a um nível sem
precedentes. As tecnologias do quotidiano individualizam os comportamentos e o espaço
doméstico é crescentemente produzido por estratégias de individuação. O espaço doméstico da
casa despida é uma construção pessoal. Um mesmo espaço, como uma casa, ou uma sala, pode
incluir vários espaços domésticos, sem nunca ser necessariamente o mesmo espaço doméstico. O
seu caráter interativo exacerba a paradoxal simultaneidade do ‘dentro’ e do ‘fora’, do ‘perto’ e
do ‘longe’. Num mesmo momento, podemos partilhar um mesmo espaço físico restrito ao
mesmo tempo que emergimos numa sociabilidade intensa que está muito fora dele. E uma
contiguidade espacial não impede que a forma preferencial da interação seja a mediada pelos
dispositivos tecnológicos móveis. Nesse contexto, o espaço doméstico não desaparece, mas é
indelevelmente suprimido. Acresce que o uso e a gestão do espaço

54
121

doméstico através da tecnologia, que torna os dispositivos menos uma peça tecnológica e mais
uma extensão ou um substituto do cérebro, coloca-nos crescentemente a funcionar em piloto
automático no espaço doméstico. E a casa participa cada vez mais na cultura do piloto
automático que enquadra a Internet das coisas.

No dia-a-dia, quando estamos em piloto automático, contornamos inconscientemente,


ignorando-os, os objetos e as pessoas. Mas na casa da Internet das coisas, são os objetos
silenciosos e inteligentes que, crescentemente, nos contornam a nós ou que escolhem a
oportunidade da interação. Para configurar um novo espaço doméstico, juntam-se a eles os
objetos falantes. A Alexa, o Google Assistant, a Siri, o Cortana, que se insinuam como
instrumentos de gestão e de organização do espaço doméstico, não são apenas instrumentos que
nos permitem estar ‘dentro’ quando estamos ‘fora’, e vice-versa, são também agentes ativos de
usurpação da privacidade, ao serviço das grandes empresas que se alimentam da indústria da
Internet das coisas. A casa despida está povoada das chamadas entidades comunicantes que dão
forma a uma espécie de aldeia eletrónica. São objetos banais do nosso quotidiano. Lâmpadas,
cadeiras, caixotes do lixo, cafeteiras elétricas, contadores da eletricidade, aspiradores
inteligentes. Objetos que comunicam cada vez mais entre eles mesmos. E comunicam coisas
sobre os comportamentos humanos. São uma espécie de companheiros, de esposos digitais que
fomentam a digitalização do real, despindo as casas. Na casa despida, o eletrónico engole o real,
como um universo em expansão, que canibaliza tudo à sua volta (Dugain e Labbé, 2016).

Na sociedade dos Big Data, em cada momento das nossas vidas, estamos a gerar
informação, sobre a nossa saúde, os nossos consumos, as nossas interações, o nosso estado de
espírito, os nossos desejos (…) sobre tudo o que fazemos. Em cada gesto estamos a gerar dados
que são recolhidos, tratados, organizados. Como sabemos, a mobilidade e a privacidade sempre
foram dois dos maiores inimigos da recolha e da precisão dos dados. Por isso, é esse o espaço
estratégico da Internet das coisas. E é por isso que o piloto automático é o desiderato que as
empresas dos Big Data almejam consagrar nos carros e nas casas. Porque a sociedade dos Big
Data alimenta-se da destruição do lado imprevisível da vida em sociedade. Como salientam
Dugain e Labbé (2016), as GAFA (Google, Apple, Facebook e Amazon) procuram vender-nos a
ilusão de que nunca estamos sós, uma vez que estamos ligados em rede. Para questionar esse
argumento, os autores citam a socióloga americana Sherry Turkle, que escreveu o livro Alone
Togheter, concordando que o sentimento de ligação permanente trazido pela hiperconectividade
nos deixa cada vez mais fechados num universo virtual, onde estamos todos juntos, mas cada vez
mais sozinhos. Porque, ao contrário das aparências, a rede não fez aparecer novas solidariedades.
Com poucas exceções, a regra é cada um na sua bolha (apud Dugain e Labbé, 2016).

A casa não é só um albergue de bolhas onde se concentram os rastos da nossa pegada


digital. É também o locus de manifestação de uma nova anomia. Atualizando Durkheim,
diríamos que esses lugares, a começar pela casa – onde estamos ‘juntos, mas cada vez mais
sozinhos’ –, são locais de refúgio para respostas anómicas daqueles que enfrentam situações para
as quais as formas tradicionais de organização social já não oferecem soluções. O colapso do
mercado de trabalho, as dificuldades de acesso ao crédito, o regresso [ou a saída tardia d]a casa
dos progenitores, entre outos constrangimentos, configuram uma nova realidade não redutível a
uma mera acumulação de casos individuais. O Japão, por exemplo, tem vindo a preocupar-se
com uma nova patologia social que ganha foros de um problema de saúde pública. Os
hikikomori (que significa ‘isolado em casa’) designam um comportamento de extremo
isolamento doméstico, marcado por uma superficial ligação ao mundo através da mediação
tecnológica, que afeta os jovens que têm entre 15 a 39 anos, e que decidem afastar-

55
122

se completamente da sociedade, de modo a evitar o contato com outras pessoas (Furlong, 2008).

A casa despida dá origem a uma aldeia digital. Como lembram Dugain e Labbé (2016), o
uso intensivo de tecnologias faz-nos entrar na era da vigilância total. A vida privada passa a ser
encarada como uma anomalia. Porquê lamentar, então, o seu desaparecimento? Empresas como a
Google tranquilizam-nos argumentando que a aldeia digital não é pior que as aldeias de outrora,
onde todos sabiam da vida de todos. Não deixa de ser verdade, desde que não esqueçamos que
nas aldeias de outrora, cada um conhecia quem o vigiava, havendo uma reciprocidade na
vigilância. Além disso, esta espécie de autovigilância era imperfeita. Não estava em todo o lado,
nem em todos os momentos. A aldeia digital, está ancorada numa espionagem invisível, massiva,
permanente e infalível, na qual todas as informações são centralizadas por uma potência
desencarnada e omnisciente (idem). Dela fazem parte, cada vez mais integrados no sistema
doméstico, os carros autónomos concebidos para circular em cidades inteligentes, o mobiliário
urbano inteligente, assim como os drones que se preparam para gerir o sistema de entregas ao
domicílio. Byung-Chul Han (2014) retrata a aldeia digital como um “panótico digital”, cujos
habitantes se sujeitam voluntariamente a uma transparência que dá origem a um “mercado onde
se expõem, vendem e consomem intimidades” (idem, 53). Se aceitarmos esta leitura
‘benthamiana’, a casa é a prisão.

Dugain e Labbé (2016) retratam uma realidade que nos mostra que a transparência total da
aldeia eletrónica e da casa despida faz parte de uma nova forma de Inquisição. O que significa
ser transparente, perguntam? Os promotores da aldeia eletrónica promovem uma confusão
intencional entre honestidade e transparência. A questão que temos de nos colocar é se a única
forma de tornar as pessoas honestas é colocá-las em vigilância 24 horas por dia? Se
respondermos que sim, então a casa despida pode ser o instrumento da honestidade totalitária.
Como nota Han (2014), esse é o sinal mais claro que a obsessão com a transparência traduz o
desaparecimento da confiança mútua que regulava as relações nas aldeias de outrora. Mas,
mesmo que nada tenhamos a esconder, por que razão é tão fundamental preservar um espaço
onde os outros não têm o direito de olhar e de ouvir? O valor social da vida privada reside na
necessidade que todos temos em “saber algo que os outros não sabem. É aquilo que ninguém
sabe sobre nós que nos permite conhecer-nos a nós próprios” (Don DeLillo apud Preston 2014).
Preston acrescenta que sem intimidade não há imaginação e que estamos condenados a seguir
meros instintos de sobrevivência. Citando Josh Cohen, advoga a necessidade de preservação da
vida privada, porque é a privacidade que "garante que nunca somos totalmente conhecidos pelos
outros ou por nós mesmos, [e que] oferece um abrigo para a liberdade imaginativa, a curiosidade
e a autorreflexão”.

A casa despida é uma casa que se veste, cada vez mais, com uma roupagem adequada ao
striptease. O que as antecâmeras fomentaram na arquitetura das casas (a proteção dos espaços
mais íntimos, desempenhando o papel de filtro entre níveis espaciais de intimidade) está hoje a
ser desfeito pelas câmaras e pelo olho eletrónico e sensitivo. Multinacionais como a IKEA estão
hoje a fomentar alianças estratégicas com os tubarões da Internet das coisas. Esses tubarões estão
cada vez menos dependentes das portas de entrada ‘tradicionais’ da casa despida (o computador,
o telemóvel …) porque as coisas que vão entrando nas casas multiplicam as portas e janelas por
1
onde penetra o olhar perscrutante do panótico digital. A coleção Home Smart, da IKEA, não é
apenas mais uma linha de mobiliário. A Amazon não

1
Não deixa de ser relevante assinalar que a designação da tecnologia (tecnologia Qi – na qual se ancora a Internet das coisas) a
partir da qual a IKEA desenvolve a sua linha Home Smart se baseie numa palavra chinesa (Qi), cujo significado é
‘fluxo de energia’.

56
123

entrega apenas coisas lá em casa. Entrega, preferencialmente, aquelas coisas que fazem parte da
Internet das coisas. A sua, recentemente criada, linha de móveis e de decoração (a Rivet e a
Stone & Beam) não é apenas uma estratégia para diversificar a sua presença no setor do retalho.
É também, e sobretudo, o ‘cavalo de Troia’ onde galopa a Internet das coisas. A Android Things
é uma das novas fronteiras da Google, visando gerar e agregar mais informação que a política do
perfil único, para interligar e conectar dispositivos dentro e fora de casa. Casas inteligentes,
edifícios inteligentes, sensores, monitores, câmaras, sistemas de alarme levar-nos-ão à próxima
etapa da Internet das coisas: as cidades verdadeiramente inteligentes.

No panótico digital, a casa despida torna-se uma prisão sem grades. Nela, onde os objetos
obedecem ao nosso dedo, à nossa voz, ao nosso olhar, para realizar os nossos desejos, cada
movimento é detetado e lido de uma maneira estruturada. Nela, os indivíduos que a habitam
vivem cada vez mais em células isoladas umas das outras. Ao contrário do panótico de Bentham,
podem comunicar e ver-se entre si. Mas, frequentemente, transferem a comunicação para o
ciberespaço e o campo do visual plasma-se nas relações pautadas pelo piloto automático. Como
salienta Han, não são propriamente prisioneiros, mas “vivem na ilusão da liberdade. (…)
expõem-se e revelam-se a eles próprios, voluntariamente. A autoexposição ilumina mais
eficazmente do que a exposição por ação de outrem” (2016: 86). Han estabelece uma analogia
entre a autoexposição e a autoexploração para argumentar que a autoexposição (como a
autoexploração) é mais eficaz que a exposição (ou seja, a exploração), uma vez que se funda
num sentimento de liberdade e na inconsciência da coação externa. “Na autoexposição
coincidem a exibição pornográfica e o controlo pan-ótico (…) [e] o medo de ter de se renunciar à
esfera privada e à intimidade é substituído pela necessidade de uma exibição sem vergonha (…),
[sendo impossível] distinguir-se a liberdade e o controlo” (idem). Na casa despida, a exibição
pornográfica antecipa o efeito da vigilância. Como no panótico de Bentham, basta a suposição da
existência de um guarda para gerar comportamentos de subordinação. Por isso, mostramos antes
de sermos vistos.

Referências bibliográficas
Bryson, Bill (2010), At Home: A Short History of Private Life. Londres: Random House.

Duby, Georges; Ariés, Philippe (1990), História da Vida Privada - Vol. V. Porto:
Afrontamento.

Dugain, Marc; Labbé, Christophe (2016), L’homme nu - La dictature invisible du numérique.


Paris: Plon.

Elias, Norbert (2006), O processo civilizacional: investigações sociogenéticas e


psicogenéticas. Lisboa: Dom Quixote.

Furlong, Andy (2008), "The Japanese Hikikomori Phenomenon: Acute Social Withdrawal
among Young People", The Sociological Review, 56 (2): 309-325.

Han, Byung-Chul (2016), No enxame. Reflexões sobre o digital. Lisboa: Relógio de Água.

57
124

Han, Byung-Chul (2014), A sociedade da transparência. Lisboa: Relógio de Água.

Klous, Sander; Wielaard, Nart (2016), We Are Big Data: The Future of the Information
Society. Amsterdão: Atlantis Press.

Mattoso, José (ed.) (2011a), História da Vida Privada em Portugal – A Época Contemporânea.
Vol. 3. Lisboa: Círculo de Leitores.

Mattoso, José (ed.) (2011b), História da Vida Privada em Portugal. Vol. 4. Lisboa: Círculo de
Leitores.

Peixoto, Paulo (2017), "Ética e regulação da pesquisa nas Ciências Sociais na sociedade do
consentimento", Educação, 40 (2): 150-59.

Preston, Alex (2014), "The death of privacy". The Guardian, 3 de agosto de 2014.
https://www.theguardian.com/world/2014/aug/03/internet-death-privacy-google-facebook-alex-
preston.

Vion-Dury, Philippe (2016), La nouvelle servitude volontaire : Enquête sur le projet


politique de la Silicon Valley. Limoges: FYP EDITIONS.

58
59

A Cescontexto é uma publicação online de resultados


de investigação e de eventos científicos realizados
pelo Centro de Estudos Sociais (CES) ou em que o
CES foi parceiro. A Cescontexto tem duas linhas de
edição com orientações distintas: a linha “Estudos”,
que se destina à publicação de relatórios de
investigação e a linha “Debates”, orientada para a
memória escrita de eventos.
126

Material disponível em:


file:///C:/Users/Cla%C3%BAdia/Desktop/Studio%20AC2%202017.2/REDE%20STUDIO%2
0AC2.%202017.2/2019.1/Sandra%20Carvalho/2%20CURSO%20FAM%C3%8DLIA%20CO
MO%20POLO%20INDISPENS%C3%81VEL%20DO%20PROCESSO%20EDUCATIVO/In
vis%C3%ADvel,%20dor%20de%20morador%20de%20rua%20%C3%A9%20mapeada%20e
m%20trabalho%20in%C3%A9dito%20em%20SP%20-%2023_03_2018%20-
%20Cotidiano%20-%20Folha.html.
127
OITO TEMAS PARA DEBATE

Violência e segurança pública

Alba Zaluar

Resumo O texto aborda algumas das idéias mais disseminadas hoje nos meios de comunicação de massa, assim
como no acadêmico, para entender a questão da violência e propor políticas públicas no Brasil. A redução da
explicação

6 pobreza e à desigualdade impedem um entendimento mais complexo da questão. As proposições sobre a


existência de uma cultura da violência e do monopólio legítimo da violência, ambas falsas, terminam por
dificultar
a compreensão dos diversos conflitos na arena social e política. As interconexões entre a economia legal e a ilegal
nos tráficos são também pouco acionadas

nas teorias necessárias para políticas públicas mais eficazes e democráticas.

Palavras chave Violências, pobreza, tráficos, políticas públicas.

O tema da violência no Brasil assumiu grande importância na discussão pública e tomou um rumo
muito marcado pela recente história política do país e pelo papel que nela tiveram os intelectuais que
trabalhavam nas universidades e organiza-ções não governamentais. Os últimos 25 anos cobrem um
período da história do país marcado por profundas mudanças políticas, sociais e econômicas, das
quais os cientistas sociais participaram como pesquisadores e como cidadãos. O grande de-safio para
eles, bem como para os militantes de movimentos políticos e os cidadãos do país foi explicar como,
justamente no período em que o país recuperava as insti-tuições da democracia, ocorreu grande
aumento da criminalidade e das violências, seja a institucional, seja a doméstica, seja a difusa
violência urbana. Nas paradoxais tentativas de encontrar respostas para este enigma, muitas foram as
proposições repetidas ad nauseam nos meios de comunicação de massa ou nos estudos mais es-
pecializados.1

7 “A pobreza é a causa da criminalidade”. Esta afirmação, repetidamente utilizada na defesa dos


pobres, mas que justifica a preferência, carregada de suspeitas pré-vias, que policiais têm pelos
pobres, baseia-se no pressuposto utilitarista de que, movido pela necessidade, o homem agiria para
sobreviver. Há uma redução da complexa argumentação para o primado do homo economicus,
comandado exclusi-vamente pela lógica mercantil do ganho e da necessidade material. Essa é uma
das dimensões a serem consideradas, mas de fato explica a ambição de enriquecer de todos, sem
importar o nível de sua renda e a sua origem social. Estudos recentes mostram que os pobres são as
maiores vítimas de furtos, roubos e assassinatos, es-tes últimos nos locais onde o tráfico de drogas
domina e não há policiamento que proteja a população. Esse argumento economicista não deixa
enxergar a dimensão

SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRÁTICAS, n.º 38, 2002, pp. 19-24


128
20 Alba Zaluar

do poder, do simbólico e da paixão destrutivos: o triunfo sobre o outro, o orgulho pela destruição do
outro, o prazer de ser o senhor da vida e da morte, o gozo no ex-cesso de liberdade na festa dentro da
comunidade dos comparsas, presentes tanto em assaltos à mão armada quanto em grandes massacres.
Wolfgang Sofsky (1998),2 sociólogo alemão que estudou o terror e escreveu um tratado sobre a
violência, nar-ra com crueza o que vem a ser essa paixão. Escolhe, para ilustrá-la, o personagem
Gilles De Rais, nobre francês contemporâneo de Joana D’Arc, que adquiriu o gosto de matar durante
a Guerra dos Cem Anos e continua a fazê-lo quando não há mais guerra. Caçou, torturou e matou
meninos com a ajuda de seus servos, conforme suas confissões. A redução da criminalidade violenta
à pobreza tampouco permite analisar os seus efeitos inesperados. Essa criminalidade aumenta a
pobreza e os so-frimentos dos pobres, na medida em que impede o acesso aos serviços e institui-ções
do Estado, tais como escolas, postos de saúde, quadras de esporte, vilas olím-picas etc., e ameaça os
profissionais que atendem a população pobre. Também ameaça os jovens pobres que, em função da
atividade que exercem em seus empre-gos, são obrigados a entrar em favelas “inimigas” e são mortos
enquanto traba-lham para viver, caso sejam reconhecidos como moradores de favelas inimigas.

“A desigualdade social é a explicação da violência”. Baseada principalmente no di-ferencial de renda


entre os mais ricos e os mais pobres, ou no diferencial de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano),
essa tese pressupõe que a revolta moveria os homens a agir violentamente para diminuir as distâncias e
as invejas que a desi-gualdade provoca. Considera a dimensão do poder, mas não aprofunda a dimen-
são subjetiva da desigualdade, nela incluída a da violência já mencionada. A desi-gualdade, por ser
medida em índices, tende a ser reduzida ao que é quantificável, principalmente à renda monetária, à
escolaridade e à expectativa de vida. Conti-nuam excluídos dos índices, no entanto, os efeitos menos
visíveis da violência ins-titucional e da violência difusa no social, assim como o acesso à justiça. No
caso da violência policial, a dualidade observada por A. L. Paixão (1988) permanece: a polí-cia para
os moleques, elementos e marginais (os pobres) e a polícia para os doutores e senhores (os ricos). 3 No
plano social, no entanto, há processos igualitários que amenizam a violência, por um lado, e aumentam
a revolta, por outro. Na Índia, por exemplo, país considerado pelos índices internacionais muito menos
desigual que o Brasil, vigora um sistema de castas que proíbe certas ocupações superiores aos
membros das castas mais baixas, atribuindo-lhes as consideradas mais vis. O casa-mento intercasta
também é proibido. Dois jovens enamorados que pertenciam a castas diferentes foram mortos por seus
respectivos parentes no ano de 2001. Há várias dimensões da desigualdade que não foram
incorporadas nos índices: a civil (inclusive a existência de leis anti-racistas), a política, a cultural, a
institucional etc. Além disso, os homens que se juntam nas hordas, bandos ou quadrilhas de trans-
gressores ou marginais, muitas vezes ainda festejados como opositores à ordem vi-gente, não agem
violentamente para acabar com a violência ou inverter a ordem so-cial, visto que a desigualdade existe
em alto grau dentro das organizações e redes da criminalidade transnacional contemporânea,
dominada pelo mercado selva-gem dos tráficos. A desigualdade é parte da microestrutura de poder no
interior.
129
OITO TEMAS PARA DEBATE 21

das quadrilhas e se manifesta não só na divisão do butim que cabe a cada um, mas também no
diferencial de submissão aos instrumentos da violência. Os que estão nos escalões mais baixos
sofrem muito mais o medo e o martírio de viver ameaça-dos pela morte cruel e implacável nas mãos
dos inimigos. Vivem sob o império do interdito da traição e da ação independente do comando. A
violência cria um abis-mo absurdo entre o que detém o instrumento, que obriga a submissão, e a sua
víti-ma, que não tem defesa nem recurso. Tem que obedecer. Essas formas extremas de violência
desmantelam culturas e possibilidades de associação — culturas que te-riam sido inventadas para
conter tais paixões ou impulsos humanos —, sem que consigam fazê-lo completamente.

11 “A cultura da violência existe e cresce”. Segundo essa assertiva, uma cultura es-pecífica
encapsularia a violência em certas sociedades ou civilizações. Mas a vio-lência não se refere aos
critérios de tal ou qual civilização, nem às regras de uma so-ciedade dada, nem mesmo de um tempo
histórico determinado. Ela é imanente ou presente, mesmo que limitada ou relativamente controlada,
em todas as culturas, assim como a cultura da paz. Tem outros nomes na antropologia: reciprocidade
ne-gativa ou positiva e destruição de coisas e pessoas ou construção de laços sociais mesmo entre
inimigos, numa visão que é dicotômica mas que não exclui a tensão permanente entre esses dois
pólos nos confrontos competitivos e conflitivos do

potlacht, do esporte moderno e de muitas trocas agônicas. Nessas trocas, as regras que impedem a
completa destruição dos outros são acordadas e vigoram para que o jogo continue. Quando a violência
irrompe, muitas vezes, por uma conjunção de ações retroalimentadas por outras ações individuais ou
coletivas, ela é governada não apenas pelo cálculo racional, mas pela paixão ou emoção descontrolada.
A vio-lência absoluta se exalta e se propaga indefinidamente no circuito das vinganças, mas também
dos prazeres destrutivos que se tornam viciados e excessivos. Quan-do baseada no massacre ou no
terror, ela inverte o mundo familiar, cria a incerteza, destrói a previsibilidade das ações. Os olhares
tornam-se vagos, não há mais terre-no seguro, perde-se o chão, o abrigo e a proteção, tal como vimos
acontecer ao vivo e em cores no dia 11 de setembro de 2001, em Nova Iorque, mas também no Iraque
e no Afeganistão. Tais ações descontroladas não são mais combates entre duas qua-drilhas ou grupos
em guerra, mas verdadeiros massacres de quem não está envol-vido e não tem meios de defesa, porque
os massacres acontecem dentro de ambien-tes fechados (como nas torres do WTC). Esses excessos, no
Brasil, são promovidos pelos grupos de extermínio, sejam eles compostos de policiais ou traficantes,
den-tro de casas, bares, favelas, onde o fator surpresa impede que as vítimas fujam (às vezes para
serem caçadas) ou se defendam com armas de potência similar. As con-seqüências sociais são
catastróficas na medida em que não é mais possível prever o comportamento alheio, deixando portanto
de funcionar os parâmetros do perigo e da ordem, assim como os fundamentos da confiança, sem a
qual não existe vínculo social positivo. Nessas situações, é o medo sem direção, isto é, o pânico que
preva-lece. Atinge, embora desigualmente, tanto os pobres e camadas médias da favela quanto os
pobres e camadas médias do asfalto, os primeiros porque estão no centro da ação de guerra e são
vítimas de crimes violentos, os segundos por estarem na
130
22 Alba Zaluar

periferia da ação e por serem vítimas de crimes contra a propriedade. Uma estraté-gia pública muito
bem pensada e muito eficaz precisa ser montada para interrom-per esse circuito. Dizer que o medo
aqui é fruto da manipulação da mídia é, portan-to, uma afirmação ideológica que tenta negar o que
acontece: não apenas a violên-cia institucional, mas sobretudo a violência que resulta das transações
selvagens e ilegais dos tráficos no crime-negócio.

É “Contam-se os mortos e os danos para avaliar o crescimento da violência”. Além dos mortos e
feridos que podem ser contabilizados em delegacias e hospitais, há tam-bém que se levar em conta os
sofrimentos psíquicos e morais. Os primeiros são visí-veis e publicitáveis. Os segundos são
invisíveis, e deles pouco se fala. As vítimas da violência que sobrevivem não têm apenas as
deficiências físicas que decorrem das agressões sofridas. As marcas traumáticas no seu psiquismo
são tão ou mais gra-ves, e muitas jamais cicatrizam. Parentes e amigos das vítimas que sobrevivem
têm também o seu ordálio de sofrimentos. Um exemplo é a própria humilhação sofrida
cotidianamente por jovens (homens e mulheres) que não podem dizer não aos che-fes muito bem
armados das quadrilhas ou aos policiais que se comportam também como déspotas, nos locais onde
suas ações não podem ser denunciadas por causa do terror já implantado entre seus moradores.
Denunciar a polícia como institui-ção, numa tentativa infantil de afirmar que não se precisa dela, é
negar sua impor-tância crucial na garantia dos direitos civis ou humanos — o direito à vida e à pro-
priedade — e abdicar de torná-la mais capaz de um controlo democrático da crimi-nalidade, que
vitimiza principalmente os pobres. É preciso, portanto, modificar a polícia e seus métodos de
enfrentamento dessa situação terminal com a máxima ur-gência. Acabar com a guerra entre
comandos, e de policiais versus bandidos, para preparar policiais e moradores nas novas relações de
cooperação que se fazem necessárias.

É “O monopólio legítimo do uso da violência é que gera o medo e a violência dissemina-dos no


social”. Este monopólio, que nunca existiu no Brasil, agora, com o armamento do crime organizado,
dos grupos de extermínio, dos justiceiros e das empresas de segurança privada, continua não
existindo, ainda mais claramente do que algumas décadas atrás. Mas o Estado brasileiro nunca foi
suficientemente forte para impe-dir o uso da violência privada pelos proprietários de terra e por
grupos particulares de segurança. Mais uma razão para não negar o medo e confundi-lo com
ideologia manipulada pela mídia. O Estado brasileiro nunca cumpriu nem medianamente a principal
função de todo Estado: dar segurança a seus cidadãos, um direito muito valorizado por todos — sem
importar a escolha sexual, a religião, a cor da pele, o gênero, o nível de renda, a escolaridade etc. —,
mas particularmente importante para todas as categorias minoritárias que não possuem os meios para
sua defesa, no caso do ataque de quem está mais bem armado. Esses grupos precisam da prote-ção
estatal contra seus predadores.

“A posse e o porte de armas pelos habitantes da cidade (cidadãos), que as compram na ilusão de que se protegem,
estão na raiz do problema”. De fato, a facilidade de obter armas,
131
OITO TEMAS PARA DEBATE 23

tanto no comércio legal como no contrabando, tem contribuído para o aumento dos homicídios e das
lesões sérias nas vítimas de agressões. Mas os acidentes decorren-tes da imprudência de manter uma
arma em casa têm incidência muito baixa. Não se pode tampouco tomar o depósito da polícia,
conhecida pela sua ineficácia e mi-nada pela corrupção, como o indicador do tipo de arma que
prevalece entre os mo-radores da cidade. As mais poderosas, tecnologicamente superiores, mais caras
e cobiçadas não vão para o depósito. Trocam de mãos no comércio clandestino que flui entre
policiais e bandidos, assim como no tráfico ilegal que viaja clandestina-mente em navios e
caminhões. O Porto do Rio de Janeiro, assim como de outras ci-dades, é o centro dessa importação
feita nas trevas dos porões e das noites. Por isso mesmo, a maior taxa de homicídio no Rio de Janeiro
está na região do Centro. Por isso, também, a guerra entre os comandos ocorre agora pelo domínio
militar das fa-velas ao redor da Baía de Guanabara. As armas importadas, embora tecnologica-mente
superiores (foram feitas para guerras entre Estados e desferem dezenas de tiros em segundos), são
consideradas leves e podem ser carregadas por crianças. Essa revolução tecnológica nos armamentos
tem sido amplamente utilizada, tanto nas guerras civis fratricidas quanto nos conflitos sangrentos
entre quadrilhas e co-mandos do crime-negócio. Muito mais atenção deve ser dada, portanto, ao
tráfico ilegal e internacional de armas.

12 “Traficantes que nasceram nas favelas são vítimas, mais do que responsáveis, pelo trá-fico no
Brasil”. O mercado sem limites institucionais e morais é importante no co-mércio de drogas e armas.
Estão imbricados com os fluxos de dinheiro para paraí-sos fiscais, como outras formas de comércio
ilegal e corrupção. Impossível, portan-to, que para movimentar as toneladas de drogas e os milhares
de armas que aqui circulam, não haja redes interconectadas de “negociantes” que envolvem vários
personagens da economia legal e ilegal do país. Se os tráficos são males que aumen-tam a
desigualdade, empobrecem ainda mais o povo e pioram o bem-estar social, então é preciso encontrar
as formas de controlá-los e combatê-los. Não há como continuar a silenciar a respeito dos feitos de
traficantes simplesmente porque são marginais e a origem humilde de alguns deles explica, justifica e
faz perdoar seus atos. A luta por uma nova ordem mundial deve incorporar esses argumentos que
estão por trás da tragédia do povo afegão, mas também do paquistanês e de vários países do sudeste
asiático. Novas formas de investigação e intervenção são indis-pensáveis para que se possa falar de
uma nova polícia. Não é com prédios novos, computadores ou viaturas apenas que isso será
alcançável.

“A segurança pública não pode ser a preocupação central dos que atentam para a con-solidação da
democracia no país”. Ao contrário, este é o ponto nevrálgico para conti-nuar o processo que se
interrompeu por causa das indefinições e oscilações das po-líticas públicas no Brasil. Refazer os
circuitos da reciprocidade positiva significa in-tegrar a população nas próprias atividades da segurança
pública. Uma estratégia que não negue o conflito, e sim socialize os jovens na forma mais civilizada
de lidar com ele, o que inclui os jovens que aderem às forças policiais. É preciso mais aten-ção à
pedagogia e à formação oferecida nas escolas e quartéis no que diz respeito à
132
24 Alba Zaluar

socialização para uma sociedade em que a civilidade, a confiança mútua e a previ-sibilidade dão as
condições básicas para novos arranjos e práticas sociais. A parti-cipação é importante na medida em
que não há segurança sem que as pessoas compreendam os perigos e riscos que correm e façam, elas
mesmas, o que podem para controlá-los ou evitá-los. A participação é igualmente importante, pois é
o que permite passar da normatividade burocrática e autoritária para uma norma-tização melhor
aceita pelos que devem internalizar e praticar suas regras. Bairris-mos só atrapalham. Preparar
cidadãos e policiais para a cooperação que se faz mais que imprescindível é condição sine qua non.
O modelo da polícia comunitá-ria não funciona onde os traficantes controlam militarmente o
território e im-põem medo aos moradores. O alcance do trabalho policial é pequeno e ainda se expõe
a acusações de conluio com os criminosos. Antes, faz-se preciso tirar as pessoas de seus refúgios
privados, onde se aprisionam naquilo que N. Elias cha-mou homo clausus e H. Arendt, a solidão
organizada, base do totalitarismo moder-no. Esse é o grande desafio e o grande passo a ser dado no
Brasil, em todos os seus estados, em todos os seus pequenos, médios e grandes municípios.

Notas

2 Este texto foi preparado, numa versão original, para a apresentação do congresso da Associação de Pós-Graduação
em Ciências Sociais (ANPOCS), no final de outu-bro de 2001. Nele procurei resumir os argumentos apresentados na
discussão de al-gumas das afirmações mais frequentemente repetidas.
2 Sofsky, Wolfang (1998), Traité de la Violence, Col. NRF Essais, Paris, Gallimard.

2 Paixão, Antônio Luís (1988), “Crime, controlo social e consolidação da cidadania”, em F. W. Reis, e G. O’Donnell,
A Democracia no Brasil: Dilemas e Perspectivas, Vértice, São Paulo.

Alba Zaluar é professora titular de Antropologia no Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio
de Janeiro, coordenadora do NUPEVI (Núcleo de Estudos das Violências) e assessora do Prefeito do Rio de
Janeiro para Segurança Participativa. E-mail: azaluar@openlink.com.br
133
Planos de Curso_5 Familia
134
Professora Vanessa Cavalcanti (UFBA/UCSAL)

Referências

BUTLER, J. Vida precária. Contemporânea n. 1 p. 13-33 Jan.–Jun. 2011. Disponível


em http://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/18/0

DIAS, I. Exclusão social e violência doméstica: que relação? Sociologia : Revista da


Faculdade de Letras da Universidade do Porto, v. 8 (1998), pp. 189-205. Disponível
em http://ojs.letras.up.pt/index.php/Sociologia/article/view/2572/2357

FORTUNA, C. (Org.). As casas vistas de dentro e de fora. Cescontexto, Coimbra, n.


21, julho de 2018. Disponível em
https://www.ces.uc.pt/publicacoes/cescontexto/index.php?id=20567

KEHL, M.R. Em defesa da família tentacular. São Paulo, 2011. Disponível em


http://www.mariaritakehl.psc.br/PDF/emdefesadafamiliatentacular.pdf ou
https://www.psicologiasdobrasil.com.br/maria-rita-kehl-em-defesa-da-familia-
tentacular/

SILVA, I. C.; SANTOS, M. V.; CAMPOS, L. C. M.; SILVA, D.; PORCINO, C.


A.; OLIVEIRA, JEANE FREITAS DE. Representações sociais do cuidado em saúde
de pessoas em situação de rua. Revista da Escola de Enfermagem da Usp, v. 52, p.
1-7, 2018. Disponível em DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1980-220X2017023703314

ZALUAR, A. Oito temas para debate: Violência e segurança pública. Sociologia,


Problemas e Práticas, n.º 38, 2002, pp. 19-24. Disponível em
http://www.scielo.mec.pt/pdf/spp/n38/n38a02.pdf

Leituras rápidas e reflexivas

COLLUCCI, C. Invisível, dor de morador de rua é mapeada em trabalho inédito em


SP. Folha de São Paulo, 23/03/2018, c. Cotidiano. Disponível em
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/03/invisivel-dor-de-morador-de-rua-e-
mapeada-em-trabalho-inedito-em-sp.shtml
QUEIROZ, L.F. & CAVALCANTI, V.R.S. Uma casa, uma vida. A Tarde, Salvador,
27/09/2018, p. A3.

OBS: Serão indicadas outros itens e em múltiplas linguagens (cinema, literatura,


investigação acadêmica)
135
Revista da Escola de Enfermagem da USP
versão impressa ISSN 0080-6234versão On-line ISSN 1980-220X

Rev. esc. enferm. USP vol.52 São Paulo 2018 Epub 24-Maio-2018

http://dx.doi.org/10.1590/s1980-220x2017023703314

ARTIGO ORIGINAL

Representações sociais do cuidado em saúde de pessoas em situação de rua*

Representaciones sociales del cuidado sanitario de personas en situación de calle

Itana Carvalho Nunes Silva1

Milena Vaz Sampaio Santos1

Lorena Cardoso Mangabeira Campos1

Dejeane de Oliveira Silva1 2

Carlos Alberto Porcino1

Jeane Freitas de Oliveira1


1
Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil
2
Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, BA, Brasil.
RESUMO

Objetivo
136
Identificar e analisar a estrutura e o conteúdo das representações sociais de pessoas em
situação de rua sobre cuidados em saúde.

Método

Pesquisa qualitativa, fundamentada na abordagem estrutural da Teoria das Representações


Sociais, com pessoas em situação de rua, vinculadas a duas unidades de acolhimento
institucional. Para a produção dos dados, foi utilizado o teste de associação livre de palavras,
cujos dados foram processados por dois software e analisados à luz da referida teoria.

Resultados

Participara da pesquisa 72 pessoas. O conjunto de evocações do quadro de quatro casas


remete a ações individuais, sociais e culturais. Os termos médico, cuidar de si e alimentação
compuseram o núcleo central da representação, sinalizando dimensões imagética e funcional
do objeto investigado. A nuvem de palavras confirmou a centralidade dos termos.

Conclusão

O grupo investigado representa o cuidado em saúde como uma ação dinâmica, vinculado à
pessoa e ao contexto e ancorado em elementos da concepção higienista.

DESCRITORES Pessoas em Situação de Rua; Assistência à Saúde; Autocuidado;


Enfermagem em Saúde Pública; Enfermagem de Atenção Primária

RESUMEN

Objetivo

Identificar y analizar la estructura y el contenido de las representaciones sociales de personas


en situación de calle acerca de los cuidados sanitarios

Método

Investigación cualitativa, fundamentada en el abordaje estructural de la Teoría de las


Representaciones Sociales, con personas en situación de calle, vinculadas a dos unidades de
acogimiento institucional. Para la producción de los datos, se utilizó la prueba de asociación
libre de palabras, cuyos datos fueron procesados por dos softwares y analizados a la luz de la
mencionada teoría.

Resultados

Participaron en la investigación 72 personas. El conjunto de evocaciones del cuadro de cuatro


casas remite a acciones individuales, sociales y culturales. Los términos “médico”, “cuidar de
sí” y “alimentación” compusieron el núcleo central de la representación, señalando la
dimensión de imágenes y la funcional del objeto investigado. La nube de palabras confirmó la
centralidad de los términos.
137
Conclusión

El grupo investigado representa el cuidado sanitario como una acción dinámica, vinculado
con la persona y el contexto y anclado en elementos de la concepción higienista.

DESCRIPTORES Personas sin Hogar; Prestación de Atención de Salud; Autocuidado;


Enfermería de Salud Pública; Enfermería de Atención Primaria

INTRODUÇÃO

O cuidado é intrínseco à condição humana. Embora o termo seja frequentemente utilizado na


discussão sobre a integralidade e a humanização das práticas de saúde, sua definição ainda é
imprecisa pela complexidade que lhe é inerente. De modo geral, o cuidado pode ser entendido
como a interação entre duas ou mais pessoas, com o objetivo de aliviar o sofrimento e
alcançar o bem-estar, mediado por conhecimentos voltados para essa finalidade(1), e, muitas
vezes, processa-se por condutas normativas reduzidas a procedimentos, prescrições,
normatizações, em detrimento de um cuidado que valorize os projetos de vida do outro(1-2).

A perspectiva do cuidado como construção cotidiana em interações que envolvem relações de


poder tem a pessoa como foco principal(3). Essa perspectiva amplia a compreensão das
diversas maneiras de cuidar e dos diversos fatores que influenciam as práticas.
Consequentemente, ajuda a diminuir a barreira que separa profissionais e pesquisadores
dos/as usuários/as. Desta forma, o cuidado tem vinculação com questões sociais e culturais,
podendo diferenciar-se de pessoa para pessoa em distintos contextos. Logo, mostra-se
pertinente ao presente trabalho, sobretudo por sua vinculação com pessoas em situação de rua.

O número de pessoas em situação de rua está em ascensão no Brasil e em vários outros países,
revelando os extremos de desigualdade e exclusão social no mundo(4). O contexto da rua é
onde inúmeras pessoas buscam ser acolhidas, amparadas e abrigadas, embora sejam
constantemente submetidas a condições insalubres e a aglomerados humanos, bem como à
privação de alimento e água, à exposição a variações climáticas e a situações de violência(4-5).
No contexto de rua, muitos acabam envolvendo-se com álcool e outras drogas, estão
vulneráveis a doenças crônicas, psiquiátricas e infectocontagiosas, como afecções de pele,
infestações por piolhos, tuberculose e infecções sexualmente transmissíveis(6-7).

As especificidades da vida em situação de rua, associadas à complexidade de fatores, tornam


as pessoas vulneráveis a vários agravos sociais e de saúde que desafiam profissionais, como
enfermeiras/os, técnicas/os de enfermagem, médicas/os, assistentes sociais, odontólogas/os,
técnicas/os em saúde bucal, psicólogas/os, agentes comunitários de saúde, terapeutas
ocupacionais e agentes sociais, dos diversos setores e serviços da sociedade.

De acordo com dados da Pesquisa Nacional sobre pessoas em situação de rua(5), a busca
dessas por hospitais de emergência é uma ação comum quando estão acometidas de alguma
doença, assim como a busca por realizar hábitos de higiene e manter a alimentação. Esses
dados mostram que essas pessoas adotam medidas de cuidados com a saúde que se alinham ao
contexto no qual estão inseridas. Esses aspectos remetem ao conceito de representações
138
(8)
sociais que as compreende como uma modalidade de conhecimento que produz e determina
comportamentos e nos mostra que algo ausente possa ser acrescentado e que algo presente
seja modificado.

Dessa forma, torna-se relevante explorar os sentidos atribuídos ao cuidado em saúde por esse
segmento populacional, uma vez que as representações sociais podem reverberar em práticas
e condutas pelo grupo social(8-9), apresentando, assim, estreita relação com a Enfermagem e
com a equipe de saúde. A partir da análise dessas representações, será possível repensar as
práticas de cuidado em saúde, bem como a implementação de políticas, com vistas a favorecer
a inclusão/acesso das pessoas em situação de rua nos serviços de saúde, com redução das
diversas formas de preconceitos, violência e vulnerabilidades que lhes são impostas.

Diante dessa contextualização, surgiu o seguinte questionamento: Como as pessoas em


situação de rua representam as práticas de cuidado em saúde? A representação sobre um
objeto pode revelar suas múltiplas facetas, possibilitando compreender especificidades do
indivíduo e/ou do grupo em relação ao objeto representado. Neste sentido, a Teoria das
Representações Sociais, na sua abordagem estrutural, centrada em processos cognitivos das
representações sociais, visa estudar a influência de fatores sociais nos processos de
pensamento por meio da identificação e caracterização de estruturas de relação(9). Este
trabalho foi organizado com o objetivo de identificar e analisar a estrutura e o conteúdo das
representações sociais de pessoas em situação de rua sobre cuidados em saúde.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, cuja produção de dados empíricos se deu no período de
maio a agosto de 2016. Participaram 72 pessoas em situação de rua, cadastradas em duas
Unidades de Acolhimento Institucional, situadas no município de Salvador, Bahia, Brasil. As
referidas unidades foram fundadas em 2014, integram a Rede Municipal do Sistema Único de
Assistência Social, com o propósito de fornecer abrigo temporário e garantir condições de
estadia, convívio e endereço de referência para pessoas com idade acima de 18 anos. As
referidas unidades têm capacidade para abrigar entre 33 e 51 pessoas, respectivamente.

O grupo investigado foi constituído mediante os seguintes critérios: ter idade igual ou
superior a 18 anos e aparentar condições de interagir com a pesquisadora. Para a produção dos
dados, utilizou-se do Teste de Associação Livre de Palavras, instrumento amplamente
empregado em pesquisas fundamentadas na Teoria das Representações Sociais pela
possibilidade que oferece de apreender, de forma espontânea, as projeções mentais e os
conteúdos implícitos ou latentes que podem ser ocultados nos conteúdos discursivos e
reificados(9).

O instrumento contemplou duas seções. A primeira fazia referência aos dados de identificação
e caracterização de saúde das/dos participantes. A segunda, o teste propriamente dito,
composto pelo termo indutor “cuidar da saúde é”, para o qual foi solicitado que cada
participante evocasse até cinco palavras ou expressões curtas que lhe viessem imediatamente
à memória. Em seguida, que os participantes elegessem, dentre os termos citados, aquele
139
considerado mais importante, justificando a escolha. A aplicação foi realizada
individualmente, em sala reservada, com duração média de 10 minutos.

Foram utilizados dois softwares de processamento de dados qualitativos, um para identificar a


combinação da frequências de palavras evocadas com a ordem média de evocação(10), e outro
visando a construção da nuvem de palavras(11). Esta, por sua vez, foi utilizada com o objetivo
de confirmar a centralidade dos elementos que integram o provável núcleo central. As
justificativas atribuídas aos termos considerados mais importantes foram transcritas na íntegra
e utilizadas para fundamentar os termos que compõem o quadro de quatro casas, auxiliando
na compreensão dos sentidos atribuídos aos termos evocados.

O estudo foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de


Enfermagem da Universidade Federal da Bahia (EEUFBA), sob parecer n° 1.477.800/2016.
Foram respeitadas as normas e as diretrizes de realização das pesquisas envolvendo seres
humanos, em observância às determinações presentes na resolução 466/12, do Conselho
Nacional de Saúde. Em sua execução, foram assegurados o sigilo e o anonimato das pessoas
em situação de rua − garantidos pelo uso da letra P, qualificada como participante, seguida do
número de ordem da sua ocorrência −, assim como a privacidade e a liberdade de participar
ou não da pesquisa e de retirar-se a qualquer momento.

RESULTADOS

Do grupo investigado (72 pessoas), a maioria é representada por mulheres (50), com idade
predominante entre 21 e 31 anos (34), em união estável (47), raça/cor negra (60), adepta de
uma religião (50), refere ter ensino fundamental incompleto e também exercer atividade
informal (44). Quanto ao tempo de permanência nas ruas, prevaleceu o período menor que 5
anos (34). No que tange às condições de saúde, grande parte referiu não possuir comorbidades
(40), sendo que as mais prevalentes foram: hipertensão arterial (5), sífilis (3), soropositividade
para o HIV (4) e litíase renal (3). A maior parte informou acessar o serviço de saúde (71),
buscando por atendimentos na rede hospitalar (52). Quanto às demandas de saúde, afirmaram
acessar as unidades para prevenção e orientação (40), tratamento médico (38), realização de
exames (28) e aquisição de medicações (27). A maioria informou ter feito uso de algum tipo
de substância psicoativa na vida (62), sendo prevalente o uso do álcool (54), seguido da
maconha (48).

A análise do corpus revelou que, em resposta ao estímulo indutor “cuidar da saúde é”, o
grupo investigado evocou 327 palavras, destas, 47 foram distintas. A frequência mínima foi 5,
dessa maneira, foram excluídos da composição os termos com frequência inferior. A
frequência média foi de 15 e a ordem média de evocação foi de 2,9. Os cálculos necessários
no processamento foram desenvolvidos por intermédio do próprio software, baseados na Lei
de Zipf(12), possibilitando expressar o conteúdo e a estrutura da representação social,
conforme disposto no Quadro 1.

Quadro 1 Quadro de Quatro Casas referente ao estímulo “cuidar da saúde é” – Salvador,


Bahia, Brasil, 2017.
140
a
Elementos do núcleo central Elementos da 1 periferia
Frequência ≥ 15 Frequência ≥ 15
Ordem Média de Evocações < 2,9 Ordem Média de Evocações ≥ 2,9
Elemento Freq. Ordem Média de Elemento Freq. Ordem Média de
Evocação Evocação
Médico 38 2,3 Prevenir-se 31 2,9
Cuidar de si 31 2,5 Higiene 27 3,2
Alimento 22 2,5 Felicidade 17 3,0
Elementos da zona de contraste Elementos da 2a periferia
Frequência < 15 Frequência < 15
Ordem Média de Evocações < 2,9 Ordem Média de Evocações ≥ 2,9
Elemento Freq. Ordem Média de Elemento Freq. Ordem Média de
Evocação Evocação
Bom 12 2,1 Atividade 14 3,0
física
Remédios 11 2,6 Exame 12 3,2
Importante 8 2,2 Tratar 11 3,3
Vida 7 2,7 Beleza 8 3,5
Doença 6 2,3 Saudável 5 3,2
Responsabilidade 6 2,8 Corpo 5 3,6
Amor 5 2,6

Nota: (n = 72).

No quadrante superior esquerdo, denominado núcleo central, estão os termos que obtiveram
maior frequência e menor ordem média de evocação. Na presente pesquisa, o núcleo central
foi constituído pelo termo ‘médico’, que apresentou frequência mais elevada e foi o mais
prontamente evocado. Esse fato se coaduna com as justificativas das/os participantes para o
referido termo:

O médico, ele vai lhe olhar, lhe consultar e ver o que você está precisando (P 11).

(…) O médico sabe mais (P 32).

Ele vai fazer todos os exames, ver se a pressão está alta ou baixa e ver como é que está (P
45).

Os demais termos que compõem o núcleo central, quais sejam: ‘cuidar de si’ e ‘alimentação’
remetem a uma dimensão intersubjetiva e funcional. As justificativas atribuídas a esses
termos, quando definidos como mais importantes, reiteram o fato de que o cuidado à saúde
envolve o compromisso consigo mesmo, priorizando saúde e alimentação, conforme ilustram
os excertos a seguir:

Se a gente não cuidar do nosso corpo, quem vai cuidar? Tem que primeiro cuidar de si, ter
amor a si para ter saúde (P 22).
141
A gente, mulher, tem que se cuidar e se prevenir, sempre ir ao médico, cuidar das partes
íntimas, né? Aplicar pomada vaginal, na minha primeira gravidez eu nem sabia aplicar
pomada vaginal, minha sogra que me ensinou (P 52).

Procurar ir no médico, fazer alimentação saudável. Sem comida, ninguém vive (P 58).

Droga não é saúde, bebida não é saúde, tem é que comer coisas saudáveis que dê energia ao
nosso corpo (P 68).

No quadrante superior direito, também denominado primeira periferia, são encontrados os


elementos periféricos mais importantes da representação, em função de apresentarem as
maiores frequências, embora tenham sido evocados mais tardiamente(9), e reúne os termos
‘prevenir-se’, ‘higiene’ e ‘felicidade’. No processo de hierarquização, ‘prevenir-se’ foi
referido 17 vezes nas justificativas, evidenciando a importância da manutenção de cuidados
higiênicos para o grupo investigado:

Para não se prejudicar e não prejudicar outras pessoas (P 5).

Através da higiene você não contrai bactérias, para não precisar passar pelo médico e nem
tomar medicamento (P 4).

Se a pessoa não se higienizar, a pessoa vai ficar vulnerável a uma doença (P 14).

O termo ‘felicidade’ introduz uma dimensão afetiva e subjetiva para com o objeto
investigado. Cinco das participantes sinalizaram e justificaram o referido termo como o de
maior relevância, conforme retratam as seguintes falas:

Felicidade é quando o corpo está em equilíbrio, a mente está em equilíbrio e a saúde também
se equilibra (P 8).

A felicidade é o objetivo máximo da vida. Não importa as conquistas que você obtém na vida,
se você não tem felicidade, não é nada (P 9).

Quando a gente é feliz, tudo fica mais fácil resolver na vida, fica mais fácil resolver as coisas.
Eu acho que a felicidade vem em primeiro lugar pra tudo (P 26).

O quadrante inferior direito, denominado segunda periferia, comporta os elementos menos


frequentes e mais tardiamente evocados, os quais possuem pertinência no campo
representacional em função de sua participação significativa, no que se refere à relação com
as práticas cotidianas(9). Tal quadrante foi composto por seis termos, a saber: ‘atividade
física’, ‘exame’, ‘tratar’, ‘beleza’, ‘saudável’ e ‘corpo’, ilustrados nos segmentos a seguir:

É importante fazer check-up para evitar doenças. O importante da vida é ter saúde, paz e
liberdade(P 17).

Quando faço atividade física, me sinto muito bem (…) mais leve, e minha respiração
melhora (P 19).

Se a gente não cuidar do nosso corpo, quem vai cuidar? A gente tem que primeiro cuidar de
si, ter amor a si, para ter saúde (P 10).
142
Se você não se tratar da doença, como é que vai ser curada? (P 24).

Tem que se prevenir das doenças, ter mais alegrias (P 60).

No quadrante inferior esquerdo, tecnicamente denominado zona de contraste, são encontrados


os elementos com baixa frequência e prontamente evocados pelas/os participantes(9),
composto por sete termos: ‘bom’, ‘remédios’, ‘importante’, ‘vida’, ‘doença’,
‘responsabilidade’ e ‘amor’. Aspectos esses que reforçam os elementos dispostos no núcleo
central. Dez participantes atribuíram maior importância aos termos:

Quando se tem amor próprio, tem o cuidado da saúde em geral (P 12).

Se você não se tratar, você não está vivendo. Você, sem saúde, não vai viver por muito
tempo (P 16).

Porque o amor é o que move tudo, eu sou amor, um amor insuperável, eu creio nesse amor,
incomensurável, sem cobranças, na simplicidade (P 71).

Na nuvem de palavras (Figura 1), que agrupa e organiza de modo aleatório os termos
considerando a frequência, nota-se que a palavra ‘médico’ apresentou maior número de
aparição no corpus (36), seguida do termo ‘prevenir-se’ (31) e ‘cuidar de si’ (30), bem como
os termos ‘higiene’ (27) e ‘alimentação’ (22).

Figura 1 Nuvem de palavras referente ao estímulo “cuidar de si é” – Salvador, BA, Brasil,


2017.
143
DISCUSSÃO

O conjunto de palavras evocadas para o estímulo “cuidar da saúde é” e sua distribuição no


quadro de quatro casas revelam que a representação social do grupo investigado está ancorada
em hábitos e ações disseminados ao longo dos anos pelo modelo biomédico, e permeada por
especificidades inerentes ao contexto no qual os sujeitos estão inseridos.

A concepção de que o cuidado em saúde evoluiu de técnicas estritamente curativas e


individualizantes para práticas integrais e coletivas(13) parece ter ressonância nos termos que
se apresentam no sistema central e periférico do quadro de quatro casas. De modo geral, os
termos consubstanciam aspectos técnicos ligados ao tratamento e à cura de doenças, com
elementos intersubjetivos e atitudinais que revelam a implicação da pessoa no processo de
cuidado da saúde.

Segundo os princípios da abordagem estrutural da Teoria das Representações Sociais(9), as


palavras dispostas no quadrante superior esquerdo caracterizam o possível núcleo central da
representação, por terem sido mais prontamente evocadas, e por sua alta frequência. Vale
ressaltar que o núcleo central é a parte mais estável da representação social, com menor
possibilidades de mudanças, e, nesta pesquisa, os elementos que o compuseram foram:
‘médico’, ‘cuidar de si’ e ‘alimentação’. Embora os participantes tenham destacado o cuidado
ainda centrado no modelo biomédico, no qual a figura do médico tem notoriedade,
evidenciaram uma corresponsabilização a partir da implicação de um cuidado autoatribuído,
ou seja, um cuidar que depende da própria pessoa.

No senso comum, atribui-se ao médico a detenção do poder e conhecimento para prescrever


exames e medicamentos com a finalidade de tratar e curar doenças. Essa concepção pode
justificar o fato de o elemento médico obter maior frequência e ser o mais prontamente
evocado pelo grupo investigado. Os demais termos do núcleo central, ‘cuidar de si’ e
‘alimentação’, assim como outros que compõem o quadro de quatro casas, confirmam a ideia
da pessoa como foco principal do cuidado como uma construção cotidiana(3).

No sistema periférico, estão presentes vários termos que remetem a um entendimento do


grupo de uma definição ampliada do conceito de saúde e, consequentemente, do cuidado em
saúde. A primeira periferia – quadrante superior direito – reúne os elementos que, em função
de sua importância, frequentemente reforçam os elementos centrais(9). Nesta pesquisa, os
termos ‘prevenir-se’, ‘higiene’ e ‘felicidade’ implicam a pessoa no cuidado em saúde e
apresentam dimensões atitudinais, relacionadas à prática ou a ações que permeiam o cuidar da
saúde para consigo mesma. Para o grupo investigado, a prevenção se constitui numa tarefa
diária que não se limita apenas a ações contra o contágio de doenças, mas engloba também se
resguardar de situações de violências(14) e agravos que podem trazer danos à saúde física e
mental, situações estas que remetem a uma realidade ligada ao contexto no qual estão
inseridos(14-15).

No senso comum, a higiene tem como principais sinônimos ‘saudável’ e ‘aroma’. A condição
de morador de rua, associada à sujeira e à higiene precária constituem fatores que impedem
e/ou dificultam o acesso aos serviços de saúde e aumenta a exclusão social. No Brasil, a
mentalidade higienista foi propagada entre a segunda metade dos anos 1940 até a primeira
metade dos 1960, para atender a questões comerciais da era industrial. A produção e a
comercialização de novos e variados produtos relacionados à saúde e à higiene tiveram ampla
propagação pela impressa, disseminando uma nova maneira, moderna e saudável, de se
viver(16). Essa produção e comercialização de novos produtos e sua divulgação na mídia
144
permanecem nos dias atuais, impondo para toda a sociedade uma higiene associada a produtos
aromáticos, com concomitante condenação dos cheiros naturais do corpo humano.

A presença do termo ‘felicidade’ remete à dimensão subjetiva da representação social do


grupo investigado para o cuidado de saúde. Embora muitos intelectuais tenham se destinado
ao estudo da felicidade, ainda não há consenso sobre o que seja esse sentimento. O sentimento
de felicidade é próprio de cada pessoa e pode estar associado, individual ou coletivamente, a
fatores de ordem material, social, afetiva, física, dentre outros. A satisfação com a própria
saúde é um sentimento extremamente importante para aumentar a probabilidade de a pessoa
se declarar feliz(17). Essa satisfação não depende de relações sociais, mas do sentimento que a
pessoa tem de si mesma, pois ela pode ter a saúde comprometida por alguma enfermidade e,
mesmo assim, sentir-se feliz. O sentimento de satisfação é de extrema importância para a
pessoa se declarar feliz.

É possível ter uma vida que não se pauta na felicidade prescritiva, ou seja, uma vida cujos
objetos de desejo fogem dos critérios estabelecidos histórica e socialmente, por exemplo:
formatura, sucesso no trabalho, casamento, família(17-18). Nesta perspectiva, andarilhos,
migrantes, pessoas em situação de rua e sujeitos que vivem em contextos culturais diversos
não se reconhecem inferiorizados pelos discursos mais amplos de felicidade(18). Por mais
estranho que possa parecer, estar nas ruas pode ser também uma forma de sentir-se feliz,
distante de um contexto formatado socialmente e que se constitui em um elemento
desencadeador/gerador do ciclo do adoecimento. Muitas vezes, a rua torna-se um local de
refúgio, libertação e estabelecimento de novas relações.

Os elementos que compõem a segunda periferia − quadrante inferior direito −, formada por
palavras menos prontamente evocadas e de menor frequência, apresentam menor
significado/importância para o grupo estudado(9). Nesta pesquisa, ‘atividade física’, ‘exame’,
‘tratar’, ‘beleza’, ‘saudável’ e ‘corpo’ também têm características de conotação positiva para
o objeto representado, numa dimensão atitudinal e imagética. Tais termos são
complementares e apontam que o cuidar da saúde contribui para manter uma melhor
qualidade de vida, norteada pelo modelo biomédico, numa íntima associação com o termo
médico, presente no núcleo central. Essa associação revela uma necessidade mais pragmática
e procedimental desse cuidado(12).

Os termos ‘atividade física’, ‘beleza’ e ‘corpo’ se complementam e revelam a dimensão


imagética da representação social acerca do objeto investigado. Esses termos também
denotam aspectos positivos em relação ao cuidado de saúde e à implicação do sujeito. No
cotidiano dos/das participantes, a atividade física é inerente, na tentativa de promover meios
para manter os hábitos higiênicos e conseguir alimentação e local adequado para sono e
repouso. Contudo, o aparecimento desse termo na segunda periferia parece estar ancorado na
ideia propagada de que a prática de atividades físicas contribui para a manutenção de uma
vida saudável, da beleza e do corpo e previne agravos à saúde(19).

Fica evidente que, para o grupo social, a saúde tem relação com o corpo e com a beleza,
independentemente do local onde estejam. Vale lembrar que a beleza é relativa, embora haja
padrões socialmente divulgados pela mídia. De toda forma, preocupar-se com a beleza e com
o corpo integra as ações voltadas ao complexo processo de cuidado da saúde, revelando a
implicação de um cuidado autoatribuído.

No conjunto de palavras que compõe a zona de contraste – quadrante inferior esquerdo –,


encontram-se os elementos que obtiveram baixa frequência e baixa ordem média de evocação,
145
(9)
mas que são considerados importantes para o grupo investigado . O conjunto de palavras que
compõe a zona de contraste são: ‘bom’, ‘remédios’, ‘importante’, ‘vida’, ‘doença’,
‘responsabilidade’ e ‘amor’, e também apontam para uma dimensão imagética, intersubjetiva
e funcional da representação. Alguns termos voltam a fazer referência ao modelo biomédico,
mas privilegiam a imbricação do sujeito no cuidado de saúde e sinalizam o amor como um
elemento desse cuidado. Observa-se a predominância de termos com conotação positiva
(bom, importante, vida, responsabilidade, amor). O termo ‘importante’ retrata o valor
simbólico associado ao objeto e evidencia implicação no desenvolvimento de estratégias de
controle e responsabilidade sobre a própria saúde.

O elemento ‘amor’ aponta para uma dimensão afetiva e se associa ao termo ‘felicidade’,
disposto na segunda periferia, reforçando o conceito ampliado de saúde. Esse termo denota
que o cuidado é perpassado pela necessidade que os participantes têm de se amar, para que
possam melhor cuidar de si e de outrem. A representação social também cumpre uma função
em relação à familiaridade com o grupo, e a dimensão afetiva se apresenta na base desse
trânsito, apoiada na memória individual e coletiva, nas experiências e situações cotidianas(20).

De acordo com os princípios da abordagem estrutural da teoria, o sistema periférico se vincula


à realidade cotidiana, abarca os elementos de transição, e é responsável pela atualização do
núcleo central(9). Essa dinamicidade promove a transformação da realidade social, além de
contribuir para a modificação de comportamentos, condutas e ações frente a sua saúde, na
condição de pessoas em situação de rua.

No que concerne à nuvem de palavras, os termos expressos de maneira mais enfática são
representados pelas expressões ‘médico’, ‘prevenir-se’, ‘cuidar de si’, ‘higiene’ e
‘alimentação’, sendo que dois termos pertencem à primeira periferia do quadro de quatro
casas. Isso revela, portanto, a centralidade dos termos no núcleo central e reforça o quão
importante é para o grupo em estudo a normatividade do saber médico, e, concomitantemente,
compartilha e se apropria do saber alicerçado pelo cuidado ampliado de saúde, valendo-se das
noções de prevenção e promoção de agravos, bem como das práticas individuais para cuidar
da saúde.

CONCLUSÃO

Ao se pesquisar as representações sociais de um grupo de pessoas em situação de rua sobre o


cuidado em saúde, percebeu-se a centralidade de elementos culturais acerca da saúde e
especificidades do cotidiano do grupo investigado que merecem ser consideradas na prática
de cuidados profissionais. O destaque do termo “médico”, no núcleo central, ao mesmo tempo
que revela a ideia de cuidado em saúde atrelado ao diagnóstico, tratamento e, às vezes, cura
de alguma doença, denuncia um dos problemas enfrentados pela população em situação de
rua, o acesso aos serviços de saúde.

O conjunto de palavras evocadas representa o cuidado em saúde como uma construção


cotidiana, ancorada em ações para o atendimento de necessidades humanas básicas
estabelecidas pelo contexto de rua. Nesse contexto, a corresponsabilização no cuidado em
146
saúde é inerente. Os termos evocados revelam aspectos das dimensões imagética, cultural e
biológica do cuidado em saúde.

Os dados produzidos não podem ser generalizados pela limitação do grupo investigado e pela
dinamicidade das representações sociais. Sua originalidade e ineditismo permitem reflexão
para a elaboração de práticas profissionais alinhadas com as necessidades e realidades de
pessoas em situação de rua e sinalizam a necessidade de novas investigações abordando a
temática. Nesse sentido, acredita-se que os dados podem ser utilizados em ações de formação
de profissionais de saúde, em especial de Enfermeiros/as, visando redução de enfrentamentos
na assistência prestada e de agravos em saúde para a população em situação de rua.

*Extraído da dissertação “Práticas de cuidados em saúde de pessoas em situação de rua: um


estudo em representações sociais”, Escola de Enfermagem, Universidade Federal da Bahia,
2017.

Errata

No artigo “Representações sociais do cuidado em saúde de pessoas em situação de rua”, DOI:


http://dx.doi.org/10.1590/s1980-220x2017023703314, publicado no periódico “Revista da
Escola de Enfermagem da USP”, Volume 52 de 2018, elocation e03314, na página 1:

Onde se lia:

Dejeane de Oliveira Silva1


1
Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil.

Leia-se:

Dejeane de Oliveira Silva1,2


1
Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil.
2
Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, BA, Brasil.

REFERÊNCIAS

1. Silva CC, Cruz MM, Vargas EP. Práticas de cuidado e população em situação de rua: o
caso do Consultório na Rua. Saúde Debate. 2015;39(n.esp):246-56. [ Links ]

2. Rangel RF, Backes DS, Ilha S, Siqueira HCH, Martins FDP, Zamberlan C. Comprehensive
care: meanings for teachers and nursing students. Rev Rene [Internet]. 2017 [cited 2017 Fev
11];18(1):43-50. Available
from: http://www.revistarene.ufc.br/revista/index.php/revista/article/view/2502/pdf [ Links ]
147
3. Bustamante V, Mccallum C. Cuidado e construção social da pessoa: contribuições para
uma teoria geral. Physis [Internet]. 2014 [citado 2017 mar. 10]; 24(3):673-92. Disponível
em: https://scielosp.org/pdf/physis/2014.v24n3/673-692 [ Links ]

4. Macerata I, Soares JGN, Ramos JFC. Apoio como cuidado de territórios existenciais:
Atenção Básica e a rua. Interface. 2014;18 Supl 1:S919-30. [ Links ]

5. Brasil. Ministério da Saúde; Secretaria de Gestão Participativa. Saúde da população em


situação de rua: um direito humano. Brasília: MS; 2014. [ Links ]

6. Brasil. Ministério da Saúde; Secretaria de Atenção à Saúde. Manual sobre o cuidado à


saúde junto à população em situação de rua. Brasília: MS; 2012. [ Links ]

7. Baggett TP, Hwang SW, O'Connell JJ, Porneala BC, Stringfellow EJ, Orav EJ, et al.
Mortality among homeless adults in Boston: shifts in causes of death over a 15-year period.
JAMA Intern Med [Internet]. 2013 [cited 2017 Feb 10];173(3):189-95. Available
from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3713619/ [ Links ]

8. Moscovici S. A psicanálise, sua imagem e seu público. Petrópolis: Vozes; 2012. [ Links ]

9. Sá CP. Estudos de psicologia social: história, comportamento, representações e memória.


Rio de Janeiro: Eduerj; 2015. Teoria e pesquisa do núcleo central; p. 209-26. [ Links ]

10. Oliveira DC, Gomes AMT. O processe de coleta e análise dos conteúdos e da estrutura
das representações sociais: desafios e princípios para a enfermagem. In: Lacerda MR,
Costenaro RGS, organizadoras. Metodologias da pesquisa para a enfermagem e saúde: da
teoria à prática. Porto Alegre: Moriá; 2015. p. 351-86. [ Links ]

11. Kami MTM, Larocca LM, Chaves MMN, Lowen IMV, Souza VMP. Working in the
street clinic: use of IRAMUTEQ software on the support of qualitative research. Esc Anna
Nery [Internet]. 2016 [cited 2017 Feb 19];20(3):e20160069. Available
from: http://www.scielo.br/pdf/ean/v20n3/en_1414-8145-ean-20-03-20160069.pdf [ Links ]

12. Santos EI, Alves YR, Gomes AMT, Ramos RS, Silva ACSS, Santo CCE. Social
representations of nurses’ professional autonomy among nonnursing health personnel. Online
Braz J Nurs [Internet]. 2015 [cited 2017 Mar 21];15(2):146-56. Available
from: http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/5294/pdf_1[ Links ]

13. Acioli S, Kebian LVA, Faria MGA, Ferraccioli P, Correa VAF. Care practices: the role of
nurses in primary health care. Rev Enferm UERJ [Internet]. 2014 [cited 2017 Mar
04];22(5):637-42. Available from: http://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/enfermagemuerj/article/view/12338/12290 [ Links ]

14. Biscotto PR, Jesus MCP, Silva MH, Oliveira DM, Merighi MAB. Understanding of the
life experience of homeless women. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2016 [cited 2017 Apr
15];50(5):749-55. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v50n5/0080-6234-reeusp-
50-05-0750.pdf [ Links ]

15. Rosa AS, Brêtas ACP. Violence in the lives of homeless women in the city of São Paulo,
Brazil. Interface (Botucatu) [Internet]. 2015 [cited 2017 Mar 14];19(53):275-85. Available
from: http://www.scielo.br/pdf/icse/v19n53/en_1807-5762-icse-19-53-0275.pdf [ Links ]
148
16. Kobayashi E, Hochman G. O “CC” e a patologização do natural: higiene, publicidade e
modernização no Brasil do pós-Segunda Guerra Mundial. An Mus Paul [Internet]. 2015
[citado 2017 mar. 14];23(1):67-89. Disponível
em: http://www.scielo.br/pdf/anaismp/v23n1/0101-4714-anaismp-23-01-00067.pdf [ Links ]

17. Ciello FJ. Feminist killjoys e reflexões (in)felizes sobre obstinação e felicidade. Rev Estud
Fem [Internet]. 2016 [citado 2017 mar. 13];24(3):1019-22. Disponível
em: http://www.scielo.br/pdf/ref/v24n3/1806-9584-ref-24-03-01019.pdf [ Links ]

18. Pinilla RL, Amparo JI. El bienestar subjetivo en colectivos vulnerables: El caso de los
refugiados en España. Rev Investig Psicol Soc [Internet]. 2013 [citado 2017 mar. 21];1(1):67-
84. Disponible
en: http://sportsem.uv.es/j_sports_and_em/index.php/rips/article/view/36 [ Links ]

19. Silva ACS, Sales ZN, Moreira RM, Boery EN, Santos WS, Teixeira JRB. Representações
sociais de adolescentes sobre ser saudável. Rev Bras Ciênc Esporte [Internet]. 2014 [citado
2017 mar. 23];36(2):397-409. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbce/v36n2/0101-
3289-rbce-36-02-00397.pdf [ Links ]

20. Arruda A. Meandros da teoria: a dimensão afetiva das representações sociais. In: Sousa
CP, Ens RT, Villas-Bôas L, Novaes AO, Stanich KAB, organizadoras. Angela Arruda e as
representações sociais: estudos selecionados. Curitiba: Champagnat; Fundação Carlos
Chagas; 2014. p. 181-96. [ Links ]

Recebido: 07 de Junho de 2017; Aceito: 21 de Novembro de 2017


149
Contemporânea

ISSN: 2236-532X

n. 1 p. 13-33

Jan.–Jun. 2011

ArtigoDossiê Diferenças e (Des)Igualdades

Vida precária1

Judith Butler2

Resumo: Neste ensaio, Judith Butler re!ete sobre o que nos vincula eticamen-te
à alteridade, ao Outro compreendido como as pessoas marcadas por vi-das
precárias. Este vínculo não é um a priori, antes emerge apenas quando
reconhecemos a humanidade deste Outro sob ameaça. Aí emerge a proble-
mática da representação do Outro em nossos tempos midiatizados, quando
frequentemente não nos permitem ver a alteridade ou a apresentam de for-ma
a impedir nossa identi"cação com ele(a). Na argumentação de Butler, a
representação da alteridade constitui -se em um meio de humanização/des-

-humanização, de reconhecimento do vínculo ético -moral com o


Outro ou de justi"cativa para sua eliminação.

Palavras-chave: Direitos humanos, vida precária, representação


da alteridade, re-conhecimento, não violência.

Abstract: In this essay, Judith Butler re!ects about what connects us ethically to
alterity comprehended as the people marked by precarious lives. "is bond is not an a
priori, instead depends in our ability to recognize the threatned humanity of this
Other. "erefore, emerges the problematic of the representation of the Other in our
mediatic era. "e media o#en do not allow us to see the Other or presents him/ her to
us in a way that avoids our indenti$cation with him/her. In Butler’s argu-ment, the
representation of alterity is a way of humanize/de-humanize someone,

7 Tradução de Angelo Marcelo Vasco. Revisão de Richard Miskolci. Agradecemos a Judith Butler por

autorizar-nos a publicar esta tradução na Contemporânea.

8 Universidade da Califórnia, Berkeley.


150

14 Vida precária

of recognizing our ethical-moral bond with the Other or a


justi!cation to oblite-rate him/her.

Key words: Human rights, precarious life, alterity, representation


of alterity, recog-nition, non-violence

(...) o excedente de cada sociabilidade sobre cada solidão.

Levinas

Em uma reunião recente, ouvi a seguinte história do diretor de uma editora


universitária. Não estava muito claro se ele se identi!cava com o ponto de vis-ta
a partir do qual a história foi contada, ou se estava apenas compartilhando as
más notícias de maneira relutante. Mas a história que ele contou foi sobre outra
reunião, na qual ele era o ouvinte, e nela um reitor de uma universidade a!rmou
que ninguém mais estava lendo livros de humanidades e que as huma-nidades
não tinham mais nada a oferecer ou, melhor dizendo, nada a oferecer ao nosso
tempo. Não tenho certeza se ele estava dizendo que o reitor da univer-sidade
disse que as humanidades haviam perdido sua autoridade moral, mas soava
assim, de fato, como a visão de alguém, e que era uma visão a ser leva-da a
sério. Seguiram-se, na mesma reunião, uma série de discussões nas quais não
era sempre possível distinguir quem detinha qual visão, ou se realmente havia
alguém disposto a ter alguma visão própria. A questão que se colocava era a
seguinte: “Teriam as humanidades sabotado a si mesmas, com todo seu
relativismo, questionamento e criticismo, ou teriam elas sido sabotadas por to-
dos aqueles que se opõem ao seu relativismo, questionamento e criticismo?”.
Alguém sabotou as humanidades, ou algum grupo de pessoas o fez, mas não
estava claro quem, assim como também não estava claro quem acreditava ser
isso verdade. Comecei a me perguntar se não estaria no meio do próprio
dilema das humanidades, aquele no qual ninguém sabe exatamente quem está
falando, com que voz e com qual propósito. Alguém ainda sustenta as palavras
que pro-fere? Podemos rastrear essas palavras a um falante, ou mesmo a um
escritor? E qual mensagem, exatamente, está sendo enviada?

Obviamente, seria paradoxal se agora eu fosse argumentar que aquilo que


realmente precisamos é amarrar discurso e autor e que, dessa maneira, iremos
restabelecer ambos, o autor e a autoridade. Eu realizei a minha cota de esforço,
junto com muitos de vocês, justamente para desfazer essa amarra. No entanto, o
que realmente me parece estar faltando, e o que eu gostaria de ver e ouvir retornar,
é uma re"exão sobre a própria estrutura do discurso. Pois, ainda que eu não
soubesse na voz de quem aquele diretor de editora universitária estava
151
1 Judith Butler 15

falando, se a fala era mesmo sua ou não, eu realmente senti como se estivesse sendo
submetida a um discurso especí!co, e que algo chamado humanidades estava sendo, sob
algum ponto de vista, de quem quer que o seja, ridicularizada. Responder a esse discurso
parece-me uma obrigação importante nestes tempos. Essa obrigação não diz respeito
apenas à reabilitação do autor com o conteúdo de seu discurso per se. Ela diz respeito a
um modo de resposta para quando somos submetidos a um discurso, um comportamento
em relação ao Outro apenas quando o Outro me demandou algo, ou acusa-me de uma
falha ou me obriga a assumir alguma forma de responsabilidade. Esta é uma troca que não
pode ser assimilada no esquema em que o sujeito está aqui como um tópico a ser
interrogado re"exivamente e o Outro está lá como um item a ser procurado. A estrutura do
discurso é importante para a compreensão de como a autoridade moral é introduzida e
sustentada se concordarmos com o fato de que o discurso está presente não apenas
quando nos reportamos ao Outro, mas que, de alguma forma, passamos a existir no
momento em que o discurso nos alcança, e que algo de nossa existência se prova precária
quando esse discurso falha em nos convencer. Mais enfaticamente, no entanto, aquilo que
nos vincula moralmente tem a ver com como o discurso do Outro se dirige a nós de
maneira que não po-demos evitá-lo ou mesmo dele desviar. Essa implicação realizada por
meio do discurso do Outro nos constitui, a princípio, contra nossa própria vontade ou, talvez
colocado de forma mais apropriada, antes mesmo de formarmos nossa vontade. Portanto,
se pensarmos que autoridade moral tem a ver com encontrar uma vontade e sustentá-la,
talvez não estejamos percebendo o próprio modo pelo qual demandas são apresentadas.
Ou seja, não percebemos a questão do ser implicado, a demanda que nos vem de algum
lugar, muitas vezes um lugar sem nome, pela qual nossas obrigações são articuladas e são
impostas a nós.

De fato, essa concepção do que é moralmente vinculante não é dada por mim mesmo;
ela não procede da minha autonomia ou de minha própria re-"exividade. Ela chega a mim
de um lugar desconhecido, de forma inesperada, involuntária e não planejada. Na verdade,
ela tende a arruinar meus planos e, se meus planos são desfeitos, isso pode muito bem ser
o sinal de que uma autori-dade moral pesa sobre mim. Quando pensamos em um
presidente logo nos vem

9 mente a imagem de um discurso assertivo, vinculante e determinado. Nesse sentido,


quando o diretor de uma editora universitária, ou o reitor de uma uni-versidade fala,
esperamos saber o que eles estão dizendo, a quem estão falando e com qual propósito.
Esperamos que seus discursos sejam !rmados em sua auto-ridade e, de alguma forma,
vinculativos. No entanto, os discursos presidenciais andam estranhos nestes tempos e
seria necessário alguém com melhor retórica
152
16 Vida precária

do que eu para entender esse mistério. Por que razão, por exemplo, o Iraque é
considerado uma ameaça à segurança do “mundo civilizado” enquanto mísseis
voando da Coreia do Norte – e até mesmo a tentativa de sequestro de navios
estadunidenses – são chamados de “assuntos regionais”? E se o presidente dos
Estados Unidos foi conclamado pela maior parte do mundo a retirar suas ame-aças de
guerra, por que não se sente vinculado a essa demanda? Em razão da desordem em
que a voz presidencial se encontra neste momento, talvez devês-semos pensar mais
seriamente na relação que existe entre modos de discurso e autoridade moral. Isso
poderá nos ajudar a entender quais valores as humani-dades têm a oferecer, e quais
são os contextos do discurso em que a autoridade moral passa a se tornar vinculativa.

Gostaria de considerar a noção de “rosto”, introduzida por Emmanuel Levinas,


para explicar a maneira pela qual outros fazem reivindicações mo-rais sobre nós,
direcionam demandas morais a nós, as quais não pedimos, mas que não somos livres
para recusar. Levinas coloca diante de mim uma demanda introdutória, a qual – no
entanto – não é a única que estou desti-nada a seguir nesses dias. Irei traçar o que
me parece ser uma série de possí-veis éticas judaicas de não violência. A partir disso,
irei relacioná-las com as questões mais importantes acerca de ética e violência que
estão hoje diante de nós. A noção levinasiana de “rosto” causou consternação crítica
por um longo tempo. Parece que o “rosto” daquilo que ele chama de “Outro” impõe-

-me uma questão ética, mesmo sem sabermos ao certo o teor dessa
demanda. O “rosto” do outro não pode ser lido como um signi!cado
secreto e o impe-rativo que ele impõe não pode ser imediatamente
traduzido sob a forma de uma prescrição linguística que é capaz de ser
linguisticamente formulada e seguida.

Levinas escreve:

A abordagem do rosto é o mais básico modo de responsabilidade... O rosto não


está de frente pra mim (en face de moi), mas acima de mim. É o outro diante da
morte, olhando através dela e a expondo. Segundo, o rosto é o outro que me pede
para que não o deixe morrer só, como se o deixar seria se tornar cúmplice de sua
morte. Portanto, o rosto diz a mim: não matarás. Na relação com o rosto eu sou
exposto como um usurpador do lugar do ou-tro. O celebrado “direito de existir” que
Spinoza chamou de conatus essendi e de!niu como o princípio básico de toda
inteligibilidade é desa!ado pela relação com o rosto. Consequentemente, meu dever
de responder ao ou-tro suspende meu direito natural de autopreservação, le droit
vitale. Minha
153
1 Judith Butler 17

relação ética de amor pelo outro está enraizada no fato de que o eu [self] não pode
sobreviver sozinho, não pode encontrar sentido apenas em sua pró-pria existência no
mundo... Expor a mim mesmo à vulnerabilidade do rosto

12 colocar meu direito ontológico de existir em questão. Em ética, o direito

do outro em existir tem primazia sobre o meu, uma primazia condensada no

decreto ético: Não matarás, não colocarás em risco a vida do outro. !

Levinas vai mais a fundo:

O rosto é o que não se pode matar ou, pelo menos, aquilo cujo sentido con-siste em
dizer: “tu não matarás”. O homicídio, é verdade, é um fato banal: pode matar-se outrem;
a exigência ética não é uma necessidade ontológica...

Também aparece nas Escrituras, às quais a humanidade do homem está ex-posta


tanto quanto está ligada ao mundo. Mas, em boa verdade, a aparição, no ser,
destas “raridades éticas” – a humanidade do homem – é uma ruptu-ra do ser. É
signi"cativo, ainda que o ser se renove e se recupere. #

Portanto, o rosto, estritamente falando, não fala, mas o que o rosto signi-"ca é, no
entanto, expresso pelo mandamento “não matarás”. O rosto exprime esse
mandamento sem, precisamente, falá -lo. Poderia parecer que é possível utilizar o
mandamento bíblico a "m de entender algo do signi"cado do rosto, mas há alguma
coisa faltando aqui, uma vez que o “rosto” não fala no mesmo sentido que a boca fala;
o rosto não é nem reduzível à boca nem, de fato, a qualquer coisa que ela possa
balbuciar. Algo ou alguém diferente fala quando o rosto é comparado a certo tipo de
discurso; é um discurso que não vem de uma boca ou, se o faz, não tem uma origem
ou, signi"cado último, nela mes-ma. De fato, em um ensaio intitulado Peace and
Proximity , Levinas deixa claro que “o rosto não é exclusivamente um rosto humano”. $
A "m de explicar essa passagem, ele se remete ao texto Life and fate, de Vassili
Grossman, o qual ele descreve como:

Emmanuel Levinas e Richard Kerney, “Dialogue with Emmanuel Levinas”. Face to Face with Levinas,
Albany: SUNY Press, %&'(, p. )!-#. Levinas desenvolve esta concepção primeiro em Totality and In"nity:
An Essay on Exteriority, tradução para o inglês de Alphonso Lingis, Pittsburgh: Duquesne University
Press, %&(&, p. %'*-)+!. Seleciono citações de seus trabalhos mais recentes por acreditar que eles dão
uma formulação mais madura e incisiva do rosto.
É Emmanuel Levinas. Ethics and In"nity. Tradução para o inglês de Richard A. Cohen, Pittsburgh:
Duquesne University Press, %&'$, p. '*. Citada no texto como El. [Nota do tradutor: Para a versão em
português deste excerto foi utilizado o trecho correspondente que está em “Ética e In"nito”. Biblioteca de
Filoso"a Contemporânea. Lisboa: Edições *+, p. *&]

13 Emmanuel Levinas. “Peace and Proximity”. Basic Philosophical Writings. Editado por Adriaan T. Peperzak, Simon

Critchley e Rober Bernasconi, Bloomington: Indiana University Press, %&&(, p. %(*.


154
18 Vida precária

A história... das famílias, esposas e pais de detentos políticos viajando para


Lubianka, em Moscou, para as últimas notícias. Uma linha se forma frente a um
guichê, uma linha na qual apenas se pode ver as costas do outro. Uma mulher
espera por sua vez: [Ela] nunca imaginou que as costas humanas poderiam ser tão
expressivas e que poderiam exprimir estados mentais de forma tão penetrante. À
medida que se aproximavam do guichê, as pessoas tinham uma maneira peculiar
de estender a cabeça e as costas, seus ombros levantados com as omoplatas
movendo-se para cima e para baixo em tensão, os quais pareciam chorar, soluçar e
gritar. (!"#)

Aqui o termo “rosto” opera como uma catacrese: “rosto” descreve as costas humanas, o
movimento do pescoço, a tensão das omoplatas. E dessas partes do corpo diz-se – por sua
vez – que choram, que soluçam, que berram, como se fossem um rosto ou, então, um rosto
com boca, garganta ou, de fato, apenas uma boca e garganta do qual vocalizações
emergem e que não tomam estado de pa-lavras. O rosto deve ser encontrado nas costas e
no pescoço, mas ele não é exata-mente um rosto. Os sons que dele emergem são
agonizantes, sôfregos. Assim, já podemos perceber que o “rosto” parece consistir em uma
série de deslocamentos de tal maneira que o rosto é representado como as costas que, por
sua vez, é re-presentada como uma cena de vocalização agonizante. E ainda que haja
muitos nomes em uma série aqui, eles terminam em uma $gura que não pode ser no-
meada, uma ênfase que não é, estritamente falando, linguística. Portanto, o rosto, o nome
que se dá ao rosto, as palavras por meio das quais nós entendemos seu signi$cado – “não
matarás” – não conseguem exatamente expressar o signi$ca-do do rosto uma vez que – no
$nal da $la – parece ser precisamente a vocalização sem palavras do sofrimento que
marca os limites da tradução linguística aqui. O rosto – se vamos colocar em palavras seu
signi$cado – será aquele para o qual pa-lavras não podem realmente apreendê-lo. O rosto
parece ser uma forma de som, o som da linguagem evacuando seu sentido, o substrato
sonoro da vocalização que precede e limita a entrega de qualquer signi$cado semântico.

No $nal desta descrição, Levinas acrescenta as seguintes linhas, as quais não


alcançam inteiramente a forma de sentença: “O rosto como a extrema precarieda-de do
outro. Paz como despertar sobre a precariedade do outro” (!"#). Ambas as a$rmações são
similares, ambas evitam a utilização de um verbo, especialmente o verbo de ligação. Elas
não dizem que o rosto é essa precariedade, ou que a paz é o modo de se despertar para a
precariedade do outro. Ambas são substituições que recusam qualquer comprometimento
com a ordem do ser. De fato, o que Levinas nos diz é que “a humanidade é uma ruptura do
ser” e nas a$rmações anteriores ele desempenha essa suspensão e ruptura na forma de
uma elocução que é, ao
155
1 Judith Butler 19

mesmo tempo, mais e menos que uma sentença. Responder ao rosto, entender seu
signi!cado quer dizer acordar para aquilo que é precário em outra vida ou, antes, àquilo que
é precário à vida em si mesma. Isso não pode ser um despertar, para usar essa palavra,
para minha própria vida e, dessa maneira, extrapolar para o entendimento da vida precária
de outra pessoa. Precisa ser um entendimento da condição de precariedade do Outro. É
isto que faz com que a noção de rosto pertença à esfera da ética. Levinas escreve: “o rosto
do outro em sua precariedade e condição de indefeso é, para mim, ao mesmo tempo, a
tentação de matar e um chamado à paz, o ‘não matarás’” ("#$). Esta última observação
sugere algo que realmente nos desarma em vários sentidos. Por que exatamente a
condição de precariedade do Outro produziria em mim o desejo de matar? Ou então, por
que produziria a tentação de matar ao mesmo tempo em que carrega em si um cha-mado à
paz? Há algo em minha apreensão da precariedade do Outro que me faz querer matá-lo? É
o simples estado de vulnerabilidade do Outro que se torna em mim um desejo assassino?
Se o Outro, ou o rosto do outro – que, a!nal de contas, carrega o signi!cado de sua
precariedade – ao mesmo tempo me tenta a assassi-nar e me proíbe de agir nesse sentido,
então o rosto opera e produz uma luta em mim e estabelece essa luta no coração da ética.
Parecia ser a voz de Deus que é re-presentada pela voz humana, uma vez que é Deus
quem diz, por meio de Moisés:

“Não matarás”. O rosto que ao mesmo tempo faz de mim um assassino e me proíbe
assassinar é aquele que fala por meio de uma voz que não é sua, que fala por meio de
uma voz que não é a de nenhum humano.# Portanto, o rosto pronuncia várias elocuções ao
mesmo tempo: ele enuncia uma agonia, uma insegurança, ao mes-mo tempo em que
indica uma proibição divina do homicídio.$

2 O pano de fundo teológico disto pode ser encontrado no livro do Êxodo. Deus deixa claro para Moisés que ninguém pode
ver a face de Deus, ou seja, que a face divina não é para ser vista e não está disponível para representação: “Você não
poderá ver a minha face, porque ninguém poderá ver-me e continuar vivo” (%%:&', para a tradução ao português foi
utilizada a versão NVI); posteriormente, Deus deixa claro que as costas poderão e irão substituir o rosto: “Então tirarei a
minha mão e você verá as minhas costas; mas a minha face ninguém poderá ver” (%%:&%). Mais tarde, quando Moisés
está carregando a palavra de Deus na forma dos mandamentos, está escrito “Quando Arão e todos os israelitas viram
Moisés com o rosto resplandecente, tiveram medo de aproximar-se dele” (%(:%'). Mas o rosto de Moisés carregando a
palavra divina também não é para ser representado. Quando Moisés retorna ao seu lugar humano, ele pode mostrar seu
rosto: “Quando acabou de falar com eles, cobriu o rosto com um véu. Mas toda vez que entrava para estar na presença do
Senhor e falar com ele, tirava o véu até sair. Sempre que saía e contava aos israelitas tudo o que lhe havia sido ordenado,
eles viam que o seu rosto resplandecia. Então, de novo Moisés cobria o rosto com o véu até entrar de novo para falar com
o Senhor”. Agradeço Barbara Johnson

por chamar minha atenção a essas passagens.

/ Levinas escreve: “Mas aquele rosto olhando em direção a mim, em sua expressão – em sua mortalidade

– convoca-me, demanda-me, ordena-me: como se a morte invisível enfrentada pelo rosto do outro... fosse um ‘problema

meu’. Como se, desconhecido pelo outro que já, na nudez de seu rosto, ele afeta, ele ‘me
156
20 Vida precária

Um pouco antes, em Peace and proximity, Levinas re!ete sobre a vocação da Europa e
se questiona se o “não matarás” não é precisamente o que deveria apreender do próprio
sentido da cultura europeia. Não "ca muito claro onde exatamente sua Europa começa e
termina, se ela tem fronteiras geográ"cas ou se

4 produzida toda vez que esse mandamento é pronunciado ou comunicado. Essa já é uma
Europa curiosa cujo signi"cado é conjecturado no sentido de consistir nas palavras do Deus
hebreu, cujo status civilizacional, tomado dessa maneira, depende da transmissão de
interditos bíblicos. É uma Europa, portanto, na qual o hebraísmo tomou o lugar do
helenismo e o Islã permanece sem voz. Talvez o que Levinas esteja nos dizendo é que a
única Europa que deva ser chamada de Europa seja aquela que eleva o Velho Testamento
acima da lei civil e secular. De qualquer maneira, ele parece estar retornando ao primado
da interdição na construção do próprio signi"cado de civilização. E muito embora possamos
ser tentados a entender isso como um eurocentrismo nefasto, também é importante
perceber que não há uma Europa reconhecível que possa ser apreendida dessa visão. Na
verdade, não é a existência da interdição do assassinato que faz da Eu-ropa Europa, mas a
ansiedade e o desejo que a interdição produz. À medida que continua a explicar como o
mandamento opera, ele se refere ao Gênesis, capítulo

#$, no qual Jacó "ca sabendo sobre a chegada iminente de seu irmão e rival Esaú. Levinas
escreve: “Jacó "ca inquieto com a notícia de que seu irmão Esaú – amigo ou inimigo – está
vindo encontrá-lo à frente de quatrocentos homens. O verso oito nos conta que ‘Jacó
estava perturbado em seu espírito e com muito medo’”. Nesse momento, Levinas se volta
ao comentador Rashid para captar a diferença entre medo e ansiedade e conclui que
“[Jacó] temia por sua própria morte, mas estava ansioso por saber que talvez tivesse que
matar” (%&').

Obviamente, ainda permanece obscuro por que Levinas assumiria que uma das
primeiras respostas à precariedade do Outro é o desejo de matar. Por que a tensão das
omoplatas, o pescoço esticado, a vocalização agonizada, que comuni-cam o sofrimento do
outro, poderiam gerar em alguém um desejo por violência? Deve ser porque aquele Esaú,
juntamente com seus quatrocentos homens, ame-aça me matar – ou, pelo menos, aparenta
que irá me matar – e, nessa relação com o outro ameaçador ou, de fato, com aquele rosto
que representa a ameaça,

reportasse’ antes mesmo de confrontar-se comigo, antes de se tornar a morte que me encara, a mim mesmo, face
a face. A morte do outro homem coloca -me sob pressão, chama-me à responsabilidade, como se eu, pela minha
possível indiferença, tornasse-me cúmplice daquela morte, invisível ao outro que

5 exposto a ela; como se mesmo antes de ser condenado, tivesse que responder pela morte do
outro, e não deixa-lo só em sua solidão mórbida”. Levinas em Emmanuel, Alterity and
transcendence. New York: Columbia University Press, %(((, p. $'-).
157
1 Judith Butler 21

eu devo me defender a !m de preservar minha vida. No entanto, Levinas explica que


assassinar em nome da autopreservação não é justi!cável, pois a autopreser-vação nunca
é uma condição su!ciente para a justi!cação ética da violência. Isso parece, portanto, com
um paci!smo extremado, um paci!smo absoluto e é bem provável que o seja. Podemos ou
não aceitar essas consequências, mas devemos considerar o dilema que elas apresentam
constitutivas da ansiedade ética: “Te-meroso por sua própria vida, mas ansioso pela
probabilidade de ter que matar”. Há temor sobre sua própria sobrevivência e há ansiedade
em razão da possibili-dade de se machucar o Outro e esses dois impulsos estão em
guerra, como dois irmãos gêmeos a lutar. No entanto, estão em guerra a !m de não ter que
lutar e esse parece ser o ponto importante, pois a não violência que Levinas parece
promover não advém de um lugar pací!co; no entanto, pelo contrário, surge de uma
constante tensão entre o medo de ser submetido à violência e ser obrigado a in"igir
violência. Eu poderia colocar um !m ao medo de minha própria morte simplesmente
obliterando o outro, muito embora isso !zesse com que fosse obri-gado a continuar
destruindo, especialmente se atrás do outro exista quatrocentos homens, todos
possuidores de famílias e amigos, ou até mesmo uma ou duas na-ções. Eu poderia colocar
um !m em minha ansiedade de me tornar um assassino por meio de uma reconciliação com
a justi!cativa ética para in"igir violência e morte quando me encontro em condições
adversas. Poderia lançar mão do cál-culo utilitário ou apelar para os direitos intrínsecos do
indivíduo de proteger e preservar seus próprios direitos. Podemos imaginar o uso de ambas
as justi!cati-vas: consequencialista e deontológica, as quais me forneceriam toda justi!cativa
de que necessito para in"igir violência de forma justa. Uma consequencialista poderia
argumentar que seria pelo bem de muitos. Uma deontologista poderia apelar para o
intrínseco valor de sua própria vida. Ambas poderiam também ser utilizadas para disputar a
primazia da interdição do assassinato, a qual – no en-tanto – faria com que eu continuasse
a sentir minha ansiedade.

Embora Levinas aconselhe que a autopreservação não seja razão boa o su-!ciente
para matar, ele também presume que o desejo de matar é primário em todo ser
humano. Se o primeiro impulso em relação à vulnerabilidade do outro

i) o desejo de matar, a injunção ética que dele decorre é precisamente militar contra esse
primeiro impulso. Em termos psicanalíticos, isso implicaria em fa-zer convergir o desejo de
matar em direção a um desejo interno de matar a própria agressividade e o senso de
colocar-se a si mesmo como prioridade. O re-sultado disso seria provavelmente neurótico,
mas pode ser que a psicanálise en-contre um limite nesse ponto. Para Levinas, é o ético
mesmo que salva alguém do circuito da má consciência, a lógica pela qual a proibição
contra agredir se
158
22 Vida precária

torna o conduto interno para a agressão dela mesma. A agressão, assim, se volta contra
ela mesma na forma de crueldade do superego. Se o ético nos move além da má
consciência é porque esta é, a!nal, apenas uma versão negativa do nar-cisismo e, assim,
ainda uma forma de narcisismo. A face do Outro vem a mim de fora e interrompe aquele
circuito narcisista. A face do Outro me chama para fora do narcisismo em direção a algo
!nalmente mais importante.

Levinas escreve:

O Outro é o único ser que eu posso desejar matar. Eu posso desejar. E, no en-
tanto, esse poder é exatamente o contrário do poder. O triunfo desse poder é
sua derrota enquanto poder. No exato momento em que meu poder de ma-tar
se realiza, o outro escapou de mim... Eu não olhei em seu rosto, eu não
encontrei seu rosto. A tentação da negação total... esta é a presença do rosto.
Estar em relação face a face com o outro é ser incapaz de matar. Também é a
situação do discurso. (")

Também é a situação do discurso...

Esta última a!rmação não está aqui de graça. Levinas explica em uma en-trevista
que “rosto e discurso estão amarrados. Ele fala e é nisso que se torna possível e que
começa todo discurso” (#$). Uma vez que o que o rosto diz é

“não matarás”, poderia parecer que é por meio desse mandamento primário que a fala
passa a existir, de tal maneira que a fala inicia sua existência enquanto pano de
fundo para esse possível homicídio. De maneira mais geral, o discurso nos faz uma
reivindicação ética precisamente porque, antes da fala, algo nos é dito. De forma
simples, e talvez não exatamente como Levinas pretendia, somos primeiro dirigidos,
reportados por um Outro, antes mesmo que assumamos a linguagem para nós.
Assim, portanto, podemos concluir que é somente na condição de sermos remetidos
a um discurso que podemos, então, fazer uso da linguagem. É nesse sentido que o
Outro é a condição do discurso. Se o Outro for anulado, também o será a linguagem,
uma vez que esta não pode sobreviver fora da condição do discurso.

No entanto, lembremo-nos que Levinas também nos disse que o rosto – que é o
rosto do Outro e, portanto, a demanda ética feita pelo Outro – é aquela vocalização da
agonia que ainda não é exatamente linguagem, ou não mais linguagem, por meio da
qual somos despertados para a precariedade da vida do Outro e que também levanta,
ao mesmo tempo, a tentação de cometer ho-micídio e a sua interdição. Por que seria,
então, que a inabilidade em matar seja a situação do discurso? Seria em razão de que
a tensão entre o medo pela própria vida e ansiedade pela possibilidade de se tornar
homicida constitui a
159
1 Judith Butler 23

ambivalência que é a situação do discurso? Esta é uma situação na qual so-mos


remetidos, na qual o Outro lança a linguagem em nossa direção. Essa linguagem
comunica a precariedade da vida que estabelece a tensão perma-nente da ética da
não violência. A situação do discurso não é exatamente a mesma daquilo que é dito
ou, de fato, daquilo que pode ser dito. Para Levinas, a situação do discurso consiste
no fato de que a linguagem chega como um endereçamento que não desejamos e
pelo qual somos, num sentido original, capturados, para não dizer – segundo os
termos do próprio Levinas – feito cativos. Portanto, já há certa violência quando somos
remetidos a um discurso, nomeados, submetidos a uma série de imposições,
compelidos a responder a uma alteridade exigente. Ninguém pode controlar os termos
segundo os quais o discurso nos é remetido, pelo menos não em sua forma mais
fundamental. Ser submetido ao discurso é, já de início, ser despido de vontades e
sentir esta privação como a base de sua própria situação no discurso.

No interior do enquadramento ético da posição levinasiana, começamos por postular


uma díade. No entanto, a esfera da política, em seus termos, é aquela na qual sempre há
mais de dois sujeitos contracenando na mesma cena. De fato, eu posso decidir não invocar
meu próprio desejo de preservar minha vida como jus-ti!cativa para a violência, mas e se a
violência é cometida contra alguém que eu amo? E se há um Outro que comete violência
contra um segundo Outro? A qual Outro eu respondo eticamente? Qual Outro eu coloco
antes de mim? Ou, então, eu !co de lado? Derrida a!rma que tentar responder a todo Outro
pode resultar apenas em uma situação de radical irresponsabilidade. E os espinozistas,
nietzs-chianos, os utilitaristas e os freudianos perguntam: “Posso invocar o imperativo para
preservar a vida do Outro mesmo se eu não puder invocá-lo para preservação de minha
própria?” E seria mesmo possível evitar a autopreservação na maneira que Levinas
sugere? Espinoza escreve em Ética que o desejo de viver a vida correta requer que haja
desejo de viver, de persistir na própria existência, sugerindo que a ética deve sempre
ordenar alguns instintos vitais, mesmo se, como um estado superegoico, a ética ameace se
tornar uma cultura pura da pulsão de morte. É pos-sível, e mesmo fácil, ler Levinas como
um masoquista elevado e não nos ajuda a evitar essa conclusão se considerarmos que,
quando perguntado o que ele achava da psicanálise, ele teria respondido: não é ela uma
forma de pornogra!a?

Mas a razão para levar Levinas em consideração no contexto de hoje é, pelo menos,
dupla. Primeiro, ele nos fornece uma maneira de pensar a respeito da relação entre
representação e humanização, uma relação que não é assim tão direta quanto poderíamos
gostar de pensar. Se o pensamento crítico tem algo a dizer sobre ou para a presente
situação, pode muito bem sê -lo no domínio
160
24 Vida precária

da representação, no qual humanização e desumanização ocorrem sem cessar. Segundo,


ele oferece, no interior de uma tradição da !loso!a judaica, uma ex-plicação para a relação
entre violência e ética que tem importantes implicações a !m de tentar pensar o que poderia
ser uma ética judaica de não violência. Isso me ocorre como uma questão urgente e
extremamente relevante para muitos de nós, especialmente aqueles entre nós que apoiam
o momento emergente do pós-sionismo dentro do judaísmo. Por ora, eu gostaria de
reconsiderar primeiro a problemática da humanização se abordada a partir da !gura do
rosto.

Quando consideramos as formas comuns de que nos valemos para pensar so-bre
humanização e desumanização, deparamo-nos com a suposição de que aqueles que ganham
representação, especialmente autorepresentação, detêm melhor chan-ce de serem
humanizados. Já aqueles que não têm oportunidade de representar a si mesmos correm grande
risco de ser tratados como menos que humanos, de serem vistos como menos humanos ou, de
fato, nem serem mesmo vistos. Temos um pa-radoxo diante de nós, pois Levinas deixou claro
que o rosto não é exclusivamente um rosto humano e, mesmo assim, é uma condição para a
humanização." Por ou-tro lado, há o uso do rosto, no interior da mídia, no sentido de efetivar a
desumani-zação. Poderia parecer que a personi!cação nem sempre humaniza. Para Levinas, ela
pode muito bem evacuar o rosto que não humaniza; e eu espero mostrar que a personi!cação às
vezes opera sua própria desumanização. Como podemos chegar a saber a diferença entre o
rosto inumano, porém humanizador, para Levinas, e a desumanização que também pode ocorrer
por meio do rosto?

Talvez tenhamos que pensar sobre as diferentes maneiras em que a violência pode
acontecer: uma é precisamente por meio da produção do rosto, o rosto de Osama bin
Laden, o rosto de Yasser Arafat, o rosto de Saddam Hussein. O que foi feito com esses
rostos pela mídia? Eles estão enquadrados, certamente, mas também estão jogando com
esta moldura e atuando para ela. O resultado disso

invariavelmente tendencioso. São retratos da mídia que são geralmente mano-bras a


serviço da guerra, como se o rosto de Bin Laden fosse o próprio rosto do terror, como se
Arafat fosse o rosto do engano e como se o rosto de Saddam Hus-sein fosse o rosto da
tirania contemporânea. Então, há o rosto de Colin Powell, na forma em que é enquadrado e
colocado para circular, sentado diante de um encoberto Guernica de Picasso: um rosto em
primeiro plano, diga-se de passa-gem, contra um pano de fundo de destruição. Depois, há
os rostos das meninas

6 Levinas faz distinção algumas vezes entre o “semblante” entendido como o rosto dentro de uma experi-ência
perceptiva, e o “rosto” cujas coordenadas são entendidas como a transcender o campo perceptivo. Ele também
fala de vez em quando sobre representações “plásticas” do rosto que obliteram o rosto. Para o rosto operar
enquanto rosto, ele deve vocalizar ou ser entendido como resultado de uma voz.
161
1 Judith Butler 25

afegãs que tiraram, ou deixaram cair, suas burcas. Em uma semana do inverno passado,
visitei um teórico político que orgulhosamente exibia os rostos dessas meninas em sua
geladeira, exatamente ao lado de alguns cupons de supermerca-do, como se ali
estivessem como um sinal do sucesso da democracia. Alguns dias depois, participei de
uma conferência na qual escutei uma fala sobre os impor-tantes signi!cados culturais da
burca, a forma como exprime pertencimento a uma comunidade e religião, uma família,
uma história de relações de parentesco, um exercício de modéstia e orgulho, uma proteção
contra a vergonha e também como opera como um véu atrás do qual, e por meio do qual, a
agência feminina pode funcionar e, efetivamente, funciona. " O medo do palestrante era de
que a destruição da burca – como se ela fosse um símbolo de repressão, atraso ou mesmo
de resistência à própria modernidade cultural – resultaria numa per-da signi!cativa da
cultura islâmica e uma extensão dos pressupostos culturais dos Estados Unidos no tocante
a como sexualidade e agência devem ser organi-zadas e representadas. De acordo com as
fotos triunfalistas que dominaram as primeiras páginas do New York Times, essas jovens
mulheres estampavam suas faces “nuas” como um ato de liberação, um ato de
agradecimento ao exército dos Estados Unidos e como uma expressão de prazer que há
muito pouco se tornara euforicamente permitida. O leitor norte-americano estava pronto
para ver o ros-to e foi para a câmera e por ela que o rosto foi, !nalmente, exposto,
tornando-se assim, no instante de um segundo, um símbolo do sucesso em se empreender
a exportação do progresso cultural americano. Isso nos !cou claro naquele ins-tante e nós
estávamos, por assim dizer, com a posse do rosto. Nossas câmeras não apenas o
capturaram, mas nós mesmos !zemos com que o rosto capturasse nosso triunfo e que ele
agisse como a rationale a favor de nossa violência, nossa incursão na soberania alheia, da
morte de civis. Onde está a perda nesse rosto? E onde está o sofrimento causado pela
guerra? De fato, o rosto capturado pela câmera parecia ocultar ou deslocar o rosto no
sentido levinasiano, uma vez que nós não vimos ou escutamos, por meio daquele rosto,
nenhuma vocalização de lamento ou agonia, nem mesmo algum ruído da precariedade da
vida.

Portanto, aparentemente estamos delineando certa ambivalência. De forma estranha,


todos esses rostos humanizam os eventos ocorridos no espaço deste último ano ou pouco
mais. Eles dão uma face humana às mulheres afegãs. Eles fornecem um rosto para o
terror. Eles dão um rosto ao mal. No entanto, é esse rosto humanizador em todas as suas
instâncias? E se ele é humanizador em

JJ. Lila Abu-Lughod, Do Muslim Women Really Need Saving? Anthropological re#ections on
cultural rela-tivism and others, American Anthropologist ($%&: '), p. ()'-"%.
162
26 Vida precária

algumas instâncias, de que forma essa humanização ocorre? Há também algu-ma


desumanização desempenhada no e através do rosto? Será que encontramos esses rostos
no sentido levinasiano, ou são eles, em vários sentidos, imagens que, através de suas
molduras, produzem o paradigmaticamente humano, se tornam os meios culturais por meio
dos quais o paradigmaticamente humano é estabe-lecido? Embora seja tentador pensar
que as imagens por si mesmas estabeleçam a norma visual para o humano, aquela que
deva ser emulada ou incorporada, isso seria um erro, uma vez que no caso de Bin Laden
ou Saddam Hussein o pa-radigmaticamente humano é entendido como residindo fora da
moldura. Este

7 o rosto humano em sua deformidade, em seu extremo, não aquele com o qual somos
convidados a nos identi!car. De fato, é a não identi!cação que é inci-tada por meio da
absorção hiperbólica do mal no próprio rosto, nos olhos. E se nós iremos nos entender
enquanto interpelados de alguma maneira por e nessas imagens, é precisamente como o
observador não representado, aquele que olha de fora, aquele que não é capturado por
imagem alguma, mas cujo papel é capturar e subjugar, se não eviscerar, as imagens à
mão. Similarmente, embora possamos querer celebrar os rostos recém -descobertos das
jovens mu-lheres afegãs como uma celebração do humano, temos que perguntar para qual
função narrativa essas imagens são mobilizadas, se a incursão no Afeganistão foi
realmente feita em defesa do feminismo, e em que forma de feminismo ela, mais tarde, se
fantasiou. Ainda mais importante, parece que devemos perguntar quais cenas de dor e
lamento essas imagens cobrem e desfazem. De fato, todas essas imagens parecem
suspender a precariedade da vida; elas ou representam o triunfo americano ou promovem
um incitamento ao triunfo militar america-no no futuro. Elas são os despojos de guerra ou
são os alvos da guerra. E, nesse sentido, podemos dizer que o rosto é, em cada ocasião,
des!gurado e isto é uma das consequências !losó!cas e representacionais da própria
guerra.

importante fazer distinção entre casos de não representatividade. Em primeira


instância, há a visão levinasiana segundo a qual existe um “rosto” que nenhum rosto pode
exaurir completamente, o rosto entendido enquanto sofrimento humano, como um clamor
do sofrimento humano do qual não é possível ter uma representação direta. Aqui, o “rosto”
é sempre a !gura de algo que não é literalmente um rosto. Outras expressões humanas,
entretanto, parecem ser representáveis como um rosto, embora não sejam rostos, mas sim
sons ou emissões de outra ordem. O clamor que é representado por meio da !gura do rosto

7 um que confunde os sentidos e produz uma comparação claramente imprópria: isso não
pode estar certo, uma vez que o rosto não é um som. E, mesmo assim, o rosto pode !gurar
como som justamente por não ser o som. Nesse sentido, a !gu-ra delineia a
incomensurabilidade do rosto com qualquer que seja aquilo que ele
163
1 Judith Butler 27

represente. Estritamente falando, portanto, o rosto não representa nada, no


sentido de que falha na captura e entrega daquilo a que ele se refere.

Para Levinas, portanto, o humano não é representado pelo rosto. Pelo con-
trário, o humano é indiretamente a!rmado exatamente nessa disjunção que tor-na
a representação impossível, e essa disjunção é exprimida na representação
impossível. Para a representação exprimir o humano, portanto, ela deve não
apenas falhar, mas deve mostrar sua falha. Há algo de irrepresentável que nós,
não obstante, perseguimos representar e esse paradoxo deve ser absorvido nas
representações que realizamos.

Nesse sentido, o humano não é identi!cado com aquilo que é representado, mas –
da mesma forma – não o é com o irrepresentável. O humano é, ao con-trário, aquilo
que limita o sucesso de qualquer prática representacional. O rosto não é “apagado”
nessa falha de representação, mas é constituído exatamente nessa possibilidade.
Algo no geral diferente acontece, entretanto, quando o ros-to opera a serviço de uma
personi!cação que alega conseguir capturar o ser humano em questão. Para Levinas,
o humano não pode ser capturado por meio da representação e pode -se perceber
que alguma perda do humano acontece quando ele é capturado pela imagem. "#

Um exemplo dessa forma de “captura” ocorre quando o mal é personi!cado por


meio do rosto. Certa comensurabilidade é declarada entre o mal ostensi-vo e o rosto.
Esse rosto é maligno, e o mal que o rosto é se estende ao mal que pertence aos
humanos em geral, mal generalizado. Nós personi!camos o mal ou o triunfo militar por
meio de um rosto que deve supostamente ser, capturar, conter a própria ideia que ele
representa. Nesse caso, não podemos escutar o rosto através do rosto. O rosto aqui
mascara os sons do sofrimento humano e a proximidade que poderíamos ter da
própria precariedade da vida.

O rosto que está lá, no entanto, aquele cujo signi!cado é retratado


como a forma do mal, é precisamente aquele que não é humano, não
no sentido levi-nasiano. O “eu” que vê o rosto não se identi!ca com
ele: o rosto representa algo com o que nenhuma identi!cação é
possível, uma realização da desumanização e uma condição para a
violência.

Obviamente, uma elaboração mais profunda deste tópico teria que analisar as
várias maneiras pelas quais a representação funciona em relação à huma-nização e à
desumanização. Às vezes há imagens triunfalistas que nos dão a ideia do humano
com que devemos nos identi!car, como por exemplo o herói

"# Para uma discussão mais extensa da relação entre imagens de mídia e sofrimento humano, ver o provo-cativo

livro de Susan Sontag Regarding, the pain of others, New York: Farrar-Straus e Giroux, $##$.
164
28 Vida precária

patriótico que expande as fronteiras de nosso ego euforicamente até que se en-contre com
aquela da própria nação. Nenhuma compreensão da relação entre imagem e humanização
pode ocorrer sem uma consideração das condições e signi!cados dos processos de
identi!cação e desidenti!cação. É válido notar, entretanto, que a identi!cação sempre se
baseia na diferença que busca superar, e seu propósito é alcançado apenas por meio da
reintrodução da diferença que ela alega ter feito desaparecer. Aquele com quem me
identi!co não sou eu e esse

“não sendo eu” é a condição da identi!cação. Caso contrário, como Jacqueline Rose
nos lembra, a identi!cação rui, se perde na identidade, o que prenuncia a morte da
própria identidade."" Essa diferença interna à identi!cação é crucial e, em certo sentido,
ela nos mostra que a desidenti!cação é parte da prática comum da própria
identi!cação. A imagem triunfalista pode comunicar uma impossível superação dessa
diferença, uma forma de identi!cação que acredita ser obrigada a superar a diferença
que é a condição de sua própria possibilidade. A imagem crítica, se podemos falar
desse modo, trabalha essa diferença da mes-ma forma que a imagem levinasiana o
faz; deve não apenas falhar em capturar seu referente, mas mostrar essa falha.

A exigência por uma imagem mais verdadeira, por mais imagens, por ima-gens
que comuniquem todo o terror e realidade do sofrimento tem seu lugar e importância.
O apagamento daquele sofrimento por meio da proibição de imagens e
representações geralmente circunscreve a esfera da aparência, da-quilo que podemos
ver e daquilo que podemos saber. No entanto, seria um erro pensar que apenas
precisamos encontrar as imagens certas e verdadeiras e que, dessa maneira, certa
realidade será exprimida. A realidade não é exprimida por aquilo que está
representado no interior da imagem, mas sim por meio do desa-!o à representação
que a realidade entrega."#

O processo de esvaziamento do humano feito pela mídia por meio da ima-gem deve ser
entendido, no entanto, nos termos do problema mais amplo de que esquemas normativos
de inteligibilidade estabelecem aquilo que será e não será humano, o que será uma vida
habitável, o que será uma morte passível de ser lamentada. Esses esquemas normativos
operam não apenas produzindo ideais do humano que fazem diferença entre aqueles que
são mais e os que são menos humanos. Às vezes eles produzem imagens do menos que
humano, à guisa do humano, a !m de mostrar como o menos humano se disfarça e ameaça

8 Para uma discussão de “fracasso” como base para uma concepção psicanalítica da psique, ver
Jacqueline Rose, Sexuality in the Field of Vision. London: Verso, "$%&, p. $"-'.
"# Levinas escreve: “alguém pode dizer que o rosto não é ‘visto’. Ele é o que não se pode tornar um conteúdo, o qual

o pensamento poderia reconhecer; ele é incontível, ele conduz para além” (El, p. %&-().
165
1 Judith Butler 29

enganar aqueles de nós que poderiam pensar que conseguem reconhecer outro humano
ali, naquele rosto. Mas muitas vezes esses esquemas normativos fun-cionam precisamente
sem fornecer nenhuma imagem, nenhum nome, nenhu-ma narrativa, de forma que ali
nunca houve morte tampouco houve vida. Estas são duas formas distintas de poder
normativo: um opera produzindo uma iden-ti!cação simbólica do rosto com o inumano, por
meio da forclusão de nossa apreensão do humano na cena. A outra funciona por meio de
um apagamento radical, como se nunca tivesse existido um humano, nunca houvesse
existido uma vida ali, e, portanto, nunca tivesse acontecido nenhum homicídio. No pri-meiro
caso, algo que já emergiu no domínio da aparência precisa ser disputado como
reconhecidamente humano. No segundo, o domínio público da aparência

9 ele mesmo constituído com base na exclusão daquela imagem. A tarefa às mãos é
estabelecer modos públicos de ver e ouvir que possam responder ao clamor do
humano no interior da esfera da aparência, uma esfera na qual os rastros do clamor
se tornaram hiperbolicamente in"ados ou totalmente oblite-rados a !m de racionalizar
um nacionalismo glutão, onde ambas as alternativas se revelam a mesma. Podemos
considerar isso uma das implicações !losó!cas e representacionais da guerra, pois a
política – e o poder – funcionam em parte por meio da regulação daquilo que pode
aparecer, daquilo que pode ser ouvido.

Obviamente, esses esquemas de inteligibilidade são tácita e forçosamente impostos


pelas corporações que monopolizam o controle sobre a mídia hege-mônica com forte
interesse em manter o poderio militar dos Estados Unidos. A cobertura da guerra revelou a
necessidade de um amplo processo de quebra de monopólio dos interesses da mídia. A
legislação para esse !m foi, como era pre-visível, altamente contestada em Capitol Hill.
Pensamos nesses interesses como direitos de controle sobre propriedade, mas eles são
também, simultaneamente, aqueles que decidem o que será e o que não será reconhecido
publicamente como realidade. Eles não mostram violência, mas há uma violência na
moldura do que é mostrado. Esta violência é o mecanismo por meio do qual certas vidas e
certas mortes permanecem não representadas ou são representadas de manei-ras que
efetivam sua captura (mais uma vez) pelo esforço de guerra. A primeira

9 um apagamento por meio da oclusão. A segunda é um apagamento


por meio da própria representação.
Qual a relação entre a violência pela qual foram perdidas essas vidas “não passíveis de
serem lamentadas” e a proibição do seu lamento público? Seria a proibição desse lamento
uma continuação da própria violência? E a proibição desse lamento público demanda um
controle rígido na reprodução de palavras e imagens? Como essa proibição do lamento
emerge como circunscrição da re-presentatividade de maneira que nossa melancolia
nacional pode ser encaixada
166
30 Vida precária

perfeitamente na moldura daquilo que pode ser dito, daquilo que pode ser mos-trado?
Não é este o ponto onde podemos ler, se ainda podemos ler, a forma como a
melancolia se torna inscrita como o limite do que pode ser pensado? O desfazer da
percepção da perda – a insensibilidade humana à dor e ao sofrimen-to – torna-se o
mecanismo por meio do qual a desumanização se consuma. Este desfazer da
percepção não se consuma nem dentro, nem fora da imagem, mas através da própria
moldura que contém a imagem.

Na campanha inicial da guerra contra o Iraque, o governo dos Estados Uni-dos


propagandeou seus feitos militares como um efeito visual esmagador. Que o governo e o
exército americanos tenham nomeado essa operação estratégia sho-ck and awe sugere
que eles estavam produzindo um espetáculo visual que entor-pece os sentidos e, como o
próprio sublime, anula a capacidade de pensar. Essa produção ocorre não apenas para a
população iraquiana no solo em que se dá o combate – e cujos sentidos são supostamente
“mortos” por esse espetáculo –, mas também para os consumidores da guerra que se !am
na CNN ou na FOX, a rede de televisão que regularmente entremeia a sua cobertura da
guerra com chamadas que alegam ser a emissora a fonte “mais con!ável” para notícias so-
bre a guerra. A estratégia “shock and awe” procura não apenas produzir uma di-mensão
estética da guerra, mas explorar e instrumentalizar o efeito visual como parte da própria
estratégia de guerra. A CNN proveu grande parte dessa estética visual. E o New York
Times, embora mais tarde tenha se posicionado contra a guerra, também adornou suas
primeiras páginas diariamente com imagens ro-mânticas de material bélico militar em
contraste ao sol poente iraquiano ou de

“bombas explodindo no ar” sobre as ruas e casas de Bagdá (as quais, não surpre-
endentemente, são ocluídas da visão). Obviamente, foi a espetacular destruição do
World Trade Center que primeiro legitimou o efeito “shock and awe”, e os Es-tados
Unidos recentemente exibiram para o mundo inteiro ver que eles podem e serão
igualmente destrutivos. A mídia se vê extasiada com a sublimidade da destruição e
vozes de dissenso e oposição devem achar uma forma de intervir nessa máquina de
sonho de dessensibilizar na qual a destruição massiva de ca-sas e vidas, fontes de
água, eletricidade e calor são produzidas como um sinal desvairado de um poder
americano ressuscitado.

De fato, as fotos impactantes de soldados norte-americanos mortos e deca-pitados no


Iraque e as fotos de crianças mortas e mutiladas por bombas ame-ricanas foram recusadas
pela mídia mainstream, suplantadas por sequências de cenas que sempre mostram vistas
aéreas cuja perspectiva é estabelecida e mantida pelo poder estatal. No entanto, no
momento em que corpos daqueles executados pelo regime de Saddam foram descobertos,
eles foram imediata-mente parar na capa do New York Times, uma vez que esses corpos,
sim, devem
167
1 Judith Butler 31

ser lamentados. O ultraje causado por suas mortes justi!ca o esforço de guerra,

12 medida que esse esforço se direciona à sua fase administrativa, a qual


muito pouco difere daquilo que, comumente, é chamado “ocupação”.

Tragicamente, parece que os Estados Unidos buscam antecipar-se à possi-bilidade de


sofrer violência cometendo violência primeiro. No entanto, a vio-lência que temem é aquela
que engendram. Não quero com isso a!rmar que os Estados Unidos são os responsáveis
pelos ataques aos seus cidadãos. Também não desculpo homens-bomba palestinos,
independentemente das terríveis con-dições que animam seus atentados homicidas. Há, no
entanto, alguma distância entre viver em condições terríveis, sofrer lesões sérias e até
mesmo insuportá-veis e realizar ataques homicidas. O presidente Bush percorreu essa
distância rapidamente, convocando um “!m do lamento” após apenas dez dias de luto
exibicionista. O sofrimento pode produzir uma experiência de humildade, de
vulnerabilidade, de impressionabilidade e de dependência, e todas essas expe-riências
podem se tornar recursos se não decidirmos resolvê -las muito rapida-mente. Elas podem
nos mover para além e contra a vocação da vítima paranoica que regenera in!nitamente as
justi!cativas para a guerra. Trata -se tanto de lu-tar eticamente contras os próprios impulsos
homicidas – impulsos que visam amainar um medo esmagador –, quanto de apreender o
sofrimento dos outros e levar em conta o sofrimento que também se in"igiu.

Na guerra do Vietnã foram as fotos de crianças queimando e morren-do em razão


do napalm que geraram no público americano um senso de choque, indignação,
remorso e pesar. Eram precisamente fotos que não de-veríamos ter visto. Elas
interromperam o campo visual e todo o senso de identidade pública que havia sido
construída com base naquele campo. As imagens mobiliavam uma realidade, mas
também mostraram uma realida-de que interrompia o campo hegemônico da própria
representação. A des-peito de sua efetividade gráfica, as imagens apontavam para
outro lugar, para além delas mesmas, para uma vida e uma precariedade que elas
não conseguiam mostrar. Foi dessa apreensão da precariedade daquelas vidas que
destruíamos que muitos americanos vieram a desenvolver um impor-tante e vital
consenso contra a guerra. No entanto, se continuarmos a des-considerar as palavras
que nos entregam essa mensagem, e se a mídia não fizer essas imagens correr, e se
essas vidas continuarem inominadas e não lamentadas, se elas não aparecerem em
toda sua precariedade e destruição, não nos emocionaremos com elas. Não
retornaremos àquele senso de indig-nação ética que é, distintivamente, para um Outro
e em nome de um Outro. Não é possível, nas condições contemporâneas de
representação, escutar o
168
32 Vida precária

clamor agonizante ou ser compelido ou chamado à responsabilidade pelo rosto.


Fomos deslocados do rosto, algumas vezes através da própria ima-gem do rosto, este
que é feito para expressar o inumano, o que já está morto, aquele que não é
precariedade e, portanto, não pode ser morto. Não obstan-te, esse é o rosto que
somos convocados a matar, como se livrando o mundo desse rosto nos faria voltar ao
humano em vez de consumar nossa própria inumanidade. Seria preciso escutar o
rosto à medida que ele fala em uma outra forma que a linguagem para entender a
precariedade da vida que está em jogo. No entanto, qual mídia nos permitirá saber e
sentir essa fragili-dade, saber e nos sentir nos limites da representação como essa é,
corren-temente, cultivada e mantida? Se as humanidades têm algum futuro como
crítica cultural, e a crítica cultural tem uma tarefa no presente momento, é, sem
dúvida, no sentido de nos fazer retornar ao humano aonde não espe-ramos encontrá-
lo, em sua fragilidade e nos limites de sua capacidade de fazer sentido. Teríamos que
interrogar a emergência e o desaparecimento do humano nos limites do que podemos
saber, do que podemos ouvir, do que podemos ver, do que podemos sentir. Isso pode
nos instigar a, afetiva-mente, revigorar os projetos intelectuais da crítica, do
questionamento, da tentativa de entender as dificuldades e demandas da tradução
cultural e do dissenso, e de criar um senso do público no qual vozes de oposição não
são temidas, degradadas ou descartadas, mas valorizadas pela instigação à de-
mocracia sensata que ocasionalmente realizam.

Referências bibliográ!cas

ABU-LUGHOD, Lila. Do Muslim Women Really Need Saving? Anthropological re!ec-tions on


cultural relativism and others, American Anthropologist ("#$: %), p. &'%-(#.

LEVINAS, Emmanuel. Alterity and transcendence. New York,


Columbia University Press, "(((.

.“Ética e In)nito”. Biblioteca de Filoso)a Contemporânea. Lisboa,


Edições &#, s/d.

. Ethics and In)nity, tradução para o inglês de Richard A. Cohen,


Pittsburgh, Duquesne University Press, "('*, p. '&.

. “Peace and Proximity”. Basic Philosophical Writings. Editado


por Adriaan T. Peperzak, Simon Critchley e Rober Bernasconi.
Bloomington, Indiana University Press, "((+.

. Totality and In)nity: An Essay on Exteriority. Pittsburgh,


Duquesne University Press, "(+(.
169
1 Judith Butler 33

e Kerney, Richard. “Dialogue with Emmanuel Levinas”. Face to Face with Levi-
nas. Albany, SUNY Press, !"#$.

ROSE, Jacqueline. Sexuality in the Field of Vision. London, Verso, !"#$.

SONTAG, Susan. Regarding the pain of others. New York, Farrar-Straus e Giroux, %&&%.

Como citar este artigo:

BUTLER, Judith. Vida precária. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar.


São Carlos, Departamento e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
UFSCar, %&!!, n.!, p. !'-''.
170
Exclusão social e violência doméstica: que
relação? *

Isabel Dias

Resumo: A exclusão social e a violência doméstica constituem


fenómenos complexos e multifacetados não se esgotando o seu estudo
na identificação de algumas variáveis mais prováveis para a sua ocor-
rência. Embora sejam fenómenos cuja visibilidade é maior entre os
indivíduos e as famílias com fracos recursos económicos e culturais,
a exclusão social e a violência doméstica são fenómenos extensivos
a todas as classes sociais. No presente artigo, pretende-se problema-
tizar a existência de uma relação entre exclusão social e violência
doméstica, identificando-se as características gerais que partilham e
as configurações familiares que se revelam mais vulneráveis a estes
problemas sociais.

1. A exclusão social, tal como a violência doméstica,


constitui um fenómeno complexo e multifacetado, que inquieta as
instituições sociais e políticas. Sem serem fenómenos novos,
assumem, nos nossos dias, caracte- rísticas distintas das existentes
na sociedade tradicional. Nesta sociedade, "a maioria da população
encontrava-se imersa na pobreza... e a vida não ofe- recia
alternativas" (Fernandes, 1991:9). Nas sociedades modernas, ela
dei- xou de afectar a maioria dos indivíduos, passando a ser
encarada não ape- nas como um estado que afecta uma pessoa
e/ou família com carências ao nível dos meios materiais básicos de
subsistência, mas corresponde, igual- mente, "a um estatuto social
particular, inferior e socialmente desvalorizado, marcando
profundamente a identidade daqueles que a experienciam"
(Paugam, 1991:15). De fenómeno generalizado nas sociedades
tradicionais,

* O presente artigo resulta, embora com novos desenvolvimentos, de uma comu-


nicação apresentada no I Congresso Português de Sociologia Económica realizado na
Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 4-6 de Março de 1998.

189
171

passou a afectar, nas sociedades modernas, sectores específicos da


popula- ção, em particular, aquela que se mantém à margem do
progresso econó- mico e da "partilha dos benefícios" (Paugam, 1996:9).
Naquelas nascia-se e morria-se pobre e esta condição era aceite com
resignação. Nas sociedades actuais o crescimento económico e o acesso
a melhores condições de vida tornou-se numa aspiração generalizada às
diversas classes sociais e, em par- ticular, àquelas que, até então,
"proporcionaram aos ricos a sua abundância" (Fernandes, 1991:29).
Nas sociedades modernas, os indivíduos concebem a sua existência
não como potenciais excluídos do trabalho e das sociabilidades sócio-
familiares, mas como integrados numa "pluralidade vasta, aberta e
mutável de estilos de vida, todos partilhando a cidadania" (Almeida,
1993:830). Ora, nos anos oitenta e noventa, a pobreza estalou com força
no contexto europeu. Não só se agravou o fosso entre países pobres e
ricos, como os países desenvolvi- dos tiveram que olhar para dentro e
"enfrentarem os problemas dos respec- tivos terceiros mundos
interiores" (Idem, 1993:831). A integração rápida das economias nacionais
na competição mundial, as reestruturações industriais de grande
amplitude, a precarização crescente da condição salarial a par do
crescimento do desemprego estrutural, arrastou consigo certos grupos
sociais que, doravante, ficaram mais expostos e se tornaram mais
vulnerá- veis às novas formas de pobreza e de marginalização (Strobel,
1996:201).
A pobreza e a exclusão social, embora não constituam
fenómenos novos na Europa, surgem como uma das grandes desilusões
da sociedade de abundância e do progresso. A prosperidade económica e
o desenvolvimento destas sociedades deveria proporcionar o bem estar
crescente da população, em geral, não deixando "por conta própria"
certos grupos sociais que con- tinuam à margem do bem estar e da
protecção social. O aumento do bem- estar não eliminou a inferioridade
sentida por aqueles que experimentam cer- tos estatutos sociais, nem a
dependência crescente de algumas famílias, com baixos rendimentos, face
aos serviços sociais. Nas sociedades democráticas, a persistência das
formas de pobreza e de exclusão social são contrárias ao ideal de
igualdade dos cidadãos relativamente aos direitos humanos mais
elementares. Independentemente do seu nível de desenvolvimento e do
ideal democrático e igualitário que preconizam existem, nas sociedades
modernas, processos que atiram para a exclusão uma parte da população
e que tornam esses indivíduos e grupos menos aptos privando-os, ao
mesmo tempo, de reconhecimento social e de dignidade. De desilusão
do progresso, a exclu- são social, devido à extensão, diversidade e
particularidade dos fenómenos sociais que abarca, reflecte, também, o
que as sociedades modernas possuem de mais contraditório. Ao mesmo
tempo que garantem aos cidadãos as con-

190
172

dições sociais que lhes permitem o exercício dos direitos


individuais, polí- ticos e sociais consagrados na Declaração
Universal, aquelas, ao sofrerem mutações profundas ao nível do
sistema produtivo e das políticas de emprego, na estrutura
familiar e nas práticas relacionais, iniciam um con- junto de
indivíduos e de categorias sociais nos chamados "itinerários de
exclusão"1 (Dubar, 1996:115).

2. A noção de pobreza é susceptível de gerar alguns


equívocos. A pobreza constitui uma dimensão ou forma de exclusão
social sem, no entanto, se confundir com aquela. "A pobreza é
entendida como exclusão dos esti- los de vida correntes e
aceitáveis na sociedade", mas também como uma forma de
"privação dos direitos de cidadania" (Fernandes, 1991:45). Existem
inúmeras formas de exclusão social que não estão directamente
associadas a situações de pobreza como, por exemplo, os menores
em risco, os delin- quentes, os toxicodependentes, os doentes
mentais, os doentes infectados pelo vírus da SIDA 2, os alcoólicos e
outros grupos vulneráveis, ainda que

1
Com a noção de "itinerários de exclusão" , Claude Dubar demonstra como é pos
sível reconstituir o processo de conjunto designado sob o termo de exclusão social. Através
da reconstituição destes "itinerários" consegue-se acompanhar a trajectória daqueles que
passaram, por exemplo, por processos de expulsão do emprego e de dissolução das rela
ções sócio-familiares. O acompanhamento destes "itinerários" (através de estudos longi
tudinais, em que a metodologia do inquérito por questionário é fundamental) permite a
reconstrução dos percursos típicos de exclusão social, bem como a identificação das popu
lações mais afectadas por aqueles "itinerários". Desta forma, a exclusão não é mais uma
fatalidade irreversível (o que tornaria o próprio termo inadequado e mesmo perigoso),
mas constitui uma série de encaminhamentos biográficos ligados a mecanismos estrutu
rais. Claude Dubar, "Socialisation et processus" in L 'Exclusion - L 'État des Savoirs, Serge
Paugam (dir.), Paris, La Découverte, pp. 111-119.
2
Os doentes infectados pelo vírus da SIDA correm sérios riscos de exclusão social.
Para o efeito, contribuem duas grandes características associadas a esta infecção: por um

lado, existe a representação colectiva de que se trata de uma epidemia e, por esta razão,
as pessoas infectadas são alvo de processos de rejeição e de discriminação, porque são
percebidas como um perigo para os outros; por outro lado, trata-se de uma patologia que,
apesar de se ter evoluído no seu conhecimento e tratamento, o prognóstico permanece
fatal para aqueles que contraem o vírus. O estigma da "morte" (lenta ou breve) pode des-
plotar reacções de fuga, rejeição e acelerar processos de marginalização social graves.
Embora a SIDA se encontre em contextos sociais dotados de elevados recursos econó
micos e culturais, a pobreza é considerada como um factor social de risco, na medida em
que o acesso à informação e aos cuidados básicos de saúde estão ligados a contextos de
vida deficitários. Neste caso, a infecção destas populações pelo vírus da SIDA vem ace
lerar os processos de vulnerabilização e de desafíliação social. Para um maior desenvol
vimento, ver Irene Théry e Sophie Tasserit, "Sida et exclusion" in L 'Exclusion — L 'État
des Savoirs, Serge Paugam (dir.), Paris, La Découverte, pp. 363-373.

191
173

a sua integração social seja muito precária. Definir um limiar a partir do qual as
necessidades básicas de um indivíduo ou família estão ameaçadas torna- se
difícil, até porque os seus critérios de definição variam de acordo com
condições históricas e culturais próprias de cada sociedade. Por esta razão, é
comum na literatura sociológica sobre o tema recorrer-se à distinção entre os
conceitos de pobreza absoluta e pobreza relativa. O primeiro diz respeito à falta
de rendimentos para assegurar as necessidades de subsistência, ou seja, à
incapacidade dos indivíduos e as famílias assegurarem as suas neces- sidades
básicas (Costa e Silva, 1985; Fernandes, 1991; Paugam, 1991; Capucha,
1998), tentando-se, por esta via, definir cientificamente uma linha de pobreza. O
segundo, refere-se aos padrões de vida, hábitos e actividades específicas de uma
sociedade e dos quais um conjunto de indivíduos/famí- lias se encontram
privados. Neste contexto, a ideia dominante é a da exclu- são dos níveis de vida
socialmente definidos e reconhecidos como normais (Fernandes, 1991; Strobel,
1996; Capucha, 1998).
Aos dois conceitos acima referidos importa acrescentar a noção de
pobreza subjectiva a qual traduz a avaliação que cada um faz do grau de
(in)satisfação das suas necessidades (Costa, 1984). Assenta, pois, na percep- ção
pessoal, familiar ou de grupo face às situações concretas de existência (Baptista
e Outros 1995). Todas estas noções não se excluem mutuamente, pelo
contrário, podem coexistir num mesmo indivíduo e família.

Duma abordagem estática da pobreza, fundada numa perspectiva mone-


tária/economicista, passou-se a uma definição dinâmica e multidimensional. O
próprio conceito de exclusão passou a centrar-se na existência de pro- cessos
que conduzem a situações extremas, ou seja, que conduzem da pre- cariedade à
exclusão no sentido de acumulação de "handicaps" e duma rup- tura progressiva
dos laços sociais. A exclusão passou, assim, a contemplar o duplo processo
(biográfico e estrutural) (Dubar, 1996) que tende a des- qualificar socialmente
(Paugam, 1991) todos aqueles que não entram na nova lógica de competências
(autonomia, iniciativa, responsabilidade), e a provo- car formas diversificadas de
desafiliação, de relaxamento das redes de socia- bilidade e de ruptura das
relações familiares. Considerando a dimensão física e simbólica dos processos de
exclusão, as pesquisas passaram a centrar-se igualmente nos efeitos dos
processos de desqualificação social e nas estra- tégias de defesa e de
resistência (ou de aceitação do seu estatuto) desen- volvidas por aqueles que
são alvo de diversas rupturas (Strobel, 1996:209). Parece, então, que tudo se
passa como se a exclusão social permitisse rea- grupar diferentes processos,
trajectórias, vivências e diferentes modos de vida, "formando uma categoria
global paradoxal" (Xiberras, 1996:23).

192
174

Não é possível avançar com definições absolutas de exclusão social.


Esta noção é variável segundo as épocas e os lugares. Avançar com crité-
rios precisos e válidos ad eternum, para a definição do que é "um excluído"
conduz à reificação de novas categorias sociais, deixando perceber que pode
existir uma ciência da exclusão independente do contexto cultural específico
de cada sociedade (Paugam, 1996:565).
Considerando-se as realidades visadas sob o termo "exclusão", não
como um estado mas como uma articulação sempre incerta de dois proces-
sos (biográfico e estrutural), será possível conceptualizar e reconstituir as
trajectórias de indivíduos cuja existência é marcada por contextos em que
presenciamos novas políticas de emprego, novas práticas relacionais, novas
formas de gestão e flexibilidade temporal, e em que a incerteza e os riscos
são maiores, bem como os desencorajamentos subjectivos (Dubar, 1996:118).

A exclusão social constitui um processo que afecta cada vez mais


pessoas e se propaga por todos os meios sociais. Hoje, nenhuma família,
incluindo as dos meios sociais e economicamente favorecidos, pode asse-
gurar que um dos seus filhos não será um dia um jovem delinquente ou um
toxicodependente. A riqueza desta noção reside, precisamente, na hetero-
geneidade de situações que cobre, bem como no seu carácter evolutivo.
A exclusão corresponde, assim, a um processo que pode tocar de forma tem-
porária ou durável vários tipos de população: os jovens analfabetos e os que
abandonam precocemente o sistema escolar, os deficientes, os desemprega-
dos de longa duração, os imigrantes, as minorias étnicas, as pessoas que
vivenciam processos de ruptura conjugal, os idosos, os reformados, etc.
(Paugam, 1996:18). O sucesso desta noção está, em grande parte, ligado à
tomada de consciência colectiva da ameaça que pesa sobre estas franjas da
população, cada vez mais desprotegidas. De objecto de estudo transversal a
vários campos disciplinares, a exclusão social tornou-se numa categoria de
acção pública com um estatuto relevante.

3. Também o conceito de violência doméstica tem vindo a conhecer


uma certa evolução e expansão. O seu campo conceptual abrange cada vez
mais situações e comportamentos que outrora não eram considerados vio-
lentos (Lourenço e Lisboa, 1992), "evidenciando a passagem duma socie-
dade selvagem e sanguinária a uma sociedade onde os atentados à integri-
dade do corpo se tornaram mais insuportáveis" (Pais, 1996:30). Actualmente,
este conceito integra desde a agressão física, emocional, psicológica, sim-
bólica, sexual (Coimbra e Outros 1990), até à violência situada numa pers-
pectiva macrossocial e que é experimentada pelas dificuldades de acesso à

193
175

saúde, ao emprego, à educação e à cultura (Dias, 1996). Estas dificuldades,


que muitas vezes se traduzem em privações concretas, não deixam de ser
formas de exclusão social.

4. A violência doméstica é um fenómeno tão antigo como a pobreza, no


entanto, é recente o seu reconhecimento como um problema social. No
presente artigo, pretende-se problematizar a relação provável existente entre
exclusão social e violência doméstica. Apesar das suas especificidades,
ambos os fenómenos partilham algumas características genéricas que os
podem fazer andar associados. Passemos, agora, a ilustrar algumas dessas
características:

4.1. Ambos constituem fenómenos sociais cujas causas podem, ainda que
não exclusivamente, ser procuradas nos princípios de funcionamento das
sociedades modernas (por exemplo, a urbanização acelerada e desordenada
geradora de segregações sociais, espaciais e raciais; a uniformização e ina
daptação do sistema escolar; a desigualdade de rendimentos e de acesso aos
bens, aos serviços, aos equipamentos colectivos e à instrução; o desenrai-
zamento provocado pela mobilidade profissional e a maior distância entre as
gerações; o crescimento do desemprego e das taxas de criminalidade; a
inadequação dos serviços de apoio e protecção social; a existência de eco
nomias informais, etc).

4.2. Ambos possuem um certo carácter "paradoxal" o qual pode ser


ilustrado pelas seguintes interrogações: por que é que nas sociedades demo
cráticas que possuem como ideal o desenvolvimento social justo e igualitá rio,
se observam, cada vez mais, situações e processos através dos quais as
desigualdades se constituem e renovam? Como é que na família privatizada dos
nossos dias coexiste uma dimensão expressiva (a família como fonte de afecto e
de apoio ilimitado) e uma dimensão conflitual que, quando exa cerbada, pode
conduzir à violência? Por que é que a família das sociedades modernas se
torna, simultaneamente, lugar de realização e expressão dos direitos
individuais, mas também lugar crucial de opressão dos seus mem bros?
A procura de respostas exaustivas para estas questões ultrapassa, segu-
ramente, o alcance do presente artigo. Porém, com estas interrogações
pretendemos chamar a atenção para algumas das contradições que as socie-
dades modernas encerram, constituindo a exclusão social e a violência
doméstica dois exemplos paradigmáticos.

194
176

A exclusão de certas categorias sociais da esfera produtiva e das prá- ticas de sociabilidade
social e familiar, priva-as do exercício pleno da cida- dania. Isto é paradoxal nas nossas
sociedades. No que concerne aos idosos, tanto a Europa como a América do Norte
conseguiram uma vitória notável sobre o prolongamento das suas vidas o qual se deve,
também, à melhoria dos sistemas de reforma e dos serviços de apoio médico-social. Ao mesmo
tempo, esta categoria social tem sido alvo de processos de desvalorização e exclusão social
crescentes. Estes países não preservaram um papel activo e útil para os seus idosos passando
esta fase da vida a ser encarada como um custo colectivo sem nenhuma contrapartida. A
velhice passou a representar um período da vida em que se "sobrecarrega" alguém ou alguma
instituição e se possui um estatuto social à margem da sociedade (Guillemard, 1996:194).
Paralelamente, a reforma implica uma quebra dos rendimentos, que se repercute numa maior
dificuldade de acesso aos bens e serviços. A instabilidade dos sistemas de segurança social,
associada à crise do Estado- Providência veio reforçar a dependência, desta população, face aos
serviços sociais e agravar os processos de desafíliação vividos pelos idosos. Ser idoso, nas nossas
sociedades, constitui, assim, um "risco social" de exclusão, quer do sistema produtivo quer,
ainda, das redes de sociabilidades.

Também os assalariados "velhos", ou seja, aqueles que ainda são novos para a reforma, mas
já são "velhos" para o trabalho, correm sérios riscos de exclusão. Estes assalariados são, com
frequência, expulsos do mercado de emprego e devido às dificuldades de adaptação às novas
tecnologias e com- petências, estão bem representados entre os desempregados de longa dura-
ção. O desemprego de longa duração é, igualmente, denominado por "desem- prego de exclusão"
(Dubar, 1996:112), uma vez que, aqui, a exclusão está directamente relacionada com as normas
sociais de empregabilidade. A par- ticipação de trabalhadores com mais de 55 anos no mercado
de emprego, tornou-se minoritária na maior parte dos países europeus (Guillemard, 1996:194).

O emprego, o rendimento e a residência autónoma constituem atribu- tos que permitem a


integração dos jovens na sociedade. A dependência juve- nil constitui, nas sociedades modernas,
uma fase normal do ciclo de vida. No entanto, nestas sociedades, aquela fase de dependência
prolonga-se de tal forma que acaba por se tornar num indicador de exclusão social (Galland,
1996:183). O paradoxo reside no facto de estas sociedades não conseguirem promover medidas
de política de emprego, educação e formação capazes de absorver os jovens, que passam um
longo período das suas vidas integrados

195
177

no sistema de ensino. As baixas expectativas face ao futuro dos jovens que se encontram,
ainda, nas fileiras do sistema de ensino, mas também dos recém-licenciados e que não
encontram emprego 3, impede a formação de uma verdadeira identidade de estudante,
nos primeiros, e retarda a constru- ção de uma identidade profissional, no segundo caso
(Paugam, 1996:570; Esteves, 1996:47).
Estes exemplos ilustram, de algum modo, o carácter "paradoxal" dos processos de
exclusão social, que afectam estas categorias sociais, nas nos- sas sociedades.

No que concerne à família, esta tornou-se, nas sociedades contempo- râneas, o espaço, por
excelência, de expressão do individualismo e da pri- vatização. Mas a emergência de uma família
mais intimista e humanizada, nas sociedades modernas, não significa que a dimensão conflitual e
violenta tenha desaparecido, completamente (Dias, 1996). Aliás, é na família moderna e privatizada
que "uma parte considerável dos atentados aos direitos huma- nos" se concretizam (Fernandes,
1994:27), conduzindo alguns autores a con- siderar que o lar é "um dos lugares mais perigosos
das sociedades moder- nas" (Lourenço e Outros, 1997:15) . O paradoxo reside, então, numa
família moderna que pode ser um lugar de afectividade, de privacidade e de auten- ticidade, mas
também, um lugar de sujeição e de exercício da violência sobre os seus membros. Desta forma,
quando "os ritmos do amor e do ódio entram em consonância e perduram, a família pode iniciar o
caminho da sua desa- gregação" (Idem, 1994:14) e de exclusão dos padrões normais de compor-
tamento familiar.

4.3. Em ambos os fenómenos existe uma certa "opacidade" do objecto. Existem formas
de exclusão social e de violência doméstica que não se vêem, mas que se sentem, outras que
se vêem mas que ninguém fala e, por fim, formas de exclusão e de violência doméstica
completamente invisíveis, dado que nós nem sonhamos com a sua existência, nem
possuímos a fortiori nenhum vocábulo para as designar (Cf. Xiberras, 1996:20). No caso da
vio-

3
O desemprego de longa duração não tem poupado, em particular, o grupo dos mais jovens. Para estes, a
relação com o trabalho dá-se não só através dos empregos precários, que constituem uma condição prévia para o
recrutamento na medida em que acumulam, deste modo, experiência profissional, mas também através da sua manifesta-
ção negativa que é o desemprego. Aliás, a precariedade do emprego constitui, para os jovens, uma espécie de "prelúdio
do desemprego". Ver António Joaquim Esteves (1996), "Transição ao trabalho e posturas de investigação e intervenção
sociais" in Sociologia, n.° 6, Faculdade de Letras do Porto, p. 47.

196
178

lência doméstica, esta opacidade é ainda mais reforçada, devido ao carácter privado da família
moderna. A privacidade tornou-se, assim, o principal ali- ado da violência doméstica, uma vez que
contribui, grandemente, para a invi- sibilidade das suas múltiplas manifestações.

4.4. Por outro lado, não constituem fenómenos marginais que apenas afectam uma franja
dos sub-proletários ou das famílias com fracos recursos económicos e culturais. Tratam-se de
fenómenos transversais, no sentido em que podem ser extensivos a famílias de diferentes meios
e classes sociais.
A exclusão constitui um processo em curso que se propaga, tal como "um cancro"
(Paugam, 1996:10), por todos os meios sociais. Independen- temente da sua condição social,
económica ou mesmo religiosa, nenhuma família, hoje, pode ter a certeza de que estará imune
a este problema social. A falência do Estado-Providência (que em Portugal nunca se constituiu
real- mente) (Almeida e Outros, 1994:5) e dos mecanismos de protecção social, tendem a
reforçar este sentimento de insegurança face ao futuro. A "nova pobreza" constitui disto um
exemplo. Enquanto nas décadas passadas a preocupação incidia sobre os grupos marginais
considerados inadaptados ao progresso, os "novos pobres" constituem segmentos da população
adaptados à sociedade moderna mas que são vítimas da conjuntura económica e da crise de
emprego (Paugam, 1996:12). Tratam-se, aqui, de pessoas "que não possuem níveis suficientes
de posse, de capital material e de capital humano e, por isso, são objecto de exclusão social"
(Fernandes, 1991:39).

Hoje, os detentores de um emprego não se preocupam tanto com uma hipotética relação
de dominação do trabalho, mas com um conjunto de situ- ações incertas que se traduzem
numa angústia individual face ao risco de desemprego, numa fraca implicação na vida
colectiva da empresa, numa perda progressiva da sua identidade profissional e, sobretudo, na
possibili- dade de vir a engrossar as "fileiras" dos excluídos e marginalizados. E, aqui, a pobreza,
em particular daqueles que nunca a experimentaram," aparece como um símbolo de fracasso
ou de insucesso" (Idem, 1991:58).

A violência doméstica conhece uma certa transversal idade no seio das sociedades actuais.
Apesar de ser um fenómeno mais visível nas classes com fracos recursos económicos e culturais
ela existe, igualmente, nas classes médias e altas, apesar destas defenderem com mais afinco a
sua privacidade. Num estudo recente, sobre os Maus Tratos às Crianças em Portugal (Almeida e
Outros, 1997:87-88), as autoras observaram uma representação significativa de adultos
masculinos prepetores do mau trato com profissões

197
179

qualificadas (técnico superior e médio, pequeno comerciante, empregado dos serviços e do


comércio). De facto, nenhuma família está imune à emergên- cia de processos de violência
doméstica no seu seio. A diferença reside na tipologia dos comportamentos violentos, no
seu carácter mais concentrado ou mais difuso, na sua maior ou menor visibilidade e na
capacidade de per- manência ou efemeridade (Fernandes, 1994:30).

4.5. Actualmente também é maior a intolerância social face a ambos os fenómenos. O


que na sociedade tradicional se aceitava passivamente, ou seja, ser pobre era um estado
natural e ser violento para com os membros da família, em particular com a mulher e os
filhos, um direito socialmente reconhecido é intolerável nas sociedades modernas e
democráticas. Nestas sociedades, faz-se a apologia da liberdade, da igualdade, da
autonomia, da realização pessoal e familiar. Neste quadro, a exclusão social e a violência
doméstica transformaram-se em realidades embaraçosas e que suscitam, da parte dos
poderes públicos, estratégias de prevenção com vista ao seu combate.

4.6. Associada a esta crescente intolerância face à exclusão social e à violência


doméstica está, também, o facto de ambos os fenómenos se terem transformado, nas nossas
sociedades, em objectos mediáticos e de acção polí tica. A denúncia, por vezes
excessivamente sensacionalista, de certos gru pos sociais, que vivem desfasados do bem
estar geral da população e aban donados à sua condição existencial, bem como de
situações de violência familiar, contribuiu para uma crescente consciencialização pública
destes problemas, desencadeando a criação de inúmeros programas sociais com vista ao
seu combate e eliminação.

4.7. Em ambos os fenómenos existe um processo complexo de cons trução social do


cliente (Lynn, 1992; Paugam, 1991). O recurso à assistên cia social pode ser vivido como uma
experiência humilhante, sobretudo, para os "novos pobres" e equivale aceitar ser
catalogado como "pobre", o que implica assumir um estatuto socialmente desvalorizado, ser
confrontado com o seu próprio insucesso e ter de dar provas das suas condições de existên
cia vendo, assim, a sua vida privada transformada em objecto de análise pública. Um
processo análogo ocorre com as vítimas da violência domés tica. As organizações de apoio
e protecção à vítima ao identificarem, por exemplo, os "menores em risco" ou as
"mulheres batidas" estão a pôr em prática um processo complexo de etiquetagem,
transformando as pessoas em "clientes". No fundo, trata-se de um processo de conversão
da heterogenei-

198
180

dade das situações e vivências numa homogeneidade. Há um efeito de impo-


sição da "etiqueta", por parte dos profissionais que trabalham com estas rea-
lidades, de um estatuto social desvalorizado. Daqui, pode decorrer ou uma
aprendizagem dos papéis e das práticas associadas ao estatuto social de ser
"pobre" ou de ser "mulher batida", por exemplo, ou uma recusa do proce-
dimento de designação. Tudo depende da condição social objectiva do(a)
suposto(a) "cliente" e do maior ou menor grau de dependência da popula- ção
em situação de precariedade económica e sócio-familiar.

4.8. A exclusão social gera, a quem a vive, uma multiplicidade de sen


timentos. Há quem a viva de uma forma envergonhada (é a "pobreza enver
gonhada" daqueles que são alvo de processos de mobilidade social descen dente
) (Fernandes, 1991:46), mas também há quem a ela se tenha habituado.
Independentemente destes diferentes posicionamentos, quem cai em proces sos
de exclusão social experimenta sempre um estatuto social desvalorizado e
humilhante. Mesmo que domine a apatia ou a acomodação a uma certa
"cultura da pobreza" (Idem, 1991:43), existem com frequência sentimentos de
inferioridade e de impotência, sobretudo para quem nunca a teve como
"horizonte". Esta ambivalência de sentimentos também é experimentada por
quem é vítima de violência doméstica. Geralmente esta afecta a auto-estima,
produz medo, sentimentos de culpa e de dúvida. Sentimentos do género "eu
mereço isto" ou "eu não merecia isto" são frequentes nas pessoas e famí lias
que vivem estas experiências.

4.9. Finalmente, gostaria de salientar alguns factores gerais que podem estar,
simultaneamente, presentes em ambos os fenómenos, tornando os indi víduos e
famílias mais vulneráveis a situações de exclusão social e de vio lência
doméstica: condições de habitação deficitárias (insalubridade, super lotação,
alojamento inadequado); condições de saúde precárias (deficiente acesso aos
serviços de saúde, irregularidade de cuidados médicos e de estra tégias de
prevenção da doença, maior incidência da mortalidade infantil, menor
esperança de vida); baixos níveis de escolaridade (maior incidência de abandono
escolar, taxa de analfabetismo mais elevada, ocorrência de insu cesso escolar);
existência de desemprego e de precariedade face ao trabalho; baixos níveis de
rendimentos e de qualificação profissional; incidência da economia informal;
maior segregação espacial (zonas degradadas e periféri cas dos centros urbanos)
e consequente isolamento social; frequência de famílias de grande dimensão
com elevada natalidade e de famílias mono- parentais; incidência de
comportamentos aditivos (alcoolismo, toxicodepen- dência); membros da família
portadores de doença mental e de doenças cró-

199
181

nicas; elevado nível de conflito na família e na rede de vizinhança; ausên- cia de


equipamentos colectivos; elevadas taxas de criminalidade e de mar- ginalidade no contexto
social envolvente, etc.

A conjugação destes factores com outros de ordem psico-cultural tor- nam alguns
tipos de famílias mais susceptíveis a estes fenómenos, são elas: as famílias numerosas (com
um elevado número de crianças), as famílias monoparentais, as famílias com membros
demasiado jovens ou demasiado idosos. O estudo sobre Os maus Tratos às Crianças em
Portugal mostra- nos, precisamente, que estes têm uma grande incidência em meios
sociais desfavorecidos e que a família monoparental (materna e paterna), a alargada com
avós e a recomposta (materna e paterna) têm uma expressão significa- tiva em certos tipos
de mau trato. Por exemplo, na família monoparental era frequente o "abandono", na
família recomposta o "abuso emocional com agressão física", na alargada com avós a
"negligência" (Almeida e Outros, 1997:82).

5. O estudo da exclusão social e da violência doméstica gera fortes sentimentos,


sobretudo, quando o investigador se depara com as realidades que ambos implicam.
Nenhum factor único pode explicar a presença ou a ausência destes fenómenos, nem tão
pouco podemos considerar a violência doméstica como estando directamente associada à
exclusão social e que esta gera, consequentemente, violência. Existem situações em que, de
facto, tal sucede, assim, como há inúmeras excepções. Uma família, por exemplo, que se vê
confrontada com uma situação de desemprego corre o risco de exclu- são social. Mas o
carácter dialéctico deste conceito remete-nos, igualmente, para as estratégias de inclusão
que entretanto podem ocorrer. Aquele risco pode ser minimizado ou mesmo superado
através do accionamento de um conjunto de solidariedades ao nível da rede de parentesco,
dos amigos e da própria vizinhança, contribuindo, estes, ora para a manutenção
temporária daquele agregado doméstico, ora mesmo para a obtenção de um novo
emprego fazendo-se accionar todo um conjunto de redes de conhecimento e de influência.
Mas também, acontece o oposto. Ou seja, o stress e a tensão emocional causados pelas
situações de desemprego e pela ausência de ren- dimentos, pode potenciar o nível de
conflitualidade na família, conduzindo a comportamentos violentos. Nalguns casos existe,
mesmo, uma relação entre desemprego e ruptura familiar (Martin, 1996:176).

A instabilidade familiar e as suas situações de ruptura (separação e divórcio) podem


representar um certo risco de exclusão, não somente pelo

200
182

relativo empobrecimento que implicam, mas também pelo isolamento e pela perda de
algumas sociabilidades e solidariedades privadas a que conduzem (Martin, 1996:172). Destas
situações de ruptura resultaram novas configu- rações familiares como, por exemplo, as
famílias monoparentais. Esta noção, ao ser introduzida, pelos sociólogos nos anos setenta veio
permitir, não só, a conceptualização e classificação dos "agregados familiares constituídos por
uma ou mais crianças menores e um dos seus pais biológicos" (Lobo, 1995:79), mas
também contribuiu para destigmatizar certas situações fami- liares (por exemplo, as mães
celibatárias, separadas e divorciadas), tornando, ao mesmo tempo, mais evidentes as
dificuldades económicas associadas ao facto de uma pessoa só assumir os seus filhos. Não é
de estranhar, por isso, que a estas configurações familiares se tenha atribuído a seguinte
equação: "monoparentalidade = pobreza" (Martin, 1996:175).
Nestas famílias, o trabalho representa um papel central para fazer face a um
empobrecimento tendencial e para evitar a dependência e o isolamento social. No caso das
famílias monoparentais maternas, o trabalho permite à mulher não só uma fonte de
rendimento que lhe proporciona a manutenção do lar e a subsistência dos filhos, mas
também o acesso a relações sociais diversas, nomeadamente no local de trabalho.
Paralelamente, a rede de paren- tesco pode desempenhar um papel importante de protecção,
de sociabilidade mas também de integração contribuindo, pontualmente, no plano financeiro,
nas tarefas quotidianas e no cuidado para com as crianças. Para muitas mulheres, a
ruptura conjugal inaugura uma longa fase de monoparentalidade, constituindo as relações
conjugais sem coabitação uma forma de romperem a solidão e o isolamento sexual.
A monoparentalidade, sobretudo a materna, pode, igualmente, consti- tuir um cenário
onde se desenvolvem processos de sujeição e de violência sobre os seus membros. Percebido
o isolamento social e a maior fragilidade e dependência destas famílias, pelos "companheiros
ocasionais" (alguns, com trajectórias de exclusão) destas mulheres, tanto elas como os seus
filhos se podem tornar vítimas de violência doméstica. O estudo sobre Os Maus Tratos às
Crianças em Portugal (Almeida e Outros, 1997:82 e 88) demonstrou exis- tir uma relação, por
um lado, entre os tipos de mau trato e a estrutura do grupo doméstico e, por outro lado,
entre aqueles e o tipo de relação de con- jugalidade no grupo doméstico. As famílias
monoparentais e as famílias recompostas surgem, entre outros tipos de família, como
configurações fami- liares em que se destacam certos tipos de mau trato (por exemplo, o
abuso emocional com agressão física, a agressão física e o abuso sexual). O tipo de mau
trato infligido sobre a criança também não era indiferente ao tipo de relação existente
entre os pais. Certos abusos (físicos, emocionais,

201
183

sexuais, etc.) eram praticados por casais que, ora viviam juntos, ora esta- vam em processo
de separação ou estavam, já, separados. O que significa que as situações de ruptura
conjugal podem representar um risco social de violência, para as crianças que fazem parte
destes contextos familiares.

As famílias recompostas constituem um outro cenário possível de saída duma situação de


precariedade económica e social. Quando se fala em famí- lias recompostas, não podemos
esquecer que elas implicam um conjunto de "transições familiares encetadas a seguir a um
divórcio ou a uma separa- ção", que uma parte significativa, destas famílias, pressupõem a
existência de crianças provenientes de um casamento anterior e, consequentemente, de um
"padrasto ou de uma madrasta ou de ambos" (Lobo, 1995:70). Se a recomposição familiar
permite, ao grupo doméstico, a constituição de novos suportes ao nível económico e
relacional conseguindo, assim, fazer face ao empobrecimento tendencial pós-divórcio ou
pós-separação, também não é menos verdade que, em alguns casos, a recomposição
familiar pode estar associada a uma "estratégia de perenidade conflitual" (Lobo, 1995:82
e 1996:72). Neste caso, o processo de recomposição familiar e de construção social do
papel de padrasto ou de madrasta, continua a ser afectado pelas tensões e conflitos
existentes entre os ex-cônjuges, que se mantêm pelo facto de existirem crianças do
casamento anterior (Lobo, 1995:82).
As famílias recompostas, tal como já foi referido, constituem configu- rações familiares
em que se desenvolvem, igualmente, comportamentos vio- lentos. Não se pretende com isto
perpetuar os esteriótipos associados ao tra- dicional papel de madrasta ou de padrasto.
Cristina Lobo mostra-nos, precisamente, que aqueles papéis podem ser construídos de uma
forma bas- tante gratificante. Esta autora encontrou, entre algumas das famílias recom-
postas, por si estudadas, "sentimentos de forte amizade, protecção e de amor dos padrastos
para com os enteados que se foram desenvolvendo ao longo dos anos de convivência
quotidiana" (1996:74). Por seu turno, Ana Nunes de Almeida e Outros (1997:82-86),
observaram uma relação entre este tipo de família e certos abusos infligidos às crianças. A
agressão física, o abuso emocional e sexual são apenas alguns tipos de mau trato
infligidos às crianças pela madrasta e pelo padrasto. É, de novo, o carácter paradoxal da
família moderna (recomposta) que, aqui, está em evidência.

Independentemente das trajectórias pós-divórcio ou separação dos indi- víduos que


fazem parte, quer das famílias monoparentais, quer das recom- postas, estas famílias não
deixam de ser percebidas como "desviantes", por- que são reveladoras de processos de
inadaptação, com custos sociais

202
184

significativos (Martin, 1996:178-179). Neste sentido, a ruptura conjugal/


/familiar tornou-se num risco de exclusão face aos comportamentos fami- liares
supostamente "normais". Nesta linha, podemos pensar o mesmo da violência doméstica,
a qual surge como expressão de comportamentos fami- liares "anómalos" aos modelos
familiares vigentes. Numa época em que o modelo tradicional de família está em declínio
e cada vez mais se impõe (pelo menos ao nível das representações sociais) o modelo
modernista/simé- trico (Kellerhals e Outros, 1989; Almeida, 1990), viver numa família corn
problemas de violência, representa um risco social de exclusão dos mode- los familiares
normais.

Em suma, a instabilidade familiar não constitui sempre uma fonte de fragilidade e de


exclusão social assim como esta não gera necessariamente violência doméstica. Porém,
nestas famílias, é maior a sua vulnerabilidade quer às situações de ruptura e de violência,
quer aos factores subjacentes aos processos de exclusão social. A análise destes
fenómenos passa, pois, por uma compreensão dos processos de fragilização das famílias e
das suas estratégias de inclusão/exclusão. Passa, também, pelo conhecimento da
importância de uma precária inserção no mercado de emprego. Só assim, é possível a
compreensão dos processos de ruptura, de desafiliação e de desqualificação social nas suas
componentes privada e pública (Martin, 1996:173). Tudo isto, significa, igualmente, a
necessidade de implementa- ção de serviços e de programas de prevenção da exclusão
social e da vio- lência doméstica antes, mesmo, destes fenómenos se manifestarem.

Bibliografia

ALMEIDA, Ana Nunes de; ANDRÉ, Isabel Margarida; ALMEIDA, Helena Nunes de (1995),

Os Maus Tratos às Crianças em Portugal, Lisboa (documento policopiado).

---- (1997), Os Maus Tratos às Crianças em Portugal — Relatório Final Preliminar,

Lisboa, (documento policopiado).

ALMEIDA, Ana Nunes de; GUERREIRO, Maria das Dores; LOBO, Cristina; TORRES, Anal ia; WALL, Karin (1998), "Relações
Familiares: Mudança e Diversidade" in Portugal, que Modernidade?, José Manuel Leite Viegas, António Firmino da
Costa (orgs.), Lisboa, Celta Editora, pp.45-78. ALMEIDA, João Ferreira de (1990), Portugal -

Os Próximos 20 Anos. Valores e

Representações Sociais, VIII vol, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.

---- (1993), "Integração social e exclusão social: algumas questões" in Análise Social,

n° 123-124, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, pp. 829-834.

ALMEIDA, João Ferreira de, e Outros (1994), Exclusão Social — Factores e Tipos de Pobreza em Portugal, Oeiras,
Celta Editora.

203
185

ANDREWS, Aliene Bowers (1994), "Developing community Systems for the primary pre- vention of family violence" in
Family & Community Health, n.° 4, vol. 16, Columbia, Aspen Publishers Inc. B APTISTA , Isabel; P ERISTA ,
Isabel; R EIS ,

Ana Luzia (1995), A Pobreza no Porto:


Representações Sociais e Práticas Institucionais, Porto, REAPN — Rede Europeia Anti-Pobreza. C APUCHA , L UÍS
Manuel Antunes (1998), "Pobreza, Exclusão e

Marginalidades" in

Portugal, que Modernidade?, José Manuel Leite Viegas, António Firmino da Costa (orgs.), Lisboa, Celta Editora,
pp.209-242. COIMBRA, Alexandra; FARIA, Ana;

MONTANO (1990), *4ANOVA": Centro de Apoio e de


Intervenção na crise para crianças vítimas de maus tratos" in Análise Psicológica,

n.° 2, Lisboa, Instituto Superior de Psicologia Aplicada. C OSTA , Alfredo Bruto da (1984), "O conceito de Pobreza"
in Estudos de Economia,

n.°3, vol. IV, Abril/Junho, pp. 275-295. C OSTA , Alfredo Bruto da; S ILVA , Manuela (1985): A Pobreza em Portugal
Lisboa,

Colecção Caritas, n.° 6. DIAS, Isabel (1996), "Algumas considerações teórico- metododológicas sobre o fenómeno

da violência na família", Comunicação apresentada ao III Congresso Português de Sociologia, Lisboa (em publicação).

---- (1996), "Estratégias de pesquisa qualitativa no estudo da violência na família" in


Metodologias Qualitativas para as Ciências Sociais, Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras, pp. 29-39.

DUBAR, Claude (1996), "Socialisation et processus" in L' Exclusion - L 'État des Savoirs,

Serge Paugam (dir.). Paris, La Découveite, pp. 111-119. E STEVES, António Joaquim (1996), "Transição ao trabalho e
posturas de investigação e

intervenção sociais" in Sociologia, n° 6, Faculdade de Letras do Porto, 33-53.

F ERNANDES , António Teixeira (1991), "Formas e Mecanismos de Exclusão Social" in

Sociologia, n.° 1, Faculdade de Letras do Porto, pp. 9 - 66.

---- (1994), 44 Os Direitos do Homem nas Sociedades Democráticas. A Violência na Família" in Sociologia, n.° 4,
Faculdade de Letras do Porto, pp. 7-47.
G ALLAND , Olivier (1996), "Les jeunes et Pexclusion" in L' Exclusion — L'État des Savoirs, Serge Paugam (dir.), Paris,
La Découverte, pp. 183-192. GELLES,

Richard J. (1987), The Violent Home, Newbury Park, Sage. GUILLEMARD, Anne-Marie (1996), iCVieillissement et exclusion" in
L' Exclusion — L 'État
des Savoirs, Serge Paugam (dir.). Paris, La Découverte, pp. 193-206.

KELLERHALS, Jean; TROUTOT, P. Yves; LAZEGA, Emmanuel (1989), Microssociologia da Família, Lisboa, Publicações Europa-
América. LOBO , Cristina (1995), "Do

(re)casamento às estratégias de recomposição familiar" in

Sociologia — Problemas e Práticas, n.° 18, Lisboa, CIES/ISCTE.

---- (1996), "Padrastos no quotidiano" in Sociologia — Problemas e Práticas, n.° 19, Lisboa, CIES/ISCTE.
LOPEZ , Caballero Alfonso (1992), "La familia como sistema en conflito" in Revista de Fomento Social, n.° 47, Estúdios,
pp.83-97. LOURENÇO, Nelson; LISBOA, Manuel

(1992), Representações da Violência, Lisboa, Centro

de Estudos Judiciários. LOURENÇO, Nelson: LISBOA, Manuel; PAIS, Elza (1997),

Violência Contra as Mulheres,

Cadernos de Condição Feminina n.° 48, Lisboa, Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres.

204
186

LYNN, Laurence E. Jr. (1992), The Battered Woman and Shelters: The Social Construction ofwife
Abuse, Albany: State University of New York. M ARTIN , Claude (1996),

"Trajectoires post-divorce et vulnérabilité" in L' Exclusion —

L'Etat des Savoirs, Serge Paugam (dir.), Paris. La Découverte, pp. 172-182.

MARTINE, Xiberras (1996), As Teorias da Exclusão — Para uma Construção do

Imaginário do Desvio, Lisboa, Instituto Piaget. P AIS , Elza (1996), "Violência(s):


Reflexões em torno de um conceito" in Interacções,

n.° 4, Revista do Instituto Superior de Serviço Social de Coimbra, Dezembro, pp. 25-
39.

PAUGAM , Serge (1991), La Disqualification Sociale. Paris, PUF. PAUGAM, Serge (1996), '"La
Constitution d' un Paradigme" in L' Exclusion — L 'État des

Savoirs, Serge Paugam (dir.). Paris, La Découverte, pp. 7-19. PAUGAM, Serge (1996),
"Les sciences sociales face à Fexclusion" in L' Exclusion — L 'État

des Savoirs, Serge Paugam (dir.). Paris, La Découverte, pp. 565-577. SEBASTIÃO, João
(1996), "Crianças da ma, marginalidade e sobrevivência*' in Sociologia

— Problemas e Práticas, n.° 19, Lisboa, CIES/ISCTE, pp. 83-107. S CHNAPPER ,


Dominique (1996), "Intégration et Exclusion dans les sociétés modernes"

in L' Exclusion — L 'État des Savoirs, Serge Paugam (dir.), Paris, La Découverte, pp. 23-
31. STROBEL, Pierre (1996), "De Ia pauvreté à Texclusionisociété salarial ou

société des droits

de rhomme" in Revue Internationale des Sciences Sociales. n.° 148, L'Organisation des
Nations Unies pour FEducation, Ia Science et Ia Culture. THÉRY, Irene;

TASSERIT, Sophie (1996), "Sida et exclusion" in L ' Exclusion — L 'État des

Savoirs, Serge Paugam (dir.). Paris, La Découverte, pp. 363-385. TORRES, Anália
Cardoso (1996), Divórcio em Portugal. Ditos e Interditos, Oeiras, Celta

Editora.

205
187

ANOTAÇÕES – CURSO 02
188
189
190
191
192
193
Racismo institucional e saúde da população negra

Institutional racism and black population health

Jurema Werneck Resumo

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escola de Comunicação.


A saúde da mulher negra não é uma área de conheci-
mento ou um campo relevante nas Ciências da Saú-de. É
inexpressiva a produção de conhecimento cien-tifico
Rio de Janeiro, RJ, Brasil. nessa área e o tema não participa do currículo dos
diferentes cursos de graduação e pós-graduação
E-mail: juremawerneck@criola.org.br

em saúde, com raríssimas exceções. Trata-se de


as-sunto vago que, na maior parte dos casos, é ignorado
pela maioria de pesquisadoras e pesquisadores,
estudantes e profissionais de saúde no Brasil. Este
trabalho pretende apresentar algumas informações
acerca dos processos de formulação desse campo
conceitual a partir das demandas dos movimentos
sociais organizados e das formulações de especia-
listas. Tais informações serão apresentadas com o
objetivo de subsidiar pesquisas e contribuir para a

formulação e gestão de políticas públicas


adequadas às necessidades expressas nos indicadores
sociais e de saúde das mulheres negras brasileiras.

Palavras-chave: Saúde da Mulher Negra;


Racismo; Racismo Institucional; Políticas
Públicas.
194

Correspondência

Avenida Presidente Vargas, 482, sobreloja 203, Centro.

Rio de Janeiro, RJ, Brasil. CEP 20071-000

DOI 10.1590/S0104-129020162610 Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.535-549, 2016 535
195

Abstract Introdução

The health of black women is not an area of knowl- A revisão da literatura especializada publicada no
edge or a relevant field in Health Sciences. The Brasil expõe a baixa presença que a saúde da mulher
scientific knowledge production in this area is negra tem nos periódicos nacionais dedicados às Ci-ências
inexpressive and the theme is not part of the cur-riculum da Saúde. De fato, uma breve revisão entre os periódicos
of different undergraduate and graduation programs in disponíveis na biblioteca virtual SciELO permite
health, with very rare exceptions. It is a vague verificar essa escassez: a busca simples com
matter, which, in most cases, is ignored by most descritores “saúde mulher negra” oferece 24 artigos
researchers, students, and health profes-sionals in nacionais publicados a partir de 2008. Ao restringir a busca
Brazil. This study intends to present some para artigos da área de saúde pública, a dis-ponibilidade
information on formulation processes of this reduz-se a apenas seis textos completos publicados. Não é
conceptual field from the demands of organized possível auferir aqui, com exatidão, a extensão dessa
social movements and experts’ formulations. Such lacuna ou distinguir sua origem. Ou seja, não há como
saber as razões do baixo índice de publicações sobre
o tema: se por desinteresse, falta de estímulos ou
information will be presented with the aim of
existência de restrições explícitas nas instituições de
subsi-dizing research and contributing to the
pesquisa; se devido a barreiras interpostas pelos
formulation and management of public policies
conselhos editoriais dos diferentes periódicos; ou, ainda,
suitable to the needs expressed in the social and
se devido a combinações entre os variados
health indicators of Brazilian black women.
elementos. Tais ausências ou insuficiên-cias podem
indicar a não consolidação da saúde da população negra e
Keywords: Black Women’s Health; Racism; da saúde da mulher negra como campos temáticos e de
Institu-tional Racism; Public Policies. pesquisa, relacionada ao baixo grau de penetração nas
instituições de pesquisa dos debates sobre o racismo,
seus impactos na saúde e suas formas de enfrentamento.
196
dos processos que geraram a Reforma Sanitária e a
criação do Sistema Único de Saúde. No entanto, é
As reivindicações da população negra e de mo- possível verificar que essa presença, apesar de ter
vimentos sociais − especialmente o Movimento de contribuído para a concepção de um sistema
Mulheres Negras e do Movimento Negro − por universal de saúde com integralidade, equi-dade e
mais e melhor acesso ao sistema de saúde participaram participação social, não foi suficiente para inserir,
da esfera pública ao longo dos vários períodos da no novo Sistema, mecanismos explícitos de
história das mobilizações negras, principalmente superação das barreiras enfrentadas pela população
no período pós-abolição, e se intensificaram na negra no acesso à saúde, particularmente aquelas
segunda metade do século XX, com forte expressão nos interpostas pelo racismo.
movimentos populares de saúde, chegando a participar

8 Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.535-549, 2016


197

A vinculação entre racismo e vulnerabilidades razões étnicas. O acesso a serviços de saúde é mais
em saúde chegou à agenda da gestão pública com difícil e o uso de meios diagnósticos e terapêuticos
mais força após a realização da Marcha Nacional

9 mais precário produzindo, em geral,


Zumbi dos Palmares em 1995. Essa marcha, que evolução e prognóstico piores para as
levou a Brasília milhares de ativistas de todas as doenças que afetam negros no Brasil
regiões do país, provocou a criação do Grupo de (Brasil, 2001, p. 9-10).
Trabalho Interministerial para a Valorização da
População Negra (GTI), reunindo ativistas, pes-
quisadores e representantes do governo para a
formulação de propostas de ação governamental. No
âmbito da saúde, o qual contava com a participação de
representação do respectivo Ministério, o GTI

realizou uma Mesa Redonda sobre Saúde da Popu-lação


Negra (1996), resultando na proposição de um
conjunto de medidas. Entre elas, estavam: a inser-ção
do quesito raça/cor na Declaração de Nascidos Vivos e de
Óbitos; a criação do Programa de Anemia Falciforme
(PAF) e a detecção precoce da doença via triagem
neonatal a partir do Programa Nacional a ser criado; a
restruturação da atenção à hipertensão arterial e ao diabetes
mellitus; o fortalecimento e extensão do então
Programa de Saúde da Família até as comunidades
quilombolas; além de o Ministério da Saúde publicar, em
1998, o documento “A Saúde da População Negra,
realizações e perspectivas” e, em 2001, o “Manual de
doenças mais importantes, por razões étnicas, na
população brasileira afrodes-cendente”. Este voltava-
se para doenças de origem genética comprovada, como
doença falciforme, deficiência de glicose-6-fosfato-
desidrogenase, hi-pertensão arterial, diabetes mellitus e
as síndromes hipertensivas na gravidez, deixando de fora
aquelas cuja origem genética não foi estabelecida, como no
caso dos miomas uterinos e da síndrome leucopê-
nica, e aquelas sob determinação social evidente, como
desnutrição, verminoses, gastroenterites,

tuberculose e outras infecções, alcoolismo e


outras que, segundo os autores:

são mais incidentes na população negra, e não


por
198

Note-se que, naquele momento, já se equidade”, resultado do trabalho conjunto de


demonstrava certo grau de compreensão dos especialistas reunidos pelas Nações Unidas no
vários aspectos envolvidos na saúde da Brasil em dezembro de 2001. Esse documento
propôs uma definição do campo abarcado pela
população negra, ainda que as medidas
saúde da população negra, que incluiria “as doenças,
propostas tenham sido insuficientes para
agravos e condições mais freqüentes na população
abordar com profundidade suas consequências.
negra”, classificando-os como:
Tais informações fizeram parte dos
informes leva-dos pelo governo do Brasil à
III Conferência Mundial contra o Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias 10 Geneticamente determinadas – anemia falcifor-me
Correlatas, realizada na África do Sul em 2001 e deficiência de glicose 6-fosfato desidrogenase;
e convocada pela Organização das Nações ou dependentes de elevada frequência de genes
responsáveis pela doença ou a ela associadas – hi-
Unidas (ONU).
pertensão arterial e diabete melito. […] (ii) Adqui-
ridas, derivadas de condições socioeconômicas
A realização dessa Conferência (na qual a saúde da desfavoráveis – desnutrição, mortes violentas,
população negra recebeu formulações interes- mortalidade infantil elevada, abortos sépticos, anemia
santes, especialmente durante seu componente regional, ferropriva, DST/AIDS, doenças do trabalho,
ou seja, na Conferência das Américas realizada em transtornos mentais resultantes da exposição ao racismo
Santiago, Chile) e sua Declaração e Plano de Ação e ainda transtornos derivados do abuso de substâncias
criaram as condições para que se desse mais um psicoativas, como o alcoolismo e a toxicomania. […]
passo em direção à construção de pro-postas para a (iii) De evolução agravada ou de tratamento
atenção à saúde da população negra no Brasil. O dificultado – hipertensão arterial, diabete melito,
principal exemplo foi a elaboração do documento coronariopatias, insuficiência renal crônica, câncer
“Subsídios para o debate sobre a Política Nacional e mioma. […] (iv) Condições fisio-
de Saúde da População Negra: uma ques-tão de

Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.535-549, 2016 537


199

lógicas alteradas por condições socioeconômicas Um aspecto fundamental desse documento


está em apontar o racismo e a discriminação como de-
terminantes associados ao adoecimento e à morte
– crescimento, gravidez, parto e
precoce de mulheres e homens negros. Oferece,
envelhecimento

assim, ferramentas avançadas para a mobilização


(Sistema das Nações Unidas, 2001, p. 5- social e para as iniciativas necessárias a fim
6, grifos no original). de dar maior amplitude às ações para
incorporação da temática no SUS.

A partir daí, novos passos foram dados,


A partir daí, propunha-se uma Política que culminaram com: a criação do Comitê
Nacional baseada nos seguintes componentes: Técnico de Saúde da População Negra em 2003
(formalizado

É Produção do conhecimento científico – or-


ganização do saber disponível e produção de
conhecimentos novos, de modo a responder a
dúvidas persistentes e dar consequência

à tomada de decisões no campo da


saúde da população negra.

É Capacitação dos profissionais de saúde


– promoção de mudanças de comportamento de
todos os profissionais da área de saúde,
através da formação e treinamento adequa-dos
para lidar com a diversidade da socie-dade
brasileira e com as peculiaridades do processo
saúde/doença da população negra.

É Informação da população – disseminação de


informação e conhecimento sobre potencia-
lidades e suscetibilidades em termos de saú-de,
de modo a capacitar os afrodescendentes a
conhecer seus riscos de adoecer e morrer, e
facilitar a adoção de hábitos de vida sau-dável e
a prevenção de doenças.
É Atenção à saúde – inclusão de práticas de
promoção e educação em saúde da população negra
nas rotinas assistenciais e facilitação do acesso em
todos os níveis do sistema de saúde (Sistema
das Nações Unidas, 2001, p. 8).
200

particular as populações quilombolas,


em 2004 através da Portaria nº 2.632/2004), ins-tância às ações e aos serviços de saúde.
consultiva vinculada à Secretaria Executiva do
Ministério da Saúde com papel de assessorá-lo; a
organização do I e II Seminários Nacionais de Saúde 14 – incluir o tema Combate às Discriminações
da População Negra (2004 e 2006); a inser-ção da de Gênero e Orientação Sexual, com des-
temática nas proposições das Conferências taque para as interseções com a saúde da
Nacionais de Saúde (especialmente a partir da 11º população negra, nos processos de formação

e educação permanente dos trabalhadores


Conferência realizada em 2000 e as subsequentes); da saúde e no exercício do controle
social.
e a criação de uma vaga para o Movimento
Negro no IV – identificar, combater e prevenir
situações de abuso, exploração e
Conselho Nacional de Saúde (CNS), em 2005, após violência, incluindo assédio moral, no
68 anos de existência desse conselho. A participa-ção da ambiente de trabalho.
representação negra no CNS permitiu as articulações e
ações necessárias para instituição da Política
V – aprimorar a qualidade dos sistemas de
Nacional de Saúde Integral da População Negra
infor-mação em saúde, por meio da inclusão do
(PNSIPN), aprovada pelo CNS em novembro de 2006.
que-sito cor em todos os instrumentos de coleta
A PNSIPN reitera a relação entre racismo e vulnerabilidade
de dados adotados pelos serviços públicos, os
em saúde, tendo como objetivos:
conveniados ou contratados com o SUS.

I – garantir e ampliar o acesso da população negra VI – melhorar a qualidade dos sistemas de


residente em áreas urbanas, em par-ticular nas informação do SUS no que tange à
regiões periféricas dos grandes centros, às
coleta, processamento e wwanálise dos
dados de-sagregados por raça, cor e etnia.
ações e aos serviços de saúde.

VII – identificar as necessidades de saúde da


II – garantir e ampliar o acesso da população
população negra do campo e da floresta e
negra do campo e da floresta, em

2 Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.535-549, 2016


201

das áreas urbanas e utilizá-las como critério de Como resposta, as mobi-lizações inseriram seus
planejamento e definição de prioridades. objetivos no corpo da Lei nº 12.288/2010 (Brasil,
2010) aprovada pelo Congresso Nacional em 2011. A
partir de então, a atenção à saú-de da população negra em
VIII – definir e pactuar, junto às três seus diferentes aspectos passou a ser regulamentada via lei
esferas de go-verno, indicadores e federal, como estratégia de provocar respostas necessárias.
metas para a promoção da equidade No entanto, além do rechaço mais ou menos explícito
étnico-racial na saúde. por parte de muitos, verificou-se, também, uma pro-
funda ignorância acerca dos diferentes elementos
envolvidos nos processos de realização de ações e
IX – monitorar e avaliar os indicadores e as me-
tas pactuados para a promoção da saúde da
população negra visando reduzir as iniqui-
dades macrorregionais, regionais, estaduais
e municipais.

X – incluir as demandas específicas da população

negra nos processos de regulação do


sistema de saúde suplementar.

XI – monitorar e avaliar as mudanças na cultura


institucional, visando à garantia dos princí-
pios antirracistas e não-discriminatório; e XII –
fomentar a realização de estudos e pesquisas
sobre racismo e saúde da população negra

(Brasil, 2009).

Destaque-se que a PNSIPN, através de seu


objeti-vo específico III, busca inserir a
interseccionalidade de gênero e raça como
aspecto importante da saúde da população negra,
permitindo apontar para um campo de ação
específico na área de saúde da mu-lher,
entre outros.

Apesar de ter cumprido todo o processo de


formalização requerido pelo SUS – aprovação pelo
CNS (2006); publicação no diário oficial (2008);
elaboração de Plano operativo; pactuação na Co-missão
Intergestores Tripartite com atribuição de
responsabilidades para cada um dos entes fe-derativos
(2009) – a PNSIPN não angariou adesão suficiente à
gestão do SUS.
202

estratégias necessárias, que explicam o porquê da cuidado, mas também por serem as mulheres negras a
PNSIPN não ter sido adequadamente parte expressiva de trabalhadoras de saúde das
implementada após esses anos. diferentes profissões. As instituições de pesquisa,
os órgãos de fomento e as instâncias de gestão do
Sistema Único de Saúde permaneceram ausentes na
A seguir, serão apresentadas algumas informa- maior parte desse processo e ainda necessitam de
ções sobre os diferentes elementos
atuação mais consistente e capaz de responder ade-
envolvidos na saúde da população negra e na
quadamente às demandas largamente expressas.
saúde da mulher negra como forma de subsidiar
novas formulações, pesquisas e ações, e,
principalmente, no desejo de contribuir para a Cabe reconhecer que, como campo de
efetiva implementação da PNSIPN no SUS. pesquisa, formulação e ação, a saúde da
população negra se justifica: pela participação
expressiva da população negra no conjunto
Racismo e saúde da da população brasileira; por sua presença
população negra majoritária entre usuários do Sistema Úni-co de
Saúde; por apresentarem os piores indicadores
sociais e de saúde, verificáveis a partir da
Como visto acima, grande parte das desagre-gação de dados segundo raça/cor; pela
formulações conceituais de diretrizes e estratégias e da necessidade de consolidação do compromisso do
atuação em saúde da população negra teve origem fora sistema com a universalidade, integralidade e
do sistema de saúde, a partir da atuação dos sujeitos ne- equidade, apesar deste último ter sido
gros organizados, de suas análises, conhecimentos e longamente negligenciado, especialmente do
valores. Nesse processo de formulação, as mulheres
ponto de vista da justiça social; pela existência
negras tiveram especial destaque, não apenas por sua
de obrigação amparada em instru-mentos legais1.
experiência histórica e cultural nas ações de

/ Convenção Internacional para Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial/1965; Lei nº 7.437/1985; Lei nº
12.288/2011; portaria do Ministério da Saúde nº 992/2009.

Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.535-549, 2016 539


203

Como visto, o principal elemento constituinte desse programas dirigidos a populações vulneráveis e o
campo é o reconhecimento do racismo com um dos fatores desenvolvimento de ações para reduzir disparidades
centrais na produção das iniquidades em saúde entre grupos, além de medidas de saúde, amplas para toda
experimentadas por mulheres e homens negros, de todas a população. Essa visão pressupõe a geração de
as regiões do país, níveis educacio-nais e de renda, informações desagregadas, bem como a tomada de
em todas as fases de sua vida. Esse reconhecimento, decisão em oposição ao status quo produtor ou mantenedor
conquistado no plano político, ainda não foi suficiente das desvantagens.
para ocupar o vazio deixado pela quebra da hegemonia
das teorias eugênicas nas pesquisas do campo das ciências
2 Nota-se que esse modelo surge ao menos dez anos
da saúde .
após as formulações decorrentes da ação do GTI e
das medidas de saúde da população negra por ele
Em 2005, a Comissão de Determinantes propostas. Caso tivesse havido decisão consis-tente
Sociais em Saúde (CDS) da Organização Mundial nessa direção, os dois aportes poderiam ter ampliado o
de Saúde apresentou o conceito de determinantes rol de medidas propostas e favorecido a atuação do
sociais de saúde como um processo complexo no qual SUS em relação à população negra.
parti-cipam fatores estruturais e fatores intermediários
da produção de iniquidades em saúde (ver Figura
No entanto, as decisões de política e gestão de
1). Nele, o racismo e o sexismo estão incluídos
saúde têm sido tomadas como se os dados não indi-cassem
como fatores estruturais produtores da hierarquização
a ampla disparidade e o tratamento desigual que a
social associada a vulnerabilidades em saúde.
sociedade e o Sistema Único de Saúde pro-duzem ou
Esse conceito, ainda, apontava que, para se enfrentar
sustentam, com enormes prejuízos para negros e
adequadamente as iniquidades em saúde, seriam
indígenas, principalmente, diferentemente dos
necessárias medidas que incluiriam a criação de
brancos. Os dados epidemiológicos desagregados
segundo raça/cor são consistentes o suficiente para

Figura 1 – Modelos de Determinantes da Equidade em Saúde, 2005


204

Extraído de: OMS, Comissão de Determinantes Sociais de Saúde (2005)

4 Para maiores informações sobre a eugenia no Brasil e América Latina ver Nancy L. Stepan “The Hour of Eugenics”: Race, Gender, and

Nation in Latin America Ithaca and London: Cornell University Press, 1991.

5 Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.535-549, 2016


205

É um dispositivo de poder, pois, segundo Foucault


indicar o profundo impacto que o racismo e as ini- (apud Carneiro, 2005, p. 36), trata-se de:
quidades raciais têm na condição de saúde, na carga de
doenças e nas taxas de mortalidade de negras e negros
de diferentes faixas etárias, níveis de renda e
locais de residência. Eles indicam, também, a in-
um conjunto decididamente heterogêneo que
suficiência ou ineficiência das respostas oferecidas
para eliminar o gap e contribuir para e redução das
vulnerabilidades e para melhores condições de engloba discursos, instituições, organizações
vida da população negra. arquitetônicas, decisões regulamentares, leis,
medidas administrativas, enunciados científicos,
proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em
Para enfrentar tais limitações, é preciso compre-
suma, o dito e o não-dito são os elementos do
ender um pouco mais o racismo, reconhecido em sua
dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode
dimensão ideológica que conforma as relações de po-
der na sociedade, participando, portanto, das políticas
públicas, uma vez que estas estão entre os mecanismos de estabelecer entre estes elementos (apud
redistribuição de poder e riqueza existentes. Uma Carneiro, 2005, p. 36).

aproximação interessante foi posta por Sueli


Carneiro

(2005), que propôs a utilização do conceito de disposi-

tivo desenvolvido por Foucault, uma vez que,

oferece recursos teóricos capazes de


apreender a heterogeneidade de práticas que o
racismo e a discriminação racial engendram
na sociedade brasileira, a natureza dessas
práticas, a maneira como elas se articulam e
se realimentam ou se realinham para cumprir
um determinado objetivo estratégico
(Carneiro, 2005, p. 39).

O dispositivo instaura um ordenamento ampa-


rado na racionalidade, que permite hierarquizar e
estruturar o poder de determinação das formas de
relações sociais como privilégio de um grupo parti-
cular de seres humanos. Permite, ainda, a validação da
raça como atributo sociológico e político.
206

A partir daí, a autora delineia um dispositivo de atuam de modo concomitante, produzindo efeitos
racialidade, ferramenta conceitual para explicitar as
formas como o racismo penetra os diferentes campos da
sobre os indivíduos e grupos (não apenas de suas
vida social e produz seus resultados, o que nos permite
vítimas), gerando sentimentos, pensamentos, con-
compreender como o racismo estrutura profundamente
dutas pessoais e interpessoais, atuando também
o escopo de democracia no Brasil, reduzindo a
abrangência da cidadania por estar na base da criação e
manutenção de preconceitos, ou seja, ideias e imagens sobre processos e políticas institucionais.
estereotipadas e inferiorizan-tes acerca da diferença do Apesar da intensidade e profundidade de seus
outro e do outro diferente, justificando o tratamento efeitos deletérios, o racismo produz a naturalização
desigual (discriminação). das iniquidades produzidas, o que ajuda a explicar
a forma como muitos o descrevem, como sutil ou
invisível.
Em sua expressão na vida de indivíduos e
grupos, o racismo assume três dimensões
principais, segun-do o modelo proposto por Segundo Jones (2002), o racismo internalizado
Jones (2002), resumido na Figura 2. traduz a “aceitação” dos padrões racistas pelos indi-
víduos, incorporando visões e estigmas. O racismo
interpessoal se expressa em preconceito e discrimi-nação,
condutas intencionais ou não entre pessoas.
A partir daí, o racismo pode ser visto também
como um sistema, dada sua ampla e complexa atu-ação,
seu modo de organização e desenvolvimento através de Já o racismo institucional (RI), que possivelmente
estruturas, políticas, práticas e normas capazes de
definir oportunidades e valores para pes-soas e
j) a dimensão mais negligenciada do racismo, deslo-ca-se
populações a partir de sua aparência (Jones,
da dimensão individual e instaura a dimensão estrutural,
2002), atuando em diferentes níveis.
correspondendo a formas organizativas, políticas,
práticas e normas que resultam em trata-mentos e
As três dimensões do racismo apontadas acima resultados desiguais. É também denomina-do racismo
sistêmico e garante a exclusão seletiva

Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.535-549, 2016 541


207
Figura 2 – Dimensões do racismo, 2013

Fonte: Baseado no modelo proposto por Jones (2002)


208

dos grupos racialmente subordinados, atuando como


alavanca importante da exclusão diferenciada de diferentes
sujeitos nesses grupos. O conceito foi cunhado pelos
ativistas do grupo Panteras Negras, Stokely Carmichael e O conceito de “racismo institucional”
Charles Hamilton, em 1967, como capaz de produzir: “A guarda relação com o conceito de
falha coletiva de uma organização em prover um serviço
“vulnerabilidade progra-mática”, desenvolvido
apropriado e profissional às pessoas por causa de sua
por Mann e Tarantola (1992) para analisar
cor, cultura ou origem étnica” (Carmichael; Hamilton,
aspectos da epidemia de HIV/Aids. Para
1967, p. 4);
Ayres (2003, p. 125), o conceito de
Desse ponto de vista, ele atua de forma a “vulnerabi-lidade” abrange
induzir,

manter e condicionar a organização e a ação do Esta- O conjunto de aspectos individuais e coletivos


do, suas instituições e políticas públicas – atuando
também nas instituições privadas – produzindo e
relacionados ao grau e modo de exposição a
reproduzindo a hierarquia racial. uma dada situação e, de modo indissociável,
ao menor ou maior acesso a recursos
Atualmente, já é possível compreender adequados para se proteger tanto do agravo
que, mais do que uma insuficiência ou quanto de suas consequências indesejáveis.
inadequação, o RI é um mecanismo performativo
ou produtivo, capaz de gerar e legitimar condutas
excludentes, tanto no que se refere a formas de
governo quanto de accountability.
Três diferentes dimensões interligadas
atuam na produção de maior ou menor
Para que seja efetivo, o RI deve dispor de plas-
vulnerabilidade de pessoas e populações a
ticidade suficiente para oferecer barreiras amplas
determinadas condições. São elas:

– ou precisamente singulares – de modo a permitir


a realização de privilégio para uns, em detrimento
KK. dimensão individual – na qual estão inseri-
de outros, em toda sua ampla diversidade.
dos comportamentos que desprotegem.

LL. dimensão social – destaca as condições polí-


ticas, culturais, econômicas etc., a partir do
que produz e/ou legitima a vulnerabilidade.

7 Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.535-549, 2016


209

8 dimensão política ou programática – ações e políticas específicas geram opressões que


refere--se à ação institucional voltada para fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspec-
a gera-ção da proteção e/ou redução da
vulnerabili-dade de indivíduos e grupos,
na perspectiva de seus direitos humanos. tos dinâmicos ou ativos do
desempoderamento (Crenshaw, 2002, p.
177).
Dessa perspectiva, “racismo institucional”
equi-valeria a ações e políticas institucionais
capazes de produzir e/ou manter a
vulnerabilidade de indivídu-os e grupos sociais
Assim, ao destacar a intersecção, a conexão, a
vitimados pelo racismo.
interdependência das diferentes “variáveis” presen-tes
nas relações sociais e políticas, essa ferramenta
Ainda que o papel do racismo na permite dar um sentido mais complexo a noções
determinação das condições de vida e saúde
seja reconhecido, é importante reconhecer,
também, a existência de codeterminantes, ou
seja, outros fatores que atuam
concomitantemente, aprofundando ou reduzindo
seu impacto sobre pessoas e grupos. Como ferra-
menta útil para a compreensão desse
fenômeno, Crenshaw (2002) cunhou o
conceito de “intersec-cionalidade”:

A associação de sistemas múltiplos de subordina-ção


tem sido descrita de vários modos: discrimina-ção
composta, cargas múltiplas, ou como dupla ou tripla
discriminação. A interseccionalidade é uma
conceituação do problema que busca capturar as
consequências estruturais e dinâmicas da intera-

ção entre dois ou mais eixos de subordinação. Ela


trata especificamente da forma pela qual o racismo,

o patriarcalismo, a opressão de classe e outros


sistemas discriminatórios criam
desigualdades

básicas que estruturam as posições relativas de

mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além


disso, a interseccionalidade trata da forma
como
210

de diversidade, diferença e discriminação. A dos serviços de saúde. Entre estes estão barreiras
inter-seccionalidade permite visibilizar as pessoais e familiares, capazes de influenciar o grau
diferenças intragrupo, inclusive entre aqueles
de aproximação ou afastamento de usuários em
vitimados pelo racismo, favorecendo a
relação ao modelo de saúde em uso; os paradigmas
elaboração de ferramentas conceituais e referendados por eles, o que inclui o grau de infor-
metodológicas mais adequadas às diferentes mação e compreensão das linguagens e perspecti-
singularidades existentes. Permite, ainda, maior vas utilizadas; além da adoção ou não de hábitos
consistência na compreensão dos modos de
aproximação e realização dos princípios de
saudáveis de vida e do nível educacional e de renda
universalidade, integralidade e equidade na

política pública. (frequentemente mais baixo para integrantes dos

grupos raciais discriminados). Entre as barreiras


Modos, momentos e oportunidades estruturais, está, também, o montante de financia-

mento da saúde, que nos permite apontar processos


A partir da constatação da presença do racismo e de priorização e redistribuição, bem como, no caso
seus efeitos deletérios sobre a saúde e a prestação de dos serviços privados e planos de saúde, destaca o
serviços, Cooper, Hill e Powe (2002) desenhou um
modelo voltado para apoiar a reflexão concei-tual e
a intervenção (ver Figura 3). Esse modelo, uma grau de cobertura e garantias incluídas. É preciso
adaptação e ampliação de modelos anteriores criados recordar que a qualidade e cobertura dos seguros saúde
3 estão vinculadas diretamente à capacidade financeira
por autores do Reino Unido e dos Estados Unidos ,
dos usuários, que, por sua vez, vincula-se a seu
aborda a promoção da equidade racial em saúde a partir
nível de renda. Já no sistema público, há forte
da visibilidade e intervenção sobre os fatores que
correlação entre as regiões habitadas por popula-
interferem em seu acesso e utilização

9 Como Tackling inequalities in health: an agenda for action, editado por Michaela Benzeval, Ken Judge e Margaret Whitehead (London:

Kings Fund: 1995); e Access to Health Care in America, do Institute of Medicine, editado por Michael Millman (Washington, DC: National

Academy Press: 1993).

Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.535-549, 2016 543


211
Figura 3 – Barreiras e mediadores da atenção em saúde para equidade racial e étnica, 2002

BARREIRAS UTILIZAÇÃO DOS

SERVIÇOS MEDIADORES RESULTADOS

Pessoal/familiar
Visitas Qualidade dos servidores/ Condição de saúde

13 Aceitabilidade • Alteração básica prestadores de serviço • Mortalidade

14 Cultura • Especialidades • Competência • Morbidade

15 Idioma/informação para saúde • Emergência cultural • Bem-estar

16 Atitudes, crenças Procedimentos • Capacidade de • Funcionalidade

17 Preferências comunicação
• Prevenção
18 Envolvimento no cuidado
• Conhecimento
19 Hábitos saudáveis (ou não) • Diagnóstico Equidade nos serviços

20 Educação/nível de renda médico


• Tratamento
Estrutural
• Competência
Visões do paciente
10. Disponibilidade técnica

11. Agendamento sobre o cuidado


• Preconceito/
12. Grau de organização
• Experiências
13. Transporte estereótipo
• Satisfação
Financimanto
Adequaçào do cuidado • Parceria efetiva

Adesão da/do paciente

Extraido de: Cooper, Hill e Powe (2002, tradução nossa)


212
ções de renda mais baixa e precariedade da oferta
de recursos pelo Sistema Único de Saúde. Como
diferentes estudos apontam, há forte correlação no
Brasil entre raça, racismo, discriminação racial
que favorece homens brancos em detrimento dos
(incluindo suas interseccionalidades) e renda, ca-
demais grupos (Marinho; Cardoso; Almeida, 2011).
bendo aos grupos racialmente discriminados ocupar
patamares inferiores e estando sujeitos a ofertas de
ações de saúde pública ou privada precárias. Outro nível de análise e atuação foi classificado
pelos autores como mediadores, que fazem referên-cia
ao fator humano e destacam, além da qualidade de sua
O modelo destaca, também, a necessidade de
atuação, suas possibilidades de favorecer ou limitar o
in-tervenção sobre o modo de organização dos serviços
acesso de usuários aos diferentes recursos necessários.
de saúde disponíveis, facilitando a disponibilidade
Nesse grupo, incluem-se habilidades técnicas e pessoais,
de acesso integral, ou seja, aos diferentes níveis
considerando, também, a capa-cidade de aceitação e
de atendimento. O conhecimento da existência e
respeito à diversidade racial e cultural existente, bem
da intensidade de limitações nesse nível pode
como recomenda um olhar sobre a forma como
favore-cer a adoção de medidas singulares e adequadas
gestores e profissionais de saú-de atuam, incluindo a
a cada caso para sua superação e aproximação entre
análise de sua capacidade de comunicação; sua
usuários e o serviço de saúde.
competência cultural, ou seja, sua capacidade de
reconhecer e dialogar com a diferença cultural que se
O nível da utilização dos serviços aponta para a apresenta; e seu comportamento (se
perspectiva da integralidade, ou seja, questiona as
possibilidades de acesso e utilização por parte de usuários
13 preconceituoso, se produz ou reforça
de grupos raciais discriminados aos diferentes níveis de
estereótipos). Nesse grupo estão incluídos, também,
atenção, da primária à de alta complexidade, no
a adequação do cuidado oferecido, a eficácia do
tempo necessário. Está incluído nesse nível, também,
tratamento e o grau de adesão de usuários. É importante
o acesso adequado a medidas preventivas, de
recordar que o racismo e a longa trajetória de
diagnóstico e tratamento. No Bra-sil, um estudo do
discriminações, combinados à persistência da
IPEA sobre acesso a transplantes demonstrou a
precariedade e baixa qualidade dos serviços destinados a
importância dos diferenciais raciais e de gênero no
determinadas camadas da população, interpõem-se
acesso a transplantes em nosso país,
entre profis-sionais e usuários, influenciando visões
preconcei-tuosas e estereotipadas por parte de
profissionais em relação a integrantes de grupos
subordinados e dificultando o estabelecimento de
relações de

* Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.535-549, 2016


213

confiança, seja entre profissionais e Por essa razão, são referidos como inexis-tentes na
usuários, ou entre estes e os serviços e todo o visão daqueles ainda não adequadamente preparados –
sistema de saúde. ou interessados – para efetuar diagnós-ticos mais
precisos a partir de visões mais amplas do que
aquelas oferecidas pelo modelo biomédico.
Nesse modelo, os resultados da ação, que in-cluem
dados epidemiológicos, a visão de usuários e a
constituição ou não de efetiva parceria entre usuários e Essa incapacidade é um dos fatores subjacente às
sistema, também podem funcionar como indicadores das dificuldades ou impedimentos ao alcance pleno das
disparidades e tratamento desigual, atuando, ainda, possibilidades e resultados das ações, programas e
como indicadores da eficiência das ações para a
equidade, o que expõe a necessidade da produção
de informações desagregadas por raça/ cor e o
desenvolvimentos de mecanismos de diálo-go e
participação que garantam a inserção desses grupos e de
sujeitos nos processos de formulação, monitoramento e
avaliação das políticas e ações.

O aspecto fundamental que esse modelo oferece

é a possibilidade de analisar o racismo e seus


efeitos na saúde, além de visibilizar modos,
momentos e oportunidades de ação.

Como dito aqui, com o racismo, outros eixos de


subordinação atuam para a produção de quadros de
destituição e vulnerabilidades. Essa codeter-
minação possivelmente está associada aos graves
indicadores sociais e de saúde das mulheres ne-
gras que certamente participam das altas taxas de
morbidade e de mortalidade precoce ou por causas
evitáveis.

Em cada um dos momentos apontados no mo-


delo, mecanismos seletivos de privilegiamento e
barreiras – por exemplo, linguagens, procedimentos,
documentos necessários, distâncias, custos, eti-quetas,
atitudes etc. – poderão ser interpostos sem qualquer
mecanismo de controle ou barreira, difi-cultando ou
impedindo a plena realização do direito e o atendimento
às necessidades expressas. Assim, instaura-se em cada
um deles, e em todo o percurso, lógicas, processos,
procedimentos, condutas, que vão impregnar a cultura
institucional – o que, se não os torna invisíveis, faz
parte da ordem “natural” das coisas.
214

políticas institucionais, perpetuando a exclusão ra- saúde das mulheres negras requerem o desenvol-
cial. Por outro lado, produz ou perpetua privilégios. vimento de ações afirmativas em diferentes níveis,
o que implica o estabelecimento de medidas singu-
larizadas, baseadas em diagnósticos aprofundados e
Um aspecto importante assinalado por igualmente singularizados, os quais devem funda-
King (1996), que justifica a adoção de mentar o desenho de processos, protocolos, ações
medidas específicas e afirmativas para se e políticas específicos segundo as necessidades e
eliminar privilégios e exclu-sões, refere-se singularidades de cada grupo populacional. Assim,
ao fato de que “Pessoas e organiza-ções
que se beneficiam do racismo institucional 2 preciso estabelecer medidas facilitadoras da apro-
são refratárias a mudanças voluntárias do status ximação e acesso, de modo a superar as barreiras
quo” (King, 1996, p. 33). interpostas ao exercício do direito à saúde pelas
mulheres negras. É necessário, também, utilizar
métodos e linguagens inteligíveis, que respeitem e
Através delas, instaura-se oportunidade para a
dialoguem com os diferentes valores, crenças e visões
criação de medidas e mecanismos capazes de
quebrar a invisibilidade do RI e de romper a cul- de mundo, os quais devem ser produzidos com a
tura institucional, estabelecendo novas proposi- participação dos sujeitos a que se quer beneficiar;
ções e condutas que impeçam a perpetuação além de priorizar ou incluir diferentes grupos de
das iniquidades. mulheres negras – que vivenciam condições seme-
lhantes de idade, de local de moradia, de geração, de
orientação sexual, de condição física e mental etc.
–, de vendo ser adequadamente informados em cada
Ações afirmativas e outras medidas uma das fases da tomada de decisões
terapêuticas, de processos e de políticas.

Um aspecto importante das ações afirmativas


A eliminação das disparidades raciais na saúde e a
refere-se à criação de estímulos à formação de su-
produção de respostas adequadas para a promoção de
jeitos pertencentes aos grupos discriminados nas

Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.535-549, 2016 545


215

profissões da área de saúde − o que inclui a Além de reconhecer a determinação legal


carreira médica, mas não apenas ela − e de esta-belecida por meio de diferentes
medidas que per-mitam sua ascensão funcional aos instrumentos, é preciso reconhecer que a
mais altos cargos de tomada de decisão, além de
qualificação de gestores e profissionais,
requisitar a adoção de atitudes que estimulem, reforcem
além de usuários e população em geral, é
e garantam a permanência desses profissionais nos
fundamental para a produção de mudanças
territórios de origem ou naqueles com maior
necessidade, incluindo modelos apropriados e consistentes na cultura institucional.
sustentáveis de gestão pública dos serviços e do sistema.
Essas mudanças devem ser capazes de alterar
Não se pode negligenciar a importância da cons- as formas de atuação cotidiana tanto quanto os processos
tituição de processos de monitoramento e avaliação de planejamento, monitoramento e ava-liação, e de
consistentes, que privilegiem indicadores sensí- envolver ações em três diferentes níveis
veis, capazes de serem manejados pelos diferentes
sujeitos envolvidos e adequados à mensuração das
disparidades raciais na saúde e seus processos de
eliminação. Esses processos, que precisam incluir
a participação das mulheres negras, devem se apoiar em
ampla divulgação de informações acerca dos
benefícios e das necessidades de utilização de
indi-cadores de monitoramento e avaliação apoiados na
informação sobre raça/cor – um modo de diminuir
resistência e estabelecer confiança.

Por outro lado, é preciso intensificar a


agenda de pesquisas em saúde da população
negra e das mu-lheres negras com a realização
de editais de fomento com financiamento
adequado, capazes de estimular, inclusive,
inovações conceituais e metodológicas
necessárias à melhor aproximação e análise da
complexidade envolvida nas iniquidades raciais
em saúde, especialmente aquelas que atingem as
mulheres negras.

Uma das contribuições fundamentais


para a eli-minação das disparidades raciais em
saúde e para a promoção da saúde das mulheres
negras refere-se à eliminação do RI, que
impregna o Sistema Único de Saúde em todos
seus níveis e esferas.
216

ou oportunidades, que são: acesso e utilização; (2) ação integrada a outras políticas
processos institucionais internos; resultados das setoriais como educação, emprego,
ações e políticas públicas. As ações relativas previdência e assistência social;
a cada um dos níveis estão descritas a seguir.
(3) treinamento de equipes para
abordagem singularizada e para
enfrentamento do ra-cismo;
Acesso e utilização
(4) estabelecimento de metas de cobertura
para grupos populacionais excluídos;
São ações para ampliação do acesso e utilização
(5) inserção da promoção da equidade
das políticas públicas de saúde, incluindo ações de
racial e de gênero como dimensão
promoção pelas mulheres negras, e devem permitir a
estratégica e objetivo dos ciclos de
aproximação física e cultural entre instituições
públicas e as mulheres negras. Tais iniciativas de
planejamentos e orçamento públicos,
aproximação implicam não apenas eliminação de entraves, especialmente da saúde, nas três esferas
que impedem o agente público de alcançar as mulheres de gestão;
negras e cada uma entre elas, como também em maior
disponibilização de infraestru-tura acessível a elas. Ou (6) ampliação da representação negra,
seja, deverão envolver esforços institucionais em com equidade de gênero (de modo
deslocar-se – fisicamente e em relação à cultura proporcional a sua participação na
institucional – em direção a esse grupo excluído ou sub- população geral);
representado. Alguns exemplos de ações possíveis
nesse nível envolvem: (7) estabelecimento de metas de eliminação do

RI e das disparidades raciais e de gênero


nas políticas;
(1) diagnóstico das características da
popula-ção segundo raça/cor e
(8) ampliação da participação negra, com
sexo/identidade de gênero;
equidade de gênero, e das informações para

546 Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.535-549, 2016


217

a promoção da equidade na comunicação (4) estabelecimento de ações afirmativas


pública e privada; para ampliação da participação de
mulheres negras e para ampliação da
(9) ampliação do investimento público diversidade cultural, racial e de
dirigido à eliminação do racismo e à identidade de gênero na gestão e nas
iniquidade de gêne-ro; equipes de trabalho, nos diferentes
níveis de gestão: programas de
(10) ampliação das redes do Sistema Único de
qualificação, cotas, treinamento das
Saúde, especialmente aquelas sob ges-tão equipes para maior aceitabilidade etc.;
pública estatal, nas regiões de maior
presença de população negra. (5) ampla divulgação de estratégias, ações
e resultados das ações institucionais de
acordo com o impacto sobre os diferentes
grupos populacionais segundo raça/cor e
Processos institucionais internos

Envolvem aqueles processos voltados para


os modos e movimentos organizativos internos, de
modo a habilitá-los a responder às necessidades
expressas ou coletadas referentes às mulheres
negras, implicando, também, disponibilizar
ações e serviços capazes de atender de modo
adequado as diferentes mulheres negras,
diminuindo e eli-minando as diferenças na
prestação de serviços e em seus resultados. São
exemplos de ações nesse nível:

(1) estabelecimento de normas e


protocolos institucionais dirigidos ao
enfrentamento do RI;

(2) criação e funcionamento articulado de


me-canismos institucionais de
enfrentamento do RI, com montante
adequado e fonte estável de
financiamento, transparência,
prestação de contas;

(3) comunicação pública de compromisso


com a diversidade e com o enfrentamento
do racismo;
218

sexo, e explicitação da realização de metas raciais aos critérios de avaliação de diferentes


diferenciadas para as mulheres; políticas de saúde;
(14)ampliação da disponibilidade de treina-
mentos para a capacidade institucional de
(6) estabelecimento de protocolos e diálogo e acolhimento da diversidade e para o
pactuações para atuação intersetorial e
enfrentamento do RI;
interinstitucio-nal;
(15)desenvolvimento de processos de
(7) inserção de mulheres negras nos avaliação periódica da competência
processos de planejamento institucional;
institucional para enfrentamento do RI;
(8) inserção de objetivos de eliminação (16)posicionamento dos mecanismos de
do RI e das disparidades raciais e de enfren-tamento do RI e eliminação das
gênero nas diferentes ações e políticas disparidades raciais e de gênero nos estratos
institucionais; superiores da hierarquia administrativa;

(9) inserção de indicadores de melhoria (17)definição de estratégias de acolhimento às


da quali-dade da prestação de serviços mulheres negras e à população;
para mulheres negras nos critérios de (18)adequação da infraestrutura de serviços
avaliação de sucesso e qualidade das
às necessidades das mulheres negras e da
políticas públicas; população negra.
(10) divulgação ampla de processos e resultados
das medidas adotadas e seus resultados;
(11)participação de mulheres negras na defini- Resultados das ações e políticas públicas
ção de indicadores de avaliação;

(12)utilização das informações originadas nos


processos de monitoramento e avaliação no Nesse nível, as ações empreendidas
novo ciclo de planejamento; devem ser capazes de realçar a mudança
institucional, vista
(13)incorporação de indicadores de enfrenta-
mento do RI e de eliminação das dispari-dades

Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.535-549, 2016 547


219

como adoção de práticas capazes de aproximar os É nessa perspectiva conceitual que as atrizes e
objetivos institucionais das necessidades das atores da rede de pesquisador@s, gestor@s e
mulheres negras. Assim, as ações envolvem líderes do movimento social vêm construindo o
os esforços institucionais de eliminação do RI a campo “saúde da mulher negra”.
partir da atuação sobre os resultados das
políticas públicas, sendo:
Referências
Por outro lado, é fundamental que, no lado da
so-ciedade civil, se constituam múltiplos
(1) pactuação de metas sanitárias de observatórios, articulados entre si, de modo a
redução da morbimortalidade segundo
garantir a replica-
raça/cor, com ênfase na morbimortalidade
de mulheres negras de diferentes
idades, orientações sexuais, condição bilidade e a sustentabilidade das ações ao
física e mental, território, entre outros, longo
visando abarcar a totalidade dos grupos
diferenciados de mulheres ne-gras;
do tempo, permitindo, então, que aprofundem seu
(2) adoção de planificação intersetorial que
permita a ampliação da cobertura das polí-
alcance de mudança do Estado e suas
ticas de seguridade social segundo raça/cor e
relações.
grupos específicos – usuários e usuárias de
saúde mental população de rua, entre outros

– articulando-se, também, com políticas


de moradia, transporte e emprego;

(3) ampliação das noções de direito pelas


mu-lheres negras;

(4) ampliação da participação de gestores


e profissionais nas ações e políticas de
elimi-nação do RI e das disparidades raciais
e de gênero na saúde.

Cabe ressaltar que o monitoramento e a avalia-ção


dos processos necessários à eliminação do RI nos três
níveis apontados aqui requerem a consti-tuição de
sistemas intra e interinstitucionais com autonomia,
capacidade operacional e competência gerencial,
adequadas ao desenvolvimento contínuo e
sustentável das ações necessárias ao
cumprimento de seu mandato. Tais atribuições
requerem, tam-bém, transparência de diálogo
permanente com a sociedade civil, especialmente com as
diferentes mulheres negras e suas representações.
220

7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de


AYRES, J. C. R. M. et al. O conceito de abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e
vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas 10.778, de 24 de novembro de 2003. Brasília,
perspectivas e desafios. In: CZERESNIA, D.; DF, 2010.
FREITAS, C. M. de. Promoção da saúde:
conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro:
Fiocruz, 2003. p. 117-140. BRAVEMAN, P. Health disparities and health
equity: concepts and measurement. Annual
Review of Public Health, v. 27, p.167-94, 2006.
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.632, de
15 de dezembro de 2004. Aprova o Regimento Interno
do Comitê Técnico de Saúde da População Negra, BRAVEMAN, P.; GRUSKIN, S. Defining
e dá outras providências. Brasília, DF, 2004.
equity in health. Journal of Epidemiology &
Community Health, v. 57, p. 254-258, 2003.

BRASIL. Secretaria Especial de Políticas de


BUSS, P. Determinantes sociais de saúde. In:
Promoção da Igualdade Racial. Política Nacional
AULA INAUGURAL DO CURSO DE
de Saúde Integral da População Negra. Brasília,
ESPECIALIZAÇÃO DE GESTÃO DE SISTEMAS
DF: Seppir, 2007.
E SERVIÇOS DE SAÚDE, 2006, Escola Nacional
de Saúde Pública. Disponível em: <http://bit.
ly/2a1jYTS>. Acesso em: 11 jul. 2016.
BRASIL. Portaria nº 992, de 13 de maio de
2009. Institui a Política Nacional de Saúde
Integral da População Negra. Brasília, DF, CARMICHAEL, S.; HAMILTON, C. Black
2009. power: the politics of liberation in America.
New York: Vintage, 1967.

BRASIL. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui


o Estatuto da Igualdade Racial; altera as Leis nos

548 Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.535-549, 2016


221
CARNEIRO, S. A construção do outro como não-
ser como fundamento do ser. 2005. Tese KING, G. Institutional racism and the medical/
(Doutorado em Educação) − Universidade de health complex: a conceptual analysis.
São Paulo, São Paulo, 2005. Ethnicity & Disease, v. 6, n. 1-2, p. 30-46, 1996.

COOPER, L. A.; HILL, M. N.; POWE, N. R. MANN, J. M.; TARANTOLA, D. J. M. (Ed.). AIDS
Designing and evaluating interventions to in the world: the global AIDS policy coalition.
eliminate racial and ethnic disparities in health Boston: Harvard University Press, 1992.
care. Journal of General Internal Medicine, v.
17, n. 6, p. 477-486, 2002.
MARINHO, A.; CARDOSO, S. de S.; ALMEIDA,
V. V. de. Desigualdade de transplantes de órgãos no
CRENSHAW, K. Documento para o Brasil: análise do perfil dos receptores por sexo e
encontro de especialistas em aspectos raça/cor. Brasília, DF: IPEA, 2011.

da discriminação racial relativos ao gênero. OMS – ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE.


Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, Comissão de Determinantes Sociais de Saúde. Rumo a
p.171-188, 2002. um modelo conceitual para análise e ação sobre os
determinantes sociais de saúde. Genebra, 5 maio
2005. Rascunho. Disponível em: <http://
JONES, C. P. Confronting institutionalized racism. www.bvsde.paho.org/bvsacd/cd57/comissao.pdf>.
Acesso em: 22 jul. 2016.
Phylon, Atlanta v. 50, n. 1, p. 7-22, 2002.

Recebido: 08/04/2014

Aprovado: 03/07/2014

Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.535-549, 2016 549


222

Disponível em:
http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/1763/1/2006_Maria%20Lucia%
20Lopes%20da%20Silva.pdf.
223
Dossiê - Desigualdades e Interseccionalidades

DOI: 10.5433/2176-6665.2015v20n2p27

Gênero, raça, classe: opressões cruzadas e convergências


na reprodução das desigualdades

Flávia Biroli1

Luis Felipe Miguel2

Resumo

O artigo analisa o percurso dos estudos sobre as convergências entre


gênero, classe e raça no debate teórico das últimas décadas, com destaque
para o feminismo. Procura apresentar um campo hoje vasto de pesquisas
que não é homogêneo, mas tem em comum o entendimento de que as
opressões são múltiplas e complexas e não é possível compreender as
desigualdades quando se analisa uma variável isoladamente. O peso
relativo de cada uma das variáveis, seu sentido e a compreensão de como
operam conjuntamente varia nas três frentes discutidas no artigo, que são
as teorias feministas marxistas ou socialistas, o feminismo negro e os
estudos das interseccionalidades.

Palavras-chave: Gênero. Classe. Raça. Interseccionalidade. Desigualdades.

Professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), Brasil, onde integra o

Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê). flaviabiroli@gmail.com

Professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), Brasil, onde integra o

Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê). luisfelipemiguel@gmail.com


2

Recebido em 31 de agosto de 2015. Aceito em 16 de novembro de 2015. 27


224

Gender, race, and class: intersecting oppressions


and convergences reproducing inequalities

Abstract

The article analyses approaches to the convergences between gender, class and race
within theoretical debates in the last decades, focusing especially on feminism. It aims
to present a broad and non-homogeneous field of researches, that has as a common
ground the understanding that oppressions are multiple and complex and it is not
possible to understand social inequalities when one variable is taken separately. The
relative prominence of each axe, its meaning and the comprehension of the way they
operate together vary in the three different sets of approaches discussed in the article:
marxist or socialist feminism, black feminism, and the studies of intersectionalities.

Key-words: Gender. Class. Race. Intersectionality. Inequalities

O debate sobre as convergências entre gênero, raça e classe tem como


ponto de partida o questionamento da possibilidade de compreender as
desigualdades presentes nas sociedades

contemporâneas levando em conta apenas uma dessas variáveis, de


forma isolada3*. Põe em xeque, assim, modelos tanto do marxismo
tradicional quanto de algumas vertentes do feminismo da chamada
“segunda onda”, que julgavam que um determinado eixo de
opressão era a raiz de todos os outros. E, mais ainda do que isso,
identifica não uma simples sobreposição entre padrões de
dominação independentes, mas um entrelaçamento complexo, o que
faz com que qualquer interpretação aprofundada do mundo social e
qualquer projeto emancipatório consequente precise incorporar
simultaneamente os três eixos.

3* Este artigo é parte do projeto de pesquisa “Convergências na reprodução das desigualdades: gênero, raça
e classe na política brasileira contemporânea”, apoiado pela FAP-DF com recursos do Edital nº 3/2015.
Ele se beneficiou das discussões ocorridas na mesa-redonda “Gênero, raça e classe: convergências na
reprodução das desigualdades”, durante o 39º Encontro Anual da Anpocs, em Caxambu (MG), em 27 de
outubro de 2015.

28 MEDIAÇÕES, LONDRINA, V. 20 N. 2, P. 27-55, JUL./DEZ. 2015


225

Outras determinantes, como geração, sexualidade, etnia,


localização no globo (ou mesmo a região em um país determinado) ou
algum tipo de deficiência física, são também importantes na construção
da posição social dos diferentes grupos de pessoas, contribuindo para
produzir as suas alternativas e os obstáculos que se colocam para sua
participação na sociedade. Como mencionado mais adiante, são
considerados em parte das abordagens que lançam mão da noção de
interseccionalidade, incorporando esse esforço, inicialmente centrado
em gênero, classe e raça, de análise de formas múltiplas de opressão.
Neste artigo, focamos no percurso da análise conjunta sobre gênero,
classe e raça no debate teórico das últimas décadas. Não suspendemos a
importância de outras variáveis, mas entendemos que as assimetrias
que se definem no entrecruzamento e constituição recíproca desses três
eixos são incontornáveis para a análise das desigualdades nas
sociedades contemporâneas. Entendemos, também, que qualquer
análise que tenha a ambição de estabelecer relações entre os limites das
democracias contemporâneas e as desigualdades sociais precisa
incorporar como problema as hierarquias que se constituem na
convergência entre os três eixos.

A dissociação dessas variáveis pode levar a análises parciais, mas


principalmente a distorções na compreensão da dinâmica de dominação e
dos padrões das desigualdades. Uma análise focada nas relações de classe
pode deixar de fora o modo como as relações de gênero e o racismo
configuram a dominação no capitalismo, posicionando as mulheres e a
população não-branca em hierarquias que não estão contidas nas de classe,
nem existem de forma independente e paralela a elas. Reduz, com isso, sua
capacidade de explicar as formas correntes de dominação e os padrões de
desigualdade. Do mesmo modo, uma análise das relações de gênero que
não problematize o modo como as desigualdades de classe e de raça
conformam o gênero, posicionando diferentemente as mulheres nas
relações de poder e estabelecendo

F. BIROLI e L. F. MIGUEL | Gênero, raça, classe: opressões cruzadas... 29


226

hierarquias entre elas, pode colaborar para suspender a validade de


experiências e interesses de muitas mulheres. Seu potencial analítico
assim como seu potencial transformador são, portanto, reduzidos.

Neste texto, exploramos o debate sobre as convergências


entre gênero, classe e raça que vem sendo travado no feminismo nas
últimas décadas. Embora a compreensão do efeito combinado de
diferentes formas de opressão tenha emergido em muitas pensadoras
e pensadores ao longo do século XX – e mesmo antes, se lembramos
de pioneiras como Flora Tristan e Sojourner Truth –, é a partir dos
anos 1960 que a questão se estabelece de forma incontornável para o
pensamento progressista. O movimento contestatório que eclodiu
com força naquela década, em diferentes partes do mundo, possuía
muitas frentes simultâneas: a juventude, a classe trabalhadora, as
mulheres, a população negra, a militância anticolonial. Seria
praticamente inevitável que pessoas cuja identidade se definia na
relação com mais de um desses grupos questionassem sua própria
posição e pusessem em xeque as hierarquias internas a cada um
deles. Os debates que se estabeleceram a partir de então nos
movimentos permitiram, sobretudo dos anos 1970 em diante, o salto
na reflexão teórica que nos levou à riqueza (e à complexidade) da
compreensão atual sobre os padrões de entrelaçamento das
múltiplas formas de dominação presentes na sociedade.

A discussão aqui apresentada destaca três frentes – que não


podem ser simplesmente tomadas como momentos sucessivos – desse
debate. A primeira delas foi produzida pelo feminismo marxista e
socialista, a segunda pelo feminismo negro, enquanto a terceira tem
como nó organizador a noção de interseccionalidade. Em todas elas, a
análise conjunta de gênero, raça e classe se apresenta, mas varia o peso
relativo de cada uma e as clivagens que estabelecem conjuntamente são
interpretadas de modo distinto. De maneira sintética, é possível dizer
que enquanto o feminismo marxista e socialista privilegia o par gênero-

30 MEDIAÇÕES, LONDRINA, V. 20 N. 2, P. 27-55, JUL./DEZ. 2015


227

classe (embora isso não signifique que suspenda a raça como problema),
o feminismo negro e os estudos das interseccionalidades privilegiam o
par gênero-raça (embora isso não signifique que suspendam a classe
como problema). No feminismo negro, as categorias gênero, classe e
raça foram exploradas conjuntamente, mas nem sempre de forma a
produzir um referencial focado na explicação dos seus entrelaçamentos.
Posteriormente, a noção de interseccionalidade, mobilizada em um
conjunto amplo e heterogêneo de estudos, permitiria avançar teórica e
metodologicamente na abordagem desses entrelaçamentos, mas os
estudos que dela lançaram mão frequentemente reduziram o peso da
classe e deixaram de recorrer a ela “como categoria analítica para a
explicação de desigualdades sociais complexas” (COLLINS, 2015, p. 13).

I.

Entre as feministas socialistas e marxistas, abordagens


importantes construídas a partir dos anos 1970 apresentam um esforço
para mostrar que a crítica ao capitalismo e o recurso à noção de classe
não poderiam apagar as especificidades da posição de mulheres e
homens na sociedade capitalista. O “esquecimento” da efetividade
social da diferenciação de gênero levava, na prática e a despeito da
afirmação verbal da igualdade entre os sexos pela maior parte dos
marxistas e socialistas clássicos, à naturalização da exploração das
mulheres. Este esforço produziu análises importantes das relações entre
capitalismo e dominação de gênero (ou patriarcado, como preferiram
muitas autoras)4. São abordagens que expõem a inclusão desigual das
mulheres nas relações de trabalho no capitalismo, jogando luz sobre a
vida doméstica e sobre as conexões entre as formas de exploração do
trabalho das mulheres dentro e fora de casa.

9 A utilização do conceito de “patriarcado” para caracterizar a dominação masculina mesmo nas


sociedades contemporâneas é polêmica (cf. MIGUEL; BIROLI, 2014, p. 18-19). Vamos utilizá-lo
aqui na medida em que integre o vocabulário das autoras com as quais estamos trabalhando.
F. BIROLI e L. F. MIGUEL | Gênero, raça, classe: opressões cruzadas... 31
228

Os estudos empíricos e reflexões teóricas alimentados por essas


abordagens redimensionam o peso tanto do trabalho doméstico no
capitalismo quanto da presença feminina na mão de obra remunerada.
Algumas análises, como a de Christine Delphy (2013), propõem
expressamente que o grupo “mulheres” seja entendido como uma
classe, em oposição aos homens, uma vez que eles se beneficiam
sistematicamente da exploração do trabalho das primeiras. Há, assim, a
busca de uma homologia rigorosa, quase ponto a ponto, entre a relação
homem-mulher e a relação patrão-trabalhador, em que a extração de
sobretrabalho feminino por parte dos homens é um elemento crucial.
Outras não chegam a conclusão tão provocativa, mas ainda assim
destacam a centralidade da divisão sexual do trabalho na descrição das
formas de hierarquização das sociedades contemporâneas.

O compromisso com o materialismo histórico se manifesta,


assim, na intenção de ancorar a dominação masculina também no
espaço da materialidade, tal como a dominação burguesa, mesmo
quando a sexualidade é incorporada de maneira mais central à análise.
Modelos como o de Juliet Mitchell (1974), que estabelecem as relações
de classe no espaço da produção e as relações entre mulheres e homens
no espaço da “ideologia”, fogem a tais limites. A ambição das feministas
marxistas da segunda metade do século XX é demonstrar como a
divisão do trabalho está na raiz da opressão sofrida pelas mulheres
(ainda que eventualmente possa ser incorporada ao quadro a
transferência de “trabalho sexual” das mulheres para os homens).

Dessas reflexões, decorrem duas problematizações


importantes: uma delas é que, como definiu Elizabeth Souza-Lobo
(1991) no enunciado que dá nome ao livro de sua autoria, “a classe
operária tem dois sexos” e uma luta anticapitalista que ignore as
relações de gênero é uma luta que tolera e legitima a exploração das
mulheres. Outra problematização expõe as hierarquias entre as
mulheres, mostrando que os privilégios de classe as posicionam

32 MEDIAÇÕES, LONDRINA, V. 20 N. 2, P. 27-55, JUL./DEZ. 2015


229

diferentemente. É essa aproximação do problema que Heleieth


Saffioti (2013, p. 133) expressou ao dizer que “se as mulheres da
classe dominante nunca puderam dominar os homens de sua classe,
puderam, por outro lado, dispor concreta e livremente da força de
trabalho de homens e mulheres da classe dominada.”

Portanto, o debate feminista no seio do marxismo parte da


recusa à percepção de que a desigualdade de classe de alguma maneira
subsume todas as outras. De fato, mesmo nos textos canônicos, como
em A origem da família, da propriedade privada e do Estado, de Engels
(1985), tal conclusão é difícil de ser sustentada como corolário da
argumentação apresentada, sendo antes um pressuposto a priori. Mais
do que à pretensa capacidade explicativa da dominação de classe, a
negligência à desigualdade de gênero nas correntes mais ortodoxas do
marxismo parece remeter ou à ideia de que assimetrias presentes na
esfera doméstica são desimportantes (assumindo assim a distinção
público/privado própria do liberalismo) ou a um receio de poluir a
imagem do proletário, que encarnaria de maneira bem mais ambígua a
promessa de emancipação de toda a humanidade, caso fosse entendido
como beneficiário de uma outra forma de opressão.

Essa parece ser a posição de uma autora – sob tantos aspectos


pioneira – como Alexandra Kollontai. Escrevendo nas primeiras
décadas do século XX, ela demonstra de maneira eloquente como a
condição feminina incorpora formas específicas de opressão, mas tende
a vinculá-las muito mais às relações de trabalho e à dominação de classe
do que aos arranjos domésticos e às relações entre mulheres e homens
de uma mesma classe. Em seus textos, como o notável “Mulher
trabalhadora e mãe” (KOLLONTAI, 1977), o entendimento da opressão
cruzada parece caminhar apenas numa direção. Ela mostra que a
condição das mulheres é muito diferente, conforme a classe à qual
pertencem, mas não cuida de observar como a condição dos
trabalhadores também muda de acordo com seu gênero.

F. BIROLI e L. F. MIGUEL | Gênero, raça, classe: opressões cruzadas... 33


230

As elaborações do feminismo marxista dos anos 1970 e 1980,


que buscam evitar tal limite, foram muitas vezes rotuladas como
“teorias de sistemas duais”. O capitalismo e o patriarcado aparecem
como dois sistemas distintos, mas que agem em conjunto na produção
do mundo social. A ideia, em autoras como Heidi Hartmann (1979,
1997) ou Nancy Hartsock (1998), é mostrar que nenhum dos dois
sistemas subsume o outro e, ao mesmo tempo, que eles não agem
simplesmente em paralelo: os dois sistemas são interdependentes.

O rico debate que ocorreu na época revelou os muitos


problemas destas elaborações teóricas (cf. YOUNG, 1981, 1990), a
começar pelo fato de que “patriarcado” é um conceito com abrangência
histórica muito maior do que “capitalismo”. De fato, o ponto de partida
de Hartmann (1979) é o movimento de acomodação que o patriarcado
tem que fazer no momento em que as relações de produção capitalistas
emergem. Mas não é só uma questão de amplitude histórica. O conceito
de capitalismo, na tradição marxista, é muito mais completo do que o
conceito de patriarcado. As críticas aos sistemas duais apontam que, ao
fundir uma tradição teórica perfeitamente estabelecida com um esforço
ainda embrionário de construção conceitual, a corrente tendeu
inevitavelmente (e apesar dos protestos em contrário) a um modelo em
que o gênero não passa de um adendo a uma explicação que continua
dependendo sobretudo da diferença de classe.

O marxismo é capaz de vincular, de forma muito persuasiva, as


relações capitalistas de produção (e, em particular, a exploração do
trabalho) aos múltiplos campos da vida social. A tradição feminista, por
sua vez, demonstra com clareza como a dominação masculina se faz
presente nas mais diferentes esferas, mas tem mais dificuldade para
estabelecê-la como derivando de um único mecanismo. Há uma
plasticidade da dominação masculina, que opera de diferentes formas
em diferentes tempos e lugares, tornando mais complicado defini-la
como um sistema equivalente ao capitalismo. E a busca de

34 MEDIAÇÕES, LONDRINA, V. 20 N. 2, P. 27-55, JUL./DEZ. 2015


231

um mecanismo único, como, por exemplo, as relações de trabalho


domésticas indicadas por Delphy (2013), gera seus próprios
problemas: se o casamento é a raiz da subordinação feminina, isso
significa que as mulheres que não estão casadas não a sofrem?

O fato de que o patriarcado não surja da elaboração teórica


como um sistema acabado não significa, evidentemente, que o
capitalismo seja o único fator ou mesmo o fator mais determinante da
produção do mundo social, mas coloca pedra no caminho das teorias
duais. Também não significa que se possa olhar para o próprio
funcionamento das relações capitalistas sem levar em conta o gênero. O
marxismo tende a considerar que a exploração capitalista opera de
maneira mais ou menos uniforme. As condições de vida dos
trabalhadores são sensíveis, é claro, a determinantes de gênero, raça,
colonialidade ou outros, mas a exploração propriamente dita, a extração
de mais valia, seria um mecanismo padrão, que incidiria de forma
indiferenciada sobre todos os grupos na força de trabalho assalariada. A
percepção do imbricamento entre capitalismo e patriarcado, fossem ou
não fossem “sistemas” distintos, pôs em xeque – de maneira definitiva
– tal análise, mostrando como a situação da mulher trabalhadora
possui peculiaridades em todas as etapas do processo de produção e
de circulação de mercadorias. O homem operário do imaginário
socialista do século XIX e primeira metade do século XX é apenas
metade da classe trabalhadora.

Na obra das autoras que colaboraram para essas análises, as


relações raciais não são suspensas como problema, mas ganham menor
centralidade ou são assimiladas às de classe. De alguma maneira, não é
desafiada a visão tradicional em boa parte do pensamento socialista,
segundo a qual o racismo é um subproduto da dominação de classe,
existindo como forma de impedir a solidariedade entre os dominados.

O destaque para a raça na produção da posição social relativa


das mulheres viria do trabalho das feministas negras. Seu avanço

F. BIROLI e L. F. MIGUEL | Gênero, raça, classe: opressões cruzadas... 35


232

em termos de agenda e conceitualização das formas cruzadas de


dominação, opressão e exploração veio, como destacou Danièle Kergoat
(2010), do fato de esses estudos terem sido em muitos casos realizados
por mulheres negras e, frequentemente, de origem popular – em um
contraste com ambientes feministas de luta e de produção de
conhecimento no qual predominavam largamente mulheres brancas
(e alguns homens), com origem de classe privilegiada. As
experiências dessas mulheres permitiriam, por exemplo, abordar as
relações familiares e as relações de trabalho de uma perspectiva que
não estava presente, ou não ganhava destaque, na produção das
feministas brancas. São deslocamentos provocados pela irrupção da
fala de quem foi colocada socialmente numa posição de ser falada e
infantilizada (GONZALEZ, 1983 apud BAIRROS, 2000, p. 352) e,
nesse sentido, são também disputas pela possibilidade de auto-
definição (WERNECK, 2010, p. 15).

II.

Os avanços do feminismo negro a partir dos anos 1970 e as


críticas às exclusões produzidas pela afirmação de um sujeito
coletivo de luta aparentemente indiferenciado – “nós, mulheres” –
produziram reflexões que são hoje incontornáveis para as lutas e as
teorias feministas. Nessas abordagens, a raça ganha maior peso e a
consideração conjunta do gênero, da classe e da raça organiza lutas e
novos paradigmas para a produção do conhecimento sobre a posição
das mulheres no mundo social. Como foi dito há pouco, embora não
exista uma relação automática entre o destaque para a raça e o
destaque para a classe, a origem popular de muitas das feministas
negras levou a agendas e perspectivas que não apenas trouxeram
novos aportes, mas modificaram o debate mais amplo por deslocar
visões que se apresentavam como “gerais” na sua correspondência
com as experiências “das mulheres”, mas estavam fundadas na
vivência e na posição relacional de algumas mulheres.

36 MEDIAÇÕES, LONDRINA, V. 20 N. 2, P. 27-55, JUL./DEZ. 2015


233

Mulheres negras e trabalhadoras construíram a reflexão sobre


sua própria condição, desafiando os modelos unilaterais. Ainda na
primeira metade do século XX, dirigentes comunistas negras nos
Estados Unidos desenvolveram um importante debate sobre a “tripla
opressão” da trabalhadora negra, que culminou no estudo de Claudia
Jones (1995). O fato de que tal acúmulo de discussão tenha em grande
medida se perdido, com um hiato entre as investigações dos anos 1930 a
1950 e aquelas que surgirão décadas depois, mesmo nos próprios
Estados Unidos, é por si só revelador da posição de subalternidade, das
autoras como da temática, no debate acadêmico e político.

No Brasil, foi nos anos 1970 que se definiram, inicialmente no


interior do movimento negro, coletivos que afirmavam a especificidade das
mulheres negras5. Contaram com a presença de mulheres das classes
populares e de mulheres negras de origem popular que conseguiram
trilhar uma trajetória diferenciada pelo acesso à formação universitária
(RATTS; RIOS, 2010). É o caso da socióloga Lélia Gonzalez, uma das
fundadoras do Movimento Negro Unificado em 1978, que destacou ao
mesmo tempo a importância do movimento negro na sua luta e os embates
com o sexismo no movimento (GONZALEZ, 2000 apud RATTS, 2010, p. 4).
Assim como nos movimentos e partidos de matiz socialista, as relações de
gênero não estavam necessariamente colocadas como problemas legítimos
nas lutas travadas nos movimentos negros.

13 Autoras que discutem os processos definidos como “afrodiáspora” e as relações que tomaram forma com a
colonização da América, entre elas Werneck (2010) e Vergara Figueroa e Arboleda Hurtado (2014),
localizam formas de organização política das mulheres negras desde o período da colonização, na resistência
à escravidão. Werneck também situa a luta das mulheres negras no Brasil pós-colonial tomando como
exemplo a fundação do primeiro sindicato das trabalhadoras domésticas por Laudelina Campos Melo, que
foi integrante da Frente Negra Brasileira e membro do Partido Comunista, em Santos, em 1936. Bernardino-
Costa (2014, p. 76), por sua vez, destaca a atriz e trabalhadora doméstica

Arinda Serafim, integrante do Teatro Experimental do Negro (TEN), nos anos 1950, na promoção do
debate público sobre trabalho doméstico remunerado e estímulo para que as trabalhadoras buscassem
treinamento para a ação política em defesa de seus direitos. O que está sendo aqui situado a partir
dos anos 1970 é sua organização como coletivos feministas de mulheres negras que aliam luta e
produção de conhecimento feminista e antirracista.

F. BIROLI e L. F. MIGUEL | Gênero, raça, classe: opressões cruzadas... 37


234

Tendo como ponto de partida um ambiente em que sua


condição de mulheres negras não estava contida nem na agenda
feminista nem na antirracista, colocava-se o desafio de produzir lutas
e formas de conhecimento que não suspendessem sua vivência. De
maneira bastante semelhante aos relatos feitos por autoras como Bell
Hooks (1984) nos Estados Unidos no mesmo período, Gonzalez
mencionava, para o caso brasileiro, as resistências a mulheres negras
que assumiam sua própria fala, muitas vezes definidas como
agressivas, “criadoras de caso” e divisionistas (BAIRROS, 2000). É
também um isolamento dos conflitos e das lutas que pode estar em
curso quando se traça a origem das reflexões sobre convergências e
interseccionalidades em autoras ou artigos acadêmicos específicos,
recusando-se legitimidade aos projetos coletivos de justiça social que
foram gestados no feminismo negro, em um ambiente de produção
de conhecimento que ainda não encontrava lugar e valorização na
academia (COLLINS, 2015, p. 10)6.

Em análise produzida no ambiente estadunidense da segunda


metade do século XX, Elizabeth Spelman (1988, p. 136) afirmava que “se
todas as mulheres são definidas pelo gênero (are gendered), e são assim
definidas em contraste com os homens, nada decorre desse fato
isoladamente quanto ao que significa ser definida pelo gênero”. Assim,
o entendimento do gênero como construção incorpora o fato de que
identidades e posições sociais se definem relacionalmente, mas em
relações que não estão restritas à dualidade feminino-masculino. Ainda
segundo Spelman (1988, p. 134), “é apenas porque a branquitude
(whiteness) é tomada como um dado que pode haver mesmo a aparência
de que seria possível simplesmente distinguir as pessoas por serem
mulheres e homens”. Ela aponta, aqui, um problema epistemológico e
político de primeira ordem.

É Vale ressaltar que a autora destaca a trajetória e produção de Angela Davis, assim como
as reações negativas à sua obra, como exemplar dessa dinâmica).
38 MEDIAÇÕES, LONDRINA, V. 20 N. 2, P. 27-55, JUL./DEZ. 2015
235

Quando se considera que não há apenas diferenças entre as


mulheres, mas relações de privilégio, torna-se difícil operar com o
entendimento de que há alguma base comum a todas elas sem incorrer
numa visão naturalista, ancorada no sexo biológico. Ao mesmo tempo, a
ideia de que haveria uma solidariedade decorrente do fato de ser
mulher em sociedades nas quais o sexismo implica desvantagens para
elas e vantagens para eles esbarra nas hierarquias entre as mulheres,
com as formas alternativas de solidariedade (e, novamente, privilégio) a
que correspondem. Na compreensão do gênero como construção que
não se produz isoladamente, mas em diferenciações que se definem
racialmente, as mulheres brancas são situadas em “um polo de poder e
de violência.” (WERNECK, 2010, p. 11).

A análise crítica das relações de privilégio inclui, assim, as


hierarquias entre as mulheres, uma vez que “há muita evidência de que
as identidades de raça e de classe criam diferenças em qualidade de
vida, status social e estilo de vida que prevalecem sobre a experiência
comum que as mulheres partilham.” (HOOKS, 1984, p. 4). Por isso, o
gênero não poderia ser alçado a uma nova forma de universalidade, em
que a posição da mulher negra, para citar Sueli Carneiro (2011, p. 121),
apareceria “como subitem da questão geral da mulher”. Essa
generalidade é justamente o que está sendo colocado em questão.

Nessa crítica, aparecem como problema a unidade das mulheres e


a generalidade da sua experiência, como dito anteriormente, mas também
os mecanismos e relações de poder que produzem a ideia de que as
mulheres negras correspondem a um grupo homogêneo. Como disse
Jurema Werneck (2010, p. 10), “as mulheres negras não existem”. A autora
destaca que historicamente essa forma de identificação, que corresponde ao
destaque de determinadas características, foi um dos efeitos da escravidão,
da colonização e do racismo. O que fica evidente nessa análise é a tensão
entre uma identificação que se produz nas relações de dominação e pelo
olhar do dominador, apagando o que

F. BIROLI e L. F. MIGUEL | Gênero, raça, classe: opressões cruzadas... 39


236

define como um repertório diverso de identidades e de femininidades,


assim como as resistências em que essas mulheres se constituem como
agentes. Nessa agência, a confrontação com o racismo se estabelece
como um elemento incontornável para fazer frente às formas de
exploração, dominação e opressão que sofrem como mulheres negras.

O feminismo negro não suspende ou reduz o peso do gênero


como categoria. Os problemas que uma análise das relações de
gênero traz à tona são, no entanto, reposicionados. O sexismo,
atualizado cotidianamente na forma da divisão sexual do trabalho e
da dupla moral sexual, impacta as mulheres, mas as impacta de
formas diferentes, em graus variáveis e com efeitos que precisam ser
analisados contextualmente.

Os dados recentes sobre pobreza no Brasil (IPEA, 2014) servem


de exemplo. Eles mostram que 57,8% dos homens e 59,1% das mulheres
encontravam-se em 2013 na faixa da população em situação de extrema
pobreza, de pobreza e de vulnerabilidade (em todos os casos, com renda
domiciliar inferior a um salário mínimo7). Ainda que essa diferença de
1,3 ponto percentual seja significativa, a distância entre as mulheres
brancas e as mulheres negras é bem mais acentuada, o que não permite
que se conclua, a partir da posição de gênero, sobre a vulnerabilidade
relativa das mulheres nesse quesito: entre as brancas, 45,9% estão em
condição de extrema pobreza, pobreza e vulnerabilidade; entre as
negras esse número chega a 70,9%. Assim, no que diz respeito à
pobreza, mais mulheres do que homens se encontram nos estratos mais
pobres da população, mas as mulheres negras estão numa posição mais
próxima da dos homens negros (68,4% deles estão nessa condição) do
que das mulheres brancas, que

15 São números baseados nos dados do Programa Brasil Sem Miséria, que trabalha com as
seguintes variáveis e valores para o ano de 2013: extremamente pobres são indivíduos com
renda domiciliar per capita de até R$79,12; pobres são aqueles com renda domiciliar per
capita maior ou igual a R$ 79,12 e menor que R$ 158,24; vulneráveis têm renda domiciliar
per capita maior ou igual a R$ 158,24 e menor que R$678, valor do salário mínimo em 2013.
40 MEDIAÇÕES, LONDRINA, V. 20 N. 2, P. 27-55, JUL./DEZ. 2015
237

por sua vez têm uma posição mais próxima à dos homens brancos
(44,9% deles estão nessa condição)8.

Esses dados parecem afastar a possibilidade de compreender a


vulnerabilidade e a pobreza como questões femininas. Dito de outra
forma, tanto a clivagem racial quanto a de gênero exercem efeitos na
possibilidade de que um determinado indivíduo se encontre em
situação de extrema pobreza e vulnerabilidade. Uma não se sobrepõe
outra; retirar uma ou outra da análise significa perder parte
significativa da descrição da realidade.

Os dados sobre renda e chefia familiar confirmam essa


interpretação: a renda per capita média dos domicílios em que o
chefe-de-família é homem é 12,3% maior do que a daqueles chefiados
por mulheres, nesse caso sem desagregação por cor. Quando são
observados apenas os domicílios chefiados por mulheres, a renda per
capita média daqueles chefiados por mulheres brancas é 90% maior
do que a daqueles chefiados por mulheres negras – e 66,8% maior do
que a renda média per capta daqueles chefiados por homens negros.
Isso não anula a diferença de gênero mesmo entre grupos
racialmente homogêneos. Domicílios chefiados por homens brancos
têm renda per capita média 10,7% superior à dos domicílios
chefiados por mulheres brancas, em um paralelo com o que ocorre
na população negra, onde os domicílios chefiados por homens
negros têm renda média per capita 13,9% maior do que o daqueles
chefiados por mulheres negras (IPEA, 2014).

Fica claro que não se pode tratar a diferença de renda como


questão de gênero isoladamente. As desvantagens incidem sobre
determinadas mulheres relativamente a determinados homens; gênero,
raça e classe produzem conjuntamente as hierarquias que colocam
mulheres negras em posição de maior desvantagem.

/ Este parágrafo e os três que lhe são subsequentes retomam resumidamente a discussão apresentada
em Biroli (2015b).

F. BIROLI e L. F. MIGUEL | Gênero, raça, classe: opressões cruzadas... 41


238

A convergência entre essas variáveis estabelece uma pirâmide


na qual a base é formada por mulheres negras, com o posicionamento
em sequência de homens negros, mulheres brancas e, por fim, no topo,
homens brancos. As posições mais elevadas conjugam patamares
superiores de rendimento médio e ocupações mais valorizadas (o que
define posições que não se esgotam no salário recebido, desdobrando-se
no acesso a espaços, contato, respeito).

Com todas as mudanças no acesso das mulheres ao mercado


de trabalho e na configuração das ocupações, as mulheres recebem
hoje em média 74% do rendimento médio dos homens (IBGE, 2014).
Nos anos 2000, em que houve crescimento do acesso ao trabalho
formal no Brasil, a incorporação de mulheres e homens não foi
equânime: os homens se deslocaram do trabalho precário para o
formal, enquanto cresceu o número de mulheres no contingente de
trabalhadores sem carteira de trabalho (ARAÚJO; LOMBARDI, 2013,
p. 474). Quando se leva em consideração a raça, esse quadro fica
mais complexo, com mais brancos do que negros no mercado formal
e uma concentração maior das mulheres negras no informal9.

A ampliação do acesso das mulheres a profissões de maior


reconhecimento e remuneração também se define em um contexto
desigual de mobilidade. É desigualmente que as mulheres estiveram
e estão no mercado de trabalho, ainda que mais mulheres sejam hoje
profissionalizadas e o percentual de mulheres relativamente aos
homens no mercado de trabalho tenha crescido no mundo todo. Para
um grupo específico de mulheres, brancas e altamente escolarizadas,
o acesso a carreiras em campos como a medicina, a arquitetura, a
engenharia e o direito de fato redefiniu sua posição, ainda que
continuem a receber menor remuneração média do que os homens
nas mesmas profissões. Em outro pólo, estão mulheres que são em
sua maioria negras, jovens e pouco escolarizadas: são as que exercem

4 Este parágrafo e o próximo retomam resumidamente discussão feita em Biroli (2015a).


42 MEDIAÇÕES, LONDRINA, V. 20 N. 2, P. 27-55, JUL./DEZ. 2015
239

trabalho doméstico remunerado, atividade em que, no caso


brasileiro, muitas das primeiras se apoiaram para que se tornasse
possível sua atividade profissional (BRUSCHINI; LOMBARDI, 2000).

Além das relações de trabalho, outras temáticas da agenda


feminista contemporânea são profundamente alteradas quando
analisadas da perspectiva das mulheres negras. Fica evidente, por
exemplo, o limite de concepções de família calcadas na vivência das
mulheres brancas, como foi discutido por muitas autoras10. A crítica à
ideologia burguesa acaba, em muitos casos, esbarrando em concepções
do cotidiano da vida doméstica que só fazem sentido para um grupo
determinado de mulheres, para quem os efeitos do sexismo e da divisão
sexual do trabalho não estão conjugados aos do racismo e das
desvantagens de classe. Também no debate sobre direitos reprodutivos,
o direito ao aborto é complexificado quando têm voz mulheres que
estiveram historicamente submetidas ao controle da sua capacidade
reprodutiva por uma lógica racista que se expressou, por exemplo, em
políticas de esterilização patrocinadas pelo Estado e/ou por fundações
privadas. As histórias das mulheres negras expõem o direito à decisão
sobre manter uma gravidez de modo que abrange também questões de
justiça material. O predomínio das mulheres brancas teria, assim,
produzido uma lacuna nas campanhas pelo direito ao aborto, dando
poucas condições para a vocalização dos interesses das mulheres que
querem “o direito ao aborto legal ao mesmo tempo que deploram as
condições sociais que as proibiram de ter mais filhos” (DAVIS, 1983, p.
205-206).

A complexidade de hierarquias que não se esgotam no gênero


expõe limites e contradições do feminismo como projeto transformador.
Individualmente, o apoio a uma dada estrutura de poder pode permitir
às mulheres galgar posições (HOOKS, 1984, p. 89). É algo que está

5 Há capítulos que tratam especificamente da família e da maternidade nessa perspectiva na


obra de várias das autoras aqui citadas, entre elas Carneiro (2011), Collins (2009), Davis (1983)
e Hooks (1984).
F. BIROLI e L. F. MIGUEL | Gênero, raça, classe: opressões cruzadas... 43
240

a seu alcance desigualmente, uma vez que as escolhas possíveis no


próprio sistema as posicionam diferentemente na corrida pelos lugares
estabelecidos de prestígio. Para a maior parte delas, a possibilidade de
superar as condições atuais de exploração, dominação e opressão não
está em igualar-se aos homens, mas em transformar as estruturas
políticas e sociais – nas palavras de Hooks (1984, p. 94), “de modo que
beneficiaria mulheres e homens igualmente”.

O horizonte de transformação que está colocado exige, nessa


perspectiva, mais do que a superação do sexismo. Ao mesmo tempo,
o enfrentamento do sexismo é limitado, como mostram essas
análises, quando não se leva em conta que a “produção do gênero”
se estabelece material e simbolicamente na intersecção entre gênero,
classe e raça (BIROLI, 2015a).

III.

Hoje, em grande parte da literatura, é a noção de


interseccionalidade que tende a condensar a presença de formas
múltiplas e articuladas de opressão. Ela foi desenvolvida a partir da
década de 1980, nos trabalhos de feministas de língua inglesa, nos
Estados Unidos e na Inglaterra (DENIS, 2008). Mesmo numa observação
rápida da produção feminista nas áreas de Ciências Sociais, História,
Psicologia e Educação, entre outras, é possível perceber seu impacto
como paradigma – mas também a diversidade dos entendimentos e
apropriações teóricas e metodológicas. No debate teórico e
metodológico, convivem vertentes mais focadas na análise estrutural da
opressão e das desigualdades e vertentes que enfatizam questões
identitárias e se aproximam mais do debate pós-estruturalista (cf. o
mapeamento feito por BILGE, 2009). Também vem havendo acúmulos
em uma frente mais voltada para a orientação das lutas políticas e para
a construção de políticas públicas, mas pode-

44 MEDIAÇÕES, LONDRINA, V. 20 N. 2, P. 27-55, JUL./DEZ. 2015


241

se entender que o debate que define e fortalece esse conceito se deu


desde o início na interface entre produção acadêmica e luta política.

Patricia Hill Collins (2015, p. 5) propõe que o amplo conjunto


dos estudos sobre interseccionalidade possa ser analisado como um
projeto de conhecimento que se organiza como uma espécie de guarda-
chuva, abrigando estudos motivados por diferentes problemas,
socialmente localizados de forma diversa, em que estão presentes três
preocupações principais: a interseccionalidade como campo de estudos,
com foco nos conteúdos e temas que caracterizam esse campo; a
interseccionalidade como estratégia analítica, com maior atenção aos
“enquadramentos interseccionais” e a sua capacidade de produzir
novas formas de conhecimento sobre o mundo social; e a
interseccionalidade como uma forma de práxis social, com ênfase para
as conexões entre conhecimento e justiça social. Para algumas autoras, a
ideia de um campo de estudos especializado em um conteúdo que seria
estável, que corresponderia à interseccionalidade, não é a mais
adequada. Seria mais produtivo entender que se trata de um paradigma
empírico e normativo que permitiria analisar questões de justiça
distributiva, de ação política, poder e governo (HANCOCK, 2007, p.
249-50), o que aproximaria mais essa abordagem das preocupações da
Ciência Política e de estudos que têm foco na justiça e no exercício de
poder. São justamente as conexões entre desigualdades sociais e
injustiças que, segundo Collins (2015, p. 14-15), têm atraído menor
atenção, enquanto trabalho e identidades seriam os temas mais
populares entre as pesquisas que se definem como interseccionais.

A amplitude desse conjunto de estudos pode ser vista como


uma demonstração do potencial da interseccionalidade como aparato
teórico e metodológico, mas também pode significar o enfraquecimento
da sua capacidade explicativa, uma vez que vai sendo remoldado e
ressignificado de modo que pode levar à perda do que está no cerne
desse projeto de conhecimento (COLLINS, 2015, p. 6) ou, como nos

F. BIROLI e L. F. MIGUEL | Gênero, raça, classe: opressões cruzadas... 45


242

parece mais interessante definir, desse paradigma crítico. Em todos


os casos, a heterogeneidade é reconhecida e não é, em si, motivo de
preocupação. O que permitiria reconhecer esses estudos, mesmo em
sua diversidade, segundo Collins (2015, p. 2), é que decorrem da
percepção crítica de que “raça, classe, gênero, sexualidade,
etnicidade, nação, habilidade e idade operam não de forma unitária,
como entidades mutuamente excludentes, mas como fenômenos que
se constroem reciprocamente e como tal dão forma a desigualdades
sociais complexas”.

A preocupação com a multiplicidade da opressão social não


significa recusar o entendimento da efetividade específica de cada eixo de
dominação. Por exemplo, a dominação masculina define obstáculos
estruturais, institucionais e cotidianos à autonomia das mulheres,
restringindo suas alternativas e reservando a elas posições desiguais
relativamente aos homens. O ponto é que essas restrições não se definem
da mesma forma, como dito anteriormente. Não é “como mulheres”, mas
como mulheres negras ou brancas, trabalhadoras assalariadas, profissionais
liberais ou proprietárias, heterossexuais ou homossexuais, que sua posição
relativa se constitui. Como os mecanismos de opressão que assim se
organizam não decorrem do sexismo isoladamente, as mulheres podem
estar, como destaca Bell Hooks (1984), na posição de oprimidas e na
posição de opressoras. Assim, a escalada de algumas mulheres a posições
de maior remuneração e de comando na política ou no mundo empresarial,
mantidas as hierarquias de raça e de classe, não corresponde a alterações
nas vidas de tantas outras, nem anula a efetividade das relações de
dominação masculina que incidem sobre elas. Os padrões específicos da
opressão de gênero sofridos cotidianamente por mulheres trabalhadoras,
pobres e negras são pouco afetados pelo sucesso – que implica, sim, no
enfrentamento de determinadas formas de sexismo – de algumas
profissionais de nível superior, economicamente privilegiadas e brancas.

46 MEDIAÇÕES, LONDRINA, V. 20 N. 2, P. 27-55, JUL./DEZ. 2015


243

Como crítica e ação social, o feminismo abre mão de sua


radicalidade, portanto, quando não enfrenta essas convergências e
perde de vista o que Kimberle Crenshaw (2002, p. 179) procurou
definir com a expressão “subordinação interseccional estrutural”,
que representaria “uma gama complexa de circunstâncias em que as
políticas se intersectam com as estruturas básicas de desigualdade”.
O ponto central nessa conceituação e na construção de uma agenda
acadêmica a partir dela, algo em que Crenshaw teve um papel
importante, é o entendimento de que as formas de opressão não
atingem os indivíduos isoladamente, mas também não o fazem
somadas ou acopladas, em dinâmicas que permitiriam visualizar
cada eixo de opressão separadamente para então compreender sua
concomitância, ou os efeitos de sua co-presença.

Para recorrer à imagem conhecida de Crenshaw, de uma


intersecção entre vias de trânsito, os indivíduos são o ponto em que
diferentes opressões se cruzam: sua posição social é produzida nesse
entrecruzamento. Assim, racismo e sexismo (mais destacados), mas
também dominação de classe, operam juntos e conjuntamente
restringem ou potencializam as trajetórias das pessoas. A noção de
interseccionalidade permitiria compreender que os sistemas de
dominação são múltiplos. Conjuntamente, “o racismo, o patriarcado,
a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam
desigualdades básicas que estruturam as possibilidades relativas”
das pessoas e constituem instituições e políticas que as afetam
(CRENSHAW, 2002, p. 177).

Algumas abordagens destacam a importância de se articular


metodológica e teoricamente o que vêm como duas dimensões da
interseccionalidade, a dimensão da dominação e da opressão e a
dimensão da identidade coletiva e da luta política (COLLINS, 2009;
BERNARDINO-COSTA, 2014). Ao mesmo tempo que a dinâmica de
opressão se define na convergência entre diferentes eixos, as formas

F. BIROLI e L. F. MIGUEL | Gênero, raça, classe: opressões cruzadas... 47


244

de resistência e de organização coletiva são ativadas por experiências


que não permitem isolar gênero, classe e raça. Danièle Kergoat (2010),
que opta por ressaltar os limites dos estudos da interseccionalidade,
também chama a atenção para esse ponto ao propor a noção de
“consubstancialidade” como alternativa. Para ela, é necessário pensar os
“regimes de poder” de forma que permita “recolocar no centro da
análise o sujeito político (e não a vítima de múltiplas dominações),
levando em consideração todas as suas práticas, frequentemente
ambíguas e ambivalentes” (KERGOAT, 2010, p. 103). Sua crítica

k) ancorada no entendimento de que alguns aspectos das relações


sociais são desconsiderados ou considerados de forma insuficiente.

Em primeiro lugar, o peso relativo de cada eixo é variável e sempre


se define contextualmente; em segundo, haveria uma tendência a
fixar e tratar como estanques relações que são sempre dinâmicas; por
fim, haveria em muitas análises uma sub-consideração das relações
de classe. Como ela diz, “o cruzamento privilegiado é entre ‘raça’ e
gênero, enquanto a referência à classe social não passa muitas vezes
de uma citação obrigatória” (KERGOAT, 2010, p. 99).

Sem citar Kergoat, Collins (2015, p. 13) apresenta uma resposta,


criticando o fato de que no contexto europeu informado pelo
pensamento marxista, raça e gênero teriam muitas vezes sido relegados
a segundo plano e tratados como interferências indevidas. O problema
principal, segundo a autora, é que nesse caso a raça é reduzida a
questão localizada e os estudos mainstream que privilegiam classe, ou
elevam a “interseccionalidade sem raça” ao status de abordagem
preferencial, suspendem o racismo como problema.

discutível se a démarche promovida por Kergoat de fato


transforma raça (ou “origem”, como por vezes ela usa, adaptando a
categoria ao contexto dos embates europeus sobre imigração) em mero
adendo da clivagem de classe. Parece bem fundada, no entanto, sua
percepção de que, no ambiente estadunidense (mas não só),
48 MEDIAÇÕES, LONDRINA, V. 20 N. 2, P. 27-55, JUL./DEZ. 2015
245

os estudos da interseccionalidade desinflam o peso da classe, que


permanece como um pano de fundo distante. O recuo da centralidade
da clivagem de classe, nas reflexões sobre as opressões cruzadas, está
ligado, ao menos em parte, ao fato de que o projeto de uma sociedade
pós-capitalista parece ainda mais distante hoje do que nos anos 1970.
Ainda que seja assim, é um equívoco abandonar o tema. As diferenças
de classe continuam fundamentais para o entendimento das assimetrias
nas trajetórias das pessoas, colocando mulheres (e mesmo a população
negra, mas em menor medida, pois a sobreposição entre classe e raça é
bem maior) em posições diversas, por vezes até contraditórias entre si. E
a compreensão de como gênero (e também raça) impacta as relações de
produção é crucial para avançar na análise da sociedade capitalista,
formando toda uma agenda de pesquisa cuja relevância é inegável, mas
que permanece sub-explorada.

Em uma análise orientada pelo paradigma da


interseccionalidade na qual as relações de classe e exploração têm
centralidade conjuntamente com raça e gênero, Bernardino-Costa
(2014) nos traz indicações também sobre a recusa ou afirmação da
individualidade como um elemento importante da dominação, assim
como das lutas coletivas. Como estruturas que definem padrões
sociais, racismo, dominação de gênero e de classe podem posicionar
as mulheres em relações nas quais sua individualidade e mesmo sua
humanidade lhes são recusadas. Nas relações entre trabalhadoras
domésticas e empregadoras dentro da casa, as opressões cruzadas
diferenciam as mulheres, de modo que classe e raça constituem sua
posição sem que, no entanto, as relações de gênero deixem de atuar e
de lhes dar lugares que são distintos relativamente aos dos homens.
No acesso aos sindicatos e na organização da luta política coletiva,
essas trabalhadoras encontram a possibilidade de individualização. É
na organização coletiva, ainda, que os padrões sociais das opressões
cruzadas, reposicionados, fundamentam sua condição de agentes.

F. BIROLI e L. F. MIGUEL | Gênero, raça, classe: opressões cruzadas... 49


246

Os estudos da interseccionalidade parecem enfrentar


frontalmente, e de modo produtivo em muitos casos, algo que
atravessa as pesquisas situadas em diferentes perspectivas teóricas e
metodológicas: projetos de conhecimento não estão desconectados
das vivências das pessoas, remetem a relações e processos
sociológicos específicos. Organizam-se, assim, nas disputas pelo
sentido assumido por essas vivências e incidem sobre elas.

Isso não significa, no entanto, uma defesa da redução do escopo


das análises ao nível da individualidade. A compreensão de que
múltiplos padrões de dominação impactam de forma diferente
indivíduos diversamente situados no espaço social, de forma muito
mais singularizada do que quando se trabalha com uma única clivagem,
pode conduzir a uma armadilha. A multiplicidade de assimetrias
relevantes parece individualizar as posições sociais, uma vez que a
sobreposição de classe, gênero, raça, sexualidade, faixa etária, condição
física etc. leva a situações quase únicas (cf. PHILLIPS, 1995). A
consequência política disso é a percepção da impossibilidade da
transformação da estrutura social, uma vez que as exclusões se
definiriam por especificidades irrepetíveis e poderiam, no máximo, ser
sanadas por políticas compensatórias também individualizadas
(ROSANVALLON, 1995, 2011). Contra isso, é necessário frisar que as
opressões são estruturais e o esforço de investigação é entender como se
dá o funcionamento conjunto de estruturas de desigualdades que têm
origens que não se resumem a uma única raiz comum.

IV.

Na sua caracterização do pensamento feminista negro nos


Estados Unidos, Patricia Hill Collins discute a tensão entre a amplitude
da vivência concreta dos problemas de que trata e sua marginalidade na
produção do conhecimento. Citando suas palavras, esse pensamento:

50 MEDIAÇÕES, LONDRINA, V. 20 N. 2, P. 27-55, JUL./DEZ. 2015


247

[...] se ancora em paradigmas que enfatizam a importância


das opressões interseccionais na formatação da matriz de
dominação nos Estados Unidos. Mas a expressão desses
temas não tem sido fácil porque as mulheres negras têm tido
que lutar contra interpretações de mundo firmadas pelos
homens brancos. Nesse contexto, o pensamento feminista
negro pode ser melhor percebido como conhecimento
subjugado (COLLINS, 2009, p. 269).

A noção de “conhecimento subjugado” permite sintetizar a


discussão sobre a relação entre vivência, produção do conhecimento
e luta política. É possível trabalhar com a hipótese de que, para as
pessoas que as sofrem, as convergências e interseccionalidades não
sejam veladas. Estruturando de forma central as experiências
vividas, certamente impactam a maneira como essas pessoas veem o
mundo que as cerca e seu lugar nelas. Há obstáculos, porém, para
transformar tal percepção em reflexão teórica e em programa
político, uma vez que o que a caracteriza é uma posição de múltipla
subalternidade. A agenda das teóricas que discutimos neste texto é a
superação de tais obstáculos.

Dados sócio-demográficos mostram que a posição social dos


indivíduos é produzida pela combinação entre gênero, classe e raça.
No acesso desigual a renda, ocupação e participação política, para
tomar três exemplos nos quais as convergências são evidentes, as
pessoas vivenciam uma condição que não é a de mulher/homem ou a
de branca/negra ou a de trabalhador/proprietário, ou melhor
dizendo, não é a vivência de um componente da sua identidade, mas
de como um conjunto cruzado de privilégios e desvantagens
organiza sua trajetória.

Tomemos o exemplo da maternidade. Sua vivência se dá em


contextos bem definidos, é como mulher negra numa sociedade racista
ou mulher branca numa sociedade racista que a maternidade se define,
e não abstratamente. É como mulher que tem acesso a recursos

F. BIROLI e L. F. MIGUEL | Gênero, raça, classe: opressões cruzadas... 51


248

materiais e serviços para o cuidado de seus filhos quando procura


acomodar trabalho e maternidade ou como mulher que esbarra na
falta de creches sem ter substitutivos na forma de apoio público ou
da renda de um familiar adulto para sustentar a si e aos filhos que
uma mulher vive a maternidade. Se o ideal burguês moderno do
amor e dedicação maternal (BADINTER, 1985) atravessa as classes
sociais, a possibilidade de sua realização é restrita e os efeitos dos
julgamentos nele ancorados são variáveis.

A partir de seu trabalho de campo sobre a construção da luta


das trabalhadoras domésticas no Brasil, já mencionado, Bernardino-
Costa (2014, p. 78) nos oferece um outro exemplo de como essas relações
são vivenciadas, embora sua tradução como agenda de luta e produção
de conhecimento seja dificultada e em alguns contextos mesmo
bloqueada pelas próprias relações nas quais as convergências entre
gênero, classe e raça atuam para reduzir as oportunidades de muitas
mulheres. Tratando da sua organização nos anos 1960 e,
posteriormente, na redemocratização, nos anos 1980, ele chama a
atenção para o fato de que, ainda que não tivessem formação que as
permitisse familiaridade com os discursos dos movimentos, do
movimento negro por exemplo11, “a percepção das trabalhadoras
domésticas de que a classe trabalhadora continha aspectos de raça e de
gênero se torna evidente naquele momento histórico e, como
consequência, a necessidade de formação de associações específicas das
trabalhadoras domésticas”. Nessas associações, tomaria forma a luta
pelos seus direitos, mas também a ressignificação de sua experiência.

Parece possível sustentar, assim, que a suspensão das formas


múltiplas e conjugadas de opressão se dá, não na dimensão da

6 O autor transcreve um depoimento de Creuza de Oliveira, fundadora do Sindicato das Domésticas da


Bahia e presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas, em que ela relata seu
primeiro contato com reuniões do Movimento Negro Unificado (MNU): “Era difícil para uma
trabalhadora doméstica entender o que eles estavam dizendo. Eu sabia que seria difícil para mim,
entender o que eles estavam dizendo, mas eu pensei: ‘a linguagem que eles usam é difícil e eu não
entendo quase nada do que eles dizem, mas eu sei que tem a ver comigo porque eles estão falando das
pessoas negras’” (BERNARDINO-COSTA, 2014, p. 78).
52 MEDIAÇÕES, LONDRINA, V. 20 N. 2, P. 27-55, JUL./DEZ. 2015
249

vivência de mulheres e homens, mas nas dimensões da produção do


conhecimento e da luta política. As barreiras e as conexões entre as
posições sociais concretas e esses dois níveis é que estão, portanto,
em questão.

REFERÊNCIAS

ARAUJO, Angela Maria Carneiro; LOMBARDI, Maria Rosa. Trabalho informal,


gênero e raça no Brasil do início do século XXI. Cadernos de Pesquisa, São
Paulo, v. 43, n. 149, p. 452-477, ago. 2013.

BADINTER, Elizabeth. O amor incerto: história do amor maternal do século XVII


ao século XX. Lisboa: Relógio D’Água, 1985.

BAIRROS, Luiza. Lembrando Lélia Gonzalez, 1935-1994. Afroasia, Salvador, n.


23, 2000.

BERNARDINO-COSTA, Joaze. Intersectionality and female domestic worker`s


unions in Brazil. Women’s Studies International Forum, Oxford, n. 46, p. 72-80,
2014.

BILGE, Sirma. Théorisations feminists de l’intersectionnalité. Diogène Revue


Internationale des Sciences Humaines, Paris, n. 225, p. 158-76, 2009.

BIROLI, Flávia. Divisão sexual do trabalho e democracia. In: ENCONTRO DA


ANPOCS, 39., 2015, Caxambu. Paper... Caxambu, 2015a.

BIROLI, Flávia. Responsabilidades, cuidado e democracia. Revista Brasileira de


Ciência Política, Brasília, n. 18, p. 81-117, 2015b.

BRUSCHINI, Cristina; LOMBARDI, Maria Rosa. A bipolaridade do trabalho


feminino no Brasil contemporâneo. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 110, p.
67-104, 2000.

CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo


Negro, 2011.

F. BIROLI e L. F. MIGUEL | Gênero, raça, classe: opressões cruzadas ................................................. 53


250

COLLINS, Patricia Hill. Black feminist thought: knowledge, consciousness,


and the politics of empowerment. New York: Routledge, 2009.

COLLINS, Patricia Hill. Intersectionality’s definitional dilemas. Annual


Review of Sociology, Palo Alto, n. 41, p. 1-20, 2015.

CRENSHAW, Kimberle. Documento para o Encontro de especialistas em


aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos
Feministas, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 171-187, 2002.

DAVIS, Angela. Women, race, and class. New York: Vintage Books, 1983.

DELPHY, Christine. L’ennemi principal. 1. Économie politique du patriarcat.


Paris:
Syllepse. 2013

DENIS, Ann. Intersectional analysis: a contribution of feminism to


Sociology.
International Sociology, London, v. 23, n. 5, p. 677-94, 2008.

ENGELS, Friedrich A origem da família, da propriedade privada e do


Estado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985.

FIGUEROA, Aurora Vergara; HURTADO, Katherine Arboleda.


Feminismo afrodiaspórico: uma agenda emergente del feminismo
negro em Colombia. Universitas Humanística, Bogotá, n. 78, p. 109-
34, 2014.

HANCOCK, Ange-Marie. Intersectionality as a normative and empirical


paradigma. Politics & Gender, Cambridge, v. 2, n. 3, p. 248-54, 2007.

HARTMANN, Heidi. Capitalism, patriarchy, and job segregation by sex.


In: EISENSTEIN, Zillah R. (Ed.). Capitalist patriarchy and the case for
socialist feminism. New York: Monthly Review Press, 1979.

HARTMANN, Heidi. The unhappy marriage of Marxism and feminism:


towards a more progressive union. In: NICOLSON, Linda (Ed.). The second
wave: a reader in feminist theory. New York: Routledge, 1997.
251

HARTSOCK, Nancy C. M. The feminist standpoint: developing the ground


for a
specifically feminist historical materialism. In: HARDING, Sandra. The
feminist
standpoint. Boulder: Westview, 1998.

HOOKS, Bell. Feminist theory: from margin to center. Boston: South End Press, 1984.

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Brasília: Instituto


Brasileiro de Geografia e Estatística, 2014.

IPEA. Retratos das desigualdades de gênero e raça. Brasília: Instituto de


Pesquisa
Econômica Aplicada, 2014. Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/retrato/
indicadores.html>. Acesso em: 15 maio 2015.

JONES, Claudia. An end to the neglect of the problems of the Negro


woman! In: BEVERLY, Guy-Sheftall (Ed.). Words of fire: an anthology of
African-American feminist thought. New York: The New Press. 1995.

KERGOAT, Danièle. Dinâmica e consubstancialidade das relações


sociais. Novos Estudos, n. 86, p. 93-103, São Paulo, 2010.

KOLLONTAI, Alexandra. Working woman and mother, em Selected


writings. New York: Norton, 1977.

MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. Feminismo e política: uma introdução.


São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.

MITCHELL, Juliet. Psychoanalysis and feminism: Freud, Reich, Laing, and


women. New York: Pantheon Books, 1974.

PHILLIPS, Anne. The politics of presence. Oxford: Oxford University Press,


1995.

54 MEDIAÇÕES, LONDRINA, V. 20 N. 2, P. 27-55, JUL./DEZ. 2015


252

RATTS, Alex. As amefricanas: mulheres negras e feminism na trajetória de


Lélia Gonzales. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL FAZENDO GÊNERO,
9., 2010, Florianópolis. Anais... Florianópolis, 2010. Disponível em:
<http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/
1278274787_ARQUIVO_Asamefricanas.pdf>. Acesso em: 15 maio 2015.

RATTS, Alex; RIOS, Flávia. Lélia Gonzalez. São Paulo: Selo Negro, 2010.

ROSANVALLON, Pierre. La nouvelle question sociale: repenser l’État-


providence.Paris: Seuil, 1995.

ROSANVALLON, Pierre. La société des égaux. Paris: Seuil, 2011.

SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. São


Paulo: Expressão Popular, 2013.

SOUZA-LOBO, Elizabeth. A classe operária tem dois sexos: trabalho,


dominação e resistência. São Paulo: Brasiliense, 1991.

SPELMAN, Elizabeth. Inessential woman: problems of exclusion in feminist


thought. Boston: Beacon Press. 1988.

WERNECK, Jurema. Nossos passos vêm de longe! Movimentos de


mulheres negras e estratégias políticas contra o sexismo e o racismo. Revista
da ABPN, Rio de Janeiro v. 1, n. 1; p. 8-17, 2010.

YOUNG, Iris Marion. Beyond the unhappy marriage: a critique of the dual
systems theory. In: SARGENT, Linda (Ed.). Women and revolution: a
discussion of the unhappy marriage betweem feminism and Marxism. Boston:
South End Press, 1981.

YOUNG, Iris Marion. Socialist feminism and the limits of dual systems
theory. In: YOUNG, Iris Marion. Throwing like a girl and other essays in
feminist philosophy and social theory. Bloomington: Indiana University
Press, 1990.

F. BIROLI e L. F. MIGUEL | Gênero, raça, classe: opressões cruzadas... 55


253

BIBLIOGRAFIA

BIROLI, Flávia e MIGUEL, Luis Felipe. Gênero, raça, classe:


opressões cruzadas e convergências na reprodução das
desigualdades. Mediações: Londrina, v. 20 nº. 2, p. 27-55,
jul/dez, 2015.
https://www.researchgate.net/publication/294120394_Genero_ra
ca_classe_opressoes_cruzadas_e_cconvergencias_na_reproducao
_das_desigualdades

CARLOTO, Cássia Maria. O conceito de gênero e sua importância


para a análise das relações sociais. Serviço Social em Revista.
v.3, nº2, Londrina, s/d.
http://www.uel.br/revistas/ssrevista/c_v3n2_genero.htm
SILVA, Maria Lúcia Lopes da. Mudanças Recentes no mundo
do Trabalho e o Fenômeno População em Situação de Rua
no Brasil 1995-2005. Tese (doutorado em Política Social),
Universidade de Brasília. Brasília, 2006. p.71-107

WERNECK, Jurema. Racismo institucional e saúde da população


negra. Saúde e Sociedade. São Paulo, v.25, n.3, p.535-549,
2016
254

O CONCEITO DE GÊNERO E SUA IMPORTÂNCIA PARA A ANÁLISE DAS RELAÇÕES SOCIAIS

Cássia Maria Carloto*

RESUMO

O presente artigo aborda a emergência e importância do conceito de gênero, enquanto instrumento teórico
que permite uma abordagem empírica e analítica das relações sociais. Priorizamos desenvolver, de forma
breve, a constituição das relações de gênero, a divisão sexual do trabalho como uma noção que nos permite
discutir as bases materiais desta constituição e a relação gênero-classe e raça.

Palavras-chave: gênero, divisão sexual do trabalho, classe-gênero-raça.

Relações de Gênero

A produção de nossa existência tem bases biológicas que implicam a intervenção conjunta dos dois sexos, o
macho e a fêmea. A produção social da existência, em todas as sociedades conhecidas, implica por sua vez,
na intervenção conjunta dos dois gêneros, o masculino e o feminino. Cada um dos gêneros representa uma
particular contribuição na produção e reprodução da existência. Para Izquierdo 1 poderíamos nos referir aos
gêneros como obras culturais, modelos de comportamento mutuamente excludentes cuja aplicação supõem
o hiperdesenvolvimento de um número de potencialidades comuns aos humanos em detrimento de outras.
Modelos que se impõem ditatorialmente às pessoas em função do seu sexo. Mas esta só seria uma
aproximação superestrutural do fenômeno dos gêneros.

A autora chama a atenção para as palavras de Marx quando este diz que

na produção social de sua existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias,


independentes de sua vontade; estas relações de produção correspondem a um grau determinado de
desenvolvimento de suas forças produtivos materiais. O conjunto destas relações de produção constituem a
estrutura econômica da sociedade, a base real, sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e
a qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. Não é a consciência dos homens o que
determina a realidade; ao contrário, a realidade social é a que determina sua consciência (Marx apud
IZQUIERDO, 199 ).

A existência de gêneros é a manifestação de uma desigual distribuição de responsabilidade na produção


social da existência. A sociedade estabelece uma distribuição de responsabilidades que são alheias as
vontades das pessoas, sendo que os critérios desta distribuição são sexistas, classistas e racistas. Do lugar que
é atribuído socialmente a cada um, dependerá a forma como se terá acesso à própria sobrevivência como
sexo, classe e raça, sendo que esta relação com a realidade comporta uma visão particular da mesma.

A construção dos gêneros se dá através da dinâmica das relações sociais. Os seres humanos só se constroem
como tal em relação com os outros. Saffioti (1992, p. 210) considera que

não se trata de perceber apenas corpos que entram em relação com outro. É a totalidade formada pelo
corpo, pelo intelecto, pela emoção, pelo caráter do EU, que entra em relação com o outro. Cada ser humano
é a história de suas relações sociais, perpassadas por antagonismos e contradições de gênero, classe,
raça/etnia.
255

Chamamos a atenção, ao que Izquierdo coloca como sendo o espaço social do gênero, já que isso tem uma
grande importância quando se analisa a questão da mulher na relação com a atividade trabalho. Para a
autora, o modo masculino, que contribui para a produção da existência, é diferente do feminino. Além disso
as atividades masculinas produtoras da existência estão imbricadas em espaços distintos das femininas, que
resultam em duas esferas: esfera de sobrevivência (doméstica); esfera de transcendência (pública). Cada uma
destas esferas constitui o espaço social de um dos gêneros, sendo a esfera doméstica o espaço próprio do
gênero feminino e a esfera pública própria do gênero masculino. A autora lembra que a separação da
sobrevivência e da transcendência em duas esferas, converte as atividades que se desenvolvem em cada uma
delas em alienadas, porque uma carece de sentido se não se refere à outra. A questão não é tanto
estabelecer valorações a respeito da importância relativa de cada uma das esferas, mas assinalar que
linearmente e circularmente, sobrevivência e transcendência doméstica e pública, masculinidade e
feminilidade não são outra coisa que as duas caras da mesma realidade única e indivisível.

A tentativa de construir o ser mulher enquanto subordinado, ou melhor, como diz Saffioti (1992), como
dominada-explorada, vai ter a marca da naturalização, do inquestionável, já que dado pela natureza. Todos
os espaços de aprendizado, os processos de socialização vão reforçar os preconceitos e estereótipos dos
gêneros como próprios de uma suposta natureza (feminina e masculina), apoiando-se sobretudo na
determinação biológica. A diferença biológica vai se transformar em desigualdade social e tomar uma
aparência de naturalidade.

As relações de gênero, refletem concepções de gênero internalizadas por homens e mulheres. “Eis porque o
machismo não constitui privilégio de homens, sendo a maioria das mulheres também suas portadoras. Não
basta que um dos gêneros conheça e pratique atribuições que lhes são conferidas pela sociedade, é
imprescindível que cada gênero conheça as responsabilidades do outro gênero” (Saffioti, 1992, p. 10).

O “quem somos” vai se constituindo através das relações com os outros, com o mundo dado, objetivo. Cada
indivíduo encarna as relações sociais, configurando uma identidade pessoal, uma história de vida e um
projeto de vida. Neste processo, o fato de se pertencer a um gênero ou outro, ser menino ou menina
também conformam as referências iniciais no mundo.

A identidade é conseqüência e condição das relações.

Ou seja, é pressuposta uma identidade que é re-posta a cada momento. Uma vez que a identidade
pressuposta é reposta, ela é vista como ‘dada’ e não se ‘dando’. É como se uma vez identificado o indivíduo, a
produção de sua identidade se esgotasse com o produto. Na linguagem corrente dizemos ‘eu sou filho’,
ninguém diz estou sendo filho (Ciampa 1990, p. 163).

Neste sentido poderíamos usar o “estou sendo mulher” e não “sou mulher”.

Ciampa (1990) afirma que existe portanto, uma expectativa de que as pessoas devem agir de acordo com
suas predicações e ser tratadas como tal. De certa forma re-atualizamos, através de ritos sociais, uma
identidade pressuposta, que assim é vista como algo dado. Com isso retira-se o caráter de historicidade da
mesma, aproximando-se mais da noção de um mito que prescreve as condutas corretas, re-produzindo o
social.

Não podemos deixar de destacar que a imposição de condutas e normas não são vividas de forma tranqüila
numa assimilação simples e mecânica. Ao contrário à medida que são impostos e não dados por uma
pretensa natureza, há conflitos e resistências que vão sendo confrontados com os limites concretos impostos
muitas vezes pela violência doméstica e sexual.
256

As relações de gênero se estabelecem dentro de um sistema hierárquico que dá lugar a relações de poder,
nas quais o masculino não é unicamente diferente do feminino. Esta diferença de poder torna possível a
ordenação da existência em função do masculino, em que a hegemonia se traduz em um consenso
generalizado a respeito da importância e supremacia da esfera masculina.

Divisão Sexual do Trabalho: breves considerações

Divisão sexual do trabalho, tem sido outro importante conceito para compreensão do processo de
constituição das práticas sociais permeadas pelas construções dos gêneros a partir de uma base material. O
uso de práticas sociais aqui é usado como uma noção indispensável que permite a passagem do abstrato ao
concreto; poder pensar simultaneamente o material e o simbólico; restituir aos atores sociais o sentido de
suas práticas, para que o sentido não seja dado de fora por puro determinismo (Kergoat, 1996).

A divisão sexual do trabalho assume formas conjunturais e históricas, constrói-se como prática social, ora
conservando tradições que ordenam tarefas masculinas e tarefas femininas na indústria, ora criando
modalidades da divisão sexual das tarefas. A subordinação de gênero, a assimetria nas relações de trabalho
masculinas e femininas se manifesta não apenas na divisão de tarefas, mas nos critérios que definem a
qualificação das tarefas, nos salários, na disciplina do trabalho. A divisão sexual do trabalho não é tão
somente uma conseqüência da distribuição do trabalho por ramos ou setores de atividade, senão também o
princípio organizador da desigualdade no trabalho (Lobo, 1991).

Vale ressaltar como mostra Brito e Oliveira (1997, p. 252):

que a divisão sexual do trabalho não cria a subordinação e a desigualdade das mulheres no mercado de
trabalho, mas recria uma subordinação que existe também nas outras esferas do social. Portanto a divisão
sexual do trabalho está inserida na divisão sexual da sociedade com uma evidente articulação entre trabalho
de produção e reprodução. E a explicação pelo biológico legitima esta articulação. O mundo da casa, o mundo
privado é seu lugar por excelência na sociedade e a entrada na esfera pública, seja através do trabalho ou de
outro tipo de prática social e política, será marcada por este conjunto de representações do feminino.

Conforme Humphrey (1987), a divisão sexual do trabalho é um processo que não se resume a alocar homens
e mulheres em estruturas ocupacionais, perfis de qualificação e tipos de postos de trabalho já definidos. Da
mesma maneira a qualificação é uma construção social fortemente sexuada, marcada pelos gêneros, é uma
dimensão fundamental do processo de constituição das categorias que vão estruturar a definição dos postos
de trabalho e dos perfis de qualificação e competências a eles associados.

A divisão sexual do trabalho, como base material do sistema de sexo-gênero concretiza e dá legitimidade às
ideologias, representações e imagens de gênero, estas por sua vez fazem o mesmo movimento em relação às
práticas cotidianas que segregam as mulheres nas esferas reprodutivas-produtivas, num eterno processo de
mediação.

A categoria gênero

A categoria gênero vai ser desenvolvida pelas teóricas do feminismo contemporâneo sob a perspectiva de
compreender e responder, dentro de parâmetros científicos, a situação de desigualdade entre os sexos e
como esta situação opera na realidade e interfere no conjunto das relações sociais.

Varikas (1989) afirma que ao tomar emprestado o termo da gramática e da linguagem, as feministas
postularam a necessidade de superar o sexo biológico, mais ou menos dado pela natureza, do sexo social,
produto de uma construção social permanente, que forma em cada sociedade humana, a organização das
257

relações entre os homens e as mulheres. A noção de gênero adquire um duplo caráter epistemológico, de um
lado, funciona como categoria descritiva da realidade social, que concede uma nova visibilidade para as
mulheres, referindo-se a diversas formas de discriminação e opressão, tão simbólicos quanto materiais, e de
outro, como categoria analítica, como um novo esquema de leitura dos fenômenos sociais.

A principal importância desta abordagem é que além de ser um conceito que tenta desconstruir a relação
entre as mulheres e a natureza é como nos diz Suárez (2000) um conceito acionado para distinguir e
descrever categorias sociais (uso empírico) e para explicar as relações que se estabelecem entre elas (uso
analítico).

Para Kergoat (1996), que fala em “relações sociais de sexo” 2 o conceito leva a uma visão sexuada dos
fundamentos e da organização da sociedade, ancorada materialmente na divisão sexual do trabalho, num
esforço para pensar de forma particular, mas não fragmentada, o conjunto do social, já que as relações de
gênero existem em todos os lugares, em todos os níveis do social. Esta abordagem deve estar integrada em
uma análise global da sociedade e ser pensada em termos dinâmicos, pois repousa em antagonismos e
contradições.

Lauretis (1994), iniciando a reflexão sobre o termo gênero a partir da gramática e de como este aparece na
forma gramatical de diferentes maneiras, ou mesmo ausentes, conforme a língua, verifica que:

o termo gênero é uma representação não apenas no sentido de que cada palavra, cada signo, representa seu
referente, seja ele um objeto, uma coisa, ou ser animado. O termo “gênero” é, na verdade, a representação
de uma relação, a relação de pertencer a uma classe, um grupo, uma categoria. Gênero é a representação de
uma relação(...) o gênero constrói uma relação entre uma entidade e outras entidades previamente
constituídas como uma classe, uma relação de pertencer(...) Assim, gênero representa não um indivíduo e
sim uma relação, uma relação social; em outras palavras, representa um indivíduo por meio de uma classe
(Lauretis, 1994, p. 210) 3.

Seguindo o texto de Lauretis (1994), as concepções de masculino e feminino, nas quais todos os seres
humanos são classificados, formam em cada cultura, um sistema de gênero, um sistema simbólico ou um
sistema de significações que relaciona o sexo a conteúdos culturais de acordo com valores e hierarquias
sociais. Vale destacar, pela pertinência ao tema deste texto, que

embora os significados possam variar de uma cultura para outra, qualquer sistema de sexo-gênero está
sempre intimamente interligado a fatores políticos e econômicos em cada sociedade. Sob essa ótica, a
construção cultural do sexo em gênero e a assimetria que caracteriza todos os sistemas de gênero através de
diferentes culturas são entendidas como sendo sistematicamente ligadas à organização da desigualdade
social (Lauretis, p. 212).

Uma das principais proposições do texto de Lauretis (1994) é quanto à construção do gênero enquanto
produto e processo:

a construção do gênero é tanto produto quanto o processo de sua representação”. Para ela o “sistema sexo-
gênero, enfim, é tanto uma construção sociocultural quanto um aparato semiótico, um sistema de
representações que atribui significado (identidade, valor, prestígio, posição de parentesco, status dentro da
hierarquia social etc.) a indivíduos dentro da sociedade. Se as representações de gênero são posições sociais
que trazem consigo significados diferenciais, então o fato de alguém ser representado ou se representar
como masculino ou feminino subentende a totalidade daqueles atributos social (Lauretis, 1994, p. 212).

Lauretis (1994, p. 216), chama a atenção para a relação ideologia-gênero. Diz ela:
258

pois, se o sistema sexo-gênero é um conjunto de relações sociais que se mantém por meio da existência
social, então o gênero é efetivamente uma instância primordial da ideologia, e obviamente não só para as
mulheres. Além disso, trata-se de uma instância fundamental de ideologia, independentemente do fato de
que certos indivíduos se vejam fundamentalmente definidos (oprimidos) pelo gênero, como as feministas
culturais brancas, ou por relações de classe e raça, como é o caso das mulheres de cor.

Classe social

Uma questão teórica importante que as pesquisadoras feministas enfrentaram é quanto ao uso da categoria
classe social. Kergoat (1996) trouxe uma importante contribuição a este debate. Para ela a utilização que é
feita do conceito de classe não permite captar o lugar da mulher na produção e na reprodução sociais. As
relações de classe e relações de gênero são coextensivas: tanto para as mulheres como para os homens só
podem ser analisadas conjuntamente. Todos os indivíduos são homens ou mulheres e, por outro lado, todos
têm uma situação de classe a ser determinada.

Para Saffioti (1997, p. 61), os processos de subjetivação-objetivação estão constantemente sujeitos a


capacidade-incapacidade de apropriação dos frutos da práxis humana por parte dos sujeitos, não somente
em virtude da sociedade estar dividida em classes sociais, mas também por ser ela atravessada pelas
contradições de gênero e raça/etnia. A autora não concebe, contudo, esses três ordenamentos das relações
sociais como complexos, que correm paralelamente. Para Saffioti, estas três dimensões são três
antagonismos fundamentais que entrelaçam-se “de modo a formar um nó”, que põem em relevo as
contradições próprias de cada ordenamento das relações sociais e que as potencializa, apresentando este nó
uma lógica contraditória.

A autora ilustra a existência do “nó” através do que ela chama de um exame ligeiro da “vocação” do capital
para a equalização de todas as forças de trabalho:

tomando-se gênero, raça/etnia como relações diferenciadoras do mercado de trabalho, pode-se afirmar, sem
medo de errar, que em todas as sociedades presididas pelo referido nó, formado pelas três contradições
básicas, o capital não obedece àquela lógica abstrata que lhe permite prescindir do trabalho doméstico
gratuito (Saffioti 1997, p. 62).

Segundo Saffioti a projeção de Marx de que “a igualdade na exploração da força de trabalho é o primeiro dos
direitos do capital” (apud Marx 1959, p. 232) não se realizou em nenhuma sociedade, porquanto a força de
trabalho é diferenciada em termos de gênero e raça/etnia. Sendo parte do nó, o capital não tem alcance
suficiente para equalizar todas as forças de trabalho.

Concluindo, lembramos que embora o conceito de gênero tenha adquirido força e destaque enquanto
instrumento de análise das condições das mulheres ele não deve ser utilizado como sinônimo de “mulher”. O
conceito é usado tanto para distinguir e descrever as categorias mulher e homem, como para examinar as
relações estabelecidas entre elas e eles. Como diz Suárez (2000) a expressão “relações de gênero” destaca o
uso analítico do conceito.

Devemos destacar também que a emergência do conceito e sua utilização está fortemente impregnado de
uma dimensão política, tanto no que diz respeito a suas origens, como quanto aos seus propósitos. Ele ganha
força a partir do movimento feminista, cujas principais propostas estão voltadas às mudanças nas relações de
poder tanto no âmbito público como no privado, procurando abolir qualquer forma de dominação-
exploração no conjunto das relações sociais.
259

NOTAS

1“Bases materiales del sistema sexo/gênero” de Maria Jesus Izquierdo, Profesora del Departamento de
Sociologia na Universidad Autónoma de Barcelona. Notas esparsas utilizada em curso do SOF-Sempreviva
Organização Feminista. São Paulo, 1990. [voltar]

2 Kergoat chama atenção para o debate sobre a utilização do termo “gênero”, relações de gênero, ao invés
de relações sociais de sexo. Diz a autora (1996, p. 24) “a primeira observação é de bom senso: é impossível
colocar em oposição gênero e relações sociais de sexo; os dois termos são altamente polissêmicos.
Encontramos nos dois casos, os mesmo leque de acepções que vão da simples variável mulheres, até uma
análise em termos de relações sociais antagônicas (Scottr,1988). Trata-se a meu ver, menos de conceituações
alternativas do que formalizações preferenciais”.[voltar]

3 Lauretis utiliza o termo “classe”, segundo suas palavras, “deliberatamente, embora sem querer aqui
significar classe(s) social (s), pois quero preservar a acepção de Marx, que vê classe como um grupo de
pessoas unidas por determinantes e interesses sociais – incluindo especialmente a ideologia – que não são
nem livremente escolhidos nem arbitrariamente determinados” (Lauretis, 1994, p. 211).[voltar]

ABSTRACT

The present article approaches the emergence and the importance of the gender concept, as a theoretical
instrument, which allows an empiric and analytical approach of social relations. We have prioritized to
develop in a brief formal, the constitution of gender relations, and the sexual division of work, as a notion
that allows us to discuss the material basis of this constitution and th fender-class-race relation.

Key words: gender, sexual division of work, class-gender-race.

BIBLIOGRAFIA

BRITO, J. ; OLIVEIRA, O. Divisão sexual do trabalho e desigualdade nos espaços de trabalho. In: SILVA FILHO, F.
e JARDIM S. (orgs.) A Danação do Trabalho,. Te Corá. Rio de Janeiro. 1997.

CIAMPA, A. C. A Estoria do Severino e a história da Severina. São Paulo: Brasiliense, 1990.

HARDING, S. A Instabilidade das categorias analíticas na teoria feminista. Revista Estudos Feministas, Rio de
Janeiro, v.1, n.1,p. 7-32, 1993.

HIRATA, H. ; KERGOAT, D. A Classe operária tem dois sexos. Revista Estudos Feministas. Rio de Janeiro, v.2,
n.3, 1994..

HUMPHREY, J. Gender and work in the third world, Londres / New York, Iavistok Publications, 1987.

IZQUIERDO, M.J. Bases materiais del sistema sexo/gênero. São Paulo: SOF, [199?]. Mimeografado.

KERGOAT, D. Relações sociais de sexo e divisão sexual do trabalho. In: LOPES, M. J. M.; MEYER, D.E.;
WALDOW, V.R. (Orgs.) Gênero e saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

LAURETIS, T. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, B.H. Tendências e impasses: o feminismo como crítica da
cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
260

LOBO, E. S. A Classe operária tem dois sexos. São Paulo: Brasiliense, 1991.

LOURO, G.L. Nas redes do conceito de gênero. In: LOPES, M. J. M; MEYER, D.E.; WALDOW, V.R. (Orgs.).
Gênero e Saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

SAFFIOTI, H.I.B. Rearticulando gênero e classe social. In: COSTA, A.O. ; BRUSCHINI, C. (Orgs.) Uma Questão de
gênero. São Paulo ; Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992.

______. Violência de gênero: lugar da práxis na construção da subjetividadade. Revista Lutas Sociais, São
Paulo, n. 2, 1997.

SUAREZ, M. Gênero: uma palavra para deconstruir idéias e um conceito empírico e analítico. In: ENCONTRO
DE INTERCÂMBIO DE EXPERIÊNCIAS DO FUNDO DE GÊNERO NO BRASIL, 1, 2000. Gênero no mundo do
trabalho. Brasília: [s.n.] 2000.

VARIKAS, E. Jornal das damas: feminismo no sec. XIX na Grécia. In: SEMINÁRIO RELAÇÕES SOCIAIS DE
GÊNERO VERSUS RELAÇÕES DE SEXO. São Paulo:FFLCH/USP. 1989.

>> volta para índice


261

ANOTAÇÕES – CURSO 03
262
263
264
265
266
267

Scanned by CamScanner
268

Scanned by CamScanner
269

Scanned by CamScanner
270

Scanned by CamScanner
271

Scanned by CamScanner
272

Scanned by CamScanner
273
274
275
276
277
278
279

Scanned by CamScanner
280
281
282
283
284

Scanned by CamScanner
285

PLANO DE AULA DO CURSO- Núcleo Pop Rua

EMENTA
A loucura e sua historicidade. O movimento antimanicomial e A construção da Reforma Psiquiátrica
Brasileira. Saúde mental: Determinantes Sociais, vulnerabilidades, Direitos Humanos, Cidadania.
Redes de Atenção psicossocial e Intersetorialidade

Curso
CH Teórica CH Prática CH Total
Professor(a) Edna Amado Nonato 12 hs

Nº Data Dia da
Semana Conteúdo/ Referência Bibliográfica
Atividade
1 A loucura BRASIL, 2001. Lei 20.216 /01
e sua
2
historicida UFSC. Reforma Psiquiátrica. Direitos Humanos – Saúde
3 de mental e drogas na contemporaneidade brasileira: os
4 Imaginári direitos humanos como caminho inevitável de abordagem.
o social In: Políticas de saúde mental e direitos humanos [Recurso
sobre o
eletrônico] / Universidade Federal de Santa Catarina; Tânia
fenômeno
da loucura Maris Grigolo; Rodrigo Otávio Moretti-Pires [orgs.]. -
Florianópolis : Departamento de Saúde Pública/UFSC,
2014. Pág 11 a 23..: il.,grafs. Disponível em

https://ares.unasus.gov.br/.../Modulo%202%20Alcool%20e%20Drog
as.pdf?...1...y

1.

5 Políticas BASAGLIA, Franco. Poder e Violência no Hospital


6 de Saúde Psiquiátrico. In:BASAGLIA, Franco. Psiquiatria alternativa:
Mental no contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática. São
7 Brasil Paulo: Ed. Brasil Debates, 1979
8 Paradigm
a BRASIL, Portaria GM 3088 /11
hospitaloc
êntrico X BRASIL, Portaria GM 3588 /17
Paradigm
a
Antimanic LOBOSQUE, Ana Marta. Trabalhadores dos serviços
omial públicos de Saúde Mental: dos nossos recursos. In:
Legislaçã LOBOSQUE, Ana Marta. Clínica em Movimento: por uma
o em sociedade sem manicômios. Rio de Janeiro: Garamond,
Saúde 2003..
Mental
Intersetori
alidade
286

MINAS GERAIS. Secretaria de Estado de Saúde. Além da


Saúde: passos decisivos. In: MINAS GERAIS. Secretaria de
Estado de Saúde. Atenção em Saúde Mental. Marta
Elizabeth de Souza. Belo Horizonte, 2006. P71 a 85.
Disponível em http://psiquiatriabh.com.br/wp/wp-
content/uploads/2015/01/Linha-guia-de-saude-mental.pdf

BRASIL, Ministério da Saúde. IV Conferência Nacional de Saúde


Mental – Intersetorial: Temário Oficial. BRASÍLIA: Ministério da
Saúde, 2010. Disponível em
http://www.ipea.gov.br/participacao/images/pdfs/conferencias/sau
de_mental_IV/texto_base_4_conferencia_saude_mental.pdf

9 Saúde LOBOSQUE, Ana Marta. Luta Antimanicomial e Direitos


10 Mental e Humanos: Em pé de Igualdade. In: LOBOSQUE, Ana
Direitos Marta. Clínica em Movimento: por uma sociedade sem
11 Humanos. manicômios. Rio de Janeiro: Garamond, 2003.
Determina
12
ntes UFSC. Reforma Psiquiátrica. Direitos Humanos – Saúde
Sociais de mental e drogas na contemporaneidade brasileira: os
Saúde e direitos humanos como caminho inevitável de abordagem.
Vulnerabi In: Políticas de saúde mental e direitos humanos [Recurso
lidade eletrônico] / Universidade Federal de Santa Catarina; Tânia
Maris Grigolo; Rodrigo Otávio Moretti-Pires [orgs.]. -
Florianópolis : Departamento de Saúde Pública/UFSC,
2014, p. e 31 a 57.
287

ANOTAÇÕES – CURSO 04
288
289
290
291
292
293

PLANO DE AULA DO CURSO- Núcleo Pop Rua

Curso O Sujeito e a Rua

CH Teórica 16 CH Prática CH Total

Professor(a)

Nº Data horario Conteúdo/Atividade Responsável

02/05 14 ás 17h Quem são as pessoas em situação de rua?

01 Legislações, políticas: Decreto 7053, Legislações


municipais Estaduais, Caderno de Cuidado na Saúde
para PSR- MS. , Portaria 940.

08/05 8h ás 12h MNPSR: Cartilha do Movimento e outros espaços


02 de controle social: Convite aos representantes de
comitê ( CIAMPS)

08/05 14h as 17h A rua como espaço de sobrevivência de PSR;


Relatos de experiência- Convidar PSR-
Participação dos cursistas

03 A casa e a rua – espaços opositores ou


complementares?

Relatos de experiência- Convidar PSR-


Participação dos cursistas

09/05 14 as 17 h Matrizes de aprendizagem, formação de vínculos e


papéis: Dramatizações na abordagem

04 A criação de espaços educativos inclusivos e


facilitadores de elaboração de projetos De vida (a
abordagem) Dramatizações com participação dos
cursistas
294
2595
DOI: 10.1590/1413-81232015218.06892015

Direito à saúde da população em situação de rua:

reflexões sobre a problemática

Homeless people’s right to health:

reflections on the problems and components

1
Irismar Karla Sarmento de Paiva

1
Cindy Damaris Gomes Lira

1
Jéssica Micaele Rebouças Justino

1
Moêmia Gomes de Oliveira Miranda

1
Ana Karinne de Moura Saraiva
295

Abstract In the present context of neoliberal-ism, Resumo No atual cenário do neoliberalismo, per-
it can be seen that employment and family links cebe-se uma fragilização dos vínculos empregatí-cios
are becoming more fragile, contributing to the e familiares, o que contribui para o fenômeno da
phenomenon of social exclusion, and making exclusão social e dá visibilidade à População em
people who are homeless – the Homeless – more Situação de Rua - PSR. A PSR desafia a uni-
visible. This population, situated on the margin of versalidade, a equidade e a integralidade do Siste-ma
the healthcare network, challenges the univer- Único de Saúde - SUS, encontra-se à margem da rede
sality, equity and integrated quality of Brazil’s de atenção à saúde e é alvo de políticas fo-
Unified Health System – the SUS, and has been the calizadoras. Esse debate transformou-se em objeto
subject of focalizing policies. The debate on this deste estudo de revisão integrativa das publicações
theme is the subject of this study, which is an nacionais dos bancos de dados Literatura Latino -
integrative review of Brazilian publications in the Americana e do Caribe em Ciências da Saúde - Lilacs
literature databases of Lilacs (Latin America and e Base de Dados de Enfermagem - BDENF, com
the Caribbean Health Sciences Database) and the objetivo de levantar o que existe na literatura acerca
BDENF (Base de Dados de Enfermagem da caracterização da PSR, suas necessida-des e as
políticas desenvolvidas para atendê-la. O estudo
revelou que a discussão sobre a PSR é tímida na
– Nursing Database), to provide a survey of the produção do conhecimento, principal-mente, quanto
literature on characterization of the Homeless as a à compreensão dos determinantes sociais do seu
group, their needs and the policies that have been processo saúde/doença. As políticas sociais voltadas
developed to serve them. The study reveals that para essa população são, em sua maioria,
discussion on the homeless has been timid in compensatórias e assistencialistas, de modo que não
production of knowledge, principally in relation to possibilitam a materialização do direito à saúde.
comprehension of the social determinants of the Diante disso, torna-se necessária a construção de
health-disease process of this group. The social políticas sociais coerentes com as necessidades
policies addressing this population are, mostly, sociais da PSR.
compensatory and existentialist, so that they do
10
Faculdade de not allow for materialization of the right to health
Enfermagem, Universidade
do Estado do Rio Grande do as a possible outcome. In this context, it becomes Palavras-chave Saúde, Políticas públicas,
Norte. necessary to build social policies that are coherent Popu-lação de rua
with the social needs of the homeless.
R. Des. Dionísio Figueira
383, Centro. 59600-000
Mossoró RN Brasil.
karla.paiva@yahoo.com.br Key words Health, Public policies, Homeless,
Homeless population
296
2596 Introdução que vivem nas ruas, identificar suas necessidades
sociais e a complexidade de seu processo saúde-
doença, assim como os motivos que os levaram às
ruas é condição sine qua non para a construção de um
6
O desenvolvimento do capitalismo, a internacio- modelo de atenção universal, equânime e integral .
Paiva IKS et al.

nalização da economia, a urbanização acelerada,


a hegemonia neoliberal, entre outros termos que A existência de pessoas em situação de rua
representam a nova ordem mundial, têm produ- representa as contradições gritantes de uma so-
zido, entre outros efeitos, um aumento conside- ciedade que tem a seguridade social como direito
rável da exclusão social, o que suscita possíveis constitucional e que assegura saúde como direito
rupturas sociais capazes de comprometer o so- de todos e dever do Estado.
nho de uma sociedade democrática e justa¹.
Algumas ações recentes apresentam possibi-
Nesse contexto, há um número cada vez lidades de transformação da realidade em que se
maior de pessoas excluídas dos direitos sociais encontra a PSR. Destacam-se: o I e o II Encon-tros
básicos, como educação, saúde, trabalho, mora- Nacionais da População em Situação de Rua, que
dia, lazer, segurança e outros, e até mesmo dos representaram espaços de vocalização desse grupo;
direitos humanos, com alguns grupos relegados à a Política Nacional de Assistência Social PNAS
invisibilidade. É nessa categorização que encon- (2005), que incluiu a PSR no âmbito da proteção
tramos o povo de rua. social especial; a Política Nacional para a
População em Situação de Rua - PNPSR (2009),
Apesar do crescimento visível da População que representou a primeira iniciativa nacional de
em Situação de Rua - PSR nas últimas décadas,
reconhecimento dos direitos desse grupo, histo-
ela constitui um fenômeno antigo. Sua história
ricamente, excluído, e as perspectivas anunciadas
remonta ao surgimento das sociedades pré-in- 2,3,7
pelo Consultório na Rua .
dustriais da Europa no processo de criação das
condições necessárias à produção capitalista. Os
No entanto se trata de iniciativas recentes,
camponeses foram desapropriados e expulsos de
que ainda demandam mais investigações, bem
suas terras, e nem todos foram absorvidos pela
como muitas, ainda, não foram efetivadas em
indústria nascente. Isso fez com que a maioria
algumas realidades locais. No campo da prá-xis,
destes vivenciasse a amarga experiência de pe-
2 a PSR ainda vivencia inúmeras situações de
rambular pelas ruas .
privação, violência, miséria, inutilidade social e
A prática que forja o fenômeno população de constitui, portanto, um desafio para as políticas
rua foi tratada historicamente por mendicância, públicas sociais, de modo particular, as de saúde.
.
vadiagem ou indigência Em nossa contempora- Através do contato com as bases literárias,
neidade, de tempos em tempos, eclodem ações de percebeu-se que há uma escassez de pesquisas e
violência contra a PSR em uma espécie de limpe-za estudos nessa área, diante do que se viu a ne-
das cidades, que expulsam essa população para cessidade de identificar o quantitativo de artigos
espaços invisíveis. O Estado, nesse contexto, tem-se publicados e se os estudos elaborados abordam a
utilizado de forças opressoras para punir as pessoas população em situação de rua e/ou realizam arti-
que não se enquadram na lógica do capi-tal – culação da temática com discussões acerca de po-
mercado e consumo: nas ações de fiscaliza-ção, nas líticas públicas e do seu processo saúde-doença.
áreas públicas, leva os poucos pertences desse
público, seus filhos, documentos, desmonta seus Na perspectiva de refletir sobre essas ques-
barracos precários, dificultando a existência da PSR tões, o presente estudo se propôs a fazer uma
e intensificando ainda mais a situação de revisão integrativa nas bases de dados BDENF e
vulnerabilidade. Transcende-se assim, de um Lilacs, com o objetivo de levantar o que existia
2-5
“Estado Social” para um “Estado Penal” . na literatura no que diz respeito à caracterização
da população de rua, suas necessidades, bem
A mudança do regime político ocorrida no como às políticas desenvolvidas para o
Brasil, na década de 1980, seguida por recessões atendimento destas.
econômicas, aumento do desemprego e intensi-
ficação do processo de globalização, contribuiu
para que a miséria rompesse os limites espaciais,
transbordando vilas, favelas e cortiços para as Metodologia
4
ruas e praças das cidades .

Hoje a população de rua é uma problemáti-ca


social, requer do Estado intervenções que le-vem A revisão integrativa é a mais ampla abordagem
em conta como ela se constitui e as formas de metodológica referente às revisões: permite a
sobrevivência ali desenvolvidas. Conhecer os inclusão de estudos experimentais e não expe-
297
rimentais para uma compreensão completa do esse achado não permitir fazer afirmações mais amiúde, 2597
fenômeno analisado; favorece a inclusão de li- até porque isso fugiria ao objetivo deste estudo.
teratura teórica e empírica, assim como estudos
A análise criteriosa de dados deu-se a partir
com diferentes abordagens metodológicas (qua-
8 de um instrumento construído e validado por

Ciência & Saúde Coletiva, 21(8):2595-2606, 2016


litativas e quantitativas) . 9
Ursi e Galvão , adaptado para as peculiaridades
Este estudo consiste em uma revisão integra- desta temática. O instrumento apresenta diversas
tiva que traz à discussão políticas públicas e a Po- informações, porém não se fez uso de todos os
pulação em Situação de Rua – PSR. Conforme o recursos. Consideraram-se: identificação do ar-
método utilizado, a pesquisa divide-se em etapas: tigo por título/autores/anos de publicação, base
de dados/periódico, população estudada/abran-
estabelecimento da temática e dos objetivos da gência do estudo, resultados e considerações. Os
revisão, (2) seleção dos artigos, (3) definição de dados foram apresentados em quadro sinóptico, e
critérios de inclusão e exclusão, (4) determina-ção a síntese dos artigos resultou em três categorias
das informações que serão extraídas dos arti-gos analíticas: Vivendo na rua - “eu não tenho nome,
escolhidos, (5) interpretação dos artigos escolhidos eu não tenho identidade, eu não tenho nem cer-
10
8 teza se eu sou gente de verdade ”; Rua e neces-
e, por fim, (6) apresentação da revisão . Para o
sidades sociais - “A gente não quer só comida, a
levantamento dos artigos na literatu-ra, realizou-se 11
uma busca nas seguintes bases de dados: Literatura gente quer comida diversão e arte ”; e Política
Latino-Americana e do Caribe em Ciências da da inclusão ou falta de inclusão nas políticas -
Saúde - Lilacs e Bases de Dados de Enfermagem -
“Eu sou feio, eu sou sujo, eu sou antissocial, eu
10
BDENF. Foram utilizadas para a busca dos artigos não posso aparecer na foto do cartão postal ”.
as seguintes palavras-chave e suas combinações:
A escolha de trilhas sonoras para compor
Saúde “and” População em Si-tuação de Rua;
essas categorias foi intencional, assim como Es-
Políticas Públicas “and” População de Rua. 12
corel , considerou-se a música popular brasileira
“Saúde” e “Políticas Públicas” constituí-ram
uma companheira sensível quando se pensa nos
descritores estabelecidos a partir de consulta aos
problemas desta sociedade.
Descritores em Ciências da Saúde – DeCS.
Foram considerados para a seleção dos artigos os
seguintes critérios de inclusão: artigos
publicados em português, em periódicos indexa- Resultados
dos nas bases de dados Lilacs e BDENF, e
artigos na íntegra que retratassem a temática Vivendo na rua: “Eu não tenho nome, eu não
referente à revisão. E foram adotados como tenho identidade, eu não tenho nem certeza se sou
gente de verdade”
critérios de ex-clusão: artigos repetidos nas bases
de dados, sem texto completo disponível e que
expressassem apenas uma abordagem biológica
da problemá-tica da População em Situação Rua; A população em situação de rua não participa
teses, disser-tações, monografias e manuais. das pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), uma vez que a coleta de da-
A partir do levantamento bibliográfico realiza- dos para os censos é fundamentalmente de base
do nas bases de dados, utilizando as palavras-chave domiciliar, e essa população, em sua maioria, não
13,14
mencionadas anteriormente, foram identificados 79 possui casa . Mesmo assim, são milhares de
artigos. Após aplicação dos critérios de exclu-são, pessoas e famílias que vivem na e da rua, entre-
como a retirada dos artigos repetidos, resta-ram 15 tanto, quando organizadas, preferem a denomi-
para análise e síntese minuciosa, objetivan-do a nação de “pessoas em situação de rua”, visando
apresentação dos resultados e discussões. caracterizar o princípio da transitoriedade desse
processo de absoluta exclusão social, mesmo
que, no fundo, muitos saibam que sair da rua não
É válido ressaltar que, apesar de o ano de pu- é tão simples
13,15,16
.
blicação não ter sido considerado critério para
seleção da amostra, tendo em vista o número Um estudo de abrangência nacional, realiza-
reduzido de publicações sobre essa temática, do pelo Ministério do Desenvolvimento e Com-
optou-se por os apresentar no Quadro 1, por or- bate à Fome - MDS, em 2007/2008, identificou
dem decrescente de ano de publicação, ou seja, de 31.922 adultos com 18 anos completos ou mais,
2014 a 1998. Essas datas sinalizam uma maior no universo de 71 municípios brasileiros com
evidência dessas publicações a partir dos anos população superior a 300 mil habitantes, vivendo
2000, o que configura um resultado importante 14
em situação de rua .
quando se pensa a elaboração de políticas para um
grupo, historicamente, silenciado, apesar de
298
2598
Quadro 1. Distribuição dos artigos por título, autor/ano de publicação, periódico/base de dados, população
estudada/abrangência do estudo e resultados/considerações.

Título/autor (es)/ Periódico/ População estudada/ Resultados/ considerações


ano de publicação base de dados local do estudo

Vida na rua e cooperativismo: Revista Homens em situação Trata-se de uma estratégia


transitando pela produção de Latino- de rua albergados. proposta para um grupo
valores. Ghirardi MIG, Samira Americana de Pesquisa realizada no específico, com a intenção
17
RL, Barros DD, Galvani D . Enfermagem Centro de Referência de reinseri-lo no mercado de
2014 BDENF para a PSR - São Paulo. trabalho por meio do ramo
cooperativista.

Acesso e intersetorialidade: o Physis Revista Pessoas em situação de Aborda a problemática da saúde


acompanhamento de pessoas em de Saúde rua, com transtorno mental da PSR e do acesso aos
situação de rua com transtorno Coletiva mental grave. serviços de saúde. Vê-se que o
mental grave. Borysow IC, Lilacs Levantamento nas trabalho intersetorial precisa ser
18
Furtado JP . 2013 bases de dados SCIELO melhor desenvolvido.
e CAPES.

Significados e práticas de saúde Caderno de 13 pessoas em situação Descreve como as PSR percebem
e doença entre a população em Saúde Pública de rua. Estudo seu processo saúde-doença, na
situação de rua em Salvador, Lilacs realizado em Salvador, perspectiva de subsidiar políticas
Bahia, Brasil. Aguiar MM, Iriart Bahia. públicas que ultrapassem o
15
JAB . 2012 higienicismo e o assistencialismo.

Vulnerabilidade e vulneração: Revista de Moradores de áreas Descreve os fatores de


população de rua, uma questão Bioética de ocupação de terras vulnerabilidade relacionados
5
ética. Sotero M . 2011 Lilacs públicas, na Asa Norte à precariedade da existência
e zona central do Plano da PSR, incitando medidas
Piloto – em Brasília- protetoras das instituições
DF. públicas.

Promoção de saúde e Psicologia & Profissionais de Relata uma experiência com


adolescência: um exemplo de Sociedade saúde e educadores a promoção da saúde dos
intervenção com adolescentes Lilacs de instituições para adolescentes em situação de
em situação de rua. Morais NA, crianças e adolescentes vulnerabilidade social.
19
Morais CA, Reis S e Koller . em situação de rua, em Aponta a necessidade de
2010 Porto Alegre-RS. mudanças na lógica assistencial.

A estratégia saúde da família Saúde População em situação Discute a experiência na


para a equidade de acesso Sociedade de rua atendida pela implantação da ESF para atenção
dirigida à população em situação Lilacs Estratégia Saúde da à saúde da População em
de rua em grandes centros Família - ESF. Situação de Rua, apresentando
urbanos. Carneiro Junior N, Estudo realizado na determinada política pública com
20
Jesus CH, Crevelim MA . 2010 cidade de São Paulo. ênfase na equidade.

Processo Saúde-doença da Revista Espaço Indivíduos albergados Fala sobre um programa


população em situação de rua da para a Saúde em instituições. municipal específico – Sinal
cidade de Londrina: aspectos do Lilacs Trabalho realizado na Verde, que fornece acesso
viver e adoecer. Aristides JL, cidade de Londrina-PR facilitado à saúde para a PSR.
18
Lima JVC . 2009 Sinaliza a necessidade de os
serviços flexibilizarem regras e
praticarem a equidade.

continua
299
Quadro 1. continuação 2599

Título/autor (es)/ Periódico/ População estudada/ Resultados/ considerações


ano de publicação base de dados local do estudo

Crianças e adolescentes em Ciência & Revisão do tema Trata-se de uma investigação


situação de rua: contribuições Saúde Coletiva crianças e adolescentes de um grupo específico da
para a compreensão dos Lilacs em situação de rua, com PSR a partir do conceito de
processos de vulnerabilidade e base na lente teórica vulnerabilidade, com base no
desfiliação social. Gontijo D, de Castel. Estudo de modelo de coesão social e dos
22
Medeiros M . 2009 abrangência nacional. determinantes do processo saúde-
doença.

Atendimento à população de Rev Esc População geral em Apresenta um programa


rua em um Centro de Saúde Enferm situação de rua. Pesquisa assistencial - “A gente na rua”,
Escola na cidade de São Paulo. Lilacs/ BDENF realizada no Centro de incluindo a discussão de aspectos
Canônico RP, Tanaka ACDA, Saúde Escola Geraldo relacionados à saúde da PSR,
Mazza MMPR, Souza, MF, Honório de Paula Souza, compreendendo as diretrizes
23
Bernat MC, Junqueira LX . da Universidade de São norteadoras desse programa.
2007 Paulo.

Rede social e promoção Escola de PSR e trabalhadores dos Analisa as políticas e experiências
da saúde dos “descartáveis Enfermagem equipamentos sociais da PSR. Faz crítica às práticas
urbanos”. de Ribeirão que assistem a PSR no isoladas, assistencialistas, que
Souza ES, Silva SRV, Caricari Preto município de São Paulo. sustentam e cronificam a situação
24
AM . 2007 Lilacs de rua.

Organização de práticas Saúde População geral em Trata-se de experiências


de saúde equânimes em Sociedade situação de rua. Pesquisa de organização de serviços
atenção primária em região Lilacs realizada no Centro assistenciais de saúde em atenção
metropolitana no contexto de Saúde-Escola Barra primária, observando a prática
dos processos de inclusão Funda, na cidade de São dos princípios norteadores do
e exclusão social. Carneiro Paulo. SUS, destacando a participação
Junior N, Andrade MC, Luppi social.
25
CG, Silveira C . 2006

O cuidado em situação de Revista População em Traz em discussão aspectos


rua: revendo o significado do Brasileira de situação de rua e relacionados à saúde e assistência
processo saúde-doença. Enfermagem trabalhadores de um da PSR, investigando experiências
Rosa AS, Secco MG, Brêtas BDENF centro comunitário de e concepções sobre o processo
16
ACP . 2006 atendimento à PSR em saúde-doença-cuidado.
São Paulo.

O processo saúde-doença- Revista População em Situação Discute os aspectos relacionados


cuidado e a população em Latino- de Rua em geral da à saúde da PSR, trazendo
situação de rua. Rosa AS, Americana de metrópole de São Paulo. apontamentos técnicos,
13
Cavicchioli MGS, Brêtas ACP . Enfermagem científicos e políticos acerca da
2005 BDENF assistência da Enfermagem à PSR.

Descartáveis urbanos: População composta, Avalia as condições assistenciais


discutindo a complexidade da Saúde e principalmente, por em saúde e intervenções
população de rua e o desafio Sociedade adultos em situação de sociais, trazendo a discussão
para política. Varanda W, Lilacs rua. Sem identificação de implementação de políticas
25
Adorno RCF . 2004 de local geográfico. públicas da saúde para a PSR.

Serviços de saúde e população Saúde e Representantes da PSR Traz a discussão dos aspectos
de rua: contribuição para um Sociedade e representantes dos relacionados à saúde da PSR e de
debate. Carneiro Junior N, Lilacs/ BDENF principais serviços sua condição de vida. Evidencia
Nogueira EA, Lanferini GM, de saúde localizados relações com os programas e
26
Ali DA, Martinelli M . 1998 na região central do serviços de saúde na perspectiva
município de São Paulo. dos diferentes atores sociais.
300
2600 Embora seja expressivo o número de pesso-as com pai/mãe/irmãos (29,1%). Dos entrevistados no
apontado pelo estudo, estipula-se que mais de censo, a maioria citou pelo menos um desses três
50.000 estejam em situação de rua, uma vez que motivos, que podem estar relacionados en-tre si ou
14
alguns municípios, como São Paulo, Recife e Belo um ser consequência do outro . Desse modo, a ida
Horizonte, não participaram dessa pesquisa por para as ruas está ligada a diversos determinantes,
Paiva IKS et al.

terem feito levantamentos recentes acerca de suas entretanto não se pode perder de vista o processo
PSR. De acordo como o MDS, essa população é social que empurra milhares de pessoas para essa
7
predominantemente masculina (82%), e mais da condição .
metade (53%) das pessoas adultas em situação de
14 17
rua entrevistadas possui entre 25 e 44 anos . Ghirardi et al. apresentam como determi-
nantes do processo de viver nas ruas: competição
A PSR é composta, em grande parte, por
acirrada do mercado de trabalho, fragilização dos
trabalhadores: 70,9% exercem alguma ativida-de
vínculos trabalhistas pela não qualificação pro-
remunerada. Dessas atividades, destacam-se:
fissional, inserção em atividades produtivas com
catação de materiais recicláveis (27,5%), “flane-
grande potencial de substituição e com rendas li-
linha” (14,1%), construção civil (6,3%), limpeza
mítrofes para a subsistência, estigmatização pelas
(4,2%) e carregamento/estivação (3,1%). Apenas
posições de trabalho que ocupam e desemprego.
15,7% das pessoas pedem dinheiro como princi-
14
pal meio para a sobrevivência . Esses dados são Apesar de, em meados dos anos 2000, vários
importantes para desmistificar a concepção de países da América Latina, incluindo o Brasil, te-
que a população em situação de rua é composta, rem experimentado redução nas taxas de desem-
exclusivamente, por “mendigos” e “pedintes”. prego, é importante atentar para o fato de que as
13 mudanças ocorridas e em curso no mundo do
Para Rosa et al. , a definição de população trabalho, no final do século XX e início do
de rua é difícil, tendo em vista que a século XXI, têm como uma das principais con-
multiplicidade de condições pessoais, a sequências a formação de um exército industrial
diversidade de soluções dadas à subsistência e à de reserva, que é a população sobrante frente às
moradia são fatores que dificultam a formulação 28
necessidades do capital .
de conceitos livres de ambiguidades.
A ida para as ruas provoca uma ruptura com
É possível identificar situações diferentes em
as formas sociais, geralmente, aceitas de sobrevi-
relação à permanência na rua: ficar na rua - cir-
vência segundo o princípio legitimador do mer-
cunstancialmente; estar na rua - recentemente;
cado, no qual o trabalho é provedor da moradia,
ser da rua - permanentemente. O tempo vivido
alimentação e demais necessidades. Viver na rua
como moradores de rua é um elemento agra-
romper com o mercado e seu estilo de vida, o que
vante nesse processo: quanto maiores os lapsos
não significa a eliminação total do trabalho ou o
de tempo que permanecem, circunstancial ou re-
impedimento à subsistência, mas o desen-
centemente nas ruas, maiores as probabilidades volvimento de novos códigos, de formas
15
13 específicas de garantia da sobrevivência .
de se tornarem permanentes como seres da rua .
A população em situação de rua tem presen-ça Diante da complexidade de vida e trabalho da
marcante em regiões centrais das metrópoles,
PSR, não se pode pensar em caracterizá-la com
um padrão estereotipado, que, por vezes, anula e
pois essas áreas parecem oferecer mais possibili- massifica suas múltiplas identidades. São
dades de viabilizar seu “modo de andar a vida”: homens, mulheres, crianças, idosos, jovens, que,
grande concentração de serviços, baixa concen- diariamente, lutam pela sobrevivência. No
tração de residências e alta circulação de pesso- entanto o contexto no qual essa população vive
as, fatores que contribuem para sua localização tende a mantê-la em uma posição de invisibilida-
20
territorial . de, destituída da condição de cidadã: “[...] eu não
10,15
tenho nome, eu não tenho identidade” .
12 Quando não são ignoradas, as pessoas de rua são
Para Escorel , a PSR, apesar de ser homoge-
neizada pelas carências em comum e pelos olha- tratadas como objetos da tutela estatal, da
res da exclusão e do desamparo, diferencia-se filantropia privada ou da caridade das igrejas. Estas,
pe-los motivos que levaram as pessoas desse com a filosofia de “fazer o bem sem olhar a quem”,
grupo para a rua, pelo tempo de permanência acabam por reforçar ainda mais a invisi-
nela, pelo grau de vínculos familiares existentes 12
e pelas es-tratégias de sobrevivência adotadas. bilidade dessa população .

Entre os principais motivos pelos quais essas Retirar o manto da invisibilidade da PSR e
pessoas passaram a viver e morar na rua, estão romper com a imagem clássica do vagabundo e
problemas relacionados ao alcoolismo e/ou dro- do mendigo podem ser caminhos possíveis no
gas (35,5%), desemprego (29,8%) e desavenças
301
sentido de resgatar a cidadania do povo de rua. tologia adquirida. Portanto esquece, mascara, ou 2601
No campo do desafio, está a necessidade de se desconsidera a relação de determinação estabele-cida
aproximar ao máximo do cotidiano vivido por entre o processo saúde-doença e o modo de trabalhar e
viver dessa população.
essas pessoas, para entender a complexidade de

Ciência & Saúde Coletiva, 21(8):2595-2606, 2016


seu processo saúde-doença, identificando suas Os significados de saúde e doença para as pes-
reais necessidades. soas em situação de rua são diversificados: não há
conceitos maiores ou menores, e, sim, conceitos que
fazem sentido para o que os indivíduos estão
vivenciando. Alguns fazem associação de saú-de
Rua e necessidades sociais: “A gente
com ausência de doença. Outros remetem a saúde
ao bem-estar, à felicidade, à prevenção da
21
não quer só comida, a gente quer dependência química ou a um lugar de abrigo .
comida diversão e arte”
As concepções de saúde para a PSR estão as-
Conforme visto, as pessoas que vivem em sociadas à capacidade de estar vivo e de resistir ao
situação de rua são heterogêneas, possuem ca- cotidiano de dificuldades nas ruas, já a doença foi
racterísticas que lhes são próprias, como valores, associada ao estado de debilidade a ponto de não
significados, atributos, estrutura pessoal, estraté- poder trabalhar, à impossibilidade de batalhar e
gias de sobrevivência e condições de vida. Essas ganhar dinheiro, ao impedimento de realizar tare-fas
características diferentes vão demandar uma di- simples ou, no caso extremo, ao organismo não
15,26
versidade de necessidades. Desse modo, contem- suportar o sofrimento, enfraquecer e sucumbir .
plar todos os aspectos de suas necessidades indi-
viduais e coletivas requer a adoção de um concei- Para essa população, o corpo é seu único bem
to de saúde mais amplo, capaz de ultrapassar a e instrumento indispensável para a garantia da
dimensão biológica e possibilitar a construção de sobrevivência. A atenção que os indivíduos dão
estratégias de saúde que visem intervir nos pro- ao próprio corpo cresce à medida que se eleva a
blemas e nos determinantes relativos ao processo hierarquia social. Contrariamente, à medida que
saúde-doença. se desce na hierarquia social, há uma utilização
máxima do corpo como instrumento de sub-
No entanto o que se tem observado na re- sistência, através da capacidade de resistência e
alidade dos serviços de saúde é que o modelo trabalho. Problemas de saúde que não afetem a
multicausal tem inspirado o planejamento das capacidade de trabalhar ou de se locomover para
ações de promoção da saúde nos variados níveis buscar alimentos são relativizados diante da ne-
de atenção. Há, também, um reforço do modelo 15
cessidade de garantir a sobrevivência .
biomédico, medicalizador da sociedade. Essa
for-ma de pensar e produzir serviços de saúde O processo saúde-doença se constitui ferra-
não tem conseguido resolver os problemas menta indispensável para a definição das ações
relativos ao processo saúde-doença da maioria da do setor saúde da PSR. Contudo esta vem sendo
popula-ção brasileira, em especial, da PSR. atendida apenas em situações emergenciais, mui-
tas vezes, por profissionais sem o devido preparo
Percebe-se que poucos estudos abordam a técnico para compreender suas necessidades de
16,21
questão da saúde das pessoas em situação de rua, saúde .
sobretudo na perspectiva de compreender como Rotulados como indivíduos “sobrantes”, des-
os indivíduos concebem o processo saúde-doen- necessários, sem identificação e utilidade social,
ça e enfrentam os problemas de saúde. Abordar perigosos, drogados, sujos, carentes de direitos,
os significados de saúde para as pessoas em si- de vínculos afetivos, de educação, acabam sendo
tuação de rua é, também, possibilitar um espaço 13,29
reduzidos às suas doenças .
de vocalização para essas suas questões, já que,
no contexto no qual vivem, esses atores tendem a Habitantes das ruas e habitados por elas, as
permanecer em uma posição de invisibilidade, pessoas em situação de rua necessitam de priva-
15 cidade, dignidade e de reconhecimento enquanto
destituídos da condição de cidadãos .
cidadãs. A atenção à saúde dessa população
Grande parte da produção científica associa o passa necessariamente pela compreensão da
processo saúde-doença das pessoas em situação cultura de rua, na qual é preciso considerar
de rua a dermatites, a helmatoses e aos sofrimen- alguns fatores: quem são essas pessoas?; como
tos psíquicos, ou seja, limita a compreensão do conseguem so-breviver?; qual o sentido que
13,29
processo saúde-doença às questões biológicas/ atribuem à sua exis-tência? .
patológicas e, em alguns casos, associa-o a um
fator social, em geral, relativo ao estilo de vida, Conforme discutido na categoria analítica
anterior, a maioria são homens, adultos jovens,
cuja consequência é a culpabilização das pessoas
pela condição na qual se encontram ou pela pa-
302
2602 que sobrevivem através de atividades produtivas Apesar de a Constituição Federal assegurar saúde
desenvolvidas na rua, entre outras estratégias. como direito de todos e dever do Estado,
Quanto ao sentido que atribuem à sua existên-cia, garantida mediante políticas econômicas e so-
este parece ir além das necessidades imediatas ciais, em termos práticos, não se vê a extensão
manifestas pelas carências. A pesquisa nacional desses direitos à PSR: esta vive à margem dos
14
Paiva IKS et al.

para a PSR clarificou essa questão quando inda- processos de inclusão e sofre graus acentuados de
gou a esse público sobre seu maior desejo. Entre as vulnerabilidade e marginalidade no acesso aos
21,30
respostas, destacaram-se: moradia (30,6%), trabalho bens e serviços .
(24,1%), reconstrução de laços familia-res (14,9%),
sair da rua (10,0%) e outros (20,4%). Embora o acesso seja, muitas vezes, difícil
para qualquer cidadão, no caso da população em
Portanto a população em pauta não quer “só situação de rua, há agravantes. Para se conseguir
comida”: ela evidencia que políticas focalizado- atendimento, é preciso chegar muito cedo ao
ras da proteção social não dão conta de satisfazer posto e esperar várias horas, e o indivíduo, com
suas necessidades; contribuem, na maioria das frequência, precisa sair para conseguir o almoço.
vezes, para agravar a situação de rua, E, quando não se sabe o que vai comer ou onde
despersona-lizando ainda mais as pessoas nessa dormir, outras necessidades parecem ficar em se-
circunstân-cia, de maneira que, para se ter acesso gundo plano, mas “[...] a gente não quer só co-
ao que é de direito, é preciso comprovar uma 11
mida” . É comum, ainda, que o morador de rua
situação de indigência ou uma vocação religiosa. esteja com roupas sujas e/ou não tenha tomado
banho, o que faz com que ele seja mal recebido
Com isso, não se quer dizer que prover con- 21
na sala de espera do serviço de saúde .
dições de alimentação ou higiene, por exemplo,
não sejam importantes, mas que elas, por si só,
Aspectos relacionados às concepções do ado-
não são suficientes para resgatar a PSR enquanto
23 ecimento e do processo do cuidado desses indi-
cidadã , além de se incorrer no risco de se ficar víduos, também, contribuem para sua não ade-
preso à imediaticidade dos fatos que envolvem são aos serviços. Outras questões referem-se à
essa população, negando sua essência encoberta própria organização do serviço, que exerce papel
pelas expressões das desigualdades existentes na fundamental no acesso, entre as quais se citam:
7
sociedade capitalista . exigência de documentação, restrição no atendi-
mento da demanda espontânea, limites na atua-
Política da inclusão ou falta de inclusão ção intersetorial, preconceitos, entre outras que
nas políticas: “Eu sou feio, eu sou sujo, 20
criam vínculos precários .
eu sou antissocial, eu não posso
aparecer na foto do cartão postal” Todas essas questões desencorajam futuras
procuras e inserções da PSR nos serviços de saú-
A População em Situação de Rua, esse perso-
de, o que a faz buscar, assim como a população
nagem anônimo que se avoluma pelas ruas das
de um modo geral, preferencialmente,
cidades, excluída das estruturas convencionais da
atendimento emergencial quando não consegue
atual sociedade, como emprego, moradia e priva-
resistir aos sintomas, ou seja, quando o corpo
cidade, constitui um desafio para as políticas de
16 está impedido de lutar pela sobrevivência, “[...]
saúde e demais políticas públicas .
reforçando-se assim, a concepção de saúde
13,18
enquanto ausência de doença” (grifo nosso) .
Trata-se de um grupo que sofre uma sobre-
posição de situações de exclusões e de desvincu- A população de rua não necessita de um novo
lações nas dimensões: sociofamiliar, do trabalho, sistema de saúde, pois a equidade, a integralidade e
das representações culturais, da cidadania e da a universalidade do atendimento estão garan-tidas
vida humana. Acumula estereótipos de uma tipi- na Constituição Brasileira de 1988, com a criação
6
ficação, socialmente, construída; são indivíduos do SUS . Contudo é necessária a recons-trução do
considerados supérfluos e desnecessários à vida sistema de saúde, hegemonicamente, centrado no
social, que convivem ao lado do lixo humano e modelo biomédico, distante, por-tanto, das reais
são descartados de maneira semelhante aos re- necessidades sociais da População em Situação de
síduos sólidos, como bem afirmam Varanda e Rua.
25
Adorno em “Descartáveis Urbanos” .
Essa perspectiva leva a pensar a organização
12 dos processos de trabalho, com a concepção de
2 o que Escorel caracterizou como “[...] pro-
novas abordagens junto à PSR, capazes de intro-
cesso dinâmico no qual os indivíduos transitam da
duzir, em suas formulações, a equidade no acesso
integração à vulnerabilidade ou deslizam da 21
vulnerabilidade para a inexistência social”. aos serviços de saúde , dando visibilidade a esse
grupo social, incorporando às práticas sanitárias
303
suas demandas, articulando-as no conjunto de da não foi implementada na maioria dos estados 2603
25 29
outras práticas sociais . brasileiros .

Uma experiência inovadora na perspectiva da Ainda no campo das conquistas, a Portaria


20 122/123, de janeiro de 2012, definiu as diretrizes

Ciência & Saúde Coletiva, 21(8):2595-2606, 2016


equidade foi descrita por Carneiro Júnior et al. ,
das equipes de Consultório de Rua - eCR, que
por meio da Estratégia Saúde da Família para
integram o componente Atenção Básica da Rede
PSR, em que: “visita domiciliária” passa a ser
de Atenção Psicossocial e buscam atuar frente
“visita de rua”; domicílio, “o lugar em que se
aos diferentes problemas e necessidades de saúde
costuma ficar na rua”; e família, aquela “consti-
da população em situação de rua, inclusive, na
tuída por indivíduos declarados no momento do
busca ativa e no cuidado aos usuários de álcool,
cadastro” (cadastro que contemple particularida- 32
des, como existência de animal de estimação, lo- crack e outras drogas .
cais para refeições e higiene, entre outros aspec-
No entanto trata-se de iniciativas recentes que
tos). Tais adequações foram necessárias devido
demandam mais investigações. O desenho
às singularidades do “modo de andar a vida” dos
tradicional das políticas de proteção social, ain-
indivíduos em situação de rua.
da, é marcado pela descontinuidade dos projetos
7 e programas, pelas ações pontuais de distribui-
Para Reis , resgatando Escorel, não é simples
ção de alimentação, roupas, banhos e pela cultu-
o desenho de políticas de saúde voltadas para ga-
ra predominante do recolhimento em albergues,
rantir o direito à saúde dos diversos subgrupos
“outrora em prisões” (grifo nosso), com uma es-
que moram nas ruas. Experiências nacionais e in-
treita porta de entrada nas instituições, mas sem a
ternacionais parecem indicar que, nesse caso, os
utópica porta de saída que pudesse garantir uma
serviços devem ir aonde estão seus usuários, ao 3,25
invés de aguardar que estes venham a demandar reinserção social .
ações e cuidados de saúde. No entanto isso, tam-
No campo das políticas de saúde, persistem
pouco, é suficiente; tornam-se necessárias, então,
os problemas de acesso, estigma, preconceito,
políticas que articulem saúde e proteção social,
despreparo profissional, desarticulação entre os
emprego, moradia, e educação, etc.
setores, cuidado uniprofissional, uma atenção à
/ bem verdade que o atendimento à PSR tem saúde, ainda, voltada para ações assistencialistas
24,25
passado por ressignificações positivas: a constru- e medicalizantes .
ção de proposta para o cuidado desse público foi
resultado do acúmulo dos últimos anos de de-bate, Pensa-se que o desafio está na (re)definição
associados à produção de conhecimento, à de políticas públicas, de Estado, coerentes com
caracterização dessa população, às experiências as reais necessidades da PSR. No que se refere à
exitosas junto a esse grupo, a iniciativas religiosas política de saúde, objeto deste debate, significa
(como a pastoral do povo na rua, em 1970/1980) e, (re)defini-la, reconhecendo a existência da PSR,
principalmente, devido ao valoroso papel dos
cujas demandas são específicas porque são dife-
movimentos organizados de pessoas em situação de
renciados e diversificados seus “modos de andar
rua, cujas reivindicações e lutas permanentes
a vida”. Portanto uma política construída com
resultaram em conquistas, entre elas, a publica-
base na intersetorialidade, de respeito aos
31 princípios e diretrizes do SUS, preconizado pelo
ção da PNPSR .
Movimento de Reforma Sanitária, na busca
Uma maior mobilização da População em Si- permanente pela (re)construção da cidadania.
tuação de Rua ocorreu em 2005, ocasião em que
foi realizado o I Encontro Nacional de População
em Situação de Rua, que objetivou conhecer os
desafios e estabelecer estratégias para construção
Considerações finais
de políticas públicas. Resultou na aprovação da O estudo possibilitou visualizar que o debate ar-
Lei 11.258, que dispõe sobre a criação de progra- ticulado entre população em situação de rua e
mas específicos de assistência social para as políticas sociais, em particular, políticas de saú-
29
pessoas que vivem na rua . de, ainda é tímido na produção de conhecimento,
principalmente, em uma abordagem que ultra-
Em dezembro de 2009, como conquista ex- passe o factual e contemple os determinantes so-
pressiva do II Encontro Nacional de População ciais do processo saúde-doença dessa população.
em Situação de Rua, foi publicado o texto da
PNPSR, pautado na perspectiva de assegurar a Os estudos apresentados descreveram expe-
integralidade das políticas públicas e do acesso riências pontuais de sucesso de ações voltadas à
aos direitos de cidadania às pessoas em situação PSR, porém restritas a quadros epidemiológicos
32
de rua . Contudo, se destaca que tal política ain- de algumas unidades de saúde, a centro de refe-
304
2604 rência em álcool e drogas e a grupos específicos geralmente, não promovem uma política de
que moram na rua. Destaca-se, contudo, que atendimento que responda às necessidades e
algumas dessas experiências foram bases para a demandas da população em situação de rua. Al-guns
construção de políticas públicas de saúde volta- autores consideram que os profissionais que atuam
das para essa população. nos serviços públicos de saúde, frequente-mente, não
Paiva IKS et al.

estão capacitados para o atendimento dessa


4 bem verdade que um grande passo foi dado população, já que desconhecem suas par-
no sentido de incentivo às políticas públicas para ticularidades, homogeneizando-as sob estigmas e
a população em situação de rua, principalmente rótulos. Persistem, ainda, problemas de acesso, ações
de caráter paliativo e higienista, medicali-zadoras,
no campo constitucional, todavia, ainda, é neces- pautadas em um modelo unicausal e, no máximo,
sário aproximar as políticas públicas das neces- multicausal da doença.
sidades da PSR, bem como considerar os princí-
pios da universalidade, integralidade e equidade, Compreender a PSR, suas peculiaridades, sua
preconizados pelo SUS na sua definição. vida, seus problemas de saúde não resolve o pro-
blema da desigualdade e exclusão social. Entre-
No âmbito das políticas de assistência social, o tanto se acredita que a pesquisa é um caminho,
estudo revelou a desarticulação entre os setores, a enquanto mecanismo de conhecimento e denún-
descontinuidade dos programas implementados cia social, que possibilita a visibilidade dessa
voltados à PSR e a predominância de políticas situ-ação, a fim de que se promovam ações no
focalizadoras, persistindo, ainda, uma tendência ao sentido de estabelecer políticas públicas mais
exercício de práticas punitivas e de isolamento. universais e equânimes.

No que se refere aos serviços de saúde, con-


forme visto, os equipamentos sociais públicos,
305

Colaboradores Agradecimentos

IKS Paiva construiu o artigo considerando o re- A Universidade do Estado do Rio Grande do
corte de parte da revisão de literatura de sua dis- Norte, em especial, ao grupo de pesquisa Marcos
sertação de mestrado. Responsável pela redação Teóricos Metodológicos Reorientadores da Edu-
do artigo, coleta e análise dos dados, interpreta- cação e do Trabalho em Saúde e ao PIBIC por
ção dos resultados, revisão crítica, versão final terem gerado espaços de reflexões teóricas que
do manuscrito. CDG Lira e JMR Justino foram contribuíram para amadurecimento da temática.
res-ponsáveis pela redação do artigo, coleta e
análise dos dados, interpretação dos resultados,
revisão crítica, versão final do manuscrito. MGO 5 População em Situação de Rua, que mesmo
Miran-da e AKM Saraiva participaram como não tendo ido até ela para ver o mundo sobre a
orientado-ras contribuindo com a concepção e perspectiva da rua, a aproximação teórica per-
idealização do projeto, seu conteúdo intelectual, mitiu ampliar os olhares. Mais do que agradecer
revisão crí-tica e versão final do manuscrito. esperamos contribuir nessa perspectiva.
306
Referências 15 Aguiar MM, Iriart JAB. Significados e práticas de saúde 2605
e doença entre a população em situação de rua em Sal-
1 Vieira AB, Furini LA, Nunes M, Libório RMC. vador, Bahia, Brasil. Cad Saude Publica [periódico na
Exclu-são social: a formação de um conceito. In: internet] 2012 Jan [acessado 2013 jan 12]; 28(1):[cerca
Mellazzo ES, Guimarães RB, organizadores. de 10p]. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csp/

Ciência & Saúde Coletiva, 21(8):2595-2606, 2016


Exclusão social em cida-des brasileiras: um desafio v28n1/12.pdf
16 Rosa AS, Secco MG, Brêtas ACP. O cuidado em situa-
para as políticas públicas. São Paulo: Unesp; 2010.
ção de rua: revendo o significado do processo saúde-
p. 33-58.
doença. Rev Bras Enferm [periódico na internet]. 2006
2 Melo THAG. A rua e a sociedade: articulações
Maio-Jun [acessado 2012 out 02];59(3): [cerca de 6p].
políticas, socialidade e a luta por reconhecimento da
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pi-
população em situação de rua. Curitiba-PR
d=S0034-71672006000300015...sci...
[dissertação]. Curitiba: Universidade Federal do
17 Ghirardi MIG, Samira RL, Barros DD, Galvani D. Vida
Paraná; 2011.
na rua e cooperativismo: transitando pela produção de
3 Silva JAM. População em situação de rua: uma
valores. Interface (Botucatu) [periódico na internet] 2005
análise da implementação da política nacional de
Set-Dez [acessado 2014 jan 11];9 (18):[cerca de 10p].
assistência so-cial no âmbito do centro Pop –
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/icse/v9 n18/
Natal/RN [monografia]. Natal: Universidade Federal
a14v9n18.pdf
do Rio Grande do Norte; 2012.
18 Borysow IC, Furtado JP. Acesso e intersetorialidade: o
4 Brito MMM. Loucos pela rua: escolha ou
acompanhamento de pessoas em situação de rua com
contingência. Curitiba: Editora CRV; 2012
5 Sotero M. Vulnerabilidade e vulneração: população transtorno mental grave. Physis [periódico na inter-net]
2013 [acessado 2014 mar 27]; 23(1): [cerca de 17p].
de rua, uma questão ética. Rev. Bioét (Impr.)
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/physis/
[periódico na internet] 2011 [acessado 2014 fev 01];
v23n1/03.pdf
19(3):[cerca de 19p]. Disponível em: 19 Morais NA, Morais CA, Reis S, Koller SH. Promoção de
http://revistabioetica.cfm.org.br/ saúde e adolescência: um exemplo de intervenção com
index.php/revista_bioetica/article/view/677/709. adolescentes em situação de rua. Psicologia & Sociedade
6 Bottil NCL, Carolina GC, Mônica F, Ana KS, [periódico na internet] 2010 [acessado 2014 mar 27];
Ludmila CO, Ana CHOAC, Leonardo LKF. 22(3):[cerca de 12p]. Disponível em: http://www.scielo.
Condições de saúde da população de rua na cidade br/pdf/psoc/v22n3/v22n3a11.pdf
de Belo Horizonte. Ca-dernos Brasileiros de Saúde 20 Carneiro Junior N, Jesus CH, Crevelim MA. A estraté-gia
Mental [periódico na inter-net].2009 Out-Dez saúde da família para a equidade de acesso dirigida à
[acessado 2012 set 20];1(2):[cerca de 15p]. população em situação de rua em grandes centros ur-
Disponível em: http://stat.ijkem.incubadora. banos. Saude Soc [periódico na internet] 2010 [acessa-do
ufsc.br/index.php/cbsm/article/.../1141/1383 2013 jul 5]; 19 (3)19:[cerca de 8 p]. Disponível em:
7 Reis MS. O movimento nacional da população de rua http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v19n3/21
em São Paulo: um diálogo com as políticas sociais 21 Aristides JL, Lima JVC. Processo Saúde-doença da po-
públicas [monografia]. Franca: Universidade pulação em situação de rua da cidade de Londrina: as-
Estadual Paulista; 2011. pectos do viver e adoecer. Revista Espaço para a Saúde
8 Souza MT, Silva MD, Carvalho R. Revisão [periódico na internet] 2009 Jun [acessado 2012 out 02];
integrativa: o que é e como fazer. Einstein [periódico 10(2):[cerca de 10p]. Disponível em: www.ccs.uel.
na internet]. 2010 [acessado 2014 Mar 27]; 8(1 pt br/espacoparasaude/v10n2/ Artigo7.pdf
1):[cerca de 5p]. Disponível em: 22 Gontijo D, Medeiros M. Crianças e adolescentes em
http://apps.einstein.br/revista/arqui-vos/PDF/1134- situação de rua: contribuições para a compreensão dos
Einsteinv8n1_p102-106_port.pdf processos de vulnerabilidade e desfiliação social. Cien
9 Ursi ES, Galvão CM. Prevenção de lesões de pele no Saude Colet [periódico na internet] 2009 [acessa-do 2014
perioperatório: revisão integrativa da literatura. Rev mar 25]; 14(2):[cerca de 9p]. Disponível em:
Latino-am Enfermagem [periódico na internet].2006 http://www.scielo.br/ pdf/csc/v14n2 /a15v14n2.pdf.
Jan-Fev [acessado 2014 jan 09]; 14(1):[cerca de 7p]. 23 Canônico RP, Tanaka ACDA, Mazza MMPR, Souza,
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v14n1/ MF, Bernat MC, Junqueira LX. Atendimento à popu-
v14n1a17. lação de rua em um Centro de Saúde Escola na cidade de
10 O Pensador G. O resto do mundo. [acessado 2014 mar São Paulo. Rev Esc Enferm USP [periódico na inter-net]
28]. Disponível em: http://letras.mus.br/gabriel- 2007 [acessado 2012 set 27]; 41n(Esp):[cerca de 5p].
pensa-dor/72844/
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/
11 Antunes A. Comida. [acessado 2014 mar 28].
Disponí-vel em: http://letras.mus.br/arnaldo- v41nspe/v41nspea09.pdf.
antunes/1769313/ 24 Souza ES, Silva SRV, Caricari AM. Rede social e
12 Escorel S. Vidas ao léu: trajetórias de exclusão promo-ção da saúde dos “descartáveis urbanos”. Rev Esc
social. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1999. En-ferm USP [periódico na internet] 2007 [acessado 2014
13 Rosa AS, Cavicchioli MGS, Brêtas ACP. O Processo fev 1]; 41(esp): [cerca de 5p]. Disponível em: http://
saúde-doença-cuidado e a população em situação de www.scielo.br/pdf/reeusp/v41nspe/v41nspea11.pdf
rua. Rev Latino-am Enfermagem [periódico na inter-
net]. 2005 Jul-Ago [acessado 2012 set 27];
13(4):[cerca de 6p]. Disponível em: http://
www.scielo.br/pdf/rlae/ v13n4/v13n4a17.pdf.
14 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Com-
bate à Fome (MDS). Pesquisa Nacional sobre
População em Situação de Rua. Brasília: MDS;
2008.
307

2606

25 Carneiro Junior N, Andrade MC, Luppi CG, Silveira C. Organização de


práticas de saúde equânimes em aten-ção primária em região metropolitana
no contexto dos processos de inclusão e exclusão social. Saude Soc [pe-
riódico na internet] 2006 Set-Dez [acessado 2014 jan 11];15(3):[cerca de
10p]. Disponível em: http://www. scielo.br/pdf/sausoc/v15n3/04.pdf

26 Varanda W, Adorno RCF. Descartáveis urbanos: discu-tindo a


complexidade da população de rua e o desafio para políticas de saúde.
Saude Soc [periódico na inter-net] 2004 Jan-Abr [acessado 2012 set 25];
13(1):[cerca de 14p]. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/sau-
soc/v13n1/07.pdf

27 Carneiro Junior N, Nogueira EA, Lanferini GM, Ali DA, Martinelli M.


Serviços de saúde e população de rua: contribuição para um debate.
Saude Soc [periódico na internet] 1998 [acessado 2014 mar 27];
7(2):[cerca de 16p]. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/sau-
soc/v7n2/05.pdf

28 Medeiros SM. As novas formas de organização do traba-lho na terceira


revolução industrial e a força de trabalho em saúde: um estudo em
Natal-RN [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2000.

29 Silva SP. As Práticas de saúde das Equipes de Consultório de Rua


[dissertação]. Recife: Universidade Federal do Pernambuco; 2013.

30 Brasil. Lei 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições


para a promoção, proteção e recu-peração da saúde, a organização e o
funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências.
Diário- Oficial da União 1990; 20 set..

31 Marques MF, Oliveira RF, Leal MLP. Saúde da Popula-ção em Situação


de Rua. Jornal O Povo, Fortaleza, 23 jul. 2014. Fascículo 10 –
Promoção da Equidade no SUS. p. 218-239.

32 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde.


Departamento de Atenção Básica. Manual so-bre o cuidado à saúde
junto à população em situação de rua. Brasília: MS; 2012.

Artigo apresentado em 23/05/2015

Aprovado em 26/08/2015

Versão final apresentada em 28/08/2015


308

Apresentação

Estamos encaminhando em anexo o material que o Movimento Nacional da População de Rua


(Núcleo Feira de Santana). Compreendemos que o conteúdo suscitado pode colaborar no curso de
capacitação que será promovido pela Defensoria Pública do Estado da Bahia. Ratificamos o nosso
total apoio a iniciativas como essas. Vale salientar que as diretrizes do Movimento Nacional aponta
para três atividades nucleares. São elas: convivência na rua, controle social e produção científica.
Desta maneira, ficamos lisonjeados em contribuir na formação de futuros profissionais que estarão em
contato direto com a população em situação de rua em nosso Estado.

Reiteramos que a participação de Renildo da Silva Santos (Reni), é de fundamental


importância, haja vista, a sua trajetória de rua, e principalmente, sua caminhada política em prol da
defesa dos direitos das pessoas em situação de rua em Feira de Santana e em demais cidades da Bahia.
Desta maneira, o núcleo de Feira de Santana, imbuído do seu espírito coletivo, reafirma o
compromisso pedagógico com a proposta apresentada pela defensoria e, desde já, trabalha na
preparação do conteúdo que será exposto na devida ocasião.

Salientamos, que a arguição do representante da rua perpassará por perspectivas particulares,


reflexões empíricas salutares para a compreensão dos impactos das políticas públicas, tal como, para o
entendimento de redes simbólicas específicas sobre a população de rua em nossa região. Além disso, a
sua participação propiciará um alargamento dos olhares, cooperando para uma troca de saberes.
Possibilitando, desta maneira, problematização e geração de conhecimento no que diz respeito as
pessoas em situação de rua.
309

Proposta de Conteúdo

Tópico 1

Veredas urbanas: chegada, permanência, saída e retorno às ruas

O objetivo desse tópico permeia elementos da caminhada individual para compreensão de


aspectos da coletividade. Relato de experiência, análise auto biográfico propiciam leituras singulares
de fenômenos sociais. Problematizações de significados, e a conceituação de aspectos simbólicos são
de fundamentais importância para o entendimento das redes de sociabilidade que estruturam o campo
subjetivo das pessoas em situação de rua. Dito isto, o conhecimento emanado por agentes que
passaram por essa trajetória torna-se indispensável.

Caminhando pela história de vida, podemos acionar marcadores que nos ajudarão a
compreender o fenômeno “rua”. Vulnerabilidade, violência, violação de direitos, consumo de
psicoativos, raça, gênero, laços familiares, relação com os serviços públicos são alguns dos tocantes
que podemos problematizar partindo da premissa individual. Com isso, a opção narrativa que conflui
para o entendimento dos processos que atravessam a chegada, permanência, saída, e, em alguns casos,
o retorno a rua, mostra-se pedagogicamente interessante.

Tópico 2

Engajamento político como conhecimento e cuidado de si

Esse tópico tem como interesse problematizar outras perspectivas de cuidado. Enxergando, o
conhecimento e o pragmatismo político como grande potencial terapêutico. A ótica da redução de
danos tem nos mostrados que os processos biológicos são extremamente conectados com figurações
sociais particulares. Devido a isso, as relações terapêuticas e de cuidado devem levar em consideração
estruturas sociais específicas de cada sujeito. Dito de outra forma, o percusso/história de agentes que
reconfiguraram sua vida social a partir do engamento político evidencia um elemento significativo
para compreendermos outas metodologias de empoderamento para pessoas em vulnerabilidade social.
310

Tópico 3

Instrumentos de luta: as ferramentas legais da população em situação de rua

A problematização dos principais instrumentos legais da população em situação de rua


estrutura o conteúdo desse tópico. Decreto 7053, Lei Estadual 12947, Lei municipal 3482 (Feira de
Santana). Outros temas atravessam as prerrogativas legais: o acesso a justiça, o aparato legal como
instrumento de luta política, a luta política como forma de geração de aparatos legais, a opinião da
população em situação de rua sobre essas leis, o alcance/efetividade dessas leis na realidade cotidiana
das pessoas em situação de rua.

Tópico 4

Outros Olhares: especificidades da população em situação de rua no interior da Bahia (Feira de


Santana)

Esse tópico tem como estratégia pedagógica a problematização do conceito “pessoa em


situação de rua”. Sabemos que o aparato conceitual é modificado mediante transformações sociais e
históricas. Desta maneira, pensarmos a respeito do conceito atual propiciará uma reflexividade
necessária para combatermos essencialismos no entendimento sobre a população em situação de rua. E
como proposta metodológica de problematização desse conceito, a exposição de outras realidades –
mais especificadamente a do município de Feira de Santana – pode oferecer ao cursista uma visão
ampla e comparativa sobre as diversas populações de rua.
311

Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos

DECRETO Nº 7.053 DE 23 DE DEZEMBRO DE 2009.


Institui a Política Nacional para a População em Situação
de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e
Monitoramento, e dá outras providências.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso VI, alínea “a”, da
Constituição,
DECRETA:
Art. 1o Fica instituída a Política Nacional para a População em Situação de Rua, a ser implementada de
acordo com os princípios, diretrizes e objetivos previstos neste Decreto.
Parágrafo único. Para fins deste Decreto, considera-se população em situação de rua o grupo populacional
heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a
inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como
espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento
para pernoite temporário ou como moradia provisória.
Art. 2o A Política Nacional para a População em Situação de Rua será implementada de forma
descentralizada e articulada entre a União e os demais entes federativos que a ela aderirem por meio de
instrumento próprio.
Parágrafo único. O instrumento de adesão definirá as atribuições e as responsabilidades a serem
compartilhadas.
Art. 3o Os entes da Federação que aderirem à Política Nacional para a População em Situação de Rua
deverão instituir comitês gestores intersetoriais, integrados por representantes das áreas relacionadas ao
atendimento da população em situação de rua, com a participação de fóruns, movimentos e entidades
representativas desse segmento da população.
Art. 4o O Poder Executivo Federal poderá firmar convênios com entidades públicas e privadas, sem fins
lucrativos, para o desenvolvimento e a execução de projetos que beneficiem a população em situação de rua
e estejam de acordo com os princípios, diretrizes e objetivos que orientam a Política Nacional para a
População em Situação de Rua.
Art. 5o São princípios da Política Nacional para a População em Situação de Rua, além da igualdade e
equidade:
I - respeito à dignidade da pessoa humana;
II - direito à convivência familiar e comunitária;
III - valorização e respeito à vida e à cidadania;
IV - atendimento humanizado e universalizado; e
V - respeito às condições sociais e diferenças de origem, raça, idade, nacionalidade, gênero, orientação
sexual e religiosa, com atenção especial às pessoas com deficiência.
Art. 6o São diretrizes da Política Nacional para a População em Situação de Rua:
I - promoção dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais;
II - responsabilidade do poder público pela sua elaboração e financiamento;
III - articulação das políticas públicas federais, estaduais, municipais e do Distrito Federal;
IV - integração das políticas públicas em cada nível de governo;
V - integração dos esforços do poder público e da sociedade civil para sua execução;
312

VI - participação da sociedade civil, por meio de entidades, fóruns e organizações da população em


situação de rua, na elaboração, acompanhamento e monitoramento das políticas públicas;
VII - incentivo e apoio à organização da população em situação de rua e à sua participação nas diversas
instâncias de formulação, controle social, monitoramento e avaliação das políticas públicas;
VIII - respeito às singularidades de cada território e ao aproveitamento das potencialidades e recursos
locais e regionais na elaboração, desenvolvimento, acompanhamento e monitoramento das políticas
públicas;
IX - implantação e ampliação das ações educativas destinadas à superação do preconceito, e de
capacitação dos servidores públicos para melhoria da qualidade e respeito no atendimento deste grupo
populacional; e
X - democratização do acesso e fruição dos espaços e serviços públicos.
Art. 7o São objetivos da Política Nacional para a População em Situação de Rua:
I - assegurar o acesso amplo, simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as políticas
públicas de saúde, educação, previdência, assistência social, moradia, segurança, cultura, esporte, lazer,
trabalho e renda;
II - garantir a formação e capacitação permanente de profissionais e gestores para atuação no
desenvolvimento de políticas públicas intersetoriais, transversais e intergovernamentais direcionadas às
pessoas em situação de rua;
III - instituir a contagem oficial da população em situação de rua;
IV - produzir, sistematizar e disseminar dados e indicadores sociais, econômicos e culturais sobre a
rede existente de cobertura de serviços públicos à população em situação de rua;
V - desenvolver ações educativas permanentes que contribuam para a formação de cultura de respeito,
ética e solidariedade entre a população em situação de rua e os demais grupos sociais, de modo a resguardar
a observância aos direitos humanos;
VI - incentivar a pesquisa, produção e divulgação de conhecimentos sobre a população em situação de
rua, contemplando a diversidade humana em toda a sua amplitude étnico-racial, sexual, de gênero e
geracional, nas diversas áreas do conhecimento;
VII - implantar centros de defesa dos direitos humanos para a população em situação de rua;
VIII - incentivar a criação, divulgação e disponibilização de canais de comunicação para o recebimento
de denúncias de violência contra a população em situação de rua, bem como de sugestões para o
aperfeiçoamento e melhoria das políticas públicas voltadas para este segmento;
IX - proporcionar o acesso das pessoas em situação de rua aos benefícios previdenciários e
assistenciais e aos programas de transferência de renda, na forma da legislação específica;
X - criar meios de articulação entre o Sistema Único de Assistência Social e o Sistema Único de Saúde
para qualificar a oferta de serviços;
XI - adotar padrão básico de qualidade, segurança e conforto na estruturação e reestruturação dos
serviços de acolhimento temporários, de acordo com o disposto no art. 8o;
XII - implementar centros de referência especializados para atendimento da população em situação de
rua, no âmbito da proteção social especial do Sistema Único de Assistência Social;
XIII - implementar ações de segurança alimentar e nutricional suficientes para proporcionar acesso
permanente à alimentação pela população em situação de rua à alimentação, com qualidade; e
XIV - disponibilizar programas de qualificação profissional para as pessoas em situação de rua, com o
objetivo de propiciar o seu acesso ao mercado de trabalho.
Art. 8o O padrão básico de qualidade, segurança e conforto da rede de acolhimento temporário deverá
observar limite de capacidade, regras de funcionamento e convivência, acessibilidade, salubridade e
distribuição geográfica das unidades de acolhimento nas áreas urbanas, respeitado o direito de permanência
da população em situação de rua, preferencialmente nas cidades ou nos centros urbanos.
313

§ 1o Os serviços de acolhimento temporário serão regulamentados nacionalmente pelas instâncias de


pactuação e deliberação do Sistema Único de Assistência Social.
§ 2o A estruturação e reestruturação de serviços de acolhimento devem ter como referência a
necessidade de cada Município, considerando-se os dados das pesquisas de contagem da população em
situação de rua.
§ 3o Cabe ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, por intermédio da Secretaria
Nacional de Assistência Social, fomentar e promover a reestruturação e a ampliação da rede de acolhimento
a partir da transferência de recursos aos Municípios, Estados e Distrito Federal.
§ 4o A rede de acolhimento temporário existente deve ser reestruturada e ampliada para incentivar
sua utilização pelas pessoas em situação de rua, inclusive pela sua articulação com programas de moradia
popular promovidos pelos Governos Federal, estaduais, municipais e do Distrito Federal.
Art. 9o Fica instituído o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política
Nacional para a População em Situação de Rua, integrado por representantes da sociedade civil e por um
representante e respectivo suplente de cada órgão a seguir descrito:
I - Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, que o coordenará;
II - Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome;
III - Ministério da Justiça;
IV - Ministério da Saúde;
V - Ministério da Educação;
VI - Ministério das Cidades;
VII - Ministério do Trabalho e Emprego;
VIII - Ministério dos Esportes; e
IX - Ministério da Cultura.
§ 1o A sociedade civil terá nove representantes, titulares e suplentes, sendo cinco de organizações de
âmbito nacional da população em situação de rua e quatro de entidades que tenham como finalidade o
trabalho com a população em situação de rua.
§ 2o Os membros do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional
para a População em Situação de Rua serão indicados pelos titulares dos órgãos e entidades as quais
representam e designados pelo Secretário Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República.
Art. 10. O Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a
População em Situação de Rua terá as seguintes atribuições:
I - elaborar planos de ação periódicos com o detalhamento das estratégias de implementação da
Política Nacional para a População em Situação de Rua, especialmente quanto às metas, objetivos e
responsabilidades, considerando as propostas elaboradas pelo Grupo de Trabalho Interministerial instituído
pelo Decreto de 25 de outubro de 2006;
II - acompanhar e monitorar o desenvolvimento da Política Nacional para a População em Situação de
Rua;
III - desenvolver, em conjunto com os órgãos federais competentes, indicadores para o monitoramento
e avaliação das ações da Política Nacional para a População em Situação de Rua;
IV - propor medidas que assegurem a articulação intersetorial das políticas públicas federais para o
atendimento da população em situação de rua;
V - propor formas e mecanismos para a divulgação da Política Nacional para a População em Situação
de Rua;
VI - instituir grupos de trabalho temáticos, em especial para discutir as desvantagens sociais a que a
população em situação de rua foi submetida historicamente no Brasil e analisar formas para sua inclusão e
compensação social;
314

VII - acompanhar os Estados, o Distrito Federal e os Municípios na implementação da Política Nacional


da População em Situação de Rua, em âmbito local;
VIII - organizar, periodicamente, encontros nacionais para avaliar e formular ações para a consolidação
da Política Nacional para a População em Situação de Rua; e
IX - deliberar sobre a forma de condução dos seus trabalhos.
Art. 11. O Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a
População em Situação de Rua poderá convidar gestores, especialistas e representantes da população em
situação de rua para participar de suas atividades.
Art. 12. A participação no Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política
Nacional para a População em Situação de Rua será considerada prestação de serviço público relevante, não
remunerada.
Art. 13. A Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE e a Fundação Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA prestarão o apoio necessário ao Comitê Intersetorial de
Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua, no âmbito de
suas respectivas competências.
Art. 14. A Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República dará apoio técnico-
administrativo e fornecerá os meios necessários à execução dos trabalhos do Comitê Intersetorial de
Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua.
Art. 15. A Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República instituirá o Centro
Nacional de Defesa dos Direitos Humanos para a População em Situação de Rua, destinado a promover e
defender seus direitos, com as seguintes atribuições:
I - divulgar e incentivar a criação de serviços, programas e canais de comunicação para denúncias de
maus tratos e para o recebimento de sugestões para políticas voltadas à população em situação de rua,
garantido o anonimato dos denunciantes;
II - apoiar a criação de centros de defesa dos direitos humanos para população em situação de rua, em
âmbito local;
III - produzir e divulgar conhecimentos sobre o tema da população em situação de rua, contemplando a
diversidade humana em toda a sua amplitude étnico-racial, sexual, de gênero e geracional nas diversas áreas;
IV - divulgar indicadores sociais, econômicos e culturais sobre a população em situação de rua para
subsidiar as políticas públicas; e
V - pesquisar e acompanhar os processos instaurados, as decisões e as punições aplicadas aos
acusados de crimes contra a população em situação de rua.
Art. 16. Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.
o o
Brasília, 23 de dezembro de 2009; 188 da Independência e 121 da República
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Tarso Genro
Fernando Haddad
André Peixoto Figueiredo Lima
José Gomes Temporão
Patrus Ananias
João Luiz Silva Ferreira
Orlando Silva de Jesus Júnior
Márcio Fortes de Almeida
Dilma Rousseff
Este texto não substitui o publicado no DOU de 24.12.2009
315

1/6

LEI Nº 3482/2014

INSTITUI A POLÍTICA MUNICIPAL PARA

A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA,

E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS.

Autor: Edil Marcos Antônio dos Santos Lima

O Prefeito Municipal de Feira de Santana, Estado da Bahia, no uso de suas atribuições, FAÇO saber que a
Câmara Municipal, através do Projeto de Lei nº 73/2014, de auditoria do Poder Executivo, decreta e eu
sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º Fica instituída a Política Municipal para a População em situação de Rua, a ser implementada de
acordo com os princípios, diretrizes e objetivos previstos nesta Lei, com respaldo no Decreto Federal Nº
7053/2009.

Parágrafo Único - Considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui
em comum a pobreza externa, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia
Art. 2º convencional regular e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço
de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento
temporário.

Art. 2º O Poder Executivo Municipal poderá firmar convênios com entidades públicas e privadas, sem fins
econômicos, para o desenvolvimento e a execução de projetos que beneficiem a população em situação de rua
e estejam de acordo com os princípios, diretrizes e objetivos que orientam a Política Municipal para a
População em situação de Rua.

Art. 3º São os princípios da Política Municipal para a População em Situação de Rua:

I - respeito à dignidade da pessoa humana;

II - reconhecimento aos direitos individuais;.

11 - direito à convivência familiar e comunitária; IV - valorização e respeito à vida à cidadania; V -


atendimento humanizado e universalizado

VI - respeito às condições sociais e diferenças de origem, raça, idade, nacionalidade, gênero, orientação sexual
e religiosa, com atenção especial às pessoas com deficiência;

VII - igualdade e equidade;

VIII - só serão admitidos servidores/funcionários devidamente qualificados com experiência

LeisMunicipais.com.br - Lei Ordinária 3482/2014 (http://leismunicipa.is/higau) - 12/03/2019 15:55:25


316

2/6

comprovada no atendimento à População de Rua, com qualificação nas diversas áreas do conhecimento, com
formação superior ou médio.

Art. 4ºArt. 4º São diretrizes da Política Municipal para a População em Situação de Rua:

I - promoção dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais;

10 - responsabilidade do poder público pela sua elaboração e financiamento; III - articulação e


coordenação das políticas públicas municipais;
IV - integração das políticas públicas em cada nível de governo;

V - integração dos esforços do poder público e da sociedade civil para sua execução

VI - participação da sociedade civil, por meio de entidades, fóruns e organizações da população em situação de
rua, na elaboração, acompanhamento e monitoramento das políticas públicas;

VII - incentivo e apoio ás organizações da população em situação de rua e à sua participação nas diversas
instâncias de formulação, controle social, monitoramento e avaliação das políticas públicas.

VIII - respeito às singularidades de cada território e o aproveitamento das potencialidades e recursos locais na
elaboração, desenvolvimento, acompanhamento e monitoramento das políticas públicas;

IX - implantação e ampliação das ações educativas destinadas à superação do preconceito, de capacitação


dos servidores público para melhoria da qualidade e respeito no atendimento deste grupo populacional e;

X - democratização do acesso e fruição dos espaços e serviços públicos.

Art. 5º São objetivos da Política Municipal para a População em situação de Rua:

I - assegurar o acesso amplo, simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as políticas
públicas de saúde, educação,assistência social,habitação, segurança, cultura,esporte, lazer, trabalho e renda;

11 - garantir a formação e capacitação permanente de profissionais e gestores para atuação no


desenvolvimento de políticas públicas intersetoriais, transversais direcionadas às pessoas em situação de rua;

14 - produzir e contribuir na construção de dados e indicadores da população em situação de rua no


âmbito municipal, visando à vigilância sócio territorial;

IV - produzir, sistematizar e disseminar dados e indicadores sociais, econômicos e culturais

LeisMunicipais.com.br - Lei Ordinária 3482/2014 (http://leismunicipa.is/higau) - 12/03/2019 15:55:25


317

3/6

sobre a rede existente de cobertura de serviços públicos à população em situação de rua;

V - desenvolver ações educativas permanentes que contribuem para a formação de cultura de respeito, ética e
solidariedade entre a população em situação de rua e os demais grupos sociais, de modo a resguardar a
observância aos direitos humanos;

VI - incentivar a pesquisa, produção e divulgação de conhecimentos sobre a população em situação de rua,


comtemplando a diversidade humana em toda a sua amplitude étnico-racial, sexual, de gênero e geracional
nas diversas áreas do conhecimento;

VII - disponibilizar divulgar e incentivar a utilização de canais de comunicação para o recebimento de denuncias
de violência contra a população em situação de rua, bem como, de sugestões para o aperfeiçoamento e
melhoria das políticas públicas voltadas para este segmento;

VIII - proporcionar o acesso das pessoas em situação de rua aos benefícios previdenciários e assistenciais e
aos programas de transferência de renda, na forma da legislação específica;

IX - adotar padrão básico de qualidade, segurança e conforto na estruturação e reestruturação dos serviços de
acolhimento temporários,de acordo com o disposto art. 6º;

X - implementar o centro de referência especializado em atendimento a População de Rua (CENTRO POP


RUA) em regime de plantão com atendimento aos sábados domingos e feriados para atendimento a população
em situação de rua, no âmbito de proteção social especial do Sistema Único de Assistência Social;

XI - implementar ações de segurança alimentar e nutricional suficientes e permanentes, garantindo o seu


acesso pela população em situação de rua e;

XII - disponibilizar programa de qualificação profissional para as pessoas em situação de rua, com o objetivo de
propiciar o seu acesso ao mercado de trabalho ou geração de renda.

Art. 6º O padrão básico de qualidade, segurança e conforto da rede de acolhimento temporário deverá
observar limite de capacidade, regras de funcionamento e convivência, acessibilidade, salubridade e
distribuição geográfica das unidades de acolhimento nas áreas urbanas, respeitando o direito de permanência
da população em situação de rua.

Parágrafo 1º A estruturação e reestruturação de serviços de acolhimento devem ter como referência as


necessidades locais, considerando-se os dados das pesquisas de contagem da população em situação de
rua,observando a transitoriedade dos trecheios.

Parágrafo 2º A rede de acolhimento temporário existente deve ser permanentemente adaptada e articulada com
as políticas públicas estaduais e federais para o atendimento das necessidades locais.

LeisMunicipais.com.br - Lei Ordinária 3482/2014 (http://leismunicipa.is/higau) - 12/03/2019 15:55:25


318

4/6

A
r
t
Art. 7º .Fica instituído o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitorial da Política Municipal para a
População em Situação de Rua, integrado por representantes do governo municipal e da sociedade civil.
7
Parágrafo
º 1º Integrarão o Comitê Intersetorial, pelo governo municipal, um titular e um suplente dos seguintes
órgãos:

I - Secretária Municipal de Desenvolvimento Social;

2 - Secretaria Municipal de Prevenção à violência e Promoção dos Direitos Humanos; III - Secretaria Municipal
de Saúde;

IV - Secretaria Municipal de Educação;

VII - Secretaria Municipal de Habitação e Regularização Fundiária.

Parágrafo 2º A sociedade civil, através das suas organizações que atuam diretamente com a população de rua
terá 06 (seis) representantes, titulares e suplentes, sendo assegurada a participação do Movimento de
População de Rua.

Parágrafo 3º O Ministério Público da Bahia e a Defensoria Pública Estadual poderão compor comitê como
membros convidados.

Parágrafo 4º Os membros do Comitê Internacional de Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal


para a População em Situação de Rua serão indicados pelos órgãos e entidades os quais representam e
nomeados por ato do Chefe do Poder Executivo.
Parágrafo 5º Cabe à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social a gestão e o controle dos projetos
estratégicos intersetoriais.

Parágrafo 6º Os membros do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento escolherão o


presidente e o secretário geral, como também indicarão um secretário executivo para ser nomeado pelo chefe
do Executivo Municipal com função de nível médio com remuneração temporária.

Art. 8º As Entidades e Organizações da Sociedade Civil que desejarem se habilitar ao Comitê Intersetorial
serão escolhidos mediante eleição democrática promovida pelo órgão gestor de Política Municipal de
População e Situação de Rua e deverão preencher os seguintes requisitos:

I - As organizações de âmbito municipal da população em situação de rua são organizações com


personalidade jurídica ou não, que se reúnem regularmente para discutir assuntos relacionados à população de
rua há pelo menos 01( um) ano;

4 - As Entidades que tenham como finalidade o trabalho com pessoas em situação de rua são entidades
com personalidade jurídica, criados há pelo menos 01( um) ano e que

LeisMunicipais.com.br - Lei Ordinária 3482/2014 (http://leismunicipa.is/higau) - 12/03/2019 15:55:25


319

5/6

tenham situação comprovada através de ações realizadas junto ao Movimento de População de Rua e/ou
unidade de referência do Município.

Parágrafo Único - Os critérios para habilitação das organizações e entidades bem como o processo de eleição
dar-se à através de ato do Secretário de Desenvolvimento Social e comitê intersetorial de acompanhamento e
monitoramento da Política Municipal para População em Situação de Rua;
At. 9º Compete ao comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal para a
População em Situação de Rua.
I - elaborar planos de ação periódicos com o detalhamento das estratégias de implementação da Política
Municipal para a População em Situação de Rua, especialmente quanto aos objetivos e responsabilidades;
5 - acompanhar e monitorar o desenvolvimento da Política Municipal para a População em Situação de
Rua;
l) - desenvolver, em conjunto com os órgãos municipais competentes, indicadores para o
monitoramento e avaliação das ações da política Municipal para a População em Situação de Rua;
IV - propor medidas que assegurem a articulação intersetorial das políticas públicas municipais para o
atendimento da população em situação de Rua;
V - propor formas e mecanismos para a divulgação da Política Municipal para a População em Situação de
Rua;
VI - instituir grupos de trabalho temáticos para subsidiar as deliberações do Comitê;
VII - Colaborar para facilitar a articulação com as políticas públicas estaduais e federais.
Art. 10º A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social prestará o apoio técnico e administrativo que se fizer
necessário ao funcionamento do Comitê.
Art. 11º Esta Lei entrará em vigor na data a sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

Gabinete do prefeito, em 05 de novembro de 2014.


JOSÉ RONALDO DE CARVALHO
Prefeito Municipal
MÁRIO COSTA BORGES
Chefe de Gabinete do Prefeito

LeisMunicipais.com.br - Lei Ordinária 3482/2014 (http://leismunicipa.is/higau) - 12/03/2019


15:55:25

A
r
t
.

1
1
320

6/6

CLEUDSON SANTOS ALMEIDA


Procurador Geral do Município
ILDES FERREIRA DE OLIVEIRA
Secretário Municipal de Desenvolvimento Social

LeisMunicipais.com.br - Lei Ordinária 3482/2014 (http://leismunicipa.is/higau) - 12/03/2019 15:55:25


321
322

Manual sobre o Cuidado à Saúde junto a


População em Situação de Rua

População em Situação de Rua:


Contexto Histórico e Político Antonio Garcia Reis Junior
Casa é uma experiência existencial primitiva, ligada ao que há de
mais precioso na vida humana, que é a relação afetiva entre os
que a habitam. (L. Boff)

A construção de propostas para o cuidado da população em situação de rua (PSR) no Brasil tem
um longo histórico de intersetorialidade. Na década de 1970 e 1980, a Pastoral do Povo da Rua, da
Igreja Católica, inicia movimento de organização de pessoas em situação de rua, com destaque
para os municípios de São Paulo e Belo Horizonte. Tais iniciativas religiosas foram responsáveis por
implantar casas de assistência aos então moradores de rua, organizar movimentos de representação popular,
sobretudo em relação aos catadores de material reciclável, e realizar eventos e comemorações de mobilização
social de cunho local (BASTOS, 2003; CANDIDO, 2006).
Após o aumento da representatividade da população em situação de rua potencializada por essas
iniciativas, os gestores públicos dos municípios de maior porte começam a delinear estratégias
de identificação e abordagem junto às demandas desse grupo social. Em Belo Horizonte, por exemplo, a Secretaria
Municipal de Desenvolvimento Social assume a agenda política das ações voltadas a essa parcela da população
em 1993, por meio do Programa de População em Situação de Rua, e fomenta a realização do Fórum da
População em Situação de Rua. Tal iniciativa veio, então, desempenhar o papel de integrar vários segmentos
sociais na tarefa de discutir e elaborar políticas públicas capazes de reverter o quadro de exclusão que se impunha
cada vez mais crítico. Entre os seus objetivos, destacou-se o de conhecer a realidade da rua e caracterizar o perfil
desse grupo social; identificar as diversas instituições que atuavam com essa população; e implementar, com ela,
programas de apoio; bem como capacitar tecnicamente os seus membros na busca de alternativas às demandas
apresentadas (BELO HORIZONTE, 1998a).

A partir das constatações do Fórum, foi proposto e realizado um censo específico para a população
em situação de rua (BELO HORIZONTE, 1998b), que reorientou a conformação dos serviços
de saúde dirigidos a ela. Nesse contexto, percebeu-se que o processo de trabalho das equipes de
Saúde da Família (eSF) implantadas, caracterizado pela responsabilização por uma área geográfica
fixa e uma população adscrita, não era apropriado para incluir os moradores de rua, pela sua característica
migratória, o que gerava uma exclusão da PSR da rede assistencial.

Assim, em 2002, a Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte implanta a primeira equipe de
Saúde da Família específica e exclusiva para o atendimento da PSR, sem território de abrangência fixo, que passa
a ser o equipamento de saúde de referência para essa população, e assume a vocação de matriciar as demais eSF
do município na sensibilização do cuidado à PSR eventualmente presente nos territórios dessas equipes, de forma
transversal (REIS JUNIOR, 2011).
Pouco tempo depois, o município de São Paulo, com histórico semelhante, implanta suas primeiras
equipes de Saúde da Família para população em situação de rua, por meio do Programa A Gente na Rua
(CANONICO et al., 2007), e aprofunda o paradigma semântico de certas abordagens de equipes à PSR, em que
visita domiciliar passa a ser “visita de rua”; domicílio, “o lugar em que se costuma ficar na rua”; e família aquela
“constituída por indivíduos declarados no momento do cadastro” (CARNEIRO JUNIOR; JESUS; CREVELIM, 2010).

Outras experiências de centros de saúde com equipes de atenção básica tradicional também começam a
sistematizar ações para a população em situação de rua, porém não de modo exclusivo como as eSF referidas
(CARNEIRO JUNIOR et al., 2006). Mais tarde, outros municípios como Rio de Janeiro, Porto Alegre e Curitiba
implantam suas primeiras equipes de Saúde da Família para população em situação de rua. Além do município de
Belo Horizonte, os municípios de São Paulo, Porto Alegre e Recife também realizam censos municipais específicos
para contagem e estudo desse grupo social.

Em 2007, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome realizou censo para PSR, que
procedeu à contagem de todas as pessoas em situação de rua acima de 18 anos, em um universo de 71 municípios
com população total superior a 300 mil habitantes à época, e reconheceu os quatro censos realizados
autonomamente pelos municípios citados (BRASIL, 2009).
323

Foram identificadas 31.922 pessoas, o que equivale a 0,061% dessas cidades. Tais dados, oriundos do Sumário
Executivo do Censo (BRASIL, 2009), ainda que desatualizados por terem sido levantados em 2007, constituem
referência nacional para se compreender um pouco melhor as características da população em situação de rua nos
grandes centros urbanos e serviram como referência para o governo federal reformular e sistematizar políticas
públicas intersetoriais para a inclusão de pessoas em situação de rua. Também serviram para estimular a
realização de outros censos municipais e distritais e induzir novos caminhos de entendimento e abordagem dos
problemas sociais inerentes.

Caracterização da
População em Situação de Rua Antonio Garcia Reis Junior
“Lutar pela igualdade sempre que as diferenças nos
discriminem,lutar pelas diferenças sempre que a igualdade
nos descaracterize”. (Boa ventura de Sousa Santos)

Em relação ao termo “população em situação de rua” (PSR), as classificações são heterogêneas,


sobretudo se comparadas diferentes realidades internacionais (ADORNO; WARANDA, 2004). No Brasil, o termo
consolidado expressa mais a situação do sujeito em relação à rua, e não apenas
como “ausência de casa”, como outros países tendem a classificar. Autores como Escorel (1999), por exemplo,
discutem a exclusão social como sendo um “processo no qual – no limite – os indivíduos são reduzidos à condição
de animal laborans, cuja única atividade é a sua preservação biológica, e na qual estão impossibilitados de
exercício pleno das potencialidades da condição humana”. Já Castell (1997) prefere o termo “desfiliação” para
designar o processo pelo qual as pessoas adotam as ruas. Além desses e de outros autores que adotam conceitos
específicos para a PSR, já há muitos estudos socioetnográficos institucionais considerando bases municipais
(BRASIL, 2006) e nacionais (BRASIL, 2009). Ferreira lembra a definição do Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome ao analisar a população em situação de rua de Belo Horizonte: “Grupo populacional heterogêneo
constituído por pessoas que possuem em comum a garantia da sobrevivência por meio de atividades produtivas
desenvolvidas nas ruas, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados, e a não referência de moradia regular”
(FERREIRA, 2005).

O censo para população em situação de rua realizado pelo governo federal em 2007 oferece várias informações
para melhor compreensão a respeito das características desse grupo social em 71 municípios brasileiros. O perfil
socioeconômico encontrado pela pesquisa sugere que a população em situação de rua em 2007 era
predominantemente masculina (82%), mais da metade (53%) possuía entre 25 e 44 anos, aproximadamente 69%
se declararam afrodescendentes (29,5% se declararam pretas e 39,1% pardas) e que a maioria (52,6%) recebia
entre R$ 20,00 e R$ 80,00 semanais.

Em relação à formação escolar, 74% dos entrevistados sabiam ler e escrever; 17,1% não sabiam
escrever; 8,3% apenas assinavam o próprio nome; e a imensa maioria não estudava por ocasião da
pesquisa (95%).

Os principais motivos pelos quais essas pessoas passaram a viver e morar na rua se referiam aos
problemas de alcoolismo e/ou drogas (35,5%); desemprego (29,8%); e desavenças com pai/mãe/irmãos (29,1%); e,
dos entrevistados no censo, 71,3% citaram pelo menos um desses três motivos, que a pesquisa destaca que
podem estar correlacionados entre si ou um ser consequência do outro.

Sobre a trajetória, 45,8% dos entrevistados sempre viveram no município em que moravam; 56%
vieram de municípios do mesmo Estado de moradia à época; e 72%, de áreas urbanas. Dos que já moraram em
outra(s) cidade(s), 45,3% se deslocaram em função da procura de oportunidades de trabalho e o segundo principal
motivo foram as desavenças familiares (18,4%). Do total de indivíduos pesquisados, 48,4% estavam há mais de
dois anos dormindo na rua ou em albergue.

Em relação ao local onde dormiam, a maioria costumava dormir na rua (69,6%); um grupo relativamente menor
(22,1%), em albergues ou outras instituições; e apenas 8,3% costumavam alternar, ora dormindo na rua, ora em
albergues. Entre aqueles que manifestaram preferência por dormir em albergue, 69,3% apontaram a violência como
o principal motivo da não preferência por dormir na rua e o segundo principal motivo foi o desconforto (45,2%).
Entre aqueles que manifestaram preferência por dormir na rua, 44,3% apontaram a falta de liberdade como o
principal motivo da não preferência por dormir em albergue. O segundo principal motivo foi o horário (27,1%) e o
terceiro a proibição do uso de álcool e drogas (21,4%), ambos igualmente relacionados com a falta de liberdade.
324

Sobre os vínculos familiares, 51,9% dos entrevistados possuíam algum parente residente na cidade onde se
encontravam, porém 38,9% deles não mantinham contato com esses parentes e 14,5% mantinham contato em
períodos espaçados (de dois em dois meses até um ano); 39,2% consideram como bom ou muito bom o
relacionamento que mantinha com os parentes que viviam na mesma cidade, enquanto 29,3% consideravam esse
relacionamento ruim ou péssimo.

Sobre o trabalho e renda, a população em situação de rua é composta, em grande parte, por trabalhadores, já que
70,9% exerciam alguma atividade remunerada. Dessas atividades, destacavam-se: catador de materiais recicláveis
(27,5%), flanelinha (14,1%), construção civil (6,3%), limpeza (4,2%) e carregador/estivador (3,1%). Apenas 15,7%
das pessoas pediam dinheiro como principal meio para a sobrevivência. Esses dados são importantes para
desmistifi car o fato de que a PSR é composta por “mendigos” e “pedintes” (BRASIL, 2009). Em relação à
alimentação, a maioria (79,6%) conseguia fazer ao menos uma refeição por dia, sendo que 27,4% destes
compravam comida com seu próprio dinheiro. Contudo, 19% não conseguiam se alimentar todos os dias (ao menos
uma refeição por dia).

Sobre suas condições de saúde, 29,7% dos entrevistados afi rmaram ter algum problema de saúde,
cujos problemas mais prevalentes foram: hipertensão (10,1%), problema psiquiátrico/mental (6,1%),
HIV/aids (5,1%) e problemas de visão/cegueira (4,6%).
Dos entrevistados, 18,7% faziam uso de algum medicamento. Postos/centros de saúde eram as principais vias de
acesso a esses medicamentos. Daqueles que os utilizavam, 48,6% afirmaram consegui-los por esse meio. Quando
doentes, 43,8% procuravam em primeiro lugar o hospital/emergência. Em segundo lugar, 27,4% procuravam o
posto de saúde. Esse dado demonstra o quanto os Consultórios de Rua e outras estratégias de atenção primária
devem se aproximar do usuário em situação de rua.

Sobre os hábitos de higiene, os principais locais utilizados por esse público para tomar banho foram
a rua (32,6%), os albergues/abrigos (31,4%), os banheiros públicos (14,2%) e a casa de parentes ou amigos
(5,2%). Os principais locais utilizados para fazer suas necessidades fisiológicas foram a rua (32,5%), os
albergues/abrigos (25,2%), os banheiros públicos (21,3%), os estabelecimentos comerciais (9,4%) e a casa de
parentes ou amigos (2,7%).

Sobre a posse de documentação, 24,8% das pessoas em situação de rua não possuíam quaisquer
documentos de identificação, o que dificulta a obtenção de emprego formal, o acesso aos serviços e programas
governamentais e o exercício da cidadania. A grande maioria não era atingida pela cobertura dos programas
governamentais: 88,5% afirmaram não receber qualquer benefício dos órgãos governamentais.

Em relação às discriminações sofridas, as pessoas citaram, em ordem de prevalência, serem impedidas de entrar
em estabelecimento comercial, shopping center, transporte coletivo, bancos, órgãos públicos, receber atendimento
na rede de saúde e tirar documentos. Apesar de esses dados extraídos do sumário executivo do censo de
população em situação de rua (BRASIL, 2009) constituírem um diagnóstico da realidade da população em situação
de rua em muitos
municípios brasileiros, é importante considerar que o período apurado pode não mais retratar a realidade atual,
tendo em vista a característica migratória dessa população, a mudança de estratégicas públicas dirigidas a ela e
outras variáveis sociais que dão novas facetas ao fenômeno. Assim, a equipe do Consultório na Rua deve se
esforçar em buscar outros diagnósticos acadêmicos e institucionais para melhorar seu olhar técnico e humano
sobre essa população.

VÍNCULO NO ATENDIMENTO À
POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA Júlio Lanceloti
Os muitos anos em que convivo com a população em situação de rua me ensinaram bastante. Aprendi que é
impossível conviver sem estabelecer vínculos que humanizem e facilitem o encontro
e possibilitem respostas. Estabelecer vínculos é uma aprendizagem possível e uma dimensão humana que
podemos desenvolver. Alguns pressupostos são necessários: o despojamento e a empatia, a capacidade de
compreender sem julgar e o respeito, que estabelece limites.

Sabemos que não somos capazes de estabelecer vínculos positivos com todas as pessoas, por
isso é bom trabalhar em equipes que avaliam constantemente suas ações. Não podemos tudo, precisamos
conhecer nossos limites e possibilidades.
325

O vínculo é irmão da gratuidade, sabe esperar o tempo do outro, perceber os pequenos passos que possibilitam,
não é imediatista nem coisifica as pessoas para contabilizar êxitos e respostas
obtidas. A convivência com a população em situação de rua ensina a caminhar sempre, sem desanimar, e a
construir caminhos partilhados. Mesmo quando se tem pressa, como em situações de saúde e aderência ao
tratamento, não é o cuidado não utilitarista, mas a resposta que humaniza e vincula que pode oferecer as melhores
conquistas.

Muitas vezes, vemos o problema como se nele se esgotasse a pessoa. Sempre repetimos, por
exemplo, o problema não é o crack, é a vida. Queremos resolver o sintoma, e não a questão fundamental. As
questões fundamentais podem ser entendidas e encaminhadas a partir da vinculação, que, muitas vezes, é a
melhor medicação, pelo menos para começar!

Quando a população em situação de rua percebe o cuidado para consigo, é que você olha para a vida, e não só
para a ferida, ela se deixa ver. A ferida ou a doença é mais do que a dor de estar doente, é a dor de existir na
situação que provoca essa dor e sobreviver assim. Nossa capacitação técnica tem que ser acompanhada da nossa
capacidade de acolher sem tantos critérios para excluir!
Os vínculos são inclusivos, importantes não tanto em programas e projetos, mas no existir para o outro. A
população de rua está cansada de ser tratada de maneira fria e tecnicista, não se estabelece vínculo que humaniza
em atendimento compartimentalizado onde a pessoa é encaminhada, e não acompanhada, onde se transforma em
dados, fichas e deixa de ser o que é: pessoa.

Pessoa em um emaranhado existencial que nem sempre é possível decifrar, mas que é possível
compreender, aos poucos. Vínculo exige perseverança e permanência, estabilidade que gera segurança,
previsibilidade mesmo nos desafios que enfrentamos no dia a dia do trabalho e do viver. Vínculo revela
conhecimento e reconhecimento. Não estranheza, mas pertença! Só quem pertence ao nosso mundo de
significados estabelece vínculos conosco, e só assim estabelecemos vínculos com o outro.

A população em situação de rua desafia nossa capacidade de aceitação e convivência. Os que mais necessitam, os
que estão em situação de maior risco, muitas vezes, são os que mais resistem, são também os que mais nos
humanizam e preparam para as melhores ações. Vinculação também é escolha, é seleção. Escolhamos, pois, os
que nos humanizam e disponibilizam, sem medo.

Um bom profissional é em primeiro lugar uma pessoa, que humaniza a vida!

A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO
DE RUA E SEUS TERRITÓRIOSAlexandre Trino
Rosana Ballestero Rodrigues
Antonio Garcia Reis Junior

Entendendo que o indivíduo em situação de rua, no seu processo de exclusão, sofre rupturas familiares, sociais e
afetivas,tendo que necessariamente vivenciar novas formas de se relacionar em contextos sociais marcados pela
desumanização e caracterizados por estigmas, violência e segregação, o que o incita a ressignificar sua inserção
no andar a vida, consideramos importante ressaltar o gráfico a seguir, no qual a psicodinâmica da vida nas ruas 1
representa um conceito de construção de resiliência e que deve ser entendido pelo profissional sob o prisma de
como essa população se move nos seus contextos relacionais.

Diante dessa realidade, o indivíduo sente a necessidade da busca de mecanismos psíquicos de adaptação que
possibilitam conviver com a nova realidade que a ele se impõe, construindo uma
resiliência, que, como define Grotberg (1995), é a “capacidade universal humana para enfrentar as
adversidades da vida, superá-las ou até ser transformado por elas”, implementando em si novos
recursos de mediação.

A figura acima nos faz refletir sobre a necessidade do enfrentamento dessa realidade, com políticas que
compreendam o contexto da psicodinâmica da vida nas ruas, por meio de estratégias como os Consultórios na Rua.
Esses dispositivos desenvolvem ações integrais de saúde in locu, visando a serem resolutivos perante as
necessidades de saúde da população em situação de rua (PSR), realizando uma abordagem ampliada, que
possibilite a essa população o acesso ao cuidado da sua saúde como um direito, e não mais como uma “caridade”
ofertada. O direito à atenção integral à saúde, estendido a todo e qualquer brasileiro, é um princípio preconizado
pelo SUS, advindo do sentido de democracia a ser incorporado pela sociedade e garantido pelo Estado.
326

Os Consultórios na Rua são formados por equipes multiprofissionais dentro dos moldes instituídos pela Política
Nacional de Atenção Básica (2011), e suas equipes deverão realizar as atividades de forma itinerante e, quando
necessário, utilizar as instalações das Unidades Básicas de Saúde (UBS) do território adscrito ao qual se fez
abordagem, desenvolvendo ações em parceria com as equipes das unidades.

Levando-se em consideração ser característica dessa população a circulação constante por diversos territórios, é
de suma importância a articulação da rede de serviços no sentido de efetivar a coordenação do cuidado e
fortalecimento do vínculo não só pela equipe do Consultório na Rua, como também pelas equipes das UBS, de
modo que estas também sejam referência e se responsabilizem pelo usuário.

Algumas estratégias são essenciais para o trabalho com a PSR. Além de os profissionais de saúde necessitarem de
abordagem diferenciada, há ferramentas e estratégias que podem subsidiar as equipes na abordagem específica.

Inicialmente, é preciso reconhecer quem é essa população em situação de rua, por meio de diagnósticos, censos,
cartografias, mapeamento de área, ou seja, diferentes nomes e mecanismos para que a equipe de saúde possa
identificar quem são as pessoas em situação de rua, onde elas costumam ficar, como se relacionam com a
comunidade, os serviços públicos e estabelecimentos privados, como acessam os programas assistenciais, quais
são as dificuldades que apresentam, quais os recursos comunitários disponíveis e que parcerias intersetoriais e
interinstitucionais podem ser firmadas. Além dos estudos já citados na caracterização dessa população, a equipe
deve tentar buscar dados de base local que sofistiquem sua compreensão sobre a clientela pela qual se
responsabiliza, seja por meio de censos locais, estudos de organizações não governamentais e da sociedade civil
como um todo, seja por meio de estudos antropológicos, sociológicos e etnográficos, conforme o de Mendes (2007).

Os problemas de saúde demandados pela PSR têm origem em situações complexas, cuja resposta necessita de
intervenções articuladas entre os gestores, profissionais de saúde e com diversos outros setores. Nesse contexto,
todas as variáveis envolvidas no uso e tráfico de drogas, a dificuldade de prevenção de certos agravos
transmissíveis (como DST, dengue, leptospirose, tuberculose, dermatoses) e agravos em saúde mental e a ruptura
de vínculos na relação familiar são exemplos de que a equipe deve buscar envolver outros atores para conseguir
realizar atenção integral à saúde dessas pessoas.

Os profissionais de saúde devem buscar parcerias para o enfrentamento dos determinantes sociais do
adoecimento, tais como problemas na limpeza urbana, falta de recursos para a economia solidária e escassez de
equipamentos sociais direcionados ao apoio da população em situação de rua, de modo a oferecer melhores
respostas a essas pessoas, contribuindo de forma mais efetiva para o desempenho clínico-assistencial.

Parece haver consenso sobre a importância da assistência em saúde não levar em conta somente
os fatores biológicos, mas incorporar a estes os condicionantes e determinantes sociais do processo
saúde–doença, bem como a subjetividade dos sujeitos, possibilitando, assim, uma produção de saúde integral mais
efetiva.

Apesar desse pretenso consenso, nos serviços de saúde, a ideia de assistência ainda não contempla,
necessariamente, atendimento humanizado. Para isso, o acolher, o acesso e o vínculo, enquanto prática política e
terapêutica, precisam fazer parte da agenda em saúde na perspectiva de enxergar o sujeito de direito com vistas a
garantir os princípios de universalidade, integralidade e equidade no acesso, respaldados pela Constituição de
1988, pela Lei Orgânica do Sistema Único de Saúde (SUS) de 1990 e reforçados pela nova Política Nacional de
Atenção Básica de 2011.Nesse sentido, ressaltamos ainda o Decreto nº7.508/2011,que cria as regiões de saúde e
define a oferta de serviços e a relação hierarquizada deles, estabelecendo a atenção básica como porta de entrada
preferencial do SUS, pela qual os pacientes podem ter acesso aos serviços de saúde.

Na dimensão do acesso do usuário em situação de rua, vale ressaltar que esse grupo social normalmente se
reporta ao serviço de saúde em situações emergenciais, não reconhecendo seu corpo doente até que o sintoma
paralise suas atividades diárias. Assim, diante das especificidades do atendimento a essa população, mesmo sem
consulta marcada ou encaminhamento para marcação de consulta – no fluxo hierarquizado de referência e
contrarreferência –, esse usuário deve ser acolhido para que consiga alguma orientação, conforto e
encaminhamento para a resolução de seu problema. Caso contrário, sua circulação/acesso pela rede poderá ficar
impossibilitada perante os inúmeros procedimentos impessoais e burocratizados.

O fato de ter ocorrido procura pelo serviço sinaliza reconhecimento pelo usuário da oportunidade de
cuidado, de construção de vínculos positivos. Abaixo, citamos alguns pontos importantes para auxiliar o profissional
de saúde no atendimento integral à PSR:

• Concepção de saúde não centrada somente na assistência aos doentes, mas, sobretudo, na promoção de
saúde e no resgate da qualidade de vida, com intervenção nos fatores que a colocam em risco;
• Incorporação das ações programáticas, incluindo acesso às redes sociais;
• Desenvolvimento de ações intersetoriais;
• Consciência dos aspectos que condicionam e determinam um dado estado de saúde e dos recursos
existentes para sua prevenção, promoção e recuperação;
327

• Para a organização desse modelo, é fundamental que sejam pensadas as “linhas do cuidado” (da criança,
do adolescente, do adulto, do idoso etc.);
• O trabalho em equipe é um de seus fundamentos mais importantes.

Considerando as fases das diretrizes do cuidado junto à população em situação de rua, o diagnóstico situacional
inclui, além da escuta direta das pessoas que compõem nosso público-alvo, a utilização das informações colhidas
em território no processo de cartografia, tais como: locais de maior concentração e faixas etárias da população em
situação de rua, fluxos de trânsito vinculados aos horários associados à alimentação, ao sono, presença de
policiamento e tráfico/consumo de drogas, detectando também as áreas críticas, no que se refere à violência,
observando demandas de saúde, coexistência de transtornos mentais sem tratamento, prostituição e uso abusivo
de álcool e drogas.

A dinâmica desses percursos, a escuta dessas demandas e o estabelecimento necessário de compromisso diante
de algumas delas, de acompanhamento contínuo, podem representar para a equipe a necessidade de intensificar a
sua presença em determinados territórios. O conhecimento gradativo, a apresentação do serviço, a constituição de
etapas fundamentais da formação do vínculo para acompanhamento tornam, ainda mais singular, cada microárea.

Com base nessas informações, a fase do diagnóstico instrumentaliza o planejamento das ações da equipe do
Consultório na Rua, com vistas a reconhecer as especificidades das subáreas identificadas no território, com fluxo e
perfil diferenciados, nas quais os processos de trabalho devem ser focados, gerando práticas orientadas às
demandas de cada uma das realidades observadas. Assim contextualizado, o diagnóstico deve possibilitar à equipe
um olhar focado em um tripé: território, grupo social e singularidade do sujeito.

Território: compreendendo-o como processo e para além de sua extensão geográfica, representa uma
complexidade de fatores que, no diagnóstico situacional da rua, devem ser considerados. Frente aos diversos
perfis e olhares, a equipe do Consultório na Rua deve ampliar sua percepção no sentido de reconhecer nesse
contexto as variáveis sociais, culturais, demográficas, sanitárias, administrativas, políticas, econômicas, entre
outras, de valiosa importância na construção do planejamento da equipe.

Desta forma, a noção de território em suas várias dimensões, tais como o “território físico” (material, visível e
delimitado), o “território como espaço-processo” (construído cultural e socialmente, de forma dinâmica) e o “território
existencial” (referido às conexões produzidas pelos indivíduos e grupos na busca de sentidos para a vida). Na
prática, é importante perceber como essas diferentes perspectivas coexistem, se interpenetram e, às vezes, se
tensionam.

Um exemplo é o que ocorre nas chamadas “cidades-dormitório”, e outro é o dos territórios escolhidos/inventados
pelas pessoas em situação de rua (BRASIL, 2012). Autores como Barcellos (2007), Mendes (2007), Mehry (2002) e
outros consideram que, no campo da saúde, o território e suas variáveis representam um fator relevante para a
compreensão do conceito de risco, pois levam em consideração múltiplas dimensões das condições de vida que
cercam as pessoas em seus contextos sociais.

Assim, citamos abaixo alguns pontos importantes relacionados ao território que devem ser observados pela equipe
na realização do diagnóstico:

– Forma como a população em situação de rua circula no território;


– A relação da comunidade com essa população;
– Características geográficas, econômicas e sociais;
– Aspectos históricos e políticos;
– Divisão administrativa;
– Condições de vulnerabilidade e violência;
– Condições sanitárias e ambientais;
– Determinantes de saúde e doença;
– Cultura local;
– Equipamentos existentes no território (governamentais e não governamentais).

Grupo social: considerando ser a população em situação de rua, um grupo social que tem a maioria de seus
direitos negados por um processo de exclusão social, ao qual Castel (1997, p. 28-29) denomina de
“sobrantes”, indivíduos “que foram inválidos pela conjuntura econômica e social dos últimos vinte anos e que
se encontram completamente atomizados, rejeitados de circuitos que uma utilidade social poderia atribuir-
lhes”.

No entanto, apesar da realidade citada acima, verificamos que pela convivência grupal – que é necessidade
fundamental do ser humano – na rua essa população ressignifica suas relações sociais, constituindo novos grupos
que se caracterizam por identidades definidoras de comportamento e da necessidade da sobrevivência.
328

Assim, é comum encontrarmos os indivíduos em situação de rua acompanhados ou próximos das mesmas
pessoas, dormindo nos mesmos lugares, reconstruindo vínculos afetivos, que em muitas das vezes reproduzem o
contexto familiar, até com denominações peculiares, tais como: família da rua, irmão da rua, mãe/pai da rua, filho da
rua.

Dessa forma, citamos abaixo alguns pontos importantes relacionados ao grupo social que devem ser observados
pela equipe na realização do diagnóstico:

• Necessidade de identificar se o indivíduo está ou não vinculado a outra pessoa ou a algum


grupo social na rua;
• Faixa etária do grupo ao qual o indivíduo encontra-se inserido;
• Relações de gênero estabelecidas nos grupos;
• Uso de álcool e outras drogas;
• Atividades econômicas;
• Possíveis envolvimentos com ações ilícitas;
• Condições de risco e vulnerabilidade;
• Potencialidades do grupo social;
• Fluxos de circulação dos grupos no território;
• Prostituição masculina e feminina;
• Relações com o comércio e a comunidade local.

Singularidade do sujeito: cada ser humano traz consigo a marca da sua história e trajetória de vida, o que
determina a sua singularidade. A partir desse princípio, o profissional de saúde que trabalha com população em
situação de rua não pode deixar de considerar todos os aspectos subjetivos que contribuem para construir a
identidade do sujeito e o lugar que hoje ocupa na sociedade e em seu contexto de vida.

Reconhecer que o indivíduo em situação de rua tem uma história que em algum momento o levou para a rua, é
fator primordial para a realização do diagnóstico por parte do profissional de saúde. Vale ressaltar que nos dias de
hoje encontramos nos contextos urbanos os chamados “filhos” e “netos” da rua, pessoas que já nasceram e se
criaram em situação de rua, tendo menores oportunidades de inclusão social. Dessa forma, citamos abaixo alguns
pontos importantes relacionados à singularidade do sujeito que devem ser observados pela equipe na realização do
diagnóstico:

– História de vida do sujeito;


– Vínculos familiares;
– Queixas e demandas principais de saúde;
– Potencialidades do indivíduo;
– Grau de instrução;
– Origem do sujeito;
– Faixa etária;
– Tempo em situação de rua;
– Uso de álcool e outras drogas;
– Condição de saúde (sofrimentos emocionais, doenças crônicas, dermatoses, tuberculose etc.);
– Uso de medicamentos;
– Forma de geração de renda;
– Riscos e vulnerabilidades.

Para realizar o diagnóstico conforme acima descrito, a equipe deverá construir um planejamento de ações diárias,
como um roteiro a ser seguido em território na abordagem ao usuário. Esse roteiro deve contemplar os pontos de
atendimento que serão realizados pela equipe a cada dia da semana, bem como outros fatores relacionados ao seu
processo de trabalho no contexto de cada território, levando em consideração os diferentes perfis de grupo e
observando os critérios para a gestão de riscos eminentes no atendimento in loco.

A seguir, desenvolvemos orientações de ferramentas para processos de trabalho que devem nortear as equipes do
Consultório na Rua no que se refere à cartografia, abordagem e acolhimento.
329

Cartografia
Iacã Macerata
Claudia de Paula
Laila Louzada
Ana Lúcia Gomes

Entendemos Cartografia como a leitura de diversos mapas existentes no território traduzindo-se por
informações, impressões, observações, sinalizações, sentimentos que contribuem para a construção de um certo
campo produtor de subjetividades e devem ser levados em consideração no dinamismo dos diversos contextos da
rua.

A grande função da cartografia é criar uma imagem para a equipe que não necessariamente vai dar conta de todos
os fatores que componham esse território; a equipe deve procurar se familiarizar com ele. Pode fazer desenhos da
área, construindo uma imagem própria do território, e essa imagem é dinâmica, vai mudar e é importante que mude.
A primeira etapa da construção do diagnóstico é a cartografia do campo de atuação das Equipes dos Consultórios
na Rua. O diagnóstico possibilita aos profissionais aproximarem-se do território, sistematizando suas percepções
acerca das condições geográficas, epidemiológicas, culturais, sociais e econômicas que repercutem no modo de
vida daqueles que habitam esse espaço (BARCELLOS; MONKEN apud FONSECA, 2007). E, ainda, entender os
processos e fatores que constroem esse território da maneira como ele nos apresenta.

A segunda etapa é o momento em que a equipe se aproxima das pessoas que compõem o campo de atuação do
território cartografado e escuta suas demandas manifestas, iniciando um processo de vinculação, para,
posteriormente, construir nessa relação de vínculo as demandas desse público. É importante que a presença dos
profissionais não represente – e nem seja – um fator ameaçador para aquele território. Isso coloca em risco a
possibilidade do desenvolvimento do trabalho.

A cartografia integra perspectivas, olhares, paisagens de vida, buscando, dessa forma, mapear com respeito e
competência as diversas camadas de significações apresentadas pela rua. Em um primeiro momento, a escuta é
mais geral, é em verdade a construção de um olhar abrangente do território – a cartografia – dizendo respeito ao
território de forma mais ampla. Em um segundo momento, constrói-se o diagnóstico e a escuta é feita diretamente
com as pessoas que compõem o público-alvo, a partir da formação de vínculo e de uma relação de cuidado. O
diagnóstico, elaborado através da cartografia, levanta e constrói, nessa relação, as demandas desse público e com
esse público.

É necessário conhecer e familiarizar-se minimamente com o território no qual se vai atuar. Essa cartografia que aqui
apresentamos diz respeito ao conhecimento e à apropriação desse território pelas equipes do Consultório na Rua,
uma via fundamental para o acolhimento da população e para a construção do processo de trabalho.

Nessa cartografia, as equipes tratam de identificar pontos importantes relativos à população em situação de rua nos
territórios, no que diz respeito à concentração dessa população em pontos específicos, ao perfil dela em cada uma
das regiões identificadas, aos fatores de risco à saúde e fatores de vulnerabilidade nos territórios, as instituições
parceiras que atuam com a referida população, as instituições que podem vir a se constituírem como parceiras, e
aos espaços e fóruns de discussão acerca deste público e/ou de questões que atravessam essa temática.

O processo de construção da cartografia deve ser a ação inicial da equipe do Consultório na


Rua em território. A cartografia deve ser feita a partir de saídas da equipe pelo território, dividida em pequenos
grupos (formação que favorece a segurança), observando a dinâmica da rua e da população de rua nas regiões
e/ou microrregiões, bem como identificando instituições e órgãos potencialmente parceiros para o trabalho.

Ressaltamos que, para este trabalho, faz-se necessário que a equipe tenha uma postura de atenção e análise dos
movimentos que geralmente passam despercebidos por quem transita apressadamente por esses territórios. A
função do observador deve ser simplesmente observar, e tentar perceber o que não estava muito visível ao olhar
comum que se tem sobre a rua, porém não devemos descartar o contato com a população de rua.

Para a sistematização das observações, os profissionais podem utilizar o instrumento roteiro de campo, contendo
itens relacionados ao percurso realizado, perfil da população em situação de rua, vulnerabilidades identificadas
nesse público e equipamentos sociais presentes na área. Além desse instrumento, o grupo pode registrar
percepções aleatórias que surjam ao se inserirem nesses territórios, o que produz impressões acerca das
dinâmicas destes, ajudando no processo de apropriação dessas áreas por parte da equipe. Lembramos que a
dinâmica da rua apresenta-se de forma distinta em diferentes horários, portanto as áreas devem ser percorridas em
diferentes turnos, a fim de observar a dinâmica da população em situação de rua no território.

A realização do trabalho da equipe do Consultório na Rua coloca em evidência a necessidade de estabelecer


parcerias. A partir do reconhecimento dos equipamentos sociais e estreitamento das relações, torna-se possível
construir redes de apoio no território potencializando a resolutividade dos serviços.
330

Os territórios não são totalidades estáticas, e sim campos vivos e dinâmicos. Justamente por isso entendemos a
cartografia não como um desenho imutável, mas sim incluindo em seu formato as dinâmicas, os movimentos, os
processos de determinado território. A construção da cartografia como primeira etapa do diagnóstico deve contar
com a participação de todos os membros da equipe do Consultório na Rua, sendo que, nesse momento, todos
deverão atuar na mesma função, embora com olhares e perspectivas diversas. Essa cartografia é, portanto, a
tentativa de construir um olhar comum, que não necessariamente é um olhar homogêneo, mas uma perspectiva
compartilhada, que comporta a diversidade de olhares e que é pactuada e validada no coletivo das equipes. Essa
pactuação coletiva tem a intenção de ser a principal ferramenta para realização de um planejamento/plano de
trabalho para a tomada de decisões e validação dos processos de trabalho da equipe e na equipe.

4.2 ABORDAGEM E ACOLHIMENTO À PESSOA EM SITUAÇÃO DE RUA


Cláudio Candiani

Certo dia, uma equipe da assistência social em abordagem à população de rua ligou para a equipe de saúde da
atenção básica pedindo avaliação de um paciente, desconhecido, deitado na rua há alguns dias. Lá chegando, o
médico e a enfermeira encontraram-no confuso, com higiene precária e com sinais de pneumonia. Eles o levaram
até o serviço de urgência de referência, mas a equipe de acolhimento recusava-se a atendê-lo, pois não tinha
documentos.

A equipe se responsabilizou pelo usuário, conseguindo que ele fosse admitido. No acolhimento, o médico recusou-
se a avaliá-lo pelo estado de higiene precária. A equipe deu banho no paciente em banheiro indicado pelo
assistente social. Finalmente avaliado e medicado, foi internado. Diariamente, o ACS visitava o paciente, que teve
seu estado físico e mental melhorado, o que permitiu sua identificação. Após a alta, começou a ser acompanhado
regularmente pela equipe da atenção básica.

Acolhimento é muito mais do que receber o usuário de forma acolhedora. Acolher é compreender a sua demanda
para além da queixa principal apresentada, é perceber esse cidadão no seu contexto social e inseri-lo em uma rede
de atenção à saúde em que a atenção básica é a coordenadora do cuidado.

Na abordagem inicial do usuário, a equipe deve priorizar uma observação e escuta qualificada, que
necessariamente passam pela valorização e respeito aos diversos saberes e modos de viver dos indivíduos,
possibilitando a construção de vínculos de confiança junto a essa população, que se reproduz em processos
relacionais no cuidado integral à saúde.

Quando se trata de população em situação de rua (PSR), a abordagem e o acolhimento são de fundamental
importância para a produção do cuidado, tendo em vista que esse grupo social é historicamente marcado por um
processo de exclusão dos serviços de saúde, onde a sua presença se traduz em forte incômodo tanto para os
profissionais de saúde quanto para os demais usuários, ficando quase sempre renegado o seu direito à atenção
integral à saúde e, quando muito, apenas é atendido nas emergências.

Dessa forma, a PSR, além de enfrentar uma variedade de barreiras para uso dos serviços de saúde, como a
limitação, muitas vezes, tem dificuldade de identificar o local apropriado para procurar assistência. São poucas as
equipes de saúde específicas e as eSF tradicionais, com a lógica hegemônica da territorialização rígida, nem
sempre têm as portas abertas a esse grupo social. Os serviços de urgência, em sua maioria, são distantes e
inacessíveis. Longas esperas podem significar perda de refeições ou acesso a abrigamento. Processos
complicados de registro que exigem identificação são fatores que desencorajam a busca. A falta de
simpatia/sensibilidade da equipe ou a inabilidade de um único local atender à variedade de problemas apresentados
pelos moradores de rua são barreiras adicionais.
Algumas barreiras para a assistência:
A produção de uma rede de cuidado traz consigo a proposta da humanização de ações e serviços de saúde e,
como consequência, a responsabilização de todos os trabalhadores e gestores em construir, com os usuários,
transformações concretas na prática cotidiana das unidades de saúde. Dessa forma, a rede de cuidado implica a
reorganização da atenção em saúde em todos os níveis, no âmbito do SUS, garantindo a integralidade e
coordenação do cuidado como diretrizes importantes para a atual Política Nacional de Atenção Básica do Ministério
da Saúde.

1. Hospitais exigem acompanhante para a pessoa em situação de rua ser atendida;


2. As UBS tradicionais não costumam adscrever moradores de rua;
3. O SAMU, por considerar um problema social, muitas vezes tem dificuldade em atender pacientes que
julgam ser em situação de rua;
4. Horários de consultas às vezes são incompatíveis com horários de sobrevivência na rua;
5. Profissionais de saúde alheios à realidade da PSR prescrevem medicamentos inexistentes na rede e caros;
6. Falta de vagas suficientes de psiquiatria em hospitais gerais para a população;
7. Dificuldades na dispensação de medicamentos para quem não pode absolutamente comprá-los;
8. Serviços que deem suporte a usuários de álcool e droga em quantidade suficiente;
331

9. Falta habilidade para os profissionais trabalharem com a população em situação de rua;


10. Dificuldade no acesso a vagas em leitos de urgência;
11. Locais adequados para restabelecimento após alta hospitalar em quantidade suficiente;
12. Dificuldade dos usuários com a marcação de consultas especializadas, não tendo acesso à guia de
referência quando marcadas as consultas;
13. Demora na marcação de consultas em algumas especialidades.
332

SERVIÇO DE ABORDAGEM SOCIAL

DESCRIÇÃO: Serviço ofertado de forma continuada e programada com a finalidade de


assegurar trabalho social de abordagem e busca ativa que identifique, nos territórios, a
incidência de trabalho infantil, exploração sexual de crianças e adolescentes, situação de rua,
dentre outras. Deverão ser consideradas praças, entroncamento de estradas, fronteiras,
espaços públicos onde se realizam atividades laborais, locais de intensa circulação de pessoas e
existência de comércio, terminais de ônibus, trens, metrô e outros. O Serviço deve buscar a
resolução de necessidades imediatas e promover a inserção na rede de serviços
socioassistenciais e das demais políticas públicas na perspectiva da garantia dos direitos.

USUÁRIOS: Crianças, adolescentes, jovens, adultos, idosos (as) e famílias que utilizam espaços
públicos como forma de moradia e/ou sobrevivência.

OBJETIVOS:
 Construir o processo de saída das ruas e possibilitar condições de acesso à rede de
serviços e à benefícios assistenciais;
 Identificar famílias e indivíduos com direitos violados, a natureza das violações, as
condições em que vivem, estratégias de sobrevivência, procedências, aspirações,
desejos e relações estabelecidas com as instituições;
 Promover ações de sensibilização para divulgação do trabalho realizado, direitos e
necessidades de inclusão social e estabelecimento de parcerias;
 Promover ações para a reinserção familiar e comunitária.

PROVISÕES

Ambiente físico: Espaço institucional destinado a atividades administrativas, de planejamento


e reuniões de equipe.

Recursos materiais: Materiais permanentes e de consumo necessários para a realização do


serviço, tais como: telefone móvel e transporte para uso pela equipe e pelos usuários.
Materiais pedagógicos para desenvolvimento de atividades lúdicas e educativas.

Recursos humanos: (de acordo com a NOB-RH/SUAS)

Trabalho social essencial ao serviço: Proteção social pró-ativa; conhecimento do território;


informação, comunicação e defesa de direitos; escuta; orientação e encaminhamentos
sobre/para a rede de serviços locais com resolutividade; articulação da rede de serviços
socioassistenciais; articulação com os serviços de políticas públicas setoriais; articulação
interinstitucional com os demais órgãos do Sistema de Garantia de Direitos; geoprocessamento
e georeferenciamento de informações; elaboração de relatórios.
333

AQUISIÇÕES DOS USUÁRIOS

Segurança de Acolhida:
 Ser acolhido nos serviços em condições de dignidade;
 Ter reparados ou minimizados os danos por vivências de violência e abusos;
 Ter sua identidade, integridade e história de vida preservadas.

Segurança de convívio ou vivência familiar, comunitária e social:


 Ter assegurado o convívio familiar, comunitário e/ou social;
 Ter acesso a serviços socioassistenciais e das demais políticas públicas setoriais,
conforme necessidades.

CONDIÇÕES E FORMAS DE ACESSO

Condições: Famílias e/ou indivíduos que utilizam os espaços públicos como forma de moradia
e/ou sobrevivência.

Formas: Por identificação da equipe do serviço.

Unidade: Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) ou Unidade


Específica Referenciada ao CREAS.

Período de funcionamento: Ininterrupto e/ou de acordo com a especificidade dos territórios.

Abrangência: Municipal e/ou Regional.

Articulação em rede:
 Serviços socioassistenciais de Proteção Social Básica e Proteção Social Especial;
 Serviços de políticas públicas setoriais;
 Sociedade civil organizada;
 Demais órgãos do Sistema de Garantia de Direitos;
 Instituições de Ensino e Pesquisa;
 Serviços, programas e projetos de instituições não governamentais e comunitárias.

IMPACTO SOCIAL ESPERADO

Contribuir para:
 Redução das violações dos direitos socioassistenciais, seus agravamentos ou
reincidência;
 Proteção social a famílias e indivíduos;
 Identificação de situações de violação de direitos;
 Redução do número de pessoas em situação de rua.
334

Abordagem Social: aspectos metodológicos

Introdução

Este texto foi construído a partir de algumas experiências pessoais e de um


encontro muito proveitoso com 05 profissionais que também já têm vasta
experiência no trato com população em situação de rua: Marlene Oliveira
(Pedagoga, técnica da SEDES), Edna Bárbara (Assistente social, profissional da
abordagem por diversas instituições, entre elas a prefeitura da cidade de
Salvador), Carlita Morais (Psicóloga, membro do Conselho Regional de Psicologia,
região Nordeste) e Maria Lucia (líder do Movimento Nacional de População de
Rua).

O que se encontrará aqui é um recorte dessa conversa com foco no serviço de


abordagem social para pessoas em situação de rua, transcrita com muita
dedicação por Valdelice Navarro, à época estudante do serviço social e hoje já
formada. Consideraram-se as dicas preciosas para aproximação, diálogo e
procedimentos para que este tipo de trabalho tenha seja bem sucedido.

Esta conversa foi motivada pelo fato de não se ter referencial teórico específico
para tal atividade com a população em situação de rua, uma vez que este
fenômeno só começa a ganhar notoriedade a partir de 2008, com a divulgação da
pesquisa nacional sobre população de rua, realizada pelo Ministério de
desenvolvimento social e combate à Fome – MDS.

Várias eram as queixas da forma como as pessoas ligadas ao poder público se


aproximavam das pessoas em situação de rua. Em certos casos, de forma
truculenta, objetivavam tão somente a higienização humana, a retirada a todo
custo das pessoas de locais onde a sociedade julgava impróprios para a sua
permanência, na maioria das vezes, motivada pelo preconceito.

Esta equipe de abordagem se compunha de aparato policial e outros recursos de


intimidação que em nada favorecia o verdadeiro trabalho de aproximação e
335

conquista da confiança, para então contribuir para a efetiva saída das ruas de
maneira digna. Desse modo, o que se tem aqui é um trabalho pioneiro de
sistematização de como executar os trabalhos de abordagem social na
perspectiva da humanização.

Naturalmente, há ações em que a equipe de abordagem se deparará onde estas


orientações podem não dar conta, o que de certo modo é positivo, pois cada um
terá a possibilidade de construir também as suas próprias estratégias de acordo
com a situação, assim como de ampliar o seu entendimento diante de uma
questão tão complexa quanto esta que se apresenta. Desse modo, os contatos
com outras realidades de abordagem proporcionaram complementar uma ou
outra lacuna na elaboração deste pequeno guia metodológico.
Adauto Leite Oliveira

Para início de conversa

A sociedade em geral desenvolveu uma forma preconceituosa de olhar as pessoas


em situação de rua, por isso também compreende equivocadamente os modos
mais adequados de atendimento a este público. Via de regra, as solicitações
advindas do comércio e de moradores das zonas nobres da cidade, seguem na
direção da higienização humana, ou seja, do recolhimento indiscriminado dessas
pessoas, sem se preocupar com o destino delas, contanto que não se precise mais
vê-las em suas portas.

O serviço de abordagem social é muito assediado para fazer essa limpeza, é


preciso que os profissionais deste serviço estejam muito conscientes de qual é o
seu papel na execução desta atividade. A resolução 109/2009 do Conselho
Nacional de Assistência Social – CNAS tipifica o serviço de abordagem com o
objetivo de assegurar direitos, corrigir e evitar a violação dos mesmos, não de se
constituir como mais um mecanismo violador.
336

Portanto, é preciso filtrar as solicitações de abordagem, colhendo do solicitante o


maior volume de informações possível. Às vezes, com uma conversa equilibrada,
o solicitante é demovido do desejo de recolher a pessoa.

Considerando os apelos da sociedade capitalista e a sua vinculação íntima com os


mecanismos de repressão social, bem como das esferas mais elevadas do poder
público, não será surpresa uma ordem vinda de alguma instância superior
direcionada à abordagem social para fazer o trabalho de higienização. Neste
momento, a equipe deverá saber exatamente em qual(is) mecanismo(s) legal(is)
se apoiar para dar uma negativa fundamentada a esta ordem.

Experiências mal sucedidas de abordagem para este fim – higienização humana –


legaram a algumas gestões públicas os estigmas da ineficiência e da
desumanidade para tratar de questões de cunho social. Os profissionais que
atuavam desta maneira, hoje são desacreditados pelos usuários do serviço. A
equipe de abordagem também deve ser preparada para lidar com situações de
conflito dessa ordem, firmando o seu papel de modo inteligente e consequente.
Isso perpassa por um processo de formação permanente e de compromisso com
o fazer consciente.

Espaços para abordagem

Segundo a Tipificação dos Serviços Socioassistenciais, os locais para abordagem


são:

Deverão ser consideradas praças, entroncamento de estradas,


fronteiras, espaços públicos onde se realizam atividades laborais, locais
de intensa circulação de pessoas e existência de comércio, terminais de
ônibus, trens, metrô e outros (Resolução 109, CNAS, 2009, p. 20).
Em essência, é a rua mesmo o local onde essas pessoas se encontram, mesmo em
lugares cobertos, uma vez que eles por não serem os espaços de moradia de
propriedade individual, não podem se configurar como casa do ponto de vista
tradicional e, se não estamos em nossa casa, estamos, portanto, na rua.
337

A Tipificação foi feliz em deixar em aberto outros locais possíveis para


abordagem. A experiência observada em Vitória da Conquista/BA, no que
concerne à prática da abordagem em outros ambientes de concentração da
população em situação de rua, merece ser replicada, pois se mostrou criativa e
eficiente.

Alguns integrantes da equipe de abordagem do Centro Pop se deslocam para uma


entidade que faz doação de alimentos para a população em situação de rua em
local apropriado, com mesas e cadeiras, como se em um restaurante popular. A
equipe aproveita a hora das refeições para iniciar um bate-papo com as pessoas e
irem se aproximando delas.

Há locais de concentração desse público bem apropriados para a realização de


aproximações que, antes de Vitória da Conquista, não eram considerados como
campos de trabalho da equipe de abordagem social. O momento da alimentação
é um momento bastante propício ao início de um diálogo amistoso.

Sem desconsiderar os espaços previstos na Tipificação onde a abordagem deve


atuar seguindo o princípio da busca ativa, a equipe pode procurar verificar na sua
área geográfica onde se localizam as entidades que oferecem alimentos e tentar
compor por algumas horas a equipe desses espaços, com o intuito de se
aproximar melhor dos usuários.

Material para registro dos atendimentos e meios de verificação

Ter um formulário com questões básicas de identificação do usuário facilita as


anotações, além de prancheta, papel em branco, caneta esferográfica e lápis.

Caso haja a possibilidade, depois de se conquistar a confiança do usuário, ter


algumas conversas gravadas podem ajudar nos estudos de caso para se tomar
medidas posteriores. Este material também servirá de suporte na hora de
elaborar os relatórios individuais.
338

Filmagens, fotos ou outras formas de registros que impliquem na identificação


visual da pessoa em situação de rua, só devem ser feitas após a solicitação da
autorização ao usuário e a sua devida permissão. Fotos à distância de um quadro
geral são menos problemáticas. Entretanto, o melhor é deixar para fazer esses
registros depois de conquistada a confiança do (as) usuário (as).

Os relatórios precisam ser nítidos, de modo que qualquer pessoa que os leia
compreenda exatamente quais foram os procedimentos adotados pela equipe.
Quanto mais riqueza de detalhes e meios de verificação dos casos atendidos,
melhor.

Vestuário

Roupas decotadas, curtas ou justas ao corpo não é aconselhável na abordagem.


Logicamente, para além das questões materiais, as pessoas estão fragilizadas
emocionalmente, não deixam de ter desejo por estar na situação de rua, a roupa
pode tirar o foco do diálogo, lembre que a intenção é se aproximar da pessoa,
obtendo o máximo de informações possíveis sobre ela, não seduzi-la.
Os sapatos precisam ser os mais confortáveis possíveis, saltos são
desaconselháveis. Este é um trabalho que requer longas caminhadas. Tênis ou
sapatilhas são os melhores calçados para a abordagem.

Evite utilizar adereços que chamam a atenção ou valiosos (pulseiras, colares,


brincos, relógios caros...). Você estará lidando com pessoas desprovidas de todos
os bens materiais supérfluos da sociedade, ostentá-los diante delas é uma
afronta. Certamente isso comprometerá a sua aproximação, considerando que
você, já na aparência, se mostra muito distante da realidade dessas pessoas. A
maioria das prefeituras utilizam coletes para identificar as equipes de abordagem

Não utilizar máscaras cirúrgicas ou luvas para se aproximar das pessoas. Você não
faz parte de uma equipe de saúde, mas de abordagem social. Salvo que o contato
com a pessoa seja inevitável para prestar socorro, encaminhar para algum lugar
em uma situação em que a mesma não consiga se conduzir por conta própria, ou
ainda em casos em que há comprovado risco de contágio pelo toque.
339

Contudo, estas situações devem ser entendidas como exceções, pois dependem
de uma análise fundamentada; as luvas ou máscaras devem ser postas ao se
deparar com um caso concreto comprovado, não como equipamento obrigatório
para o desenvolvimento do trabalho. A utilização desnecessária desses recursos
transmite ao usuário a mensagem de que você está receoso (a) em se aproximar
dele (a), dificultando a criação dos laços de confiança.

Aproximação

Aproximar-se da pessoa em situação de rua requer uma sensibilidade bastante


aguçada, uma vez que nem sempre ela está receptiva ao encontro em um dado
momento. Deve-se considerar que a sociedade não a trata com a dignidade que
deseja, por isso, a desconfiança de quem se aproxima é bastante justificável.

Quem vai abordar também precisa estar bem psicologicamente, se sentir seguro
(a) do que quer desenvolver. Há uma carga emocional muito forte neste trabalho,
a equipe deve, sempre que possível, se reunir antes de iniciar suas atividades
para se fortalecer, sondar como estão os seus membros emocionalmente, se
estão prontos naquele dia.

É imprescindível que as pessoas estejam tranquilas para começar bem o seu


trabalho. Este é um trabalho de motivação e sensibilização importante a ser feito
pelo (a) líder da equipe de abordagem cotidianamente, inclusive para que as
ações não sejam desastrosas por um momento de desequilíbrio de algum
membro.

O veículo utilizado para transporte da equipe e de possíveis usuários deve estar


em lugar fora do campo de visão da pessoa em situação de rua, mas devidamente
identificado com plotagem. As experiências de recolhimento, chacinas e maus
tratos causam grandes reservas à presença do transporte da equipe de
abordagem. Assim, a equipe deve estar a pé para proceder ao contato.
340

Antes da aproximação, é prudente fazer uma leitura do entorno e da situação em


que estão os usuários a ser abordados, nem sempre é adequado se aproximar em
determinados momentos. Os conflitos entre pessoas em situação de rua são
comuns, quer seja por disputa de algum pertence, espaço de poder ou por efeito
de substâncias psicoativas. Do mesmo modo, há muitas situações de
solidariedade, compartilhamento e afetividade também. O importante é ter
habilidade para perceber o melhor momento para fazer as aproximações.

O primeiro contato deve ser feito sempre cuidadosamente, desejar bom dia, boa
tarde ou boa noite, esperando a reação. Haverá casos em que alguns contatos se
limitarão a estes cumprimentos por algumas vezes consecutivas – em certos
momentos sem resposta, até que a pessoa se sinta à vontade para adentrar em
outras informações a seu respeito, como nome, origem e história de vida. Após
ter vencido esta primeira etapa de aproximação (alguns chamam esse momento
inicial de “paquera pedagógica”1), a equipe poderá iniciar um diálogo mais
confiante.

Aconselha-se a se fazer a abordagem com duas ou três pessoas, estar só é


complicado quando ainda não se constituiu laços de confiança suficientes para
que o (a) assistente social ou o (a) educador (a) social seja reconhecido pela
população em situação de rua, pois os desconhecidos representam ameaça para
ela. Ademais, fazer este trabalho só, sem se sentir seguro (a) suficiente, pode ser
perigoso, já que também quem aborda se torna uma presa fácil para pessoas mal
intencionadas.

Iniciando o diálogo

O diálogo precisa ser claro com a pessoa em situação de rua, mas se deve atentar
que as primeiras conversas não precisam ser invasivas, na verdade, é melhor

1
Ancorado em pressupostos como Paulo Freire, Lacan, Vygotsky, Pieget, Wallon e outro, o Projeto Axé, entidade
que trabalha com crianças e adolescentes em situação de rua no Estado da Bahia e uma das entidades conveniadas
no âmbito do Programa Bahia Acolhe, aparece como precursor do conceito em algumas literaturas. Para saber mais
ver Antonio Pereira. Os educadores e suas representações sociais da base epistemológica da Pedagogia Social do
Projeto Axé. Disponível em http://www.proceedings.scielo.br/pdf/cips/n3/n3a01.pdf. Acesso em 02/03/2013.
341

deixar que ele (a) fale o que quiser primeiro, procure saber o nome da pessoa e a
chame sempre pelo nome fornecido, caso seja adulto, “senhor fulano”, “senhora
beltrano” e assim por diante.

Caso a pessoa o (a) cumprimente, aperte a mão dele (a) sem ressalvas, você
poderá higienizar suas mãos após a abordagem em local fora do campo de visão
da pessoa em situação de rua. Comportamentos e olhares de nojo, retração ou
discriminação de qualquer natureza comprometerão o diálogo.

Evite comer qualquer coisa enquanto está conversando com a pessoa, lembre
que talvez ele (a) não tenha se alimentado ainda. Procure se alimentar sempre
fora do campo de visão da pessoa e em horários determinados pela equipe, neste
momento você deve estar concentrado (a) no diálogo.

Este momento é o da escuta qualificada. Não atropele a pessoa com uma


pergunta atrás da outra, deixe a conversa fluir, mostre-se interessado (a) no que
ele (a) tem a lhe dizer. Em algum ponto da conversa você perceberá aonde pode
ajudá-lo (a). Ao final do diálogo, você pode disponibilizar o que ele (a) necessita,
sem impor a ação. Deixe sempre um canal aberto para o próximo encontro,
quando, possivelmente, você poderá levar alguma solução, ou simplesmente o(a)
escutar novamente, cada caso implicará em uma atitude adequada.

Não há tempo determinado de encontros, uma pessoa pode aderir a um plano de


mudança de vida em um primeiro momento, outra poderá levar dias, meses ou
até anos para despertar este interesse, é preciso respeitar o tempo de cada um.
Esse tempo pode ser encurtado a depender da relação de confiança que se
estabeleça entre a pessoa e a equipe de abordagem.

Há que se atentar para os horários escolhidos para realizar as abordagens, existe


indivíduos e famílias que podem ser encontrados durante o dia e outros durante
a noite. É importante compreender que durante o dia há mais serviços
funcionando e maior facilidade de encaminhamentos, por outro lado, à noite se
pode ter uma conversa mais demorada com os sujeitos, visto que muitos deles já
estão em estado de repouso da lida diurna atrás da sobrevivência, quer seja
prestando pequenos serviços, quer seja recolhendo material reciclável nas ruas
pra vender. Assim, torna necessário que haja abordagem social nos dois turnos do
dia para dar conta da escuta qualificada e dos encaminhamentos.
342

É importante levar em consideração que o horário noturno não deve passar das
22:00h. A partir desse horário as pessoas em situação de rua já estão
acomodadas em seus lugares para descansar e não é conveniente incomodá-las,
isso pode gerar reações inesperadas e até perigosas para quem aborda. Neste
sentido, obedecer a um horário inteligente para abordagem, respeita a
individualidade dos sujeitos, facilita a constituição de laços de confiança, otimiza
os trabalhos de encaminhamentos à rede de proteção social e garante a
salvaguarda de todos, proporcionando um trabalho mais seguro, eficiente e
eficaz.

Encaminhamentos

O Serviço deve buscar a resolução de necessidades imediatas e promover a


inserção na rede de serviços socioassistenciais e das demais políticas públicas na
perspectiva da garantia dos direitos (Resolução 109, CNAS, 2009, p. 20).

Obviamente, a equipe de abordagem precisa conhecer a rede de proteção social2,


mais que isso, precisa se relacionar com ela de modo produtivo. Este é um
recurso indispensável para que se possa fazer qualquer tipo de encaminhamento
à rede.

É bom lembrar sempre que o serviço de abordagem social tem como


equipamentos de referência os Centros Pop, isso significa dizer que as ações
devem ser compartilhadas com as equipes de referência destes equipamentos.

Seja para qual serviço for que o usuário seja encaminhado, o Centro Pop melhor
localizado, em relação à referência geográfica aonde o usuário costuma ficar deve
ser acionado para acompanhar os desdobramentos, até porque certos
encaminhamentos à rede de proteção social só poderão ser realizados por esta
equipe de referência.

2
Entenda-se como rede de proteção social todos os equipamentos e serviços ligados às diversas políticas setoriais:
assistência social, saúde, trabalho e outras.
343

Os encaminhamentos mais frequentes feitos pela equipe de abordagem de forma


autônoma estão no campo das necessidades imediatas e emergenciais como, por
exemplo, acionar o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência – SAMU para
casos em que a vida da pessoa esteja correndo risco de morte por mal-súbito, ou
vitimada por ato violento de terceiros, servindo como referência momentânea no
atendimento. Outro caso é o encaminhamento para locais de alimentação ou
higienização pessoal.

É sempre útil, como já frisado, que o abordador conheça bem a rede de proteção
social, mas, além disso, que também conheça o limite e alcance dessa rede.
Equívocos ocorrem porque o serviço de abordagem acaba sendo confundido com
outros serviços de atendimento na rua. Um exemplo simples é que a abordagem
é frequentemente acionada para atender casos clínicos, tipo os que deveriam ser
atendidos pelo SAMU.

Fazer o transporte de pessoas em situação de rua para acessar os serviços em


nada tem a ver com atendimento médico direto. Em uma situação de urgência e
emergência a equipe deve insistir com o SAMU em atender a pessoa em situação
de rua, porque isso é um dever desse serviço, independente de quem esteja
necessitando. Justificativas como falta de documentação ou referência domiciliar
não encontram base de sustentação para a negativa do atendimento, podendo a
equipe acionada que se negou a atender ser responsabilizada por omissão. Os
procedimentos de registros dos atos da abordagem são indispensáveis em todos
os casos, sobretudo quando isso implicar em ação de responsabilidade.
344

Perguntas e respostas - MDS

Serviço Especializado em Abordagem Social

1. o que é o Serviço Especializado em Abordagem Social?

De acordo com a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais (2009), o Serviço


especializado em Abordagem Social é ofertado de forma continuada e programada
com a finalidade de assegurar trabalho social de abordagem e busca ativa que
identifique, nos territórios, a incidência de situações de risco pessoal e social, por
violação de direitos, como: trabalho infantil, exploração sexual de crianças e
adolescentes, situação de rua, uso abusivo de crack e outras drogas, dentre outras.

O serviço configura-se como um importante canal de identificação de situação de risco


pessoal e social que podem, em determinadas situações, associar-se ao uso abusivo
ou dependência de drogas. ofertado no âmbito da Proteção Social especial de média
Complexidade, o Serviço de Abordagem Social deve garantir atenção às necessidades
mais imediatas das famílias e dos indivíduos atendidos, buscando promover o acesso à
rede de serviços socioassistenciais e das demais políticas públicas na perspectiva da
garantia de direitos. o serviço deve atuar com a perspectiva de elaboração de novos
projetos de vida. Para tanto, a equipe deve buscar a construção gradativa de vínculos
de confiança que favoreça o desenvolvimento do trabalho social continuado com as
pessoas atendidas.

A abordagem social constitui-se em processo de trabalho


planejado de aproximação, escuta qualificada e construção
de vínculo de confiança com pessoas e famílias em situação
de risco pessoal e social nos espaços públicos para atender,
acompanhar e mediar acesso à rede de proteção social.

2. Quais Espaços devem ser considerados para a atuação do Serviço? em quais


Espaços o serviço atuará?

Devem ser considerados os diversos locais onde se observe incidência ou


concentração de situações de risco pessoal e social, por violação de direitos.
Assim, podem constituir espaços de intervenção e trabalho social do serviço: ruas,
praças, entroncamento de estradas, fronteiras, espaços públicos onde se realizam
atividades laborais (por exemplo: feiras e mercados), locais de intensa circulação de
pessoas e existência de comércio, terminais de ônibus e rodoviárias, trens, metrô,
prédios abandonados, lixões, praias, semáforos, entre outros locais a depender das
características de cada região e localidade.

A definição dos locais de intervenção do serviço deve ser baseada em um


planejamento coordenado pelo órgão gestor de assistência social, envolvendo as
unidades de oferta do Serviço (CReAS, unidade referenciada ao CReAS ou Centro
PoP). As equipes profissionais que desenvolvem o Serviço de Abordagem Social nas
345

ruas devem ter participação proativa nesse processo, a partir da vivência nos
territórios.

No processo de planejamento é preciso considerar que, assim como a vinculação com


os usuários, o vínculo de confiança dos profissionais do serviço com os territórios
também é construído de modo gradativo. Por este motivo, a atuação em territórios com
incidência de situações mais complexas, como, por exemplo, violência urbana, usos e
tráfico de drogas, exigirá planejamento mais minucioso e cuidadoso em relação à
segurança dos usuários e profissionais.

As informações de diagnósticos socioterritoriais são fundamentais


para a definição dos locais de trabalho em que o serviço deverá
atuar. Esses diagnósticos devem ser realizados em conjunto com a
área da vigilância socioassistencial.

3. Quem são os usuários do Serviço Especializado


em Abordagem Social?

Crianças, adolescentes, jovens, adultos, idosos e famílias em situação de risco pessoal


e social que utilizam os espaços públicos como forma de moradia e/ou sobrevivência.

4. QuaiS são os objetivos do Serviço Especializado em Abordagem Social?


De acordo com a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais (2009), as ações
desenvolvidas no Serviço devem ser orientadas pelos seguintes objetivos:

• identificar famílias e indivíduos em situação de risco pessoal e social com direitos


violados, a natureza das violações, as condições em que vivem, estratégias de
sobrevivência, procedência, projetos de vida e relações estabelecidas com as
instituições;

• construir o processo de saídas das ruas e possibilitar condições de acesso à rede de


serviços e a benefícios assistenciais;
• promover ações para a reinserção familiar e comunitária;
• promover ações de sensibilização para divulgação do trabalho realizado, direitos e
necessidades de inclusão social e estabelecimento de parcerias.

5. Quais são os eixoS norteadores do Serviço ESpecializado em Abordagem


Social?
• Proteção social proativa

Caracteriza-se a partir da presença, continuada e ativa de profissionais nos espaços


públicos, para identificar e conhecer as reais demandas e necessidades das pessoas e
famílias em situação de risco pessoal e social nos espaços públicos.

Por definição, a proatividade diz respeito a uma postura de alerta, amparada por
capacidade técnica para responder, antecipadamente, às mudanças que se avizinham
346

ou até mesmo para criar a mudança de forma deliberada Proatividade requer


capacidade de prontidão, de agilidade nas iniciativas e providências, de estar atento,
cotidianamente, ao contexto das situações e a dinâmica dos territórios, de maneira a
prever novos cenários e antecipar-se, com o planejamento necessário, a cada
situação. Requer do Serviço e sua equipe autonomia e capacidade técnica e humana
de intervenção diante de situações emergenciais, imprevisíveis e/ou daquelas que
podem decorrer do agravamento das situações de risco pessoal e social vivenciadas
pelos indivíduos e famílias.

Considerando que os usuários do Serviço de Abordagem Social, por vezes, encontram-


se fragilizados física, mental e moralmente pelas condições de vida a que estão
submetidos, cabe ao Serviço ir ao encontro dessas pessoas, antecipando-se à procura
espontânea ou às costumeiras comunicações/chamadas ou até denúncias de
moradores ou pessoas da comunidade. o objetivo é proporcionar um atendimento
intensivo e qualificado com vistas a oportunizar o acesso à devida proteção social e
prevenir o agravamento das situações.

• Ética e respeito à dignidade, diversidade e não discriminação

O conceito de ética preciso diz respeito à capacidade que todo ser humano tem de agir
baseado nos valores universalizantes do respeito ao outro, da solidariedade e da
cooperação. A ética não é uma abstração e nem deve ser idealizada, ela se concretiza
no cotidiano das relações sociais.

Agir eticamente implica em respeitar à dignidade humana, compreendida como


conjunto de elementos físicos e psicológicos do indivíduo. É importante lembrar que a
conduta ética do profi ssional e/ou da equipe sempre terá repercussão sobre os
usuários do serviço. Ressalta-se ainda que, como preconiza a Norma operacional
Básica de Recursos Humanos (NOB/RH/SUAS, 2006), o profissional do serviço deve
promover aos usuários o acesso à informação, garantindo a estes conhecer seu nome
e dados funcionais. O respeito à diversidade implica reconhecer as diferenças, a
pluralidade e a heterogeneidade dos territórios e as singularidades de cada usuário
nesse contexto.
Significa, também, superar atitudes e comportamentos de preconceitos e estigmas que
levam à discriminação e à consequente marginalização e exclusão social. Os efeitos do
preconceito e dos estigmas podem imprimir marcas profundas, na alma, na autoestima,
no comportamento e no modo de viver das pessoas, com impactos tão sérios quanto
aos decorrentes das situações objetivas de vulnerabilidade e risco social.

O serviço deve buscar, continuamente, a superação de estigmas discriminatórios de


raça, cor, expressão estética e diversidade de gênero, na afirmação permanente dos
direitos às expressões sociais e o respeito às diferentes formas de ser e estar no
mundo.

• Acesso a direitos socioassistenciais e construção de autonomia

Os direitos socioassistenciais estão inscritos na Política Nacional de Assistência Social


(PNAS, 2004). Esses direitos balizam as ofertas do SuAS e, portanto, orientam o
trabalho social desenvolvido no Serviço de Abordagem Social. São eles:
347

- direito a um atendimento digno, atencioso e respeitoso, ausente de procedimentos


vexatórios e coercitivos;
- direito ao tempo, ou seja, reduzida espera ao acessar a rede de serviços, de acordo
com as necessidades;
- direito à informação, sobretudo às pessoas com vivência de barreiras culturais, de
leitura e comunicação de limitações físicas e mobilidade reduzida;
- direito ao protagonismo e manifestação dos seus interesses;
- direito à oferta qualificada do serviço;
- direito de convivência familiar e comunitária.

Esses direitos estão ancorados na premissa constitucional da Política de Assistência


Social como direito do cidadão e dever do estado. Isto impõe que o Serviço de
Abordagem Social deve ser prestado de maneira qualificada e focada no cidadão e
cidadã e não na centralidade endógena dos processos institucionais.

No contexto do serviço, ter os direitos socioassistenciais como horizonte implica:

- equipe capacitada e em quantidade necessária, com condições adequadas para a


prestação de um serviço com qualidade;
- reconhecer os usuários como sujeitos de direitos e deveres;
- respeitar o protagonismo das pessoas nas decisões e repostas às situações que
vivem;
- compreender que a construção da autonomia não é um processo linear. A proposição
de mudanças pressupõe uma intencionalidade de transformação que cabe aos
usuários aceitarem ou não;
- considerar que o tempo e o ritmo das mudanças diferenciam-se de pessoa para
pessoa.

- compreender que os fatores de risco e de proteção estão implicados em todos os


domínios da vida, nos próprios indivíduos, em suas famílias, nas comunidades e em
qualquer nível de convivência. Compreender que esses fatores estão em contínuo
movimento com considerável transversalidade e variabilidade de influências entre si.

• Construção gradativa de vínculo de confiança com os sujeitos, a rede e o


território

Na realização do trabalho de abordagem social faz-se indispensável a criação de


vínculos de confiança com as pessoas que se encontram nos espaços públicos.
Contudo, isso ocorre processualmente. A construção gradativa de vínculos deve
acontecer com cautela, respeitando os códigos que regem os grupos e deixando
sempre claro os objetivos e valores que regulam as ações do Serviço.

Os profissionais da abordagem social podem representar pessoas de referência no


processo de (re)construção de projetos de vida dos indivíduos que são acompanhados.

Essa referência precisa ser, cuidadosamente, compartilhada com profissionais que


atuam em outros espaços da rede para os quais os usuários são encaminhados. A
equipe do Serviço precisa estabelecer alianças estratégicas e parcerias com outras
instituições e profissionais que atuem com o mesmo público do Serviço. Isso evita
constrangimentos, duplicação de trabalho e potencializa as intervenções realizadas na
348

rede de atendimento. É importante que haja uma comunicação entre os profissionais


que trabalham no território.

A comunidade local precisa ser informada e sensibilizada sobre o trabalho que está
sendo realizado pela equipe do Serviço de Abordagem Social, podendo se constituir
como uma importante parceira. Ao conhecer o Serviço e compreender as condições e
necessidades das pessoas em situação de risco nos espaços públicos, é possível que
a comunidade dos territórios de atuação do Serviço desmistifique e supere concepções
baseadas em procedimentos de “limpeza” e “higienização”, ou seja, com ações focadas
somente na retirada das pessoas dos espaços públicos.

• Respeito à singularidade e autonomia na reconstrução de traje tórias de vida

Cada sujeito é único, singular. Em função das diferentes histórias de vida e dos
diversos motivos que levam pessoas e famílias a estarem ou a buscarem nos espaços
públicos meios de sobrevivência, cada situação precisa ser olhada particularmente. Os
atendimentos realizados no Serviço de Abordagem Social precisam ser específicos, de
modo a acolher as necessidades individuais, respeitando as escolhas e o momento em
que cada sujeito encontra-se. A escuta e a participação das pessoas e famílias nas
definições dos melhores encaminhamentos são procedimentos importantes a serem
considerados pela equipe do serviço.

• Trabalho em rede

A concepção de trabalho em rede baseia-se em alguns princípios, tais como: a


integralidade dos sujeitos e a incompletude institucional inerente às diversas políticas
públicas. A integralidade dos sujeitos remete a necessidade de uma abordagem
integral dos indivíduos, frente aos contextos social, comunitário e familiar que
influenciam sua vida, demandando, em alguns momentos, a atuação integrada de
diferentes serviços. O princípio da incompletude institucional co-responsabiliza as
instituições na compreensão de que um atendimento de qualidade e integral deve
acontecer de modo compartilhado
através de uma ação em rede. Esse princípio reafirma, também, a
multidimensionalidade das situações de risco pessoal e social, rompendo com a visão
de que uma instituição ou um serviço abarca todas as necessidades dos sujeitos.

Trabalho em rede pressupõe articulações e inter-relações entre instituições, serviços e


atores implicados na promoção, proteção e defesa de direitos em um determinado
território, com o compartilhamento de objetivos e propósitos comuns.

A sinergia e a dinâmica necessária a um trabalho realizado de forma complementar


nos territórios requer um processo contínuo de circulação de informações, diálogos
permanentes, trocas, compromisso com o fazer coletivo e postura de colaboração
institucional e individual, por parte dos profissionais.

Para o bom desenvolvimento do trabalho em rede integrado, é importante que sejam


estabelecidos alguns procedimentos pra facilitar a conexão entre os pares. Nessa
direção, pode-se citar: conhecimento da missão de cada serviço/instituição; reuniões e
349

encontros; contatos periódicos; discussão e pactuação de fluxos locais de atendimento;


entre outros.

A gestão da política de Assistência Social, a coordenação das unidades de oferta do


Serviço e a coordenação do Serviço, quando existir, têm papel fundamental no
fortalecimento do trabalho em rede nos territórios de atuação das equipes da
abordagem social, de modo a garantir maior institucionalidade e melhores resultados.

• Relação com a cidade e a realidade do território

Os espaços públicos são os territórios de atuação das equipes da abordagem social.


As realidades desses territórios são sua matéria-prima.

É importante considerar que os territórios são espaços dinâmicos, vivos e, muitas


vezes, tensos. Sua posição geográfica na cidade, sua história e tradição, o modo como
o território é pensado e vivido pelas pessoas que o habitam e nele trabalham, os
períodos e horários que as pessoas o freqüentam, são aspectos a serem observados e
compreendidos pelas equipes do Serviço de Abordagem Social. Dessa forma,
conhecer os territórios de atuação e a relação que as pessoas mantêm com esses
espaços, é condição para se aproximar dos sujeitos que lá estão e iniciar o trabalho
social inerente ao serviço.

Identificar e mapear a localização, a permanência, os fluxos e os pontos de referência


significativos para as dinâmicas dos locais de atuação representa uma ação
estruturante desse serviço.
350
351
352
353

SAÚDE – POPULAÇÃO DE RUA


354
355
356

ANOTAÇÕES – CURSO 5
357
358
359
360
361

ANEXOS
362

PROGRAMAÇÃO E FORMADORES:
GE Pop Rua 2019 - Formação da Rede de Serviços do Centro Histórico
72 horas de Minicursos com temas transversais a Situação de rua, para formar Multiplicadores
de Direitos Humanos - Pop Rua .

Quando: Abril a Maio de 2019


População Alvo: 74 Profissionais que atuam na rede de serviços do Centro Histórico de
Salvador.
Locais: Verificar quadro informativo
Inscrições: Envio de email para grupodepesquisa.poprua@defensoria.ba.def.br com: nome,
telefone, área e local de atuação / Aguardar confirmação

PROGRAMAÇÃO E FORMADORES

28 de março

Ás 14 horas: Contrato Ético-didático


Local: DPE Canela

Defensora Fabiana Miranda e Profa. Sandra Carvalho

03 e 04 de abril

Minicurso de 12 horas: A atuação ética política do Educador Social (Latu senso)

Prof. Carlos Eduardo Carvalho Santana - Doutor em Educação e Contemporaneidade pela


Universidade do Estado da Bahia (2015). Atualmente é Gestor da Escola Municipal Malê
Debalê / SMED-PMS. Pesquisador no Grupo de Pesquisa Memoria da Educação da Bahia /
PPGEDUC/UNEB. Coordenador da REMEMU - Rede de Memória da Educação Municipal /
PROMEBA / PPGEDUC / UNEB. Docente Titular na - Faculdade Integrada Ipitanga
FACIP/UNIBAHIA; Docente Titular na UNINASSAU / Salvador-Ba. Docente Titular no
Instituto de Educação Satyro Dias IESD/FAC. Coordenador Pedagógico na Secretaria

Rua Pedro Lessa, nº 123, Canela. Salvador / BA. CEP: 40.110-050. Tel.: (71) 3116-6012
363

Municipal de Educação da Cidade do Salvador SMED/PMS. Vice - Presidente da Associação


Cultural Recreativa e Carnavalesca Malê Debalê Tem experiência na área de Educação, com
ênfase em Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: educação, cultura negra,
formação do educador, identidade e quilombos.

10 de abril

Minicurso de 8 horas: A família como polo indispensável do processo educativo

Profa. Vanessa Ribeiro Simon - Pós-doutorado em Humanidades pela Universidad de


Salamanca, Espanha (CAPES e CNPq). Doutorado em História - Universidad de Leon. Na
área acadêmica, é professora e pesquisadora da Universidade Católica do Salvador no
Doutorado e Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea (Interdisciplinar, CAPES 5).
Pesquisadora associada ao Programa de Pós-Graduação Programa em Estudos
Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo (PPGNEIM/UFBA, CAPES 4).
Investigadora associada ao Instituto de Sociologia, da Universidade do Porto, Portugal.
Integrante do Nucleo de Estudos sobre Direitos Humanos (Nedh/Ucsal).

11, 17 e 18 de abril

Minicurso de 16 horas: Gênero, Raça e Classe.

Profa. Josimara Aparecida Delgado e convidadas: Possui Doutorado em Serviço Social pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (2007). Tem experiência na área do Serviço Social,
com enfoque nos Fundamentos do Serviço Social e em Políticas Sociais, especialmente na

Rua Pedro Lessa, nº 123, Canela. Salvador / BA. CEP: 40.110-050. Tel.: (71) 3116-6012
364

análise da Política de Assistência Social; dedica-se também ao estudo de questões relativas ao


envelhecimento e às gerações e ao gênero, trabalhando com memória e histórias de vida.
Atualmente, é professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), atuando no curso de
Serviço Social do Instituto de Psicologia e no Programa de Pós-Graduação em Estudos
Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo (PPGNEIM).

24 e 25 de abril

Minicurso de 12 horas: Saúde Mental e Situação de rua

Profa. Edna Amado, Assistente Social e fundadora do Núcleo pela Superação dos
Manicômios (Nesm), filiado à Rede Nacional Internxúcleos da Luta Antimanicomial. Edna
Amado é referência nacional para profissionais e estudantes de saúde mental. "Trabalhou
durante 50 anos no Hospital Juliano Moreira e fora dele. Coordenou o Cena: Serviço
Substitutivo em saúde mental, reconhecido nacionalmente como Serviço de excelência.

02, 08 e 09 de maio

Minicurso de 16 horas: O trabalho nas ruas

Profa. Sueli Oliveira, mulher com trajetória de rua, integrante do Movimento Nacional da
População de Rua, convidadas (os) e equipes de rua.

Rua Pedro Lessa, nº 123, Canela. Salvador / BA. CEP: 40.110-050. Tel.: (71) 3116-6012
365

03/07, 03/10 e 07/11

AVALIAÇÃO de 12 horas

Metodologias dos Minicursos

Leitura de imagens; trabalho em grupo; exposição dialogada; assistência a vídeos;


dramatização; sínteses de situação problema; análise de fragmentos históricos.

Rua Pedro Lessa, nº 123, Canela. Salvador / BA. CEP: 40.110-050. Tel.: (71) 3116-6012
366

QUADRO DOS MINICURSOS E FORMADORES – GRUPO DE ESTUDOS E 2019


MULTIPLICADORES DE DIREITOS HUMANOS POP RUA

DATA ATIVIDADE PROFESSORES TÍTULO LOCAL


28/03 - 14h as 17h Contrato Ético-didático Líderes do grupo - A definir
03/04 - 8h as 17h Curso Sociedade e Carlos Eduardo Carvalho de Doutor e professor do Auditório da DPE – Rua
Totalidade Santana /8 horas doutorado da UNEB Pedro Lessa Canela
Salvador
04/04 - 14h as 17h Curso Sociedade e Carlos Eduardo Carvalho de Doutor e professor do Auditório da CESAT -–
Totalidade Santana /4 horas doutorado da UNEB Rua Pedro Lessa Canela
Salvador ( ao lado da DPE)
10/04 - 8h as 17h Família Vanessa Ribeiro Simon / 8 Doutora e professora Auditório da DPE – Rua
horas do Doutorado da Pedro Lessa Canela
Salvador UFBA- PPG-Neim
11/04 - 14h as 17h Curso: Gênero, Raça e Josimara Aparecida Delgado e Doutora e professora Auditório da CESAT –
Classe convidados (as) /4 horas/ do Doutorado da Rua Pedro Lessa Canela
Salvador UFBA- PPG-Neim ( ao lado da DPE)
17/0-4 8h as 17h Curso: Gênero, Raça e Josimara Aparecida Delgado e Doutora e professora Auditório da DPE – Rua
Classe convidados (as) /8 horas/ do Doutorado da Pedro Lessa Canela
Salvador UFBA- PPG-Neim
18-/04 14h as 17h Curso: Gênero, Raça e Josimara Aparecida Delgado e Doutora e professora Auditório da DPE – Rua
Classe convidados (as) /4 horas/ do Doutorado da Pedro Lessa Canela
Salvador UFBA- PPG-Neim
24-/04 14h as 17h Curso: Saúde Mental e Edna Amado e convidados (as) Doutora e professora Auditório da UNIJORGE
a Rua /4 horas da UCSAL Rua Miguel Calmon
Salvador Prédio IV - Comercio
25/04 - 8h as 17h Curso: Saúde Mental e Edna Amado e convidados (as) Doutora e professora Auditório da UNIJORGE
a Rua /8 horas da UCSAL Rua Miguel Calmon
Salvador Prédio IV- Comercio
02/0-5 14h as 17h Curso: Sujeito e a Rua Maria Sueli Sobral ( equipes de Líder do MNPSR Auditório da UNIJORGE
rua) e convidados (as) / 4 Rua Miguel Calmon
horas/ Prédio IV- Comércio
Salvador
08/05 -8h as 17h Curso: Curso: Sujeito e Maria Sueli Sobral ( equipes de Líder do MNPSR Auditório da UNIJORGE
a Rua rua) e convidados (as) /8 horas Rua Miguel Calmon
Salvador Prédio IV- Comércio
09/0-5 14h as 17h Curso: Sujeito e a Rua Maria Sueli Sobral ( equipes de Líder do MNPSR Auditório da UNIJORGE
rua) e convidados (as) / 4 horas Rua Miguel Calmon
Salvador Prédio IV- Comércio
03/07 14h AVALIAÇÃO Líderes do grupo - A definir
03/10 14h AVALIAÇÃO Líderes do grupo - A definir
07/11 14h AVALIAÇÃO Líderes do grupo - A definir

Fabiana Almeida Miranda


Defensora Pública do Estado da Bahia
Líder do Grupo de Pesquisa População em Situação de Rua e Direitos Humanos (Grupo Pop Rua)

Sandra M. C. de Carvalho
Mestra em Políticas Sociais e Cidadania
Líder do Grupo de Pesquisa População de Rua e Direitos Humanos (Grupo Pop Rua)

Rua Pedro Lessa, nº 123, Canela. Salvador / BA. CEP: 40.110-050. Tel.: (71) 3116-6012

Você também pode gostar