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Falsas memórias: o valor probatório da palavra da vítima na justiça


criminal

Brenda Leopoldina da Fonseca Coimbra Pereira*


Melissa Santos Coutinho**
Marcos Vinícius Sá***

RESUMO

Objetiva-se com o presente abordar a falha do Poder Judiciário ao auferir o conjunto


probatório, levando mais em consideração a lembrança da vítima do que as provas
técnicas. A natureza contingente da memória, o despreparo para realização das
investigações criminais e a seletividade da justiça, tornam oscilantes os resultados
processuais, privando o acusado de direitos básicos conjecturados pelo
ordenamento brasileiro. Questiona-se como será solucionada a insegurança jurídica
ocasionada pela inconstância do Poder Judiciário no que se refere à negligência ao
verificar todos os meios probatórios e garantir a efetivação da probidade forense.
Para alcançar o objetivo pretendido foi utilizado no presente estudo a averiguação
do conteúdo da legislação, de doutrinas e jurisprudências, bem como a metodologia
indutiva.

Palavras-chave: Falsas Memórias, Processo Penal, Vítima.

ABSTRACT

The objective of this paper is to address the failure of the Judiciary to assess the
body of evidence, taking into consideration the memory of the victim more than the
technical evidence. The contingent nature of memory, the unpreparedness to carry
out criminal investigations and the selectivity of justice make the procedural results
oscillating, depriving the accused of the basic rights provided by the Brazilian legal
system. The question is how the legal insecurity caused by the inconstancy of the
Judiciary will be solved, with regard to the negligence in verifying all evidential means
and guaranteeing the effectiveness of forensic probity. In order to reach the intended
objective, the present study used the investigation of the content of the legislation,
doctrines and jurisprudence, as well as the inductive methodology.

Keywords: Criminal Procedure, False Memories, Victim.

*Graduanda em Direito pela Faculdade Novo Milênio. E-mail: brenda.pereira@sounovomilenio.com.br


**Graduanda em Direito pela Faculdade Novo Milênio. E-mail:
melissa.coutinho@sounovomilenio.com.br
***Orientador, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal, Graduado em Direito pela
Faculdade Estácio de Sá, Advogado OAB/ES 11.404, especialista em Direito Público pela Faculdade
Pio Décimo, doutorando pela Universidad del Museo Social (Argentina), ênfase em Direito Penal,
Execução Penal, da Criança e do Adolescente, Civil (Família), e-mail: marcos@saegualberto.adv.br.
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Data de submissão: 16/11/2021


Data de aprovação: 16/12/2021

INTRODUÇÃO

A palavra da vítima no processo penal, utopicamente, deveria caminhar em conjunto


com outros meios probatórios, assessorando uma decisão apenas em qualidade de
indício. Porém, a realidade que se vê é a aplicação do depoimento do ofendido,
isoladamente, como um meio de prova indubitável.

Ocorre que a mente humana é imperfeita. Assim, o depoimento da vítima, de


maneira exclusiva, não deveria justificar uma ação penal, é possivel verifcar a
problemática disso ao observar os inúmeros casos de inocentes encarcerados
injustamente, através de prisão preventiva, após um reconhecimento equivocado,
apenas demonstram o descaso que emprega o poder judiciário ao auferir o conjunto
probatório.

É parte do funcionamento normal da memória ser maleável, dificilmente havendo


lembranças dos fatos exatamente da maneira que eles ocorreram, esquecendo
detalhes e adicionando outros em seu lugar, modificando o acontecimento real por
um novo, sendo este, para o individuo, considerado uma memoria exata do que
ocorreu por não perceber que lacunas foram preenchidas com acontecimentos que
não são verídicos.

Independentemente da boa intenção do locutor ou da crença no que se alega, deve


o agente estatal, de modo geral, ter consciência do funcionamento da mente
humana, devendo levar em consideração seus possiveis equívocos. Ignorar o lapso
temporal, o estresse sofrido pelo agente no momento do ocorrido, bem como as
emoções e comoções geradas posteriormente, é inconcebível.

O PROCEDIMENTO DO RECONHECIMENTO PESSOAL À LUZ DO CÓDIGO DE


PROCESSO PENAL
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O Código de Processo Penal prevê em seu artigo 226 o protocolo procedimental a


ser realizado no reconhecimento de pessoas suspeitas da prática de algum ato
delituoso.

Sucede que, até recentemente, a jurisprudência considerava o artigo 226 do CPP


(Código de Processo Penal) como uma mera recomendação legal, não sendo
obrigatório seguir o passo a passo determinado em lei, o que não tornava nulo o ato
processual que fosse praticado de maneira diversa daquele.

Nesse sentido, haviam dois protocolos utilizados para o procedimento. O


denominado reconhecimento formal, realizado seguindo todas as determinações
descritas em lei, e o reconhecimento informal, que configurava aqueles elaborados
durante o processo de investigação, não necessariamente seguindo com rigor o
descrito na legislação.

Em outubro de 2020, porém, uma decisão de Habeas Corpus da 6ª Turma do


Superior Tribunal de Justiça (HC Nº 598.886 - SC2020/0179682-3)) adotou uma
nova compreensão dos Tribunais no que se refere às sequelas da atipicidade
procedimental do ato de reconhecimento de pessoas, em razão da admissão dos
erros judiciários e graves injustiças ocasionadas pelo antigo entendimento.

Tal alteração foi estopim para que o ato informal não fosse mais admitido como
efetivamente uma forma de reconhecimento, visto que não segue as formalidades
elencadas pelo legislador.

Vale salientar, ainda, outro ponto importante abordado pela decisão do Habeas
Corpus da 6ª Turma do STJ (HABEAS CORPUS Nº 598.886 - SC (2020/0179682-
3)), sendo este o reconhecimento do acusado por meio fotográfico.

É possível verificar na ementa o exposto sobre o reconhecimento de pessoas por


meio fotográfico, definido na decisão como “ainda mais problemático”, que não deve
ser considerado prova em ação pena, principalmente quando se é realizado
simplesmente exibindo para a vítima fotos do possível suspeito extraídas de álbuns
policiais ou até mesmo de redes sociais, fotos estas já pré-selecionadas pela
autoridade policial.

Afirma ainda que, mesmo seguindo o procedimento de reconhecimento presencial


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presente no CPP (Código de Processo Penal), com adaptações, deve ser levado em
consideração a qualidade da fotografia e a ausência de expressões e trejeitos
corporais, o que podem comprometer a confiabilidade do ato.

Apesar da determinação da 6ª Turma, posteriormente, a 5ª Turma do STJ veio a


decidir em Agravo Regimental em Habeas Corpus (Nº 647.878 - SP (2021/0056550-
2)), que o reconhecimento fotográfico poderá ser utilizado como prova, seguindo a
seguinte regra:

O reconhecimento fotográfico serve como prova apenas inicial e deve ser


ratificado por reconhecimento presencial, assim que possível. E, no caso de
uma ou ambas as formas de reconhecimento terem sido efetuadas, em
sede inquisitorial, sem a observância (parcial ou total) dos preceitos do art.
226 do CPP e sem justificativa idônea para o descumprimento do rito
processual, ainda que confirmado em juízo, o reconhecimento falho se
revelará incapaz de permitir a condenação, como regra objetiva e de critério
de prova, sem corroboração do restante do conjunto probatório, produzido
na fase judicial.

Como é possível observar, o reconhecimento fotográfico poderá ser utilizado, desde


que seja prova apenas inicial, devendo ser validado o quão breve pelo
reconhecimento presencial.

Após todo o exposto, salienta-se, portanto, que atualmente o reconhecimento


pessoal que não segue a previsão do Código de Processo Penal é passível de
anulação, uma vez que não se revela evidência segura de autoria delitiva,
confirmando o status da lei como condição necessária para que o ato possa se
tornar uma ferramenta confiável de apuração de fatos.

Fomentando o entendimento, Aury Lopes Junior (2018) afirma que o


reconhecimento pessoal é um meio de prova onde não há espaço para
informalidades judiciais. Dessa forma, é possível concluir que de fato as taxas de
falibilidade desse meio de prova podem e devem ser relacionadas ao descaso com a
orientação da norma vigente.

Segundo o art. 226 do Código de Processo Penal:

Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de


pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma: I - a pessoa que tiver de fazer o
reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser
reconhecida;
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II - a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível,


ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se
quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;

III - se houver razão para recear que a pessoa chamada para o


reconhecimento por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a
verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade
providenciará para que esta não veja aquela;

IV - do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito


pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e
por duas testemunhas presenciais.

Conforme se vê, o procedimento começa com a descrição da pessoa que deverá ser
reconhecida, devendo aquela cujo reconhecimento se pretende, ser colocada
preferencialmente ao lado de outras com semelhança física.

Nos termos apontados pelo legislador, deverá sempre haver a descrição do


acusado, antes de se expor o suspeito à vítima, sendo qualquer outro protocolo,
uma violação da lei.

Ainda, deverá a autoridade policial estar atenta a qualquer indício de intimidação ou


outro tipo de influência que poderia comprometer o resultado do reconhecimento,
devendo, nessa hipótese, suspender o procedimento. Ademais, de todo o processo,
deverá ser escrito um relatório, assinado pela parte que realizou o reconhecimento,
pela autoridade policial e por duas testemunhas.

Pelo princípio da legalidade, não há o que se falar a respeito de contradizer o


disposto do art. 226 do CPP, uma vez que se o reconhecimento for realizado de
forma indevida, a força probatória se perde, não sendo mais apto a se tornar
fundamento de uma possível condenação.

Em síntese, é possível concluir que o reconhecimento pessoal é um meio de prova


passível de erro, devendo, na premissa de Mariângela Tomé Lopes (2011), ser
considerado como irrepetível e urgente, observando rigorosamente o texto
legislativo.

O INCIDENTE DAS FALSAS MEMÓRIAS NA PRÁTICA DE RECONHECIMENTO


DO TRANSGRESSOR
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Falsas memórias são definidas como recordações de eventos com algumas


distorções do fato real, como uma lembrança de algo que não ocorreu, ou que
ocorreu, porém a memória ultrapassa a experiência vivida, podendo englobar outras
interpretações e até acontecimentos contraditórios ao vivenciado.

Verifica-se que a memória advém da junção de uma lembrança armazenada e as


informações externas que circundam o agente, podendo ser influenciada pelas
emoções, novas informações ambíguas ou equivocadas e experiências de vida do
indivíduo.

As memórias não são como documentos armazenados em um disco rígido, que


poderiam ser acessadas a qualquer momento com clareza, por isso, seja por um
trauma, ou por grande emoção, boa ou ruim, o cérebro pode apagar algumas
informações com isso abrindo lacunas em algumas lembranças que ao tentarmos
evocar o nosso cérebro procurar outras informações para ocupar essas lacunas.
Toda nova informação torna-se válida para preencher as lacunas nas lembranças, e
com isso o cérebro passa a entender essas novas informações como parte da
lembrança originária.

Independentemente da boa intenção do locutor ou da crença no que se alega, é


parte do funcionamento normal da memória ser maleável, dificilmente havendo
lembranças dos fatos exatamente da maneira que ocorreram, esquecendo detalhes
e acrescentando outros em seu lugar.

Nesse sentido, insta salientar que as informações criadas por estes eventos não são
caracterizadas como mentiras, uma vez que o sujeito acredita no que alega, não
possuindo consciência das informações distorcidas ou fabricadas.

Tal fenômeno pode ser exemplificado em situações cotidianas, como por exemplo,
não lembrar de ter trancado a porta ao sair, ou recordar de ter colocado a chave de
casa na bolsa e ao verificar, auferir que a deixou sobre o balcão.

Um exemplo da influência da emoção nas falsas memórias é dado por Elizabeth


Loftus é de que quando tinha 14 anos sua mãe faleceu, após um tempo lhe foi dito
que ela quem encontrou o corpo, com essa informação a pesquisadora começou a
ter lembranças de como teria sido, como teria se sentindo, e outros detalhes do
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ocorrido no dia, passado um tempo a pessoa que lhe havia dado essa informação
disse que teria se enganado e que não foi ela que encontrou a mãe morta.

Embora algumas falsas memórias possam ser inofensivas, outras, podem ser
fatores decisivos. No prisma jurídico, um dos âmbitos processuais onde se pode
obter a presença de danos causados pela presença das falsas memórias, é na
prática do reconhecimento pessoal de um infrator.

Nesses casos, para que seja obtida maior eficácia, é necessário levar em
consideração algumas nuances que podem influenciar na identificação de um
transgressor, como o tempo de exposição e contato da vítima com o agressor, a
gravidade dos fatos e a forte emoção passada pela vítima, se observados os
estudos feitos por Martinez, Fariña e Fernandez.

Segundo uma pesquisa realizada pelo professor Brandon Garrett erros de


identificação por testemunha oculares foram observados em 76% dos casos, sendo
que os inocentes condenados em sua maioria de 70% era composta pela minoria
racial, tendo sido condenados em média aos 20 anos e cumprido mais ou menos 13
anos de pena antes de ser observado que eram inocentes.

Não satisfeito com apenas saber a quantidade de equivocos Garret resolveu


catalogar o motivo dos erros ocorridos, como observado na tabela abaixo.

NOJIRI, Sergio. O Direito e Suas Interfaces com a Psicologia e a Neurociência. 1. ed. Curitiba:
Editora Appris, 2019. p. 1-367.
8

Com o exposto, é importante salientar que esses equivocos são comuns não so
entre testemunas oculares, como muito frequente no reconhecimento pessoal feito
pelas vitimas de crimes.

Ademais, os estereótipos culturais e sociais podem ser de grande influência na


percepção do sujeito, como observado na própria pesquisa de Garret. Isto, porque, a
perspectiva de uma pessoa sobre qualquer assunto, é formada por suas
experiências anteriores, bem como pela concepção da sociedade em que habita.

Nesse sentido, uma falsa memória pode ter relação com a expectativa ao fato
(FLECH, 2012), podendo um estereótipo ser facilmente enredado a estigmatização
do criminoso, sendo suficiente apenas a sugestionabilidade desse fator para
interferir na lembrança.

A incorporação de perguntas com caráter tendencioso, por exemplo, é capaz de


direcionar a imaginação da vítima e, por conseguinte, possibilitar a implantação de
um estereótipo.

O estereótipo do criminoso é descrito por Elizabeth Loftus (2006) como “uma forma
de conhecimento e de convicção estruturada de forma rígida, mesmo que
apresentadas informações contrárias a ela".

Com isso, conclui-se que pode ser elencado a teoria do etiquetamento, observando
uma de suas caracter sticas, qual seja, o delinquente n o o que pratica crimes,
entretanto aquele que recebe uma etiqueta de delinquente (L , 2000 apud
L ), o que influencia fortemente na hora do reconhecimento do transgressor

A existência das falsas memórias ainda um considerado “tabu” no meio jur dico,
porém, recentemente, o tópico começou a ser levado em consideração nas decisões
e julgamentos, inclusive, na decisão da 6ª Turma do STJ do HABEAS CORPUS Nº
598.886 - SC (2020/0179682-3), que passou a entender que o reconhecimento
pessoal deve seguir estritamente o art. 226 do CPP, abordando, inclusive a
falibilidade da memória, conforme aludido:

“Segundo estudos da Psicologia moderna, s o comuns as falhas e os


equívocos que podem advir da memória humana e da capacidade de
armazenamento de informações. Isso porque a memória pode, ao longo do
tempo, se fragmentar e, por fim, se tornar inacessível para a reconstrução
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do fato. O valor probatório do reconhecimento, portanto, possui considerável


grau de subjetivismo, a potencializar falhas e distorções do ato e,
consequentemente, causar erros judiciários de efeitos deletérios e muitas
vezes irrevers veis ”

Dito isso, é possível identificar a incidência das falsas memórias em relatos no


momento do reconhecimento do transgressor, principalmente por que esses eventos
ocorrem, em sua maioria, devido às fortes emoções passadas pelo agente, tornando
o valor probatório da palavra da vítima, de procedência subjetiva.

O VALOR PROBATÓRIO DA PALAVRA DA VÍTIMA NA JUSTIÇA CRIMINAL

Não é descomedimento alegar que no âmbito processual penal, o depoimento do


ofendido deixou de ser considerado uma ferramenta de apuração de fatos, para se
tornar um meio de prova definitivo.

Consoante se vê nas ementas de decisões do Tribunal de alçada Criminal do Estado


de São Paulo:

“A palavra da vítima de roubo tem, no desate da causa, importância primeira


porque, havendo-se defrontado com o agente, está em condições de
reconhecê-lo por autor do crime (TACrimSP; Ap. Crim. nº 1.030.453/8) ”

“ circunstância de só as v timas terem presenciado o roubo n o


enfraquece a imputação. É ponto vitorioso na Jurisprudência, deveras, que
basta a palavra da vítima para provar o fato e sua autoria. A menos se
demonstre que incidiu em erro ou faltou com a verdade (ônus de que se
deve desempenhar o réu), suas declarações têm carta de crença e
autorizam condenação (TACrimSP; Ap. Crim. nº 1.113.745/9).”

“ palavra da v tima, nos crimes de roubo, suficiente para fundamentar


condenação, máxime se em conformidade com outros elementos de prova.
São as seguintes as razões em que se apoia esse entendimento: I -
repugna à condição humana que alguém incrimine inocentes; II - a vítima
tem interesse direto em acusar aquele unicamente que a roubou, porque
desse apenas poderá reaver a “res furtiva” (TACrimSP; Ap. Crim. nº
1.148.877/3) ”

Os entendimentos, em suma, ao justificar a utilização da palavra da vítima como


meio de prova, se basearam no fato de as vítimas terem presenciado o
acontecimento e na suposição de que não teriam interesse em condenar um
inocente. Tais apreciações são antiquadas e claramente ultrapassadas, porém,
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lamentavelmente, ainda é a concepção de muitos daqueles que detém poder de


jurisdição.

Ocorre que, diferentemente de um dispositivo eletrônico, capaz de auferir com


segurança qualquer episódio, o cérebro humano é passível de interferências
externas que prejudicam o processamento de informações, sobretudo quando
relacionadas a situações traumáticas.

Necessário explicitar que em momento algum se fala em desmerecer a palavra da


vítima, eis que possui reflexo relevante na construção probatória, mas em
compreender que a mente humana é falha. Nesse sentido, considerar apenas a
narrativa do sujeito prejudicado, sem observar outros meios de prova, é no mínimo
uma prática irresponsável.

Fato é que apenas o depoimento da vítima não justifica uma ação penal. Uma vez
que o contexto probatório visa comprovar a veracidade do alegado, é incognoscível
uma alegação, isoladamente, ser considerada meio de prova.

Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci (2015) exemplifica a prova plena, como
algo com valor suficiente para, por si só, fundamentar uma decisão judicial. O
depoimento pessoal, porém, está relacionado à afirmação de uma pessoa, sendo
suficiente para fundamentar os fatos que se pretende provar, mas devendo caminhar
em conjunto com outros meios probatórios, ou seja, poderá assessorar a decisão
apenas em qualidade de indício, não se baseando unicamente nessa prova
específica.

Corroborando ao entendimento, veja:

APELAÇÃO CRIMINAL - PENAL - TENTATIVA DE EXTORSÃO -


CONDENAÇÃO FUNDADA TÃO SOMENTE NA PALAVRA DA
VÍTIMA - TESTEMUNHAS QUE NADA ACRESCENTAM AO
DESLINDE DA CAUSA - ABSOLVIÇÃO - PROVIMENTO. Em que
pese o fato de a palavra da vítima, mormente em crimes
patrimoniais, ser utilizada como um dos fundamentos para justificar a
condenação, tal circunstância não permite sua utilização isolada
como meio de prova, mais ainda quando as testemunhas ouvidas
não colacionam ao feito maiores elementos para o deslinde da
causa. Na falta da mínima instrução judicial, a absolvição da ré é
medida imperativa, sob pena de se violar os princípios do devido
processo legal e contraditório. Apelação Criminal defensiva a que se
dá provimento, para absolver a acusada das imputações constantes
da peça acusatória.(TJ-MS - APR: 8854 MS 2008.008854-1, Relator:
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Des. Carlos Eduardo Contar, Data de Julgamento: 02/03/2009, 2ª


Turma Criminal, Data de Publicação: 24/03/2009).

Casos de inocentes sendo presos, sem julgamento, com prisões preventivas


embasadas em provas inconsistentes, demonstram graves falhas do sistema
punitivo brasileiro. Apenas o reconhecimento facial realizado pela vítima, não
justifica incriminar o acusado.

O acima exposto, porém, apenas salienta a necessidade de um debate quanto à


segurança jurídica promovida pelo poder estatal.

Alexandre de Moraes (2007), estabelece a presunção de inocência como uma


garantia processual penal e um dos princípios essenciais do Estado de Direito, que
impede a condenação do réu sem a plena certeza de sua culpabilidade, garantindo a
razoabilidade e imparcialidade nos julgamentos. A sua aplicação deverá ocorrer no
campo probatório, e enquanto o Estado não provar a culpabilidade do acusado, este
deverá ser presumido inocente.

Ainda, um dos principais princípios relativos à prova penal, é o princípio da audiência


contraditória, que garante que para toda prova produzida por uma das partes,
deverá ser oportunizada a produção de uma contraprova pela parte contrária. Tal
preceito também se encontra tipificado na Carta Magna, em seu artigo 5º, inciso LV.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados


em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e
recursos a ela inerentes;

Apesar disso, contudo, a Coordenadoria de Defesa Criminal e da Diretoria de


Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria Pública do Estado do Rio
de Janeiro, publicou um relatório que aponta erro em pelo menos 47 casos no
estado, onde 58 pessoas foram presas injustamente, tendo sido a prisão embasada
apenas no reconhecimento fotográfico dos querelados.
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Salienta-se que estes são apenas os processos computados ocorridos no Estado do


Rio de Janeiro. Importante, ainda, informar, que dos 58 acusados detidos, 40 deles
eram negros.

Considerando o peso empregado à palavra da vítima como fator probatório, não


sendo aplicado o devido esforço para comprovação das alegações, a maioria das
prisões preventivas pode sequer ser considerada fundamentada, antecipando,
erroneamente, o dano da condenação.

Por conseguinte, a falibilidade do poder judiciário demonstrada na quantidade de


casos de prisões equivocadas, não apenas são injustificadas, mas demonstram o
descaso com os preceitos do Direito Penal.

O que se vê, é uma cultura intrínseca à necessidade de encontrar um culpado,


malgrado a comprovação de sua culpabilidade.

CONCLUSÃO

O presente artigo analisou o fenômeno das falsas memórias e como sua ocorrência
acarreta em prejuízo no âmbito criminal, em específico nas hipóteses de
reconhecimento pessoal de um infrator.

Conforme exposto, em diversas ocasiões, o evento das falsas memórias apresentam


uma grave ameaça à credibilidade do processo penal, colocando em cheque a
segurança jurídica conferida à sociedade, uma vez que um erro pode ser
responsável por comprometer a dignidade do acusado por toda a vida.

Com base nisso, foi abordada a falha do Poder Judiciário em auferir o conjunto
probatório, levando mais em consideração a lembrança da vítima do que as provas
técnicas necessárias para a efetividade de uma ação penal.

A natureza contingente da memória, o despreparo para realização das investigações


criminais e a seletividade da justiça, tornam oscilantes os resultados processuais,
privando o acusado de direitos básicos conjecturados pelo ordenamento brasileiro.
13

Foi constatada, portanto, a fragilidade da prova de reconhecimento pessoal,


salientando-se, de plano, a necessidade de dar efetividade ao regulamentado na
legislação, de modo a auferir uma condenação axiomática.

Após aprofundado estudo, conclui-se a existência de preocupante becha do Poder


Judiciário ao garantir plena prestabilidade social. Ferindo direitos, ignorando
princípios como o da isonomia e ampla defesa e concedendo indevida credibilidade
a mecanismos tão incertos como a memória humana, apenas reforça a necessidade
de uma reestruturação jurídica, capaz de preservar a equanimidade para todos.

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SUPERIOR TRIBUNAL FEDERAL - 6ª TURMA. Ministro Rogério Schietti.


27/10/2020. Habeas Corpus 598.886 SC 2020/0179682-3, 18 dez. 2020. Disponível
em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/1206308161/habeas-corpus-hc-
598886-sc-2020-0179682-3/inteiro-teor-1206308173. Acesso em: 1 out. 2021.

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