Você está na página 1de 49

DESENHO FONTE DE

INTERPRETAÇÃO
PARA O
DESENVOLVIMENTO
PESSOAL
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL

SUMÁRIO

1- ARTE-EDUCAÇÃO NO BRASIL: REALIDADE HOJE E EXPECTATIVAS FUTURAS 3


2- METODOLOGIA DO ENSINO DA ARTE 21
3- O DESENHO NA EXPRESSÃO DE SENTIMENTOS
EM CRIANÇAS HOSPITALIZA DAS 40
REFERÊNCIAS

2
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
1- ARTE-EDUCAÇÃO NO BRASIL: REALIDADE HOJE E EXPECTATIVAS
FUTURAS

Artes têm sido uma matéria obrigatória em escolas primárias e secundárias (1º e 2º
graus) no Brasil já há 17 anos. Isto não foi uma conquista de arte-educadores
brasileiros mas uma criação ideológica de educadores norte-americanos que, sob um
acordo oficial (Acordo MEC-USAID), reformulou a Educação Brasileira, estabelecendo
em 1971 os objetivos e o currículo configurado na Lei Federal nº 5692 denominada
"Diretrizes e Bases da Educação".

Essa lei estabeleceu uma educação tecnologicamente orientada que começou a


profissionalizar a criança na 7ª série, sendo a escola secundária completamente
profissionalizante. Esta foi uma maneira de profissionalizar mão-de-obra barata para as
companhias multinacionais que adquiriram grande poder econômico no País sob o
regime da ditadura militar de 1964 a 1983.

No currículo estabelecido em 1971, as artes eram aparentemente a única matéria que


poderia mostrar alguma abertura em relação às humanidades e ao trabalho criativo,
porque mesmo filosofia e história haviam sido eliminadas do currículo.

Naquele período não tínhamos cursos de arte-educação nas universidades, apenas


cursos para preparar professores de desenho, principalmente desenho geométrico.

Fora das universidades um movimento bastante ativo (Movimento Escolinhas de Arte)


tentava desenvolver, desde 1948, a auto-expressão da criança e do adolescente
através do ensino das artes. Em 1971 o "Movimento Escolinhas de Arte" estava
difundido por todo o país com 32 Escolinhas, a maioria delas particulares, oferecendo
cursos de artes para crianças e adolescentes e cursos de arte-educação para
professores e artistas.

A Lei Federal que tornou obrigatório artes nas escolas, entretanto, não pôde assimilar,
como professores de arte, os artistas que tinham sido preparados
pelas Escolinhas, porque para lecionar a partir da 5ª série exigia-se o grau universitário
que a maioria deles não tinha.

3
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
O Governo Federal decidiu criar um novo curso universitário para preparar professores
para a disciplina Educação Artística criada pela nova lei. Os cursos de arte-educação
nas universidades foram criados em 1973, compreendendo um currículo básico que
poderia ser aplicado em todo o país.

O currículo de Licenciatura em Educação Artística na universidade pretende preparar


um professor de arte em apenas dois anos, que seja capaz de lecionar música, teatro,
artes visuais, desenho, dança e desenho geométrico, tudo ao mesmo tempo, da 1ª à 8ª
séries e, em alguns casos, até o 2º grau.

É um absurdo epistemológico ter a intenção de transformar um jovem estudante (a


média de idade de um estudante ingressante na universidade no Brasil é de 18 anos)
com um curso de apenas dois anos, num professor de tantas disciplinas artísticas. Nós
temos 78 cursos de Licenciatura em Educação Artística nas faculdades e
universidades do Brasil outorgando diplomas a arte-educadores. A maioria deles são
cursos de dois anos de duração.

Somente no estado de São Paulo nós temos 39 cursos. Poucas universidades,


principalmente públicas, como a Universidade de São Paulo, recusam-se a oferecer o
curso de dois anos e optam por um curso de quatro anos, possível através de
regulamentação do Ministério da Educação seguindo, entretanto, um currículo mínimo
estabelecido que não é adequado para preparar professores capazes de definirem
seus objetivos e estabelecerem suas metodologias.

De março a julho de 1983, eu tive a oportunidade de entrevistar 2.500 professores de


artes de escolas de São Paulo (BARBOSA, 1983).

Todos eles mencionaram o desenvolvimento da criatividade como o primeiro objetivo


de seu ensino. Para aqueles que enfatizaram as artes visuais, o conceito de
criatividade era espontaneidade, autoliberação e originalidade, e eles praticavam o
desenho no seu ensino; para aqueles que lecionavam principalmente canto-coral,
criatividade era definida como autoliberação e organização.

A identificação da criatividade como espontaneidade não é surpreendente porque é


uma compreensão de senso comum da criatividade. Os professores de arte não têm
tido a oportunidade de estudar as teorias da criatividade ou disciplinas similares nas
universidades porque estas não são disciplinas determinadas pelo currículo mínimo.
4
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
Nas universidades que estendem o currículo além do mínimo, tendo examinado 11
currículos, não encontrei nenhuma disciplina ligada ao estudo da criatividade, exceto
na Universidade de São Paulo onde um curso intitulado Teoria da Criatividade foi
lecionado de 1977 a 1979 para alunos de artes, nas áreas de cinema, música, artes
plásticas e teatro.

A mais corrente identificação da criatividade com autoliberação pode ser explicada


como uma resposta que os professores de arte foram levados a dar para a situação
social e política do País. Em 1983 nós estávamos sendo libertados de 19 anos de
ditadura militar que reprimira a expressão individual através de uma severa censura.
Não é totalmente incomum que após regimes políticos repressores a ansiedade da
autoliberação domine as artes, a arte-educação e os conceitos ligados a eles.

A identificação da criatividade como espontaneidade não é surpreendente


porque é uma compreensão de senso comum da criatividade. Os professores de
arte não têm tido a oportunidade de estudar as teorias da criatividade ou
disciplinas similares nas universidades porque estas não são disciplinas
determinadas pelo currículo mínimo.

Outra pesquisa de Heloísa Ferraz e Idméa Siqueira (1987, p.26-7) que começou em
1983 (continuou em 84 e 85), analisando questionários respondidos por 150
professores de arte sobre as fontes de seu ensino, encontrou que os livros didáticos
são a fonte de ensino para 82,8% deles.

Isso parece uma contradição, porque os livros didáticos para a arte-educação são
modernizações na aparência gráfica de livros didáticos usados no ensino de desenho
geométrico nos anos 40 e 50, sem nenhuma preocupação com o desenvolvimento da
autoliberação — objetivo que os professores de arte da primeira pesquisa deram como
a prioridade de seu curso.

A falta de correspondência entre os objetivos e a prática real na sala de aula é provada


pelas duas pesquisas juntas. Objetivos são simplesmente palavras escritas nos
programas ou estatutos que não têm sido postos em prática.

Nas artes visuais ainda domina na sala de aula o ensino de desenho geométrico,
o laissez-faire, temas banais, as folhas para colorir, a variação de técnicas e o desenho
de observação, os mesmos métodos, procedimentos e princípios ideológicos
5
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
encontrados numa pesquisa feita em programas de ensino de artes de 1971 e 1973
(BARBOSA, 1975, p.86-7). Evoluções não têm lugar em salas de aula nas escolas
públicas.

O sistema educacional não exige notas em artes porque arte-educação é concebida


como uma atividade, mas não como uma disciplina de acordo com interpretações da lei
educacional 5692. Algumas escolas exigem notas a fim de colocar artes num mesmo
nível de importância com outras disciplinas; nestes casos, o professor deixa as
crianças se auto-avaliarem ou as avalia a partir do interesse, do bom comportamento e
da dedicação ao trabalho.

Apreciação artística e história da arte não têm lugar na escola. As únicas imagens na
sala de aula são as imagens ruins dos livros didáticos, as imagens das folhas de
colorir, e no melhor dos casos, as imagens produzidas pelas próprias crianças. Mesmo
os livros didáticos são raramente oferecidos às crianças porque elas não têm dinheiro
para comprar livros. O professor tem sua cópia e segue os exercícios propostos pelo
livro didático com as crianças. Este é o caso de 74,5% dos professores entrevistados
por Heloísa Ferraz e Idméa Siqueira (1987, p.27). Visitas a exposições são raras e em
geral pobremente preparadas. A viagem de ônibus é mais significativa para as crianças
do que a apreciação das obras de arte. A fonte mais freqüente de imagens para as
crianças é a TV, os fracos padrões dos desenhos para colorir e cartazes pela
cidade (outdoors). As crianças de escolas públicas, na sua grande maioria, não têm

6
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
revistas em casa, sendo o acesso à TV mais freqüente e mesmo que não se tenha o
aparelho em casa, há a possibilidade do acesso a algum tipo de TV comunitária.

Mesmo nas escolas particulares mais caras a imagem não é usada nas aulas de arte.
Eles lecionam arte sem oferecer a possibilidade de ver. É como ensinar a ler sem livros
na sala de aula. Em São Paulo há somente duas escolas que usam regularmente
imagens nas aulas de arte. A primeira, uma escola1 para a elite, usa a imagem em um
convencional curso de história da arte para alunos do 2º grau. A segunda é uma escola
particular2 , preferida pelos intelectuais para suas crianças, que incorpora a gramática
visual, a história e a prática.

Eu não quero parecer apocalíptica em afirmar que 17 anos de ensino obrigatório da


arte não desenvolveu a qualidade estética da arte-educação nas escolas. O problema
de baixa qualidade afeta não somente a arte-educação mas todas as outras áreas de
ensino no Brasil. A atual situação da educação geral no Brasil é dramática.

Mais de 50% das crianças abandonam a escola no primeiro ano (sete anos de idade,
antes da alfabetização ser completada). A profissionalização no 2º grau tornou-se um
fracasso. As companhias não empregam os estudantes quando eles terminam os
cursos porque sua preparação para o trabalho é insuficiente.

Os anos 80 têm sido identificados como a década da crítica da educação imposta pela
ditadura militar e da pesquisa por soluções, mas estas não têm sido ainda
implementadas no País porque a primeira preocupação depois da restauração da
democracia em 1983 foi uma campanha por uma Nova Constituição que libertaria o
País do regime autoritário.

A Constituição da Nova República de 1988 menciona cinco vezes as artes no que se


refere a proteção de obras, liberdade de expressão e identidade nacional. Na Seção
sobre educação, artigo 206, parágrafo II, a Constituição determina:

"O ensino tomará lugar sobre os seguintes princípios (...). II — liberdade para aprender,
ensinar, pesquisar e disseminar pensamento, arte e conhecimento."

Esta é uma conquista dos arte-educadores que pressionaram e persuadiram alguns


deputados que tinham a responsabilidade de delinear as linhas mestras da nova
Constituição. Os arte-educadores no Brasil são politicamente bastante ativos. A
7
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
politização dos arte-educadores começou em 1980 na Semana de Arte e Ensino (15-19
de setembro) na Universidade de São Paulo, a qual reuniu 2.700 arte-educadores de
todo o País. Este foi um encontro que enfatizou aspectos políticos através de debates
estruturados em pequenos grupos ao redor de problemas preestablecidos como a
imobilização e isolamento do ensino da arte; política educacional para as artes e arte-
educação; ação cultural do arte-educador na realidade brasileira; educação de arte-
educadores, etc.

Apreciação artística e história da arte não têm lugar na escola. As únicas


imagens na sala de aula são as imagens ruins dos livros didáticos, as imagens
das folhas de colorir e, no melhor dos casos, as imagens produzidas pelas
próprias crianças.

Das discussões surgiu a necessidade do trabalho criativo a fim de abrir o diálogo com
os políticos locais e regionalizar os procedimentos com respeito à diversidade cultural
do País. Até aquele momento nós tínhamos apenas uma associação de arte-educação,
a SOBREART, de âmbito nacional, filiada ao INSEA, mas operando principalmente no
Rio de Janeiro e estava dominada desde sua criação, em 1970, por uma pessoa ligada
ao regime da ditadura militar.

Em março de 1982 a AESP (Associação de Arte-Educadores de São Paulo) foi criada


como a primeira associação estadual e foi seguida pela ANARTE (Associação de Arte-
Educadores do Nordeste) compreendendo oito estados do Nordeste, AGA (Associação
de Arte-Educadores do Rio Grande do Sul), APAEP (Associação de Profissionais em
Arte-Educação do Paraná), e outras. Já temos 14 associações estaduais que, juntas,
em agosto de 1988, criaram a Federação Nacional sediada pelos próximos dois anos
em Brasília, DF. A presidência mudará de um estado para outro. A SOBREART, sob
nova presidência, também pertence à Federação Nacional. Estas associações são
fortes batalhadoras por melhores condições de ensino de arte, negociando com as
Secretarias da Educação e Cultura, o Ministério da Cultura, legisladores e líderes
políticos.

A primeira preocupação das associações tem sido a politização dos arte-educadores


preparando-os para repelir a manipulação governamental sobre os arte-educadores,
como aconteceu no incidente de 1979 em São Paulo, quando o Governador — indicado
pelo governo militar e não eleito — determinou que, durante todo o segundo semestre,
8
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
os professores de arte deveriam preparar seus alunos para cantar algumas canções, a
fim de participar de um coral de 30.000 vozes na Festa de Natal do Governo. Para
aqueles professores que treinassem seus alunos, ele iria aumentar seus salários cinco
pontos na escala (um título de mestrado valia 10 pontos!). Naquele momento nós não
tínhamos maneiras de lutar contra este abuso da arte-educação mas a situação agora
é diferente, depois da criação das Associações Estaduais de Arte-Educação.

As associações têm sido bastante vitoriosas na preparação política dos professores de


arte mas poucas delas teriam tempo de desenvolver programas de pesquisa (exceto a
AESP, São Paulo) e de aperfeiçoamento conceituai para arte-educadores.

Como resultado, nós chegamos a 1989 tendo arte-educadores com uma atuação
bastante ativa e consciente, mas com uma formação fraca e superficial no que diz
respeito ao conhecimento de arte-educação e de arte. Algumas universidades federais
e estaduais, preocupadas com a fraca preparação de professores de arte, começaram
a partir de 1983 progressivamente a organizar cursos de especialização para
professores universitários de arte. Os cursos são curtos e intensivos (algumas vezes
com aulas de 10 horas diárias) e são em geral conduzidos por professores e artistas de
outros estados.

A idéia da auto-expressão e do preconceito contra a imagem do ensino de arte para


crianças é dominante nestes cursos. A primeira tentativa de analisar imagens em
cursos de arte-educadores teve lugar durante a Semana de Arte e Ensino na
Universidade de São Paulo, 1980, através de workshops utilizando a imagem de TV, e
a maioria dos participantes considerou aquilo uma heresia.

A experiência prova que, com poucas exceções como os cursos de especialização na


Universidade da Paraíba, 1984, em Curitiba, 1986, e na UDESC em Florianópolis,
1987, em geral os cursos rápidos de especialização não são suficientes para fornecer
aos professores universitários o conhecimento básico que eles precisam para preparar
professores de arte para escolas secundárias. Em geral, aqueles cursos funcionam
como uma fonte para um diploma que conta por melhores salários ou para melhorar o
status dos professores universitários.

9
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
O sistema educacional não exige notas em artes porque arte-educação é
concebida como uma atividade, mas não como uma disciplina de acordo com
interpretações da lei educacional 5692.

A Universidade de São Paulo organiza, desde 1983, um curso de Especialização em


Arte-Educação, de um ano de duração, compreendendo quatro cursos de pós-
graduação dentre os oferecidos também para os programas de mestrado e doutorado
em Artes, e um curso de um ano em Fundamentos em Arte-Educação. O curso recebe
estudantes de todo o País e os egressos deste curso começam a conseguir boas
posições em universidades federais em outros estados.

No Brasil ainda não temos programas de mestrado e doutorado em Arte-Educação. Na


Universidade de São Paulo nós temos o único programa de mestrado e doutorado em
Artes do País. Este programa é constituído por oito linhas de pesquisas. A partir de
1982, Arte-Educação foi aceita como uma destas linhas de pesquisa, e arte-
educadores dos Estados Unidos e Inglaterra têm sido convidados para ministrar cursos
de pós-graduação na linha de pesquisa de Arte-Educação. A única oportunidade para
um professor de arte no Brasil obter um diploma de mestrado ou doutorado em Arte-
Educação é conseguir uma vaga no Programa de Artes da Universidade de São Paulo
que tem somente 13 vagas para Arte-Educação. Como resultado, nós temos no Brasil
apenas uma pessoa com grau de doutorado em Arte-Educação em Artes Visuais (Ed.
D. Boston University), duas em Teatro/Educação (PhD França e PhD na Universidade
de São Paulo) e uma em Educação Musical (PhD Canadá).

10
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL

Os cursos de atualização ou treinamento, financiados pelo governo para professores


de arte de escolas públicas primárias e secundárias, começaram a acontecer após a
ditadura militar. O programa pioneiro foi o Festival de Campos de Jordão3 em São
Paulo, em 1983, o primeiro a conectar análise da obra de arte, da imagem com história
da arte e com trabalho prático. Tivemos 400 professores de arte convivendo juntos por
15 dias numa cidade de férias de inverno, Campos de Jordão. Eles podiam fazer uma
escolha por 4 entre 25 cursos práticos e 7 teóricos.

Os cursos de apreciação artística foram baseados na decodificação do meio ambiente


estético da cidade (da música de compositores populares locais, num projeto de lazer
na cidade, pintores e escultores locais, grupos de dança, etc.). Os cursos de leituras de
imagens móveis estavam ligados com a decifração da imagem televisiva e a leitura de
imagens fixas, principalmente com as pinturas e esculturas da coleção do palácio de
inverno do governador, a segunda melhor coleção de arte moderna brasileira, fechada
para o público até aquele momento. A leitura da imagem impressa aconteceu como
curso de arte-xerox.

Tivemos críticos residentes tentando ajudar os professores-alunos a analisar seu


próprio trabalho artístico e localizá-lo no contexto histórico e social, bem como ler os
trabalhos artísticos profissionais apresentados à noite e que foram escolhidos entre os
melhores eventos do ano em teatro, concerto, dança, música popular, cinema, shows
de multimídia e exposição de pintura. Seis meses mais tarde, 40% dos professores-
11
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
alunos que participaram do programa apresentaram, num amplo encontro, os
resultados da renovação de seu ensino com seus alunos e seu esforço de difundir a
informação e o processo educacional experimentado por eles entre outros colegas em
cursos informais.

A Secretaria de Educação de São Paulo continuou o programa de preparação de seus


professores de arte através de cursos de inverno e verão oferecidos pela Universidade
de São Paulo que tem, até agora, enfatizado a idéia de ensinar imagem através da
imagem.

Os cursos da Universidade de São Paulo são baseados num conceito de arte-


educação como epistemologia da arte e/ou arte-educação como um intermediário entre
arte e público. A idéia é que arte-educação esclarecida pode preparar os seres
humanos, que são capazes de desenvolver sensibilidade e criatividade através da
compreensão da arte durante suas vidas inteiras. Outra idéia sustentada pelos
mesmos cursos é que todas as atividades profissionais envolvidas com a imagem (TV,
publicidade, propaganda, confecção, etc.) e com o meio ambiente produzido pelo
homem (arquitetura, moda, mobiliário, etc.) são melhores desenvolvidas por pessoas
que têm algum conhecimento de arte.

Estas duas idéias juntas lideram a organização dos cursos de arte na USP para
professores de escolas primária e secundária da Secretaria de Educação de São Paulo
para incluir não somente pintura, escultura, desenho, mas também design, TV e vídeo.

Vários outros cursos de atualização foram organizados em outros estados. Merece ser
mencionado o programa de preparação de professores para os CIEPs, 100 instituições
criadas pelo governo do Rio de Janeiro, no período de 1983 a 1986, para recuperar a
educação usando principalmente arte. A concepção de arte era expressionista,
enfatizando auto-expressão combinada com a valorização da experiência estética
assistemática da criança. O governo mudou e o projeto dos CIEPs parou. Mesmo os
prédios estão sendo invadidos pela população para outros propósitos.

Outro programa para recuperação da educação que dá grande importância à arte é o


programa para alfabetização (lª e 2ª séries) do GEMPA no Rio Grande do Sul, um
grupo não-governamental financiado através de projetos pela UNESCO, Fundação
Ford, etc. Baseado na linha pedagógica de Emilia Ferrero (México), eles utilizam a arte
12
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
para formação de conceitos, catarse e desenvolvimento da habilidade motora. A
preparação de professores de arte para o 1º grau é a prioridade deste bem-sucedido
programa que está influenciando todo o País. Outro programa interessante que poderia
ser mencionado são os projetos de arte-educação financiados por Fazendo Artes da
FUNARTE, uma Fundação Nacional pelas Artes do Ministério da Cultura.

Os cursos da Universidade de São Paulo são baseados num conceito de arte-


educação como epistemologia da arte e/ou arte-educação como um intermediário
entre arte e público.

Estes projetos enfatizavam arte comunitária para crianças, adolescentes e professores


de arte. Um dos melhores projetos aconteceu em Canelinha, Rio Grande do Sul, que
sistematicamente explorou imagens de obras de arte do catálogo da Bienal de Arte de
São Paulo. A Bienal de São Paulo criou, em 1987, com recursos da Fundação VITAE,
um programa de preparação de professores de arte em apreciação artística,
culminando em ateliers para os alunos destes professores na XIX Bienal. Um
acompanhamento do trabalho em sala de aula dos que participaram do projeto permite
continuidade do processo. Uma porcentagem pequena de professores de escolas
secundárias concorda com a necessidade de ensinar arte através da arte, imagem
através da imagem. O artigo de Vivent Lanier, "Returning Art to Art Education",
traduzido para o português e publicado na revista Ar'te (LANIER, 1984), teve grande
impacto nos professores de arte universitários melhor preparados juntamente com o
livro The socialization of Art, de Canclini (1980).

Contudo, eles ainda não sabem o que fazer ou quais são os limites da invasão da auto-
expressão dos alunos. A maioria deles, que por um longo período praticaram desenho
de observação de objetos e da natureza com seus alunos, estão chocados com a
introdução da imagem nas suas salas de aula e com crianças observando trabalhos de
arte de adultos. O preconceito contra a imagem é estendido e mais forte na escola
primária.

Após 83, apesar de alguns esforços feitos pelo governo do estado para desenvolver o
conhecimento de arte-educação, mais de 50% dos professores primários (lª a 4ª séries)
estudaram apenas até a 4ª série. Eles não têm nenhum preparo mas lecionam todas as
matérias incluindo arte. Uma das razões são os baixos salários. Uma mulher, e são
sempre mulheres os professores primários, que terminou a escola secundária faz mais
13
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
dinheiro trabalhando como secretária do que como professor primário. Como resultado,
nós temos professores dando aulas de arte que nunca leram nenhum livro sobre arte-
educação e pensam que arte na escola é dar folhas para colorir com corações para o
Dia das Mães, soldados no Dia da Independência, e assim por diante.

Aqueles professores nunca ouviram falar sobre auto-expressão ou educação estética.


Por outro lado, os professores instruídos são intoxicados pelo ex-pressionismo. Num
ensaio apresentado no Congresso de Arte-Educação dos Estados do Sul em
Florianópolis, em novembro de 1988, Susana Vieira da Cunha apontou que, de acordo
com sua pesquisa no Rio Grande do Sul, para os professores de arte instruídos, arte
significa: intuição ou emoção e, como resultado, eles pensam que "arte-educadores
não precisam pensar" e "arte é só fazer", excluindo a possibilidade de observação e
compreensão da arte.

Em 1987 comecei um programa de arte-educação no Museu de Arte Contemporânea


(MAC), combinando trabalho prático com história da arte e leitura de obras de arte. A
metodologia utilizada para a leitura de uma obra de arte varia; de acordo com o
conhecimento anterior do professor esta pode ser estética, semiológica, iconológica,
princípios da Gestalt, etc.

Temos sido muito cuidadosos para não transformar a leitura de uma obra de arte num
simples questionário. Esta simplificação está acontecendo com a metodologia da Getty
Foundation apesar da estrutura teórica e complexa construída por Harry Broudy,
porque os professores de arte estão reduzindo a análise ou apreciação artística num
jogo de questões e respostas — um mero exercício escolar que leva a leitura a um nível
medíocre e simplifica a condensação de significados de uma obra de arte, limitando a
imaginação do leitor.

Nossa idéia de leitura da imagem é construir uma metalinguagem da imagem. Isto não
é falar sobre uma pintura mas falar a pintura num outro discurso, às vezes silencioso,
algumas vezes gráfico, e verbal somente na sua visibilidade primária. Para
compreender as relações de significado dentro das imagens nós temos sido ajudados
por sistematizações de Louis Marin (1978), Jean-Louis Schefer (1969), Oscar Morina y
Maria Elena Jubrias (1982), Edmundo Burke Feldman, Harry Broudy, J. Bronowski,
Rudolf Arnheim, etc.

14
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
Nossa concepção de historia da arte não é linear mas pretende contextualizar a obra
de arte no tempo e explorar suas circunstancias. Em lugar de estar preocupado em
mostrar a então chamada evolução das formas artísticas através dos tempos,
pretendemos mostrar que a arte não está isolada de nosso cotidiano, de nossa história
pessoal.

Apesar de ser um produto da fantasia e da imaginação, a arte não está separada da


economia, política e dos padrões sociais que operam na sociedade. Idéias, emoções,
linguagens diferem de tempos em tempos e de lugar para lugar e não existe visão
desinfluenciada e isolada. Construímos a História a partir de cada obra de arte
examinada pelas crianças, estabelecendo conexões e relações entre outras obras de
arte e outras manifestações culturais.

O financiamento de um atelier por algumas corporações tornou possível oferecer às


crianças os melhores materiais artísticos à disposição no Brasil, incluindo uma máquina
Xerox. Estas condições especiais, aliadas a uma coleção de 5.000 obras de arte com
obras significativas da arte moderna francesa, italiana4 e latino-americana, estimulam
os arte-educadores no MAC. Porém, alguns arte-educadores visitando o Museu
ficaram chocados com as reinterpretações de obras de artistas pelas crianças,
acusando-nos de impor restrições ao processo criativo.

Decidi fazer uma pesquisa para investigar a reação de professores de arte para com a
introdução de imagens no ensino da arte e a produção infantil sob a influência destas
imagens. Organizei uma palestra mostrando como os artistas vêm tomando de
empréstimo imagens de outros artistas, quer seja suprimindo referências à sua origem
ou com citações abertas, como no caso dos artistas Pop. Minha palestra começa com
a análise da "Vênus de Giorgione" (Dresden Art Gallery) tomada primeiramente por
Ticiano para sua "Resting Venus" (Florença, Uffize) e mais tarde por Manet para sua
"Olympia" (Paris, Louvre) que, finalmente, foi reinterpretada por Mel Ramos em
"Manet's Olympia" (Chicago, Coleção de Sr. e Srª Norton G. Newmann) e Larry Rivers
em "I like Olympia in Black Face" (Paris, M.N.A.M. Centro Nacional das Artes e da
Cultura Georges Pompidou). Os outros exemplos de arte sobre arte foram tomados
principalmente a partir do livro de Jean Lipman e Richard Marshall (1978).

Minha idéia era convencer os arte-educadores do seguinte:

15
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
1º) Que se o artista utiliza imagens de outros artistas, por que sonegar imagens às
crianças;

2º) Que se nós preparamos as crianças para lerem imagens produzidas por artistas,
estamos preparando-as para ler as imagens que as cercam em seu meio ambiente;

3º) Que a percepção pura da criança sem influência de imagens não existe realmente,
uma vez que está provado que 80% de nosso conhecimento informal vem através de
imagens;

4º) Que no aprendizado artístico, a mímese está presente no sentido grego


procura pela similaridade e não como cópia.

A segunda parte da palestra estava planejada para mostrar algumas interpretações


gráficas de obras de arte por crianças. Fui cuidadosa ao escolher, pelo menos, dez
exemplos de interpretações de uma mesma obra tentando convencer que a auto-
expressão não foi reprimida dada a diversidade de interpretações.

No caso da obra de Max Bill, uma criança transformou a escultura abstrata do artista
num pássaro, uma outra representou o movimento da obra, mas não sua
materialidade, outra representou apenas a base da escultura, etc. Outras crianças do
mesmo grupo escolheram outras obras e outras duas recusaram qualquer obra de arte,
desenhando seus habituais barcos e pôr-do-sol. De junho a outubro de 1988, escolhi
seis ocasiões para falar para grandes audiências de arte-educadores através do País.
Para três grupos dei apenas a primeira parte da palestra, aquela planejada para
convencer sobre a necessidade de introduzir a obra de arte em aulas de arte, da
necessidade de iniciar as crianças na leitura de imagens e necessidade de dar
informação histórica, mas não mostrei nenhuma interpretação de obra de arte por
crianças incluída na segunda parte da palestra.

Os grupos que tiveram apenas a primeira parte da palestra foram estes:

a) Curitiba, estado do Paraná. Para professores de arte universitários e estudantes de


cursos de Educação Artística nas universidades;

b) Florianópolis, estado de Santa Catarina. Para professores de arte universitários e


estudantes de cursos de Educação Artística nas universidades;

16
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
c) Brasília, Distrito Federal. Para professores de arte universitários, estudantes de
cursos de Educação Artística nas universidades e na maioria professores de escolas
secundárias (mais de 50%).

Nossa idéia de leitura da imagem é construir uma metalinguagem da imagem.


Isto não é falar sobre uma pintura mas falar a pintura num outro discurso, às
vezes silencioso, algumas vezes gráfico, e verbal somente na sua visibilidade
primária.

A palestra despertou grande interesse na audiência, as pessoas faziam perguntas mas


ninguém discordou de minhas afirmações. Desenvolvi ambas as partes da palestra
(mostrando os trabalhos feitos por crianças interpretando obras de arte) durante três
outros encontros:

a) Em Recife, estado de Pernambuco. Para professores de arte universitários,


estudantes de cursos de Educação Artística nas universidades e principalmente
professores de arte de escolas secundárias (mais de 50%);

b) Em Florianópolis, estado de Santa Catarina. Para professores de arte universitários,


estudantes de cursos de Educação Artística nas universidades, e principalmente
professores de arte de escolas secundárias (mais de 50%);

c) Em Uberlândia, estado de Minas Gerais. Para professores de arte universitários,


estudantes de cursos de Educação Artística na universidade e 8% de professores de
arte de escolas secundárias.

Somente o grupo de Uberlândia aceitou os argumentos. Os outros dois grupos tiveram


reações agressivas. Em lugar de perguntas eles me enviaram acusações escritas de
ser conservadora, alienada, escrava do capitalismo internacional, de rechaçar a arte-
educação, etc.

Em Florianópolis, um grupo de professores universitários havia aceitado previamente


os argumentos em favor das imagens nas aulas de arte; num segundo momento, este
mesmo argumento, utilizando as mesmas imagens ligadas com trabalhos das crianças
baseados nas imagens artísticas, foi fortemente rejeitado quando apresentado ao
mesmo grupo acrescido de professores secundários.

17
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
Frente a esse grupo, um orador convidado, que foi aplaudido quase histericamente
pelo público, manifestou-se contra a avaliação e mesmo contra o comentário do
trabalho de arte dos estudantes em sala de aula, e definiu a arte como "uma sonora
gargalhada para oxigenar a vida quando a velhice chega". A aclamação do laissez-
faire da arte-educação e emotividade da arte por alguns observadores da situação está
ligada com a ideologia do Movimento Escolinhas de Arte; mas apesar do fato de que o
Congresso de Florianópolis foi organizado pela Escolinha de Arte de Florianópolis,
penso que a reação contra a sistematização é mais ampla e não somente um eco da
ideologia das Escolinhas (BARBOSA, 1983).

O Movimento Escolinhas de Arte perdeu poder contra o poder das universidades nos
anos 70, e a célula mater do Movimento, a Escolinha de Arte do Brasil no Rio de
Janeiro perdeu credibilidade depois de uma mudança de política interna nos anos 80,
que afastou por idiossincrasias pessoais os melhores mestres daquela entidade.

Talvez a semente da crença na espontaneidade venha de uma interpretação


simplificada da prática das Escolinhas nos anos 60, mas isto tem sido exacerbado
como uma forma de autoproteção pelos professores de arte deficientemente
preparados pelas universidades.

Os professores de arte conseguem os seus diplomas mas eles são incapazes de


prover uma educação artística e estética que forneça informação histórica,
compreensão de uma gramática visual e compreensão do fazer artístico como auto-
18
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
expressão. Muito aprendizado seria necessário além do que a universidade vem dando
até agora. Os professores reagem contra o que não estão preparados para ensinar.
Além disso, é interessante notar que no estado de Santa Catarina (Florianópolis), na
época do Congresso não havia a Associação Estadual de Arte-Educação, que só foi
criada durante o Congresso. A Associação trará um tipo de força política que forneça
mais segurança para ousar conceitualmente.

Os arte-educadores no Brasil (apenas em São Paulo nós tem os 18.000) estão sendo
confrontados com um novo problema que precisa tanto de força política como
conceitual. Uma nova lei federal para substituir a Lei Federal de 1971 está sendo
estudada. Já existe um projeto escrito que exclui as artes do currículo das escolas
primárias e secundárias. Neste momento de democratização existe algum preconceito
contra as artes nas escolas, não somente porque seu ensino é fraco, mas porque foi
uma exigência de uma lei federal imposta pela ditadura militar.

Esta é a causa obscura da exclusão das artes das escolas na nova organização da
educação brasileira. A razão explícita dada pelos educadores é que a educação no
Brasil tem de ser direcionada no sentido da recuperação de conteúdos e que arte não
tem conteúdo. É algo similar ao movimento de volta ao básico nos EUA. Um simpósio
foi planejado (agosto, 1989) para demonstrar os conteúdos da arte na educação.
Apesar de termos a maioria dos arte-educadores das escolas secundárias defendendo
o laissez-faire e alguns outros que ainda não aceitam auto-expressão, o caminho para
sobreviver é tornar claro os possíveis conteúdos da arte na escola.

Poderia dizer que o futuro da Arte-Educação no Brasil está ligado a três propostas
complementares: uma primeira proposta seria o reconhecimento da importância do
estudo da imagem no ensino da arte em particular e na educação em geral. A
necessidade da capacidade de leitura de imagens poderia ser reforçada através de
diferentes teorias da imagem e também da relação entre imagem e cognição. O Museu
de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo e a experiência em arte-
educação na XIX Bienal de São Paulo são exemplos correntes desta tendência.

Outra proposta que estará presente na arte-educação no Brasil do futuro é a idéia de


reforçar a herança artística e estética dos alunos, levando em consideração seu meio
ambiente. A experiência dos CIEPs no Rio de Janeiro não poderia ser avaliada porque
razões políticas a suspenderam nos seus inícios, mas esta é uma tendência bastante
19
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
difundida no Brasil. Se não for bem conduzida pode criar guetos culturais e manter os
grupos amarrados aos códigos de sua própria cultura sem permitir a decodificação de
outras culturas. Há perigos de se enfatizar a falta de comunicação entre a cultura de
classe alta e a popular tornando impossível a compreensão mútua. Para o grupo
popular isto é ainda mais perigoso porque eles não terão acesso ao código erudito que
é o código dominante na nossa sociedade.

Os professores de arte conseguem os seus diplomas mas eles são incapazes de


prover uma educação artística e estética que forneça informação histórica,
compreensão de uma gramática visual e compreensão do fazer artístico como
auto-expressão.

Teremos no futuro a forte influência dos movimentos de arte comunitária na arte-


educação formal. Aqueles movimentos superam o perigo de negar a informação de
nível mais elevado para a classe popular. Arte comunitária no Brasil é caracterizada
pelo intercâmbio de classes sociais nos Festivais de Rua, comemorações regionais e
nacionais, festas religiosas, etc. Instituições como a FUNARTE estão desenvolvendo
programas comunitários de arte (Projeto Fazendo Arte) numa escala de projeção
nacional e a cada ano as Secretarias Estaduais da Cultura estão mais engajadas neste
tipo de programas porque eles trazem votos nas eleições. Embasamento teórico e
exame das práticas são necessários para o avanço da arte comunitária, evitando á
manipulação, que pode transformá-la em simples auxiliar de campanha política.

Além destas três linhas gerais que antevejo no futuro da arte-educação no Brasil,
haverá uma outra linha centrada na orientação da arte-educação em direção à
iniciação ao design especialmente para escolas de 2º grau. A consciência de que o
artefato trará mais qualidade à vida se não tiver somente propriedades funcionais, mas,
ao mesmo tempo, apelar para a imaginação, está começando a vir à tona. Esta idéia
desponta, junto com a certeza de que o produtor do artefato será mais eficiente se tiver
algum conhecimento de arte, e alguns dos programas na Universidade de São Paulo,
organizados para professores de arte de escolas publicas de 2º grau com a ajuda do
Centro para Design da FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), já
enfatizaram esta tendência.

Estas tendências garantirão para a Arte-Educação o papel de transmissor de valores


estéticos e culturais no contexto de um país do Terceiro Mundo.
20
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
2- METODOLOGIA DO ENSINO DA ARTE

As práticas educativas surgem de mobilizações sociais, pedagógicas, filosóficas, e, no


caso de arte, também artísticas e estéticas. Quando caracterizadas em seus
diferentes momentos históricos, ajudam a compreender melhor a questão do
processo educacional e sua relação com a própria vida.

No Brasil, por exemplo, foram importantes os movimentos culturais na correlação


entre arte e educação desde o século XIX. Eventos culturais e artísticos, como a
criação da Escola de Belas Artes no Rio de Janeiro e a presença da Missão Francesa
e de artistas europeus de renome, definiram nesse século a formação de profissionais
de arte ao nível institucional. No século XX, a Semana de 22, a criação de
universidades (anos 30), o surgimento das Bienais de São Paulo a partir de 1951, os
movimentos universitários ligados à cultura popular (anos 50/60), da contracultura
(anos 70), a constituição da pós-graduação em ensino de arte e a mobilização
profissional (anos 80), entre outros, vêm acompanhando o ensino artístico desde sua
introdução até sua expansão por meio da educação formal e de outras experiências
(em museus, centros culturais, escolas de arte, conservatórios, etc.).

Isto nos faz ver que as correlações dos movimentos culturais com a arte e com a
educação em arte não acontecem no vazio, nem desenraizadas das práticas sociais
vividas pela sociedade como um todo. As mudanças que ocorrem são caracterizadas
pela dinâmica social que interfere, modificando ou conservando as práticas vigentes.

Dentre as mais relevantes interferências sociais e culturais que marcam o ensino e


aprendizagem artísticos brasileiros podemos destacar:

Os comprometimentos do ensino artístico (desenho) visando a uma preparação para


o trabalho (operários), originado no século XIX durante o Brasil Imperial e presente no
século XX;
Os princípios do liberalismo (ênfase na liberdade e aptidões individuais) e o
positivismo (valorização do racionalismo e exatidão científica), por um lado, e da

21
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
experimentação psicológica, por outro, influenciando na educação em arte, ao longo
do século XX;

O caos, os conflitos, os tecnicismos e a dependência cultural delineados no ensino de


arte após a implantação da Educação Artística nas escolas brasileiras na década de
70 (Lei de Diretrizes e Bases 5692/71)

A retomada de movimentos de organização de educadores (principalmente as


associações de arte-educadores), desde o início dos anos 80;
A discussão e a luta para inclusão da obrigatoriedade de Arte na escola e redação da
Nova Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional, após a Constituição Brasileira
de 1988;
A retomada das investigações e experiências pedagógicas no campo da arte;
sistematizações de cursos ao nível de pós-graduação;

As novas concepções estéticas da arte contemporânea modificando os horizontes


artísticos e consequentemente a docência em arte;

Os debates sobre conceitos e metodologias do ensino de arte realizados em caráter


nacional e internacional, a partir dos anos 80.

A preocupação com a educação em arte tem mobilizado pesquisadores, professores,


estetas e artistas, os quais vêm procurando fundamentar e intervir nessas práticas
educativas. No Brasil, desde o final dos anos 80 têm-se divulgado inúmeros trabalhos
desta ordem, tanto aqueles elaborados aqui quanto os de outros países. São
propostas que refletem atuações em arte e são baseadas:

Nas necessidades psicológicas dos alunos ou em suas necessidades e problemas


ambientais, comunitários e sociais;

No ensino e aprendizagem pensado a partir da própria da própria arte, como um


sistema de conhecimento do mundo; no conhecimento da arte advindo de fazer
artístico e também da apreciação e história da arte;

Nas articulações dos atos perceptivos e verbalizadores dos alunos como base da
experiência estética;

Nos alcances e limites da interdisciplinaridade e entre os diversos métodos de ensinar


22
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
a aprender os conhecimentos em arte;

Nas necessidades de mudanças da formação do educador em arte, visando à


melhoria da qualidade de escolarização desde a infância.

A História que estamos considerando, portanto, é aquela que está sendo


desenvolvida por professores e alunos em suas práticas e teorias pedagógicas. E,
observando a história do ensino artístico, percebemos o quanto nossas ações
também estão demarcadas pelas concepções de cada época. Para este estudo
apresentaremos uma síntese das tendências pedagógicas mais influentes no ensino
de arte e sua relação com a vida dos brasileiros.

Tendências Pedagógicas Na Educação Em Arte

Com a criação da Academia Imperial de Belas artes no Rio de Janeiro, em 1816,


tivemos entre nós a instalação oficial do ensino artístico, seguindo os modelos
similares europeus; nessa época, a maior parte das academias de arte da Europa
procurava atender à demanda de preparação e habilidades técnicas e gráficas,
consideradas fundamentais à expansão industrial. Aqui, como na Europa, o desenho
era considerado a base de todas as artes tornando-se matéria obrigatória nos anos
iniciais de estudo da Academia Imperial. No ensino primário o desenho tinha por
objetivo desenvolver também essas habilidades técnicas e o domínio da racionalidade.
Nas famílias mais abastadas as meninas permaneciam em suas casas, onde eram
preparadas com aulas de música e bordado, entre outras.

A "Pedagogia Tradicional" E As Aulas De Arte

Nas primeiras décadas do século XX o ensino de arte, no caso, desenho, continuou a


apresentar-se com este sentido utilitário de preparação técnica para o trabalho. Na
prática, o ensino de desenho nas escolas primárias e secundárias fazia analogias com
o trabalho , valorizando o traço, o contorno e a repetição de modelos que vinham
geralmente de fora do país; o desenho de ornatos, a cópia e o desenho geométrico
visavam à preparação do estudante para a vida profissional- e para as atividades que
se desenvolviam tanto em fábricas quanto em serviços artesanais.

23
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
Os programas de desenho do natural, desenho decorativo e. desenho geométrico eram
centrados nas representações convencionais de imagens;. Os conteúdos eram bem
discriminados, abrangendo noções de proporção, perspectiva, construções
geométricas; composição, esquemas de luz e sombra. Nas Escolas Normais os cursos
de desenho incluíam ainda o "desenho pedagógico", onde os alunos aprendiam
esquemas de construções gráficas para "ilustrar" aulas".

Do ponto de vista metodológico, os professores, seguindo essa "pedagogia tradicional"


(que permanece até hoje), encaminhavam os conteúdos através de atividades que
seriam fixadas pela repetição. E tinham por finalidade exercitar a vista, a mão, a
inteligência, a memorização, o gosto e o senso moral. O ensino tradicional está
interessado principalmente no produto do trabalho escolar e a relação professor e
aluno mostra-se bem mais autoritária. Além disso, os conteúdos são considerados
verdades absolutas.

A partir dos anos 50, além do Desenho, passaram a fazer parte do currículo escolar as
matérias Música, Canto Orfeônico e Trabalhos Manuais, que mantinham de alguma
forma o caráter e a metodologia do ensino artístico anterior. Ainda nesse momento, o
ensino e a aprendizagem de arte concentram-se apenas na "transmissão" de conteúdo
reprodutivistas. Desvinculando-se da realidade social e das diferenças - individuais. O
conhecimento continua centrado no professor, que procura desenvolver em seus
alunos também habilidades" manuais e hábitos de precisão, organização e limpeza.

A "Pedagogia Nova" E As Aulas De Arte

A. "Pedagogia Nova", também conhecida por Movimento da Escola Nova, tem suas
origens na Europa e Estados Unidos (século XIX),sendo que no Brasil vai surgir
a partir de... 1930) e ser disseminada a partir dos anos 50/60 com as escolas
experimentais. Sua ênfase é a expressão, como um dado subjetivo. E individual
em todas as atividades, que passam dos aspectos intelectuais para os afetivos.
A preocupação com o método, com o aluno, seus interesses, sua
espontaneidade e o processo do trabalho caracterizam uma pedagogia
essencialmente experimental, fundamentada na Psicologia e na Biologia.

24
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
B. Diferentes autores vêm marcando os trabalhos dos professores de Arte, no
século XX, no Brasil, firmando a tendência da "Pedagogia Nova", Entre eles
destacam-se John Dewey (a partir de 19(0) e Viktor Lowenfeld (a partir de
1939), dos Estados Unidos, e Herbert Read (a partir de 1943), da Inglaterra,
Com a publicação de seu livro Educação pela Arte (traduzido em vários países),
Read contribuiu para a formação de um dos movimentos mais significativos do
ensino artístico. Influenciado por esse movimento no Brasil, Augusto Rodrigues
liderou a criação de uma "Escolinha de Arte", no Rio de Janeiro (em 1948),
estruturada nos moldes e princípios da "Educação Através da Arte":

Estava muito preocupado em liberar a criança através do desenho. Da pintura.


Comecei a ver que o problema não era esse, era um problema muito maior. Era
ver a criança no seu aspecto global, a criança e a relação professor-aluno, a
observação do comportamento delas. o estímulo e os meios para que elas
pudessem, através das atividades, terem um comportamento mais criativo. Mais
harmonioso.

As crianças vinham cada vez mais, e as idades eram as mais diferentes. Felizmente,
tínhamos duas coisas muito positivas para um começo de experiência no campo de
educação, através de uma escola. A experiência era feita em campo aberto, e a
diferença de idades também foi outra coisa fundamental para que eu pudesse
entender, um pouco, o problema da criança e o da educação através da, arte.
Deveríamos ter um comportamento aberto, livre com a criança; uma relação em que a
comunicação existisse através do fazer e não do que pudéssemos dar como tarefa ou
ensinamento, mas através do fazer e do reconhecimento da importância do que era
feito pela criança e da observação do que ela produzia. De estimulá-la a trabalhar
sobre ela mesma, sobre o resultado último, desviando-a, portanto, da competição e
desmontando a ideia de 2 que ali estavam para ser artistas (Dimento de Augusto
Rodrigues, 1980, p.34.

As palavras de Augusto Rodrigues podem sintetizar as ideias da Escola Nova, que via
o aluno como ser criativo, a quem se devia oferecer todas as condições possíveis de
25
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
expressão artística, supondo-se que, assim, ao "aprender fazendo". Saberiam fazê-lo.
Também, cooperativamente, na sociedade.

A "Pedagogia Tecnicista" E As Aulas De Arte

A "Pedagogia Tecnicista", presente ainda hoje, teve suas origens partir da segunda
metade do século XX, no mundo, e a partir de 1%0/ 1970, no Brasil.

Na "Pedagogia Tecnicista", o aluno e o professor ocupam uma posição secundária,


porque, o elemento principal é o sistema técnico de organização da aula e do curso:
Orientados por uma concepção mais mecanicista, os professores brasileiros entendiam
seus planejamentos e planos de aulas centrados apenas nos objetivos que eram
operacionalizados de forma minuciosa. Paz parte ainda desse contexto tecnicista o uso
abundante de recursos tecnológicos e audiovisuais, sugerindo uma "modernização" do
ensino. Nas aulas de Arte, os professores enfatizam um "saber construir": reduzido aos
seus aspectos técnicos e ao uso de materiais diversificados (sucatas, por exemplo), e
um "saber exprimir-se" espontâneo, na maioria dos casos caracterizando poucos
compromissos com o conhecimento de linguagens artísticas. Devido à ausência de
bases teóricas mais fundamentadas, muitos valorizam propostas e atividades dos livros
didáticos que, nos anos.70/80, estão em pleno auge mercadológico, apesar de sua
discutível qualidade enquanto recurso para o aprimoramento dos conceitos de arte.

Que História Da Educação Escolar Em Arte Queremos Fazer

Ao lado das tendências pedagógicas tradicional, escolanovista e tecnicista, surge no


Brasil, entre 1961/1964, um importante trabalho desenvolvido por Paulo Freire, que
repercutiu. Politicamente, pelo seu, método revolucionário de alfabetização de adultos.
Voltado para o diálogo educador-educando e visando à consciência crítica, influencia
principalmente movimentos populares e a educação não formal. Retomado a partir de
1971, é considerado nos dias de hoje como uma "Pedagogia Libertadora", em uma
perspectiva de consciência crítica da sociedade.

A partir dos anos 80, acreditando em um papel específico que a escola tem com
relação a mudanças nas ações sociais e culturais, educadores brasileiros mergulham
em um esforço de conceber e discutir práticas e teorias de educação escolar para essa
26
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
realidade. Conscientizam-se de como a escola se configura no presente, com vistas a
transformá-la rumo ao futuro. E nos convidam a discutir as ações e as ideias que
queremos modificar na educação em arte, como um desafio c compromisso com as
transformações na sociedade.

Começa a se "desenhar" um redirecionamento pedagógico que incorpora qualidades


das pedagogias tradicional, nova, tecnicista e libertadora e pretende ser mais "realista
e crítica. Suas concepções podem ser sintetizadas nos seguintes aspectos:

(...) agir no interior da escola é contribuir para transformar a própria sociedade. Cabe à
escola difundir os conteúdos vivos, concretos, indissoluvelmente ligados às realidades
sociais. Os métodos de ensino não partem de um saber espontâneo, mas de urna
relação direta com a experiência do aluno confrontada com o saber trazido de fora, ()
professor é mediador da relação pedagógica - um elemento insubstituível. É pela
presença do professor que se torna possível urna "ruptura" entre a experiência pouco
elaborada e dispersa dos alunos, rumo aos conteúdos culturais universais,
permanentemente reavaliados face as realidades sociais (Cenafor, 1983, p. 30)

A educação escolar deve assumir, através do ensino e da aprendizagem do


conhecimento acumulado pela humanidade, a responsabilidade de dar ao educando o
instrumental para que ele exerça uma cidadania mais consciente, crítica e participante.
Tem-se buscado elaborar, discutir e explicitar: então, uma "Pedagogia-Histórico-Crítica"
(Saviani, 1980), ou seja, uma prática e teoria da educação, escolar mais realista, mais
"Crítico-Social dos Conteúdos" (Libâneo, 1985) sem deixar de considerar as
contribuições das outras perspectivas pedagógicas. Essa pedagogia escolar procura
propiciar a todos os estudantes o acesso e contato com os conhecimentos culturais
básicos e necessários para uma prática social viva e transformadora.

Uma pedagogia que leve em conta esses objetivos, no dizer de Dermeval Saviani,
valorizará a escola;

Não será indiferente ao que ocorre em seu interior; estará empenhada em que a escola
funcione bem; portanto, estará interessada em métodos de ensino eficazes. Tais
27
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
métodos se situarão para além dos métodos tradicionais e novos, superando por
incorporação as contribuições de uns e de outros. Portanto, serão métodos que
estimularão a atividade e iniciativa doa alunos, sem abrir mão, porém, da iniciativa do
professor; favorecerão o diálogo dos alunos entre si e com o professor, mas sem deixar
de valorizar o diálogo com a cultura acumulada historicamente; levarão em conta os
interesses dos alunos, os ritmos de aprendizagem e o desenvolvimento psicológico,
mas sem perder de vista a sistematização lógica dos conhecimentos, sua ordenação e
gradação para efeitos do processo de transmissão-assimilação dos conteúdos
cognitivos.

Não se deve pensar, porém, que os métodos acima indicados terão um caráter
eclético, isto é, constituirão uma somatória dos métodos tradicionais e novos. Não. Os
métodos tradicionais assim como os novos implicam uma autonomização da pedagogia
em relação à sociedade. Os métodos que preconizo mantêm continuamente presente a
vinculação entre educação e sociedade. Enquanto no primeiro caso professor e alunos
são sempre considerados em termos individuais, no segundo caso, professor e alunos
são tomados como agentes sociais (Saviani, 1980, pp. 60-61).

Libâneo (1985) também contribui para este "desenhar" do novo redirecionamento


pedagógico, ressaltando a natureza do trabalho docente hoje, no qual "um saber, um
saber ser e um saber fazer pedagógico" devem "integrar os aspectos material/formal do
ensino e, ao mesmo tempo, articulá-los com os movimentos concretos tendentes à
transformação da sociedade".

Percebendo a relevância de conhecer o processo histórico do ensino de arte e nele


saber interferir com consciência, Ana Mae Barbosa apresenta-nos importantes análises
e sínteses nessa área, em seus livros Arte-Educação no Brasil (1978), Recorte e
Colagem: Influências de John Dewey no Ensino da Arte no Brasil (1982), Arte-
Educação: Conflitos e Acertos (1984), História da Arte-Educação (1986), O Ensino da
Arte e sua História (1990). Preocupada com a democratização do conhecimento da
arte (isto é, com a necessidade de assumirmos o compromisso de ampliar o acesso da
maioria da população aos domínios estéticos e artísticos, por meio de uma educação
de qualidade), Ana Mae contribui com relatos e reflexões que podem conduzir nosso
28
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
trabalho de professores a posicionamentos mais claros. Ela considera fundamental a
recuperação histórica do ensino de arte para que se possam perceber "as realidades
pessoais e sociais, aqui e agora e lidar criticamente com elas". Essas ideias aparecem
nitidamente em todos os seus livros, que nos convidam a discutir e encontrar formas de
ação na atualidade.

Uma das ações que está em processo, hoje, e que vem se afirmando por sua maior
abrangência cultural, refere-se a um posicionamento teórico-metodológico, conhecido
entre nós por "Metodologia Triangular". Esta proposta, difundida e orientada por Ana
Mae Barbosa, e que está sem dúvida interferindo qualitativamente no processo e
melhoria do ensino de arte, tem por base um trabalho pedagógico integrador de três
facetas do conhecimento em arte: o "fazer artístico", a "análise de obras artísticas" e a
"história da arte". Este trabalho vem sendo desenvolvido e pesquisado, desde o início
dos anos 90, em São Paulo, no Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC -USP) e
no sul do país, pela Fundação lochpe e Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), dentre outras instituições de ensino.

Acreditamos que a consciência e a interferência sobre o processo educativo (e, neste


caso, mais especificamente, de arte) é fundamental para o professor, para os alunos
de Magistério, enfim, para todos que estão envolvidos com uma educação que se
pretende transformadora. A consciência histórica e a reflexão crítica sobre os
conceitos, as ideias e as ações educativas de nossa época possibilitam nossa
contribuição efetiva na construção de práticas e teorias de educação escolar em arte
que atendam às implicações individuais e sociais dos alunos, às suas necessidades e
interesses, e, ao mesmo tempo, proporcionem o domínio de conhecimentos básicos.
Da arte.

O compromisso com tal projeto educativo exige um competente trabalho docente. No


caso da ação educativa em arte com crianças, o professor terá de entrelaçar a sua
prática-teoria artística e estética a consistentes propostas pedagógicas. Em síntese, é
preciso saber arte e saber ser professor de arte junto a crianças.

29
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL

O desenho nas cavernas, na infância e para a psicanálise: uma linha do tempo que
merece ser revisitada

O texto a seguir é parte de dois capítulos da dissertação de mestrado[1] sobre o


desenho infantil, no qual abordou-se diversos autores da área da psicanálise e
psicologia. Neste artigo, nos centraremos apenas nos autores da psicanálise, elegendo
os que nos pareceram mais importantes. Além disso, interessa-nos evidenciar o
recurso do desenhar e o brincar enquanto aquilo que promove livre associação na
sessão de análise com crianças.Gostamos de realçar o desenho infantil como Cognet
(2014, p. 9) põe em perspectiva: “uma expressão incontornável da dimensão subjetiva
das crianças”. Mas afinal, quais os registros mais longínquos que temos do desenho e
qual a sua importância na infância e para a psicanálise?
O desenho é considerado uma das formas de comunicação mais remota dentre os
humanos e suas histórias possivelmente iniciam simultaneamente. Ele é uma das
primeiras formas de registros de comunicação gráfica encontradas ao longo da pré-
história e até hoje uma modalidade, cuja forma de expressão é reveladora de funções,
desdobramentos e elaborações (Miranda, 2012).
O desenho é, para o humano, um dos testemunhos mais contundentes da
diferenciação do homem em relação a outros seres vivos da natureza, afinal ele é o
único animal que fala, da mesma forma que é o único animal que desenha. Ao
desenhar e reproduzir a natureza, denuncia que pertence a ela de outra maneira. Ou
seja, ao desenhar os elementos da natureza, ele já está fora dela. Propomos uma linha
do tempo rupestre, a fim de melhor visualizar, lugares e períodos em que se
encontraram os registros:

30
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL

Figura 1: Linha do Tempo Rupestre


O desenho persiste no tempo e pulverizando-se pelos cinco continentes. O estatuto
primevo do desenho aponta para uma pré-existência do simbólico e esse pode ser
entendido conforme propôs Lévi-Strauss (2017), por exemplo, com a questão dos
mitos, dos símbolos como tentativa de organização simbólica de uma cultura, a ponto
de influenciar o comportamento das pessoas e suas relações sociais. Lacan (1953-
1963/2005) irá dizer que o simbólico está presente quando algo assume um valor
socializado, compartilhado, virando referência para um certo comportamento coletivo, o
simbólico está na estrutura de linguagem de um povo, são “símbolos organizados na
linguagem” (Lacan, 1953-1963/2005, p.23).
É justamente esse ponto que nos interessa fomentar, pois no desenho temos algo
desse traço que revela o simbólico presente nas representações, nas cenas de caça,
de dança, representadas na linha do tempo rupestre, que ao se tornarem imagens,
destacam-se do puro real que, de outra forma, jamais denunciaria a presença do
humano sobre a terra. Para tanto, se entendemos que o simbólico faz um sujeito, um
ser regido pela linguagem como nos apontou Lacan (1953/1998), e que a arte rupestre
é a pré-existência da escrita, podemos considerar que o simbólico tem esse mesmo
estatuto, ele pré-existe.
Na psicanálise de crianças, o desenho vem ocupar um lugar privilegiado Foi com a
análise do pequeno Hans, que sofrera de uma fobia de animais em sua primeira
infância, que Freud (1909/2015) escreveu o texto, Análise da fobia de um garoto de
31
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
cinco anos. Nesse trabalho, levantou hipóteses acerca de um tratamento psicanalítico
com crianças, lançando o primeiro modelo de análise infantil, desvelando para a
criança tanto seus desejos edípicos, quanto sua angústia de castração. O trabalho se
deu por intermédio do pai de Hans, analisando de Freud que registrava episódios e
explanações do filho e os expunha para que Freud pudesse interpretar as brincadeiras,
sonhos e fantasias, revelando o sentido desses elementos para serem restituídos ao
menino.
Freud, já nessa época, abarcará a importância da fantasia, das imagens produzidas e
das verbalizações que decorrem dessas produções. Na análise do pequeno Hans, irá
desfrutar de materiais e conteúdos inconscientes provenientes disso, inclusive
conduzirá o deciframento dos sonhos de Hans e das fantasias ligadas à girafa com seu
„faz-pipi' desenhada por Hans e seu pai, promovendo associações. A partir desse caso,
Freud confirmará sua teoria da gênese e Sexualidade Infantil.

Figura 2: Desenho “Faz-pipi”


Fonte: Freud, S. (1909/2015).Análise da Fobia de um garoto de cinco anos.
São Paulo: Companhia das Letras. p. 134.
Seguindo essa vertente de inauguração de uma escuta clínica que remetesse à
infância, outro caso clínico que merece ser rememorado de Freud (1918[1914]/2015) é
o do Homem dos Lobos. Através do relato de um paciente adulto, Freud, decantará
toda a experiência infantil que originou muitos sintomas e medos de bichos e, em
especial, o temor pela figura de um lobo. O paciente traz um sonho que origi nou o
nome do caso, acompanhado por um desenho, entregue a Freud após o relato,
materiais que auxiliam no andamento do caso (Freud, 1918 [1914]/2015).

32
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL

Figura 3: Desenho do sonho do “Homem dos lobos”


Fonte: Freud, S. (1918[1914] /2015). História de uma neurose infantil: O Homem dos
Lobos.
São Paulo: Companhia das Letras. p. 42.
Os sintomas do Homem dos lobos se apresentarão como uma formação do
inconsciente; o sonho, após todos os desdobramentos e associações trabalhadas se
traduzirá como conflito edípico, pois para o paciente havia uma impossibilidade em
admitir o desejo pulsional erótico, expresso na figura do pai, vislumbrando na fobia a
possibilidade de resolução deste conflito (Freud, 1918[1914]/2015). Por conseguinte,
Freudprincipiará o que virá mais tarde a se consolidar como analíse de crianças,
escutando esse infantil presente no divã de seus pacientes adultos. Deixará abertura
para que Anna Freud, Melanie Klein, Winnicott e outros clínicos e pensadores
prosseguissem no desenvolvimento de uma técnica mais específica de trabalho.
Por volta de 1920, nasceu a psicanálise de crianças como método, cuja base se
estabeleceu no brincar, desenhar e nas narrativas advindas desses momentos.
Enquanto método, foi utilizado inicialmente pela psicanalista Hermine Von Hug-
Hellmuth (1921) que empregava principalmente os desenhos e o brincar como material
de trabalho (Roza, 1993). Hug-Hellmuth, que era integrante das reuniões das quartas-
feiras propostas por Freud para o estudo e aprofundamento da psicanálise, foi a
primeira analista depois de Freud a propor uma análise infantil com sessões
sistemáticas e valia-se do brincar e do desenhar por conterem grande importância
simbólica. Tinha um cuidado ético no sentido de não promover sugestões aos
pacientes (apud Avellar, 2004).
Os anos posteriores foram marcados por duas psicanalistas prestigiadas no meio
analítico ligado à infância. Utilizaram a técnica do brincar e iniciaram a prática clínica
na mesma época, por volta de 1923, promovendo concepções distintas e aportes

33
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
teóricos significativos para a clínica com crianças: Melanie Klein e Anna Freud
(Fendrik, 2004).
Melanie Klein, em 1953, escreve um artigo de notável importância para o meio
analítico, denominado A técnica psicanalítica através do brincar: sua história e
significado. (Klein, 1953[1955] /1991).
Nesse artigo, Melanie faz referência a um caso clínico, ao qual ela chamou de Fritz, um
menino de cinco anos que foi atendido na sua própria residência fazendo uso de seus
brinquedos. Ao interpretar o material produzido, inaugurou a técnica a partir dessa
atividade, intervindo na exploração das fantasias e ansiedades advindas das sessões,
que se reproduziam enquanto material adicional nas próprias formulações do brincar
(Klein, 1953[1955]/1991). A partir das intervenções, é possível perceber a cadeia
associativa inconsciente que se confirma através do brincar, do desenhar e do que é
enunciado acerca disso. Sua abordagem privilegiava a compreensão das fantasias
infantis, angústias e defesas arcaicas ainda inexploradas até então. A partir das leituras
freudianas e da investigação clínica, Melanie Klein assegurou que o brincar
contemplava um leque de significados simbólicos, integrados com as fantasias
imaginárias e que esse modo do brincar parecia-lhe muito familiar ao método freudiano
de interpretação dos sonhos, permitindo o acesso ao inconsciente da criança (Klein,
1953[1955]/ 1991).
Para Anna Freud, em contraponto a Melanie, o desenho, na sessão analítica, não
poderia ser o equivalente à associação livre, conforme muitos analistas de crianças
corroboravam. Entendia, então, que: “As crianças podem contar sonhos e divagações,
como os adultos, mas sem livre associação, não existe um caminho idôneo do
conteúdo manifesto ao latente” (Anna Freud, 1971, p. 32), ou seja, de que haveria certa
imaturidade, mas poder-se-ia pensar na livre ação, provocada pelas tendências
agressivas (Anna Freud, 1971).
Por volta de 1927, outra contemporânea de Freud obteve destaque no meio analítico, a
psicanalista de origem judaica-polonesa Sophie Morgenstern (Cognet, 2014). Ela
publicou o célebre caso clínico de Mutisme Psychogène, conduzido através de
desenhos produzidos pelo paciente e das interpretações da analista. Sophie geriu
brilhantemente esse caso de um menino de 9 anos e meio, cujo sintoma era desvelado
por um grave mutismo que perdurou por quase dois anos (Morgenstern, 1927).
Sophie Morgenstern, também considerada pioneira no trabalho psicanalítico com
crianças, pôs em evidência através dos 31 desenhos elaborados pelo paciente, os
34
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
mecanismos psicológicos encontrados nas produções, sustentando a partir da
transferência os deslocamentos de sentido advindos por sua interpretação, que
permitiram o elaborar das fantasias de castração desse paciente. Solicitava que o
paciente desenhasse: suas angústias, o que lhe impedia de falar, seus medos e, a
partir de então, Morgenstern foi pondo palavras e narrativas nas histórias que, naquele
momento, eram só imagens para o paciente, que concordava com um gesto de cabeça
se a história narrada estava de acordo com a intenção do que queria dizer
(Morgenstern, 1927).
Em seu trabalho, a psicanalista lia atentamente os detalhes contidos nas produções
dos pacientes, dando ênfase às dimensões e às proporcionalidades contidas nos
objetos de um mesmo desenho, pois sugeria que cada objeto tinha valor afetivo
diferente dos demais e isso era muito singular (Cognet, 2014). Não deixava de
observar nas produções que, independentemente do modo de expressão utilizado pelo
paciente, seja sonho, desenho, narrativa, ou representação do lúdico, eles eram
definidos pelo clima afetivo, ou seja, atmosferas alegres, melancólicas, privativas,
sofridas, repletas de angústia, etc. E compunham a atenção de Morgenstern assim
como a expressão dos personagens que figuram o desenho. Para Sophie, quanto
maior o conflito e a neurose, mais ricas são as produções artísticas (apud Cognet,
2014).
No ano de 1935, o psicanalista e pediatra inglês D.W. Winnicott desenvolveu uma
técnica particular, utilizando como instrumento o desenho, com o intento de promover a
relação e o fluir da comunicação com as crianças, oferecendo-lhes um lugar ativo e de
descoberta do si mesmo.Nomeou tal método como o “squiggle” jogo do
rabisco, descrito em seu notável livro Consultas Terapêuticas em Psiquiatria Infantil, no
qual, além de exibir o processo, compartilhacerca de 21 casos clínicos trabalhados
nesses moldes (Winnicott, 1975).
Na esteira do tempo, por volta de 1938, a luz incidia sobre a pediatra e a psicanalista
Françoise Dolto que, após ingressar na Sociedade Psicanalítica de Paris, inaugurou
uma abordagem clínica cujo aporte teórico minucioso acerca do desenvolvimento
infantil revolucionaria ainda mais a clínica com crianças (Ledoux, 1995). Ainda
contemporânea de Sigmund Freud e Jacques Lacan, após conhecer Sophie
Morgenstern e se apoiar no recurso do desenho livre, desenvolveu sua própria teoria
tomando o desenho como uma forma de revelar as questões mais profundas do
inconsciente (Ledoux, 1995).
35
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
Em seu relatório compartilhado no Congresso organizado pela Psyche, sob o
título: Relato da Interpretação Psicanalítica dos Desenhos durante Tratamentos
Psicoterápicos (1948) Dolto entenderá, o desenho como um: “. . . autorretrato do
inconsciente, ele nos permite ver como o sujeito se sente em relação ao objeto que ele
quer desenhar, sendo este objeto, de certo modo, uma projeção de si mesmo” (Dolto,
1948, p. 324, tradução nossa).
A partir da sua escuta clínica, Françoise Dolto será consistente ao afirmar que os
analistas necessitam fazer o desenho falar, isso não significa tentar adivinhar o que o
desenho parece dizer. Para ela: “. . . é a criança que se conta através do desenho. Um
desenho é uma fantasia extemporânea em uma análise; é desse modo que convém
escutá-lo” (Dolto & Nasio, 2008, p.12).
Gostamos de pensar como Dolto e Nasio (2008), na perspectiva em que eles propõem:
“Não desenhamos; nos desenhamos e nos vemos eletivamente em uma das partes do
desenho” (p. 11). Dolto (2008), ao ser questionada em um de seus seminários acerca
do que seria passível de leitura no desenho de uma criança, irá dizer que através
desse instrumento “a criança, espaço-temporaliza sua relação com o mundo. Um
desenho é mais que o equivalente de um sonho, é em si mesmo um sonho ou, caso
prefira, uma fantasia viva” (Dolto & Nasio, 2008, p. 30).
Para Dolto, tudo o que se apresenta em um desenho, não é por acaso, há uma
necessidade de isso estar representado por parte da criança em seu desenvolvimento.
E acrescenta que não será possível em uma sessão ou duas sessões, chegar à
compreensão do desenho que a criança faz em análise. Muitas vezes, o desvelamento
do sentido de um primeiro desenho vem somente depois, mas já estava lá, registrado
desde o primeiro traço (Dolto, 1948). Nos parece interessante assinalar aqui que,
mesmo o conteúdo se revelando tempos depois, já na primeira sessão estava posto,
como ocorre com os adultos que procuram atendimento e que na primeira ousegunda
sessão, já enunciam de alguma forma do que se trata seu sintoma.
Assim, Dolto atribuirá ao desenho o estatuto de “. . . meio de contato profundo entre o
sujeito e o médico” (Dolto, 1948, p. 324, tradução nossa). Para a interpretação, a
psicanalista busca reconstruir a mesma cadeia simbólica do sujeito e dirá que esse ato
faz a criança reconhecer do que se trata a questão, favorecendo o surgimento de
materiais ainda mais ricos (Dolto, 1948). A autora também levará em conta as
dimensões e proporções das representações entre si, no desenho, bem como a
maneira que a criança utiliza o material. Isso dará mostras de como o sujeito se situa
36
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
inconscientemente e como se sente diante de exigências da sua vida, sendo assim, ela
dirá que o desenho é a expressão do inconsciente e fará a equivalência do desenho
com o sonho.
Daremos um salto agora para 1983, com as contribuições da psicanalista argentina
Marisa Rodulfo. Ela irá aventar que o desenho ou um fragmento de sessão não
desempenham uma função meramente ilustrativa, ou melhor, o que uma criança irá
trazer enquanto ilustração gráfica irá confirmar algo do discurso dos pais e, inclusive,
do próprio dizer do paciente. O desenho será, em vista disso, um complemento
ilustrativo da linguagem verbal (Rodulfo, 2006). A analista propõe que a marca advinda
do desenho pode possibilitar a emergência do recalcado no paciente, minimizando o
sofrimento que, por vezes, é suscitado através dos sonhos do mesmo. Alerta, portanto,
para a dificuldade de muitos psicanalistas em permanecer no plano do desenho
enquanto produção efetiva, ou seja, por não lerem o desenho naquilo que também é
possível repetir do traço. Sugere que os psicanalistas de crianças não tenham a pressa
de sair do trabalho com o desenho, deixando assim escapar o contexto ao eleger um
ou outro desenho somente, na busca pelos elementos de sua técnica interpretativa
(Rodulfo, 2006).
Para Rodulfo (2006) é necessário ter cuidado para que o desenho livre advenha sem
interferências e solicitações do analista. Aponta que tais requerimentos, como por
exemplo, o pedido „Desenhe você‟, retira a capacidade espontânea da criança,
rompendo com a regra fundamental da associação livre proposta pela psicanálise. O
desenho irá se diferenciar da palavra, pois a elaboração secundária não tende a correr
à frente para manter as aparências e, o efeito surpresa tanto em que o paciente,
quanto o analista são capturados não é, sem dúvida, o da compreensão. Ela propõe
tomar o “figural”, ou seja, a produção gráfica, a representação enquanto cadeia
associativa trazida pela criança (Rodulfo, 2006).
Ainda nos anos 80, teremos os aportes da psicanalista Annie Anzieu que tomará o
desenho infantil como o equivalente da associação livre para os adultos e definirá o
desenho como estando em um nível intermediário entre o brincar e a verbalização,
deixando à disposição da criança, para sua livre escolha, todo o material como: lápis,
papel, tintas, cola, tesoura, brinquedos, materiais de modelagem (Cognet, 2014).
Para Annie Anzieu (1996), em seu livro: O trabalho de desenhar em psicoterapia da
criança (tradução nossa), o desenho oferecerá abertura a um espaço psíquico
extremamente fecundo, em busca de uma representação que, gradativamente, se
37
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
deslocará da imagem para a palavra e portará dois lugares: o da elaboração e o do
aprimoramento dos processos simbólicos, instrumento valioso no manejo da
transferência e sua interpretação deverá levar em conta o ambiente no qual foi
produzido o desenho. A folha de papel em branco corresponderá ao „eu-pele‟,
referenciando o invólucro materno nas suas origens, ou seja, o envelopamento que se
oferece como superfície no ato da grafia (Anzieu, 1996). Além disso, abarcará o uso da
cor pelos pacientes nas produções gráficas, enquanto tonalidade e nuança afetiva, e
advertirá que, independente do estilo ou tipo de traçado que for se delineando no
desenho, o analista não poderá perder de vista os vestígios do fantasma, os conflitos
psíquicos, os objetos internalizados pelo paciente.
Em torno dos anos 90, a psicanalista argentina Alba Flesler abrilhantou ainda mais o
meio analítico com suas contribuições clínicas deste tema. Flesler (2012) irá nos dizer
que o desenho é, para uma criança, um “índice de um tempo estrutural revelador dos
tempos do sujeito” (Flesler, 2012, p.123). Dirá que o desenho é a “escritura da imagem”
(Flesler, 2012, p.124), trazendo consigo um velamento no traçado, ou seja, a
representabilidade, que por ser representável, dá mostras de seu caráter imaginário.
Ele é, portanto, o resultado do enlaçamento que se dá entre o real do objeto e o
simbólico da palavra. O velamento é inerente ao desenho e estará atualizado em toda
a percepção; guardando um resto, não identificado, que escapa ao olhar (Flesler,
2012).
O desenho oferecerá uma dupla eficácia, ou seja, sua representação gráfica implicará
em “. . . uma passagem do objeto do real para o simbólico, mas, ao apresentá-lo obtém
também um enlaçamento imaginário” (Flesler, 2012, p. 125). Além disso, promulgará
que em cada desenho, o que estará em jogo, será um ato inaugural, um traçado que
testemunha a existência (Flesler, 2012).
É importante mencionar que psicanalistas como Daniel Widlöcher, Arminda-Aberastury
Geneviève Hagg e Jacqueline Royer também trouxeram aportes teóricos para a técnica
do uso do desenho, mas estes não serão abordados neste momento..
Podemos vislumbrar através dos teóricos trazidos que, a partir do brincar e do
desenhar, há algo a mais que se coloca nesse ato para a criança na sessão analítica.
Frente ao desenho, em análise estamos diante de pistas do inaudito, da projeção, das
fantasias, dos rastros fantasmáticos, dos mecanismos de defesa que circundam neste
ato. As produções gráficas seguem um encadeamento no próprio traço, na repetição,
que apontam para o desvelamento de questões psíquicas mais profundas.
38
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL

Figura 4:Desenho rupestre


Cueva de las manos, Argentina,
Paleolítico. “mãos em negativo”
Autor: Celis e Contreras, 2004. Disponível em:
www.rupestreweb.info/introduccion.html.
Acesso em: 02/01/2019.

Figura 5: Produção de um menino de


dois anos
A criança, ao repetir os desenhos ancestrais, não só repete o que concerniria a outros
tempos, como também recria o futuro e, ao mesmo tempo, em transferência se
subjetiva, recriando a partir das referências, das transmissões significantes ancestrais
algo que a lança para além dos mitos de origem (Sapiro, 2019, no prelo).
Podemos notar até agora que tanto o jogar, o desenhar e o escrever são meios em que
a linguagem, o inconsciente, a subjetividade infantil realizam seu trabalho em tempos e
termos elaborativos. Nós, enquanto analistas, nos servimos disso para estabelecer
pontos de resolução de conflitos, na passagem dos tempos constituintes de quem nos
procura, pois durante o processo do desenhar, a criança põe em jogo a construção e
aquisição da sua própria imagem e de outros tempos de subjetivação.

39
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
3- O DESENHO NA EXPRESSÃO DE SENTIMENTOS EM CRIANÇAS
HOSPITALIZADAS

O processo de hospitalização é permeado por perdas que desencadeiam um processo


de luto. As perdas em questão estão especialmente relacionadas a três fatores, a
saber: a doença (como significado da perda da saúde), a hospitalização (como perda
da condição de pessoa, ou seja, a despersonalização), e, por fim, o tratamento, o qual
está cerceado por atitudes invasivas e agressivas, desencadeando no indivíduo a
sensação de impotência e perda da autonomia (FONGARO; SEBASTIANI, 1996).

A respeito da doença, esta acarreta num desequilíbrio à existência, no qual a pessoa


perde sua condição de agente ativo para passivo em relação a aspectos de sua vida.
Diante disso, as condições emocionais são essenciais na recuperação dos pacientes,
tanto no processo de hospitalização em si quanto na maneira como a doença foi
sedimentada no imaginário (ANGERAMI-CAMON, 2002).

Em se tratando de crianças, elas percebem a hospitalização como uma nova situação


de vida em que há muitas mudanças em sua rotina, vivenciando situações com as
quais devem se adaptar. Estas mudanças, decorrentes de sua nova condição, são
geradoras de estresse (ALMEIDA, 2005). No processo de hospitalização, todos os
procedimentos agressivos e bastante desagradáveis, podem mobilizá-las de maneira
negativa (FREITAS, 2008).

O fato de estar hospitalizada, assim como os procedimentos médicos adotados e a


própria doença em si, surge na percepção da criança como uma punição, um castigo,
algo estreitamente relacionado a uma culpa subjacente. Dessa maneira, as relações
doença/hospitalização/culpa/castigo irão sempre permear o pensamento da criança
(OLIVEIRA, 1993).

Relacionado a isso, criança numa situação de hospitalização pode experimentar uma


desordem emocional, aliada a uma dificuldade em expressar seus sentimentos, em
traduzir o que sente em palavras. Esta dificuldade de expressão verbal, de se explicar,
origina um conflito que se torna uma crise, o sintoma passa a ser, então, algo que se
tem dificuldade de se expressar. (BARUS-MICHAEL, 2003)

40
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
Para Angerami-Camon (1984) o atendimento a crianças hospitalizadas deve ser
dirigido para minimizar seu sofrimento, tendo como princípio a promoção da saúde não
somente no âmbito físico. A isso Freitas (2008) acrescenta que neste ambiente a
humanização é fundamental, visto que a criança não está necessitando somente de
atenção nos aspectos relacionados à saúde física, mas também nas questões pessoais
e sociais.

Nesse contexto, o desenho infantil e sua linguagem simbólica tornam-se elementos


essenciais no acompanhamento às crianças hospitalizadas, visto que o mesmo é
considerado por diversos autores (HAMMER, 1981; WINNICOTT, 1984; GOLDBERG,
YUNES; FREITAS, 2005; ARFOUILLOUX, 1983) como sendo um instrumento por meio
do qual a criança consegue expressar aquilo que não consegue dizer através da fala,
possibilitando que entrem em contato com seu universo interior e que possam
representá-lo.

Este estudo surge da necessidade de se refletir sobre o atendimento psicológico à


criança hospitalizada e tem como objetivo demonstrar a importância de um trabalho
com as crianças no qual o desenho seja utilizado, considerado como uma forma de
expressão que facilita a comunicação da criança com a equipe. A relevância de
estudos nesta área está na possibilidade de contribuir com aqueles que lidam com
crianças neste contexto, favorecendo a percepção de novas maneiras de se lidar com
as mesmas.

É preciso lembrar que o desenho infantil pode ser utilizado na intervenção com
crianças a partir dos dois anos de idade, pois antes disto eles não apresentam função
simbólica; tal função surge quando a criança adentra no estágio pré-operacional do
desenvolvimento infantil - em referência à teoria do desenvolvimento infantil de Piaget
(1971). Uma das características desta fase é a entrada da criança no universo dos
símbolos; assim, por volta dos dois anos, seus desenhos, ainda que não tenham um
formato definido, já comunicam algo de maneira simbólica - conforme mencionado por
Di Leo (1985) - ; podendo representar algo que está além do que pode ser percebido
numa análise objetiva de seu desenho.

A CRIANÇA HOSPITALIZADA

41
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
A hospitalização para a criança é um processo de muitas perdas caracterizadas pelo
afastamento da família, da escola, dos amigos e de seus brinquedos. Valladares (2003)
destaca alguns sintomas mais comuns a estes pacientes, como: sentimentos de culpa,
reação de angústia, luto, medo de morrer, insegurança, tendência à fobia (agulhas,
médicos, medicação, exames), regressão de comportamento, mudanças no sono,
apetite etc.

Diante da hospitalização a criança se encontra física e emocionalmente debilitada,


vivenciando um momento de separação do lar e mudança em sua rotina, inserida
agora num ambiente que lhe é estranho e no qual é submetida a procedimentos que
muitas vezes lhe causam dor e sofrimento (GABARRA, 2005).

Souza, Camargo e Bulgacov (2003) descrevem o cenário do hospital como uma


realidade que exonera a criança da função de ser criança. Para eles, os aparelhos
computadorizados, as luzes que piscam, os fios utilizados para o soro e transfusão de
sangue, os tubos e as máscaras de oxigênio - os quais limitam seus movimentos - , as
pessoas que ali trabalham com suas roupas brancas e comportamentos
estereotipados, bem como a destituição de suas roupas e brinquedos, acabam
retirando-a de seu papel de criança, e fazendo com que assumam o papel e a função
de paciente.

O adoecer pode provocar muitas alterações nas vidas das crianças, desequilibrando
seus organismos, despertando-lhes dor e sofrimento, o que acarretará num bloqueio de
seu desenvolvimento saudável, ainda mais se a hospitalização se tratar de um
processo longo (VALADARES; CARVALHO, 2006). A criança hospitalizada entrará
num sofrimento emocional, ou até mesmo físico, que irá transcender a patologia inicial
e que se origina no processo de hospitalização (ANGERAMI-CAMON, 2002).

No ambiente hospitalar, as crianças têm de suportar, na maior parte das vezes, uma
limitação de atividades, devido à própria situação de enfermidade e também devido à
falta de espaço físico das instituições. As características deste ambiente as
entristecem, podendo contribuir para aumentar seu sofrimento físico e psíquico
(MACHADO; GIOIA-MARTINS, 2002).

Conforme já referido, a hospitalização surge na percepção da criança como uma


punição, como um castigo; a equipe envolvida em seu cuidar deve observar a
42
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
ocorrência desses pensamentos para poder intervir e fazer com que ela entenda o real
motivo de sua internação, amenizando ,assim, seus sentimentos de punição e culpa
que são tão comumente presentes (ANGERAMI-CAMON, 1984). A percepção da
doença como uma punição também é relatada por Chiattone (1988), a autora
acrescenta que as crianças acabam relacionando o surgimento da doença a fatores
externos, como a desobediência à família, e com isto se sentem culpadas por seus
erros, acreditando que estão recebendo uma punição que vem na forma de uma
doença.

As crianças podem ter fantasias e imagens negativas a respeito do ambiente


hospitalar, dos médicos, dos exames, dentre outros. Se elas já tiverem sido internadas
em outras ocasiões, terão maiores condições de se adaptar e elaborar os
acontecimentos, mas ainda assim terão receios quanto à sua situação, e a equipe deve
estar treinada para ajudar a minimizar este medo. Na medida em que as crianças são
informadas do que vai ocorrer, conseguem gradativamente elaborar o medo e, muitas
vezes, colaborar na realização dos procedimentos necessários. Somente quando ela
conseguir entender o verdadeiro sentido do aparecimento de sua doença é que poderá
aliviar seus sentimentos de culpa e punição. (MACHADO; GIOIA-MARTINS, 2002)

De acordo com o que já foi dito anteriormente, a criança hospitalizada tem


necessidades que vão além do atendimento clínico. Diante disto, no âmbito hospitalar a
intervenção psicológica é essencial para se efetivar a mudança de comportamento
desses pacientes, proporcionando-lhes melhor adaptação, bem como uma melhor
qualidade de vida (SOARES; BOMTEMPO, 2004).

Segundo Novaes (1997), a criança-paciente deve ser percebida como uma pessoa
tendo sua individualidade respeitada e o profissional deve saber ouvi-la sempre que ela
tiver algo a dizer. Freitas (2008) destaca que a hospitalização e os procedimentos
provenientes deste processo se constituem em experiências desagradáveis e
dolorosas para as crianças; por isso, suas respostas podem ser negativas ou
desfavoráveis em relação às intervenções se o fator humanização não estiver
presente, pois a criança hospitalizada precisa não somente de cuidados físicos, ela
também precisa ter suas necessidades emocionais e sociais atendidas.

O DESENHO INFANTIL

43
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
Há muito tempo o desenho é utilizado pelos humanos como forma de representar
pensamentos, sentimentos e ações. O homem primitivo já fazia uso de sua linguagem
simbólica, utilizando-os antes mesmo dos símbolos que registrassem especificamente
a sua fala. Este simbolismo do desenho permite a comunicação desde épocas bastante
precoces da vida do homem, possibilitando que o mesmo se expresse desde a
infância, antes mesmo de aprender a escrever (HAMMER, 1981). Dessa maneira o
desenho infantil se constitui como uma das primeiras formas de expressão, surgindo
antes do desenvolvimento da leitura e da escrita.

Para Mèredieu (1999) o desenho infantil é como uma língua com seu próprio
vocabulário e sintaxe. Hammer (1981) por sua vez ressalta que, por meio do desenho
as crianças transmitem coisas que não conseguiriam expressar com palavras, ainda
que elas estivessem conscientes dos sentimentos que as mobilizam.

Do mesmo modo, Rocha (1970) afirma que, ao desenhar espontaneamente a criança


cria uma estrutura que a leva com maior facilidade em direção às suas emoções,
fantasias e sentimentos.

Interpretar o desenho de uma criança é explicar o que está obscuro, traduzindo-o numa
linguagem compreensível, extraindo do desenho um sentido oculto - tanto ao
entendimento da criança quanto dos adultos que a cercam -, transcrevendo este
sentido latente para uma linguagem verbal. O desenho é o método mais eloquente,
imediato e de mais simples execução para se investigar traços de humor, de
comportamento e de caráter de uma criança, assim como seus conflitos intrapsíquicos,
suprindo, dessa maneira, sua dificuldade em falar de si mesma e expor seus
problemas (ARFOUILLOUX, 1983).

Para Winnicott (1984) o desenho é também uma maneira de se entrar em contato com
a criança e seu mundo, funcionando como mediador das relações que são
estabelecidas com ela. Goldberg, Yunes e Freitas (2005) acrescentam que por meio do
desenho a criança pode organizar informações e processar experiências, criando
relações e construindo símbolos, desenvolvendo conceitos e representando seu
universo de maneira singular, expressando ainda sentimento e autoconhecimento.

Conforme as ideias referidas acima, o desenho infantil e sua efetividade foram


reconhecidos por diversos autores, os quais o colocam numa posição facilitadora das
44
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
relações com a criança, e ainda como forma de expressão de sentimentos e emoções,
cognição, personalidade, desenvolvimento etc. Com isso o desenho infantil se
caracteriza por ser um excelente instrumento a ser aplicado em substituição ao
discurso verbal da criança, podendo ainda ser associado a este discurso,
complementando-o, facilitando suas associações livres.

O desenho envolve,ainda, o conceito de projeção, conceito este introduzido por Freud


em 1894 (CUNHA, 1993). No sentido psicanalítico, define-se projeção como:

Operação pela qual o sujeito expulsa de si e localiza no outro - pessoa ou coisa -


qualidades, sentimentos, desejos e mesmo "objetos" que ele desconhece ou recusa
nele. Trata-se aqui de uma defesa de origem muito arcaica, que vamos encontrar em
ação, particularmente na paranóia, mas também em modos de pensar "normais", como
a superstição (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001, p. 374).

Ao conceito de projeção, Hammer (1981) acrescenta se tratar de um fenômeno que


deve ser visto não somente como projeção de algo recalcado, mas, sobretudo, como
uma forma de se colocar a experiência interna no mundo exterior; como um processo
psicológico no qual as pessoas atribuem qualidades e sentimentos aos objetos do
ambiente - entendendo-se por objeto as pessoas, organismos ou coisas - , sendo este
conteúdo projetivo reconhecido ou não pelo sujeito como sendo algo dele.

Para Campos (2006) o uso do desenho como técnica projetiva favorece o surgimento
dos conflitos mais profundos, pois estes conflitos se refletiriam melhor no papel. A
respeito da interpretação dos mesmos Van Kolck (1984) observa que em todo
processo de interpretação de desenhos infantis o princípio básico é de que o desenho
representa o sujeito e a folha de papel seu ambiente. Com isso, entende-se que o
desenho pode ser utilizado para compreender a percepção do sujeito do meio em que
está inserido, bem como para promover a expressão de conflitos vivenciados a partir
da interação do sujeito com o meio, com os outros e com ele mesmo.

O DESENHO NO CONTEXTO DA ENFERMARIA PEDIÁTRICA

A disponibilidade de compartilhar os sentimentos e dúvidas de crianças enfermas


parece ser um grande desafio para profissionais de saúde e familiares. Pode-se supor
que a grande inquietação do adulto é se deparar e lidar com os próprios sentimentos
despertados por esta situação, o que pode acarretar um vácuo entre a criança doente e
45
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
os adultos, levando o menor a não compartilhar os seus medos e dúvidas sobre a sua
doença e hospitalização (GABARRA, 2005).

Na busca de se tentar compreender os sentimentos de crianças em situação de


hospitalização, encontra-se o trabalho desenvolvido por Chiattone (1988) na pediatria
do hospital brigadeiro, em São Paulo, no qual proporcionava atividades artísticas às
crianças, por meio do uso de técnicas de pintura a dedo, tinta guache, com as quais as
crianças desenhavam sobre seu momento de hospitalização. Por meio deste foi
observado que as crianças conseguiam externalizar seus sentimentos de culpa e suas
fantasias.

Sobre os desenhos, a autora acima referida relata que é bastante comum que as
crianças desenhem o hospital em preto e muito grande, com os pacientes bem
pequenos, demonstrando, assim, que se sentem impotentes perante a instituição. A
autora acrescenta que conversar sobre o que a criança desenha é muito importante
para que elas expressem suas ansiedades e medos. Outra estratégia de desenho
usado pela autora consistia em fazer com que elas pintassem desenhos e contassem
histórias sobre os mesmos, funcionando, assim, como um teste projetivo.

No que diz respeito às pesquisas, Freitas (2008) realizou uma cujo principal objetivo
era verificar aspectos cognitivos e emocionais em crianças por meio do desenho da
pessoa humana e do desenho da pessoa hospitalizada, no intuito de verificar qual das
duas formas de desenho era a mais eficaz para se aplicar em crianças hospitalizadas -
entende-se por mais eficaz aquele em que a criança conseguia se expressar melhor. A
pesquisa concluiu que o desenho da pessoa hospitalizada possibilita uma melhor
obtenção de dados no que diz respeito à compreensão da criança de seu quadro
clínico, bem como das emoções que emergem deste, sendo excelente instrumento
para ser utilizado pelo psicólogo hospitalar.

Outra pesquisa com crianças em situação de hospitalização que se utilizou de


desenhos livres - bem como de inquérito seguido ao desenho - foi realizada por
Gabarra (2005). Nesta, o objetivo era investigar a compreensão das crianças sobre sua
doença em geral e sobre seus aspectos específicos, como tratamento, prevenção,
hospitalização e medicação. Ainda pretendia verificar os sentimentos das crianças que
emergiam em decorrência do adoecer e os fatores que poderiam influenciar na
compreensão da hospitalização. Constatou-se que as crianças compreendiam as
46
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
doenças de forma geral, e sua própria doença, a partir de suas experiências com o
adoecer, com a hospitalização e a partir dos demais eventos de sua vida. Observou-se,
ainda, que os fatores que interferiam na compreensão da criança sobre a doença são:
idade, tempo de diagnóstico, a forma como a doença é comunicada e o apoio que esta
criança possui de pessoas significativas.

Machado e Gioia-Martins (2002) desenvolveram uma pesquisa numa enfermaria


pediátrica de um hospital público que consistia em analisar desenhos de crianças de
ambos os sexos com o objetivo de verificar mudanças no comportamento e nas
questões emocionais a partir da intervenção nas enfermarias de médicos fantasiados
de palhaços que faziam parte dos doutores da alegria. A pesquisa consistiu em solicitar
desenhos livres às crianças aos quais elas tinham que atribuir alguma história, após
isto os doutores da alegria adentravam no leito, depois era solicitado outro desenho. As
autoras perceberam que, após a atuação dos palhaços, os temas dos desenhos foram
mais positivos, aparecendo neles cores mais alegres, tal como o vermelho e o rosa,
enquanto que, no primeiro, prevaleceram cores como o roxo e o preto.

Como demonstrado, o desenho infantil e seu uso no hospital já são considerados


relevantes por diversos autores - alguns dos quais foram citados -, sendo este
instrumento utilizado em pesquisas que visam, de maneira geral, compreender as
representações construídas pela criança no processo de hospitalização para, com isso,
intervir junto a elas, propiciando-lhes a expressão e a elaboração dos sentimentos
emergentes na hospitalização.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenho infantil consiste num meio pelo qual a criança consegue expressar suas
vivências, seus conflitos, suas emoções, ou seja, todos os sentimentos que emergem a
partir de situações de seu cotidiano. Num contexto hospitalar, o desenho pode se
revelar um instrumento eficaz na comunicação do que a criança sente, revelando seu
sofrimento psíquico e suas angústias, possibilitando, a partir disso, intervenções neste
sentido.

Durante a hospitalização, muitas vezes os conflitos e as dificuldades da criança não


são identificados pela equipe. Neste momento, a introdução de técnicas que permitam
a expressão da criança irá beneficiá-la, possibilitando atendimento e avaliação
47
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
adequados que abarquem sentimentos provenientes da doença e da internação. No
contexto hospitalar, o desenho pode ser um associado na investigação dos conceitos
de saúde e de doença; pode ainda mediar processos psicológicos, permitindo a
representação de pensamentos e sentimentos por meio do grafismo.

O uso do desenho como instrumento que propicia a expressão da criança no contexto


do hospital pressupõe também a importância dos profissionais de saúde neste
processo, especialmente dos psicólogos, pois estes devem intervir considerando os
reflexos da doença e do internamento no psiquismo infantil, realizando atendimentos
nos quais as crianças possam ser efetivamente compreendidas. Além disso, este
profissional pode ainda mediar a relação da criança com outros integrantes da equipe
de saúde; orientando, ainda, a família no cuidado com a criança-paciente, clarificando-
lhes as mudanças ocorridas no comportamento infantil que são tão comuns durante o
processo de internação.

O desenho consiste em um dos instrumentos que podem ser agregados ao tratamento


para que a criança possa se expressar durante o processo de hospitalização. Além
dele, outros meios também podem ser utilizados, a exemplo das vivências lúdicas que
permitem que a criança exerça sua infância no espaço do hospital, favorecendo seu
atendimento integral. A percepção do Ser em sua integralidade é essencial nas
intervenções hospitalares e o grafismo infantil, dentre outras funções, é um fator que
pode contribuir para o planejamento do atendimento integral e humanizado à criança
hospitalizada.

48
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
REFERÊNCIAS

https://www.scielo.br/j/ea/a/yvtmjR7MGvYKjPDGPgqBv6J<acesso em 29/09/2023

https://www.arteducacao.pro.br/metodologia-do-ensino-de-arte.html<acesso em
29/09/2023>

https://appoa.org.br/correio/edicao/300/o_desenho_nas_cavernas_na_infancia_e_par
a_a_psicanalise_uma_linha_do_tempo_que_merece_ser_revisitada/860<acesso em
29/09/2023>

https://www.scielo.br/j/fractal/a/wsfd6gNXZQN7cxscDD7Kkbh/<acesso em
29/09/2023>

49

Você também pode gostar