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Superior Tribunal de Justiça

HABEAS CORPUS Nº 639.792 - RS (2021/0010669-9)

RELATOR : MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ


IMPETRANTE : MATHEUS GONCALVES DOS SANTOS TRINDADE
ADVOGADO : MATHEUS GONÇALVES DOS SANTOS TRINDADE -
RS101928
IMPETRADO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO
GRANDE DO SUL
PACIENTE : JEFERSON TABORDA PEREIRA
INTERES. : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO
GRANDE DO SUL
EMENTA

HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO.


RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO DE PESSOA
REALIZADO NA FASE DO INQUÉRITO POLICIAL.
INOBSERVÂNCIA DO PROCEDIMENTO PREVISTO NO ART.
226 DO CPP. RECONHECIMENTO PRESENCIAL. ACUSADO
SOZINHO NA CELA. PROVAS INVÁLIDAS COMO
FUNDAMENTO PARA A PRONÚNCIA. RIGOR PROBATÓRIO.
NECESSIDADE PARA EVITAR ERROS JUDICIÁRIOS. ORDEM
CONCEDIDA.
1. O reconhecimento de pessoa, presencialmente ou por fotografia,
realizado na fase do inquérito policial, apenas é apto, para identificar
o réu e fixar a autoria delitiva, quando observadas as formalidades
previstas no art. 226 do Código de Processo Penal e quando
corroborado por outras provas colhidas na fase judicial, sob o crivo
do contraditório e da ampla defesa.
2. Ainda mais problemático é o reconhecimento de pessoa por meio
fotográfico, máxime quando se realiza por simples exibição ao
reconhecedor de fotos do conjecturado suspeito extraídas de álbuns
policiais ou de redes sociais, já previamente selecionadas pela
autoridade policial. Mesmo quando se procura seguir, com
adaptações, o procedimento indicado no Código de Processo Penal
para o reconhecimento presencial, não há como ignorar que o caráter
estático, a qualidade da foto, a ausência de expressões e trejeitos
corporais e a quase sempre visualização apenas do busto do suspeito
podem comprometer a idoneidade e a confiabilidade do ato.
3. Os requisitos procedimentais positivados no art. 226 do CPP não
se traduzem, como se tem compreendido, em “mera recomendação”
do legislador. As formalidades ali previstas constituem garantia
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mínima para quem se vê na condição de suspeito da prática de um
crime.
4. De todo urgente que se adote um novo rumo na compreensão dos
Tribunais acerca das consequências da atipicidade procedimental do
ato de reconhecimento formal de pessoas, sob pena de se referendar
a perpetuação desse foco de erros judiciários e, consequentemente,
de graves injustiças.
5. A inobservância de tal procedimento legal enseja a nulidade da
prova, que não pode servir de lastro para a pronúncia. Ainda que
confirmado em juízo, o ato realizado na fase inquisitorial não tem o
condão de formar, legitimamente, o convencimento judicial sobre a
autoria do crime; imperioso se faz que outras provas, por si mesmas,
conduzam o magistrado a se convencer acerca da autoria delitiva.
6. Sob a égide de um processo penal comprometido com os direitos e
os valores positivados na Constituição da República, busca-se uma
verdade processual em que a reconstrução histórica dos fatos objeto
do juízo se vincula a regras precisas, que assegurem às partes um
maior controle sobre a atividade jurisdicional; uma verdade, portanto,
obtida de modo “processualmente admissível e válido” (Figueiredo
Dias).
7. A expressão “se possível”, constante do inciso II do art. 226,
refere-se ao requisito de serem colocadas pessoas que portem
similitude com a que deva ser reconhecida, não com a exigência da
disposição de várias pessoas, umas do lado das outras.
8. Na espécie, o reconhecimento do paciente, por uma das
testemunhas, se deu por meio fotográfico, ocasião em que o
depoente “não quis falar nada”, mas, em seguida, contraditoriamente,
afirmou que não tem dúvidas sobre quem é autor dos fatos. A outra
testemunha que reconheceu o réu, o fez por meio da janela de
reconhecimento, oportunidade em que o acusado estava sozinho na
cela. Não se seguiu minimamente o roteiro normativo previsto no
Código de Processo Penal, na medida em que não houve prévia
descrição da pessoa a ser reconhecida, nem sequer se exibiram outras
fotografias de possíveis suspeitos.
9. As falhas e as inconsistências dos reconhecimentos em desfavor
do paciente dão ensejo à declaração de nulidade dos atos respectivos,
ante a inexistência de qualquer outra prova independente e idônea a
formar o convencimento judicial sobre a autoria do crime que lhe foi
imputado.
10. Ordem concedida para anular a decisão de pronúncia e
determinar a expedição de alvará de soltura em favor do paciente, se
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por outro motivo não estiver preso.
ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,


acordam os Ministros da Sexta Turma, por unanimidade, conceder o habeas
corpus, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Antonio
Saldanha Palheiro, Laurita Vaz e Sebastião Reis Júnior votaram com o Sr.
Ministro Relator.
Dr. MATHEUS GONÇALVES DOS SANTOS TRINDADE, pela
parte PACIENTE: JEFERSON TABORDA PEREIRA

Brasília, 16 de março de 2021

Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ

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HABEAS CORPUS Nº 639.792 - RS (2021/0010669-9)
RELATOR : MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ
IMPETRANTE : MATHEUS GONCALVES DOS SANTOS TRINDADE
ADVOGADO : MATHEUS GONÇALVES DOS SANTOS TRINDADE -
RS101928
IMPETRADO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO
GRANDE DO SUL
PACIENTE : JEFERSON TABORDA PEREIRA
INTERES. : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO
GRANDE DO SUL

RELATÓRIO

O SENHOR MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ:


JEFERSON TABORDA PEREIRA alega sofrer
constrangimento ilegal diante de acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça
do Estado do Rio Grande do Sul (Recurso em Sentido Estrito n.
70084023332 – 00406920040692-36.2020.8.21.7000).

Nesta Corte, sustenta a defesa, em síntese, a ilegalidade da


utilização de prova alegadamente ilegítima para o reconhecimento
extrajudicial do acusado, dada a suscitada inobservância do disposto no art.
226 do Código de Processo Penal. Assevera que “não há nenhuma outra
prova capaz de embasar a autoria” (fl. 7).

Requer o reconhecimento da nulidade da decisão de pronúncia


do paciente, nos autos do Processo n. 019/2.19.0001942-0 (Ação Penal n.
0004514-16.2019.8.21.0019).

Em que pese afirme o impetrante que o habeas corpus contém


pedido liminar (fl. 3), a referida postulação urgente não está contida na
conclusão do writ (fl. 9).

Prestadas as informações (fls. 522-580), manifestou-se o


Ministério Público Federal pela denegação da ordem (fls. 585-587).

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EMENTA

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REALIZADO NA FASE DO INQUÉRITO POLICIAL.
INOBSERVÂNCIA DO PROCEDIMENTO PREVISTO NO ART.
226 DO CPP. RECONHECIMENTO PRESENCIAL. ACUSADO
SOZINHO NA CELA. PROVAS INVÁLIDAS COMO
FUNDAMENTO PARA A PRONÚNCIA. RIGOR PROBATÓRIO.
NECESSIDADE PARA EVITAR ERROS JUDICIÁRIOS. ORDEM
CONCEDIDA.
1. O reconhecimento de pessoa, presencialmente ou por fotografia,
realizado na fase do inquérito policial, apenas é apto, para identificar
o réu e fixar a autoria delitiva, quando observadas as formalidades
previstas no art. 226 do Código de Processo Penal e quando
corroborado por outras provas colhidas na fase judicial, sob o crivo
do contraditório e da ampla defesa.
2. Ainda mais problemático é o reconhecimento de pessoa por meio
fotográfico, máxime quando se realiza por simples exibição ao
reconhecedor de fotos do conjecturado suspeito extraídas de álbuns
policiais ou de redes sociais, já previamente selecionadas pela
autoridade policial. Mesmo quando se procura seguir, com
adaptações, o procedimento indicado no Código de Processo Penal
para o reconhecimento presencial, não há como ignorar que o caráter
estático, a qualidade da foto, a ausência de expressões e trejeitos
corporais e a quase sempre visualização apenas do busto do suspeito
podem comprometer a idoneidade e a confiabilidade do ato.
3. Os requisitos procedimentais positivados no art. 226 do CPP não
se traduzem, como se tem compreendido, em “mera recomendação”
do legislador. As formalidades ali previstas constituem garantia
mínima para quem se vê na condição de suspeito da prática de um
crime.
4. De todo urgente que se adote um novo rumo na compreensão dos
Tribunais acerca das consequências da atipicidade procedimental do
ato de reconhecimento formal de pessoas, sob pena de se referendar
a perpetuação desse foco de erros judiciários e, consequentemente,
de graves injustiças.
5. A inobservância de tal procedimento legal enseja a nulidade da
prova, que não pode servir de lastro para a pronúncia. Ainda que
confirmado em juízo, o ato realizado na fase inquisitorial não tem o
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condão de formar, legitimamente, o convencimento judicial sobre a
autoria do crime; imperioso se faz que outras provas, por si mesmas,
conduzam o magistrado a se convencer acerca da autoria delitiva.
6. Sob a égide de um processo penal comprometido com os direitos e
os valores positivados na Constituição da República, busca-se uma
verdade processual em que a reconstrução histórica dos fatos objeto
do juízo se vincula a regras precisas, que assegurem às partes um
maior controle sobre a atividade jurisdicional; uma verdade, portanto,
obtida de modo “processualmente admissível e válido” (Figueiredo
Dias).
7. A expressão “se possível”, constante do inciso II do art. 226,
refere-se ao requisito de serem colocadas pessoas que portem
similitude com a que deva ser reconhecida, não com a exigência da
disposição de várias pessoas, umas do lado das outras.
8. Na espécie, o reconhecimento do paciente, por uma das
testemunhas, se deu por meio fotográfico, ocasião em que o
depoente “não quis falar nada”, mas, em seguida, contraditoriamente,
afirmou que não tem dúvidas sobre quem é autor dos fatos. A outra
testemunha que reconheceu o réu, o fez por meio da janela de
reconhecimento, oportunidade em que o acusado estava sozinho na
cela. Não se seguiu minimamente o roteiro normativo previsto no
Código de Processo Penal, na medida em que não houve prévia
descrição da pessoa a ser reconhecida, nem sequer se exibiram outras
fotografias de possíveis suspeitos.
9. As falhas e as inconsistências dos reconhecimentos em desfavor
do paciente dão ensejo à declaração de nulidade dos atos respectivos,
ante a inexistência de qualquer outra prova independente e idônea a
formar o convencimento judicial sobre a autoria do crime que lhe foi
imputado.
10. Ordem concedida para anular a decisão de pronúncia e
determinar a expedição de alvará de soltura em favor do paciente, se
por outro motivo não estiver preso.

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VOTO

O SENHOR MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ (Relator):


I. Contextualização

Expõem os autos que, no dia 19/12/2019, a Magistrada de


primeiro grau pronunciou o réu, vulgo “Gugu”, pela suposta prática do crime
tipificado no art. 121, § 2º, I, III e IV, do Código Penal, a fim de lhe submeter
a julgamento pelo Tribunal popular (fls. 10-18).

No tocante ao reconhecimento do acusado, assim concluiu o


Juízo singular (fls. 12-16, grifei):
1.2 Da preliminar de nulidade do reconhecimento pessoal
Aduz a defesa, ainda, em preliminar, que a instrução deveria ser
anulada, uma vez que o reconhecimento pessoal realizado em
audiência não teria obedecido as regras do art. 226 do CPP.
Pois bem, analisando os autos, verifico que, de fato, foi realizado
reconhecimento pessoal com apenas o réu na cela, sem que
fossem colocados junto a ele outros indivíduos. Friso que assim o
foi porque dificilmente outras pessoas voluntariam-se para ficar
ao lado dos acusados que, nesta Vara, são indivíduos que
respondem a processos por crimes dolosos contra a vida.
Ademais, adianto, o reconhecimento realizado em audiência em
nada modificou as demais provas de autoria trazidas aos autos,
que serão consideradas isoladamente e já são suficientes para a
pronúncia. Assim, não vislumbro prejuízo ao réu, pelo que afasto
também a presente preliminar.
[...]
No tocante à autoria, tenho que os indícios existentes nos autos
são suficientes para a pronúncia do acusado. Se não vejamos.
Claudio Roberto Muller Monteiro, em seu depoimento disse que é
policial civil e que atuou na ocorrência. [...] O réu foi reconhecido
por quem estava dentro do bar e outra pessoa que o viu se
evadindo do local. Lucas, que reconheceu o réu, estava com
medo de represálias. Jéferson já era conhecido da delegacia por
outros crimes violentos. Cerca de um mês depois, Jéferson foi preso
com uma pistola de mesmas características da usada na execução, mas
ainda não voltou da perícia. Pessoas disseram que Jéferson foi
visto na rua um ou dois dias antes, aparentemente sondando o
local.
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[...]
Lucas Garcia Braum, em seu depoimento disse que era vizinho de
Samuel [...]. Viu a foto do acusado na delegacia, mas não quis
falar nada. Não gostaria de ver o acusado. Tem medo de
represálias. Ouviu falar que a alcunha do executor era Gugu. O
veículo que os executores chegaram era um Celta prata. Nunca teve
dúvidas sobre quem é o autor, pois estava de frente, inclusive, um
dos disparos passou do seu lado e atingiu uma porta que havia atrás
do depoente. [...] O executor é moreno e com barbicha, com olhos
claros bonitos. Estava sentado quando ocorreu.
[...]
Os depoimentos prestados permitem concluir, diferentemente do que
alegado pela defesa, que existem indícios de autoria e participação
no delito, principalmente em função dos depoimentos das
testemunhas Cláudio Roberto, Valdemar, Eduarda e Lucas, que
afirmaram categoricamente ser o acusado o autor do fato. Lucas,
que estava no local dos fatos quando do crime, inclusive, em fase
policial, reconheceu o réu como sendo o atirador.
Assim, como cabe à sentença de pronúncia, nos processos de
competência do Tribunal do Júri, somente encerrar a fase de formação
da culpa (juízo de admissibilidade da acusação), deve ser o réu
pronunciado.

A Corte estadual deu parcial provimento ao recurso em sentido


estrito, para afastar a qualificadora do perigo comum.

Eis o que concluiu a 1ª Câmara Criminal, quanto ao art. 226 do


CPP (fls. 23-38, destaquei):
Em caráter prefacial, [o réu] suscita teses de violação ao princípio da
presunção de inocência, ao argumento de que indevida a observância
do in dubio pro societate, e de invalidade do reconhecimento
constante no processo, porquanto realizado em desacordo com o
artigo 226 do Código de Processo Penal. No mérito, pugna pela
despronúncia, ao argumento de ausência de indícios suficientes de
autoria [...].
[...]
Anoto, por primeiro, mostrar-se descabida a alegação de
invalidade do reconhecimento (fotográfico) do acusado na fase
das indagações e de invalidade do reconhecimento (pessoal) do
acusado na fase judicial, pois a regra posta no artigo 226 do
Código de Processo Penal contempla meras recomendações
para a realização do ato, com o que nada obsta que seja

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realizado e modo diverso.
Nesse sentido, remansosa a orientação do Superior Tribunal de
Justiça, consoante faz ver o aresto assim ementado:

PENAL. PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL


NO RECURSO ESPECIAL. ROUBO. QUADRILHA.
ARTIGOS 157, § 2º, INCISO I, E 288, PARÁGRAFO
ÚNICO, DO CP. [...] ART. 226 DO CPP.
RECONHECIMENTO. LEGALIDADE. [...]
[...]
3. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é no sentido
de que as disposições insculpidas no art. 226 do Código de
Processo Penal configuram uma recomendação legal, e não
uma exigência, não se cuidando, portanto, de nulidade
quando praticado o ato processual (reconhecimento
pessoal) de modo diverso. Ademais, nos termos do
entendimento firmado neste Tribunal, as disposições contidas
no art. 226 do Código de Processo Penal
consubstanciam-se em recomendações legais e não em
exigências, não sendo causa de nulidade, notadamente se o
reconhecimento foi realizado pelas vítimas e testemunhas em
juízo, sob o crivo do contraditório, e amparado por outros
elementos de prova, conforme ocorrido in casu (HC
302.302/RJ, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, Quinta Turma,
julgado em 15/9/2015, DJe 5/10/2015).
[...]
6. Agravo regimental não provido.
(AgRg no REsp 1243675/SP, Rel. Ministro REYNALDO
SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em
23/08/2016, DJe 29/08/2016)

A acrescer, no que respeita ao reconhecimento judicial do


acusado, atingir as raias da absurdidade a alegação de que a
Drª. Promotora de Justiça induziu a testemunha para que
reconhecesse judicialmente o acusado quando afirmou “não se
preocupe, ele não vai ver a senhora”, pois evidente que a colação
da representante do Ministério Público, oportuna, registre-se, apenas
informou para a testemunha que o indivíduo que se encontrava na sala
de reconhecimento não poderia enxergá-la, o que, sob qualquer ótica,
não guarda relação alguma com a identificação ou não pela
testemunha.
E, por segundo, ao contrário do alegado, que o brocardo in dubio
pro societate, contemplado na doutrina e na jurisprudência,

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relativamente judicium accusationis atinente aos processos da
competência do Tribunal do Júri, resulta, em verdade, da
circunstância de que, nessa fase, não vige o princípio (este sim) do in
dubio pro reo. E pela singela razão de que se está diante de mera
admissibilidade da pretensão acusatória, pois a decisão de
condenação ou absolvição do acusado compete, modo exclusivo,
ao Conselho de Sentença.
Mais, o princípio do favor rei não se confunde com o da
presunção de inocência insculpido no art. 5º, LVII, da
Constituição Federal, mas dele decorre e constitui um aspecto que
guarda relação com a avaliação da prova cuja insuficiência, quer para
evidenciar a existência do fato, quer a da autoria desse, impõe a
prolação de decisão absolutória.
Oportuno salientar que a legislação infraconstitucional traz dispositivo
que, expressamente, contempla o princípio do in dúbio pro reo, o art.
386, inc. VI, do Código de Processo Penal, estabelecendo que
fundada dúvida acerca da presença de causa que exclua o crime ou a
culpabilidade determina solução absolutória.
Claro está, outrossim, que a previsão tem a ver, tão-somente, com
resultado final da ação penal, que leva à condenação ou à
absolvição do acusado e, por isso, guarda relação com o estado de
inocência.
Todavia, como no judicium accusationis, não há possibilidade de
prolação de decisão condenatória, senão que apenas a de
admissibilidade da acusação, pois reservada aquela, modo exclusivo
e por disposição constitucional, ao Tribunal do Júri, não há cogitar da
observância do favor rei na fase de pronúncia, pois nessa, em
hipótese alguma, poderá o réu ser condenado.
De outra banda, poderá o juiz singular, isto sim, absolver o
acusado, o que constitui exceção à regra constitucional que
confere ao Tribunal do Júri competência para o julgamento dos
processos que envolvam a prática de crimes contra a vida. Mais,
tanto se afigura permitido em quatro hipóteses [art. 415, incisos I
a IV, do CPP], tão-somente, e passam elas ao largo da dúvida.
Aliás, as hipóteses de absolvição sumária foram retiradas daquelas
previstas no art. 386 do Código de Processo Penal que trata de
decisão absolutória nos processos da competência do juiz singular.
Contudo, não foram reproduzidas no art. 415 do precitado diploma
legal as que guardam relação com eventual dúvida, a saber: não
haver prova da existência do fato; não existir prova de ter o réu
concorrido para a infração penal; houver fundada dúvida acerca da
existência de circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de
pena; não existir prova suficiente para a condenação.

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Resulta evidente, portanto, que o legislador infraconstitucional
afastou a incidência do princípio do in dúbio pro reo na fase do
judicium accusationis dos processos instaurados pela prática de
crimes contra a vida. E o fez, repise-se, em virtude da competência,
de previsão constitucional, conferida ao Tribunal do Júri, para
julgamento das ações penais instauradas em virtude do cometimento
de tais infrações.
E doutrina e jurisprudência, definiram, inapropriadamente, tal situação,
criando o brocardo (de princípio não se trata) in dubio pro societate,
hoje largamente utilizado quando presente dúvida que, diante da não
observância (repita-se, estabelecida pelo legislador) do favor rei, não
enseja a impronúncia, senão que impõe a sujeição do réu a julgamento
pelo Tribunal do Júri.
Registro, ainda, diante do consignado pela defesa, que de presunção
(a favor da acusação) não se trata, tampouco de inversão no ônus da
prova, senão que de permitir que os elementos probatórios sejam
aferidos por quem é competente para realizar o julgamento, o Tribunal
do Júri.
Mais, tratando-se o judicium accusationis de mero juízo de
admissibilidade da acusação, revela-se anódina a questão,
sempre ventilada na ausência de outros argumentos, atinente à
presunção de inocência, mesmo porque nenhuma decisão de
pronúncia atribui ao réu a condição de culpado, senão que
admite a acusação, o que tem o só significado de submeter esse a
julgamento por seus pares.
Por isso que não se está diante de alteração da presunção referida, de
hierarquia constitucional, por norma infraconstitucional, estando-se, se
observado o quanto pretendido pela defesa, isto sim, a usurpar a
competência constitucionalmente conferida ao Tribunal do Júri.
Por outro turno, pode-se ter dúvida sobre ser o réu, ou não, autor
da infração, mas não acerca da presença, ou não, de indícios
suficientes de autoria, mesmo porque se encontra em dicionário
como significado de indícios circunstâncias que estabelecem uma
relação com o crime, sendo, a partir delas, possível estabelecer
hipóteses sobre os culpados ou sobre a maneira como o crime foi
cometido.
[...]
Aliás, no caso presente, vê-se que o sentenciante, em caráter
preliminar e porque instado pela defesa a se manifestar genericamente
sobre o tema, limitou-se a afirmar que a sentença de pronúncia deve
ser prolatada com a observância do brocardo in dubio pro societate
e não do princípio do in dubio pro reo, que da presunção de
inocência decorre, registrando, logo após, que deve ser determinado o

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julgamento de crimes dolosos contra a vida pelo Tribunal do Júri
quando existentes provas da materialidade do crime e indícios
suficientes de autoria, o que, como visto, decorre de competência
constitucionalmente outorgada aos jurados e de procedimento
expressamente previsto na legislação processual penal. E não
manifestou, a propósito, dúvida alguma com relação à existência
de indícios de autoria – o que, à evidência, não seria possível fazer,
porquanto se trata de questão objetiva, como visto.
[...]
Assim, afirmada a autoria recusada pelo denunciado por
testemunhas que presenciaram o crime, tanto é o que basta para
a submissão do denunciado a julgamento perante o Tribunal do
Júri.

O 2º Vice-Presidente do Tribunal de origem não admitiu o


reclamo especial defensivo (fls. 556-564). Ofício da autoridade apontada
como coatora, de 18/1/2021, noticia que, contra tal decisão de
inadmissibilidade, foi interposto agravo, ainda em processamento (fls.
579-580).

Feitos esses registros, passo ao exame das pretensões


defensivas.

II. O reconhecimento de pessoas como meio probatório

Aduz a defesa, em síntese, que a pronúncia reconheceu a


existência de indícios suficientes de autoria com esteio no reconhecimento
pessoal do paciente “operado por Eduarda, em juízo, e Lucas, em sede de
investigação, sem a observância mínima dos preceitos previstos no art. 226
do CPP” (fl. 6, grifei).

Assevera que os reconhecimentos do acusado não foram


corroborados por outros elementos probatórios (fls. 6-7).

Antes, contudo, de adentrar o mérito da discussão, convém


salientar que o exame da controvérsia não demanda reexame de prova –
inviável no rito de cognição estreita do habeas corpus –, mas sim aferição da
validade de prova, o que é perfeitamente admitido no julgamento do writ.

Feitos esses esclarecimentos, faço lembrar que, segundo o


disposto no art. 155 do CPP, “O juiz formará sua convicção pela livre
apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo
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fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos
colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e
antecipadas” (destaquei). Trata-se da chamada garantia do livre convencimento
motivado.

O art. 157 do CPP, por sua vez, dispõe que “são


inadmissíveis”, no processo penal, “as provas ilícitas, assim entendidas as
obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”, e as provas delas
derivadas, “salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e
outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte
independente” das primeiras (caput e § 1º, grifei).

No tocante ao reconhecimento de pessoas e coisas, o Código de


Processo Penal dedica três sucintos artigos (arts. 226, 227 e 228).

Em relação ao reconhecimento de pessoas, o art. 226 estabelece


que o ato deverá ocorrer da seguinte forma: a pessoa que tiver de fazer o
reconhecimento será convidada a descrever o indivíduo que deva ser
reconhecido (art. 226, I); a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será
colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem semelhança,
convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la (art. 226, II);
se houver razão para recear que a pessoa chamada para realizar o ato, por
intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa a ser
reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela
(art. 226, III); do ato de reconhecimento lavrar-se-á termo pormenorizado,
subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao
reconhecimento e por duas testemunhas presenciais (art. 226, IV).

Guilherme de Souza Nucci conceitua o reconhecimento de


pessoas como “o ato pelo qual uma pessoa admite e afirma como certa a
identidade de outra ou a qualidade de uma coisa” (Manual de Processo Penal
e Execução Penal. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 436). Segundo o
autor, a expressão “se possível”, constante do inciso II do art. 226,
refere-se ao requisito de serem colocadas pessoas que portem similitude
com a que deva ser reconhecida, não com a exigência da disposição de
várias pessoas, umas do lado das outras.

O reconhecimento busca, em última análise, indicar com


precisão a pessoa contra a qual se realiza determinada imputação.

Em relação às exigências feitas pela lei processual, pondera Aury


Lopes Júnior que esses cuidados não são formalidades inúteis; ao
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Superior Tribunal de Justiça
contrário, “constituem condição de credibilidade do instrumento
probatório, refletindo na qualidade da tutela jurisdicional prestada e na própria
confiabilidade do sistema judiciário de um país” (Direito processual penal. 14ª
ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 490, destaquei).

Nesse contexto, adverte o referido autor:


Trata-se de uma prova cuja forma de produção está estritamente
definida e, partindo da premissa de que – em matéria processual
penal – forma é garantia, não há espaço para informalidades
judiciais. Infelizmente, prática bastante comum na praxe forense
consiste em fazer 'reconhecimentos informais', admitidos em nome do
princípio do livre convencimento motivado. (op. cit., 2017, p. 488,
grifei).

Ainda na visão de Aury Lopes Júnior e de Joselton Calmon


Braz Correia, “o reconhecimento pessoal falha nas duas dimensões: na
legislativa, porque nosso CPP disciplina parcamente a matéria; e na dimensão
das práticas policiais, por falta de preparo e de agentes capacitados para
realizá-lo com o menor nível de contaminação, indução e cautela necessários”
(Ainda precisamos falar sobre o falso reconhecimento pessoal... Disponível
em:
https://www.conjur.com.br/2019-nov-08/limite-penal-ainda-precisamos-falar-fa
lso-reconhecimento-pessoal#. Acesso em fevereiro de 2021).

Na hipótese dos autos, não houve cuidado com a observância da


metodologia descrita em lei para o reconhecimento formal do paciente, o
que, como se aduzirá a seguir, induz a nulidade de tal elemento informativo e,
por conseguinte, a sua invalidade para amparar juízo de admissibilidade da
acusação.

Se não, vejamos.

III. O valor probatório do reconhecimento de pessoas na


jurisprudência do STJ

Esta Corte Superior, ao interpretar os referidos dispositivos


federais, entende que o reconhecimento fotográfico realizado na fase do
inquérito policial, como meio de prova, é apto para identificar o réu e fixar a
autoria delitiva somente quando observadas as formalidades legais e
corroborado por outras provas colhidas na fase judicial, sob o crivo do
contraditório e da ampla defesa.
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Superior Tribunal de Justiça

Eventualmente, reconhece-se a imprestabilidade do


reconhecimento de pessoa em que não se observaram os requisitos formais
previstos no art. 226 do CPP.

A esse propósito, colaciono dois julgados, de minha relatoria,


em que a Sexta Turma deste Tribunal Superior afastou a validade dos
reconhecimentos de acusados, ocorridos sem atenção às formalidades do art.
226 do CPP, pois os atos não foram repetidos em juízo ou referendados por
outras provas judiciais. No HC n. 598.886/SC, apreciado há poucos meses,
destaquei que tais requisitos procedimentais não se traduzem, como se tem
compreendido, em “mera recomendação” do legislador, mas sim em
garantias mínimas para quem se vê na condição de suspeito da prática de
crime. Confira-se:
[...] 3. Ainda que produzida sob o crivo do contraditório, não é
possível emprestar credibilidade e força probatória à
confirmação, em juízo, de reconhecimento formal eivado de
irregularidades. Se extirpado tal elemento informativo, não seria
possível nem sequer denunciar o paciente, pois não foi colhido nenhum
outro indício de sua participação no latrocínio. [...]
(HC n. 335.956/SP, Rel. Ministro Rogerio Schietti, 6ª T., DJe
2/2/2016, destaquei.)

HABEAS CORPUS. ROUBO MAJORADO.


RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO DE PESSOA
REALIZADO NA FASE DO INQUÉRITO POLICIAL.
INOBSERVÂNCIA DO PROCEDIMENTO PREVISTO NO
ART. 226 DO CPP. PROVA INVÁLIDA COMO
FUNDAMENTO PARA A CONDENAÇÃO. RIGOR
PROBATÓRIO. NECESSIDADE PARA EVITAR ERROS
JUDICIÁRIOS. [...] ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA.
1. O reconhecimento de pessoa, presencialmente ou por
fotografia, realizado na fase do inquérito policial, apenas é apto,
para identificar o réu e fixar a autoria delitiva, quando observadas as
formalidades previstas no art. 226 do Código de Processo Penal
e quando corroborado por outras provas colhidas na fase judicial,
sob o crivo do contraditório e da ampla defesa.
2. Segundo estudos da Psicologia moderna, são comuns as falhas e os
equívocos que podem advir da memória humana e da capacidade de
armazenamento de informações. Isso porque a memória pode, ao
longo do tempo, se fragmentar e, por fim, se tornar inacessível para a
reconstrução do fato. O valor probatório do reconhecimento,
portanto, possui considerável grau de subjetivismo, a potencializar
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Superior Tribunal de Justiça
falhas e distorções do ato e, consequentemente, causar erros
judiciários de efeitos deletérios e muitas vezes irreversíveis.
3. O reconhecimento de pessoas deve, portanto, observar o
procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal,
cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se vê na
condição de suspeito da prática de um crime, não se tratando,
como se tem compreendido, de “mera recomendação” do
legislador. Em verdade, a inobservância de tal procedimento
enseja a nulidade da prova e, portanto, não pode servir de lastro
para sua condenação, ainda que confirmado, em juízo, o ato
realizado na fase inquisitorial, a menos que outras provas, por si
mesmas, conduzam o magistrado a convencer-se acerca da autoria
delitiva. Nada obsta, ressalve-se, que o juiz realize, em juízo, o ato de
reconhecimento formal, desde que observado o devido
procedimento probatório.
4. O reconhecimento de pessoa por meio fotográfico é ainda mais
problemático, máxime quando se realiza por simples exibição ao
reconhecedor de fotos do conjecturado suspeito extraídas de álbuns
policiais ou de redes sociais, já previamente selecionadas pela
autoridade policial. E, mesmo quando se procura seguir, com
adaptações, o procedimento indicado no Código de Processo Penal
para o reconhecimento presencial, não há como ignorar que o
caráter estático, a qualidade da foto, a ausência de expressões e
trejeitos corporais e a quase sempre visualização apenas do busto do
suspeito podem comprometer a idoneidade e a confiabilidade do ato.
5. De todo urgente, portanto, que se adote um novo rumo na
compreensão dos Tribunais acerca das consequências da
atipicidade procedimental do ato de reconhecimento formal de
pessoas; não se pode mais referendar a jurisprudência que
afirma se tratar de mera recomendação do legislador, o que
acaba por permitir a perpetuação desse foco de erros judiciários e,
consequentemente, de graves injustiças.
6. É de se exigir que as polícias judiciárias (civis e federal) realizem
sua função investigativa comprometidas com o absoluto respeito às
formalidades desse meio de prova. E ao Ministério Público
cumpre o papel de fiscalizar a correta aplicação da lei penal, por ser
órgão de controle externo da atividade policial e por sua ínsita função
de custos legis, que deflui do desenho constitucional de suas missões,
com destaque para a “defesa da ordem jurídica, do regime
democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art.
127, caput, da Constituição da República), bem assim da sua
específica função de “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos
[inclusive, é claro, dos que ele próprio exerce] [...] promovendo as

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Superior Tribunal de Justiça
medidas necessárias a sua garantia” (art. 129, II).
7. Na espécie, o reconhecimento do primeiro paciente se deu por
meio fotográfico e não seguiu minimamente o roteiro normativo
previsto no Código de Processo Penal. Não houve prévia
descrição da pessoa a ser reconhecida e não se exibiram outras
fotografias de possíveis suspeitos; ao contrário, escolheu a
autoridade policial fotos de um suspeito que já cometera outros crimes,
mas que absolutamente nada indicava, até então, ter qualquer ligação
com o roubo investigado.
8. Sob a égide de um processo penal comprometido com os
direitos e os valores positivados na Constituição da República,
busca-se uma verdade processual em que a reconstrução histórica
dos fatos objeto do juízo se vincula a regras precisas, que
assegurem às partes um maior controle sobre a atividade jurisdicional;
uma verdade, portanto, obtida de modo “processualmente
admissível e válido” (Figueiredo Dias).
9. O primeiro paciente foi reconhecido por fotografia, sem
nenhuma observância do procedimento legal, e não houve
nenhuma outra prova produzida em seu desfavor. Ademais, as
falhas e as inconsistências do suposto reconhecimento – sua
altura é de 1,95 m e todos disseram que ele teria por volta de 1,70 m;
estavam os assaltantes com o rosto parcialmente coberto; nada
relacionado ao crime foi encontrado em seu poder e a autoridade
policial nem sequer explicou como teria chegado à suspeita de que
poderia ser ele um dos autores do roubo – ficam mais evidentes com
as declarações de três das vítimas em juízo, ao negarem a
possibilidade de reconhecimento do acusado.
10. Sob tais condições, o ato de reconhecimento do primeiro
paciente deve ser declarado absolutamente nulo, com sua
consequente absolvição, ante a inexistência, como se deflui da
sentença, de qualquer outra prova independente e idônea a
formar o convencimento judicial sobre a autoria do crime de
roubo que lhe foi imputado.
11. Quanto ao segundo paciente, teria, quando muito – conforme
reconheceu o Magistrado sentenciante – emprestado o veículo usado
pelos assaltantes para chegarem ao restaurante e fugirem do local do
delito na posse dos objetos roubados, conduta que não pode ser tida
como determinante para a prática do delito, até porque não se logrou
demonstrar se efetivamente houve tal empréstimo do automóvel com a
prévia ciência de seu uso ilícito por parte da dupla que cometeu o
roubo. É de se lhe reconhecer, assim, a causa geral de diminuição de
pena prevista no art. 29, § 1º, do Código Penal (participação de
menor importância).

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Superior Tribunal de Justiça
12. Conclusões: 1) O reconhecimento de pessoas deve observar o
procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal,
cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se
encontra na condição de suspeito da prática de um crime;
2) À vista dos efeitos e dos riscos de um reconhecimento falho, a
inobservância do procedimento descrito na referida norma
processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita e
não poderá servir de lastro a eventual condenação, mesmo se
confirmado o reconhecimento em juízo;
3) Pode o magistrado realizar, em juízo, o ato de reconhecimento
formal, desde que observado o devido procedimento probatório,
bem como pode ele se convencer da autoria delitiva a partir do
exame de outras provas que não guardem relação de causa e
efeito com o ato viciado de reconhecimento;
4) O reconhecimento do suspeito por simples exibição de fotografia(s)
ao reconhecedor, a par de dever seguir o mesmo procedimento do
reconhecimento pessoal, há de ser visto como etapa antecedente a
eventual reconhecimento pessoal e, portanto, não pode servir como
prova em ação penal, ainda que confirmado em juízo.
13. Ordem concedida, para: a) com fundamento no art. 386, VII, do
CPP, absolver o paciente Vânio da Silva Gazola em relação à prática
do delito objeto do Processo n. 0001199-22.2019.8.24.0075, da 1ª
Vara Criminal da Comarca de Tubarão - SC, ratificada a liminar
anteriormente deferida, para determinar a imediata expedição de alvará
de soltura em seu favor, se por outro motivo não estiver preso; b)
reconhecer a causa geral de diminuição relativa à participação de
menor importância no tocante ao paciente Igor Tártari Felácio,
aplicá-la no patamar de 1/6 e, por conseguinte, reduzir a sua
reprimenda para 4 anos, 5 meses e 9 dias de reclusão e pagamento de
10 dias-multa.
Dê-se ciência da decisão aos Presidentes dos Tribunais de Justiça dos
Estados e aos Presidentes dos Tribunais Regionais Federais, bem
como ao Ministro da Justiça e Segurança Pública e aos Governadores
dos Estados e do Distrito Federal, encarecendo a estes últimos que
façam conhecer da decisão os responsáveis por cada unidade policial
de investigação.
(HC n. 598.886/SC, Rel. Ministro Rogerio Schietti, 6ª T., DJe
18/12/2020, grifei.)

Essa também tem sido a compreensão adotada pelo Pretório


Excelso acerca da matéria. Exemplificativamente, menciono o HC n.
172.606/SP (DJe 5/8/2019), de relatoria do Ministro Alexandre de Moraes,
em que, monocraticamente, se absolveu o réu, em razão de a condenação
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Superior Tribunal de Justiça
haver sido lastreada apenas no reconhecimento fotográfico realizado na fase
policial.

O problema maior se verifica quando o reconhecimento


viciado, pessoal ou fotográfico – em desacordo com o procedimento
positivado no art. 226 do CPP e quase sempre a partir de fotos extraídas de
álbuns policiais (fotos de rosto ou busto) ou encontradas em redes sociais –
acaba sendo “ratificado” em juízo pelo reconhecedor e é utilizado no decisum
como argumento suficiente para a prova da autoria delitiva, mesmo sem o
amparo de outras provas independentes e idôneas a tal fim.

IV. O caso dos autos – falhas no reconhecimento pessoal


do acusado

Na espécie, constato que não se obedeceu ao procedimento


legalmente previsto para o reconhecimento do acusado. O Magistrado de
Novo Hamburgo observou que, “de fato, foi realizado reconhecimento pessoal
com apenas o réu na cela, sem que fossem colocados junto a ele outros
indivíduos” (fl. 13, destaquei). Pretendeu o Juiz da causa justificar o ocorrido
com a circunstância de que, “dificilmente outras pessoas voluntariam-se
para ficar ao lado dos acusados que, nesta Vara, são indivíduos que
respondem a processos por crimes dolosos contra a vida” (fl. 13, grifei).

Por seu turno, o reconhecimento do paciente, em audiência,


não foi capaz de suplantar a inobservância da regularidade formal do
elemento informativo extrajudicial.

O policial civil que atuou na ocorrência, Claudio Roberto


Muller Monteiro, declarou, em seu depoimento judicial, que “O réu foi
reconhecido por quem estava dentro do bar e outra pessoa que o viu se
evadindo do local” (fl. 14). Nesse sentido, esclareceu que a testemunha Lucas
Garcia Braum reconheceu o acusado e “estava com medo de represálias”.

Nada obstante, ao ser ouvido em Juízo, Lucas Garcia Braum


disse que “Viu a foto do acusado na delegacia, mas não quis falar nada.
Não gostaria de ver o acusado. Tem medo de represálias”. Somente “Ouviu
falar que a alcunha do executor era Gugu” (ambos à fl. 15, destaquei). Em
seguida, no entanto, contraditoriamente, afirmou que “Nunca teve dúvidas
sobre quem é o autor, pois estava de frente, inclusive um dos disparos passou
do seu lado e atingiu uma porta que havia atrás do depoente” (fl. 15, grifei).
Declarou, ainda, que “O veículo [em] que os executores chegaram era um
Celta prata” (fl. 15, destaquei).
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Superior Tribunal de Justiça

Valdemar Firmo de Vargas e Eduarda Nunes da Mota


Vargas, pai e sobrinha da vítima, respectivamente, não presenciaram o
ocorrido. Disseram apenas que o paciente rodeou o local antes do fato e que
estava dentro do carro, um Corsa prata, que passou ao lado de onde ocorreu
o crime.

Segundo o Magistrado, Eduarda “Reconheceu o réu através


da janela de reconhecimento como autor do fato e o homem que viu no
veículo” (fl. 14, grifei). Contudo, depreende-se que o acusado foi reconhecido
quando visualizado sozinho na cela, “sem que fossem colocados junto a ele
outros indivíduos” (fl. 13) – sem atenção, pois, ao procedimento elencado
no art. 226 do CPP.

As demais pessoas ouvidas – Sadi Barreto, Edina Nunes, Alderi


Angnes da Rocha e Olívio Moreira da Silva – escutaram os disparos,
ocorridos no estabelecimento comercial, mas não viram o(s) executor(es)
(fls. 15).

Dessarte, conquanto não se possa, in casu, negar validade


integral dos depoimentos colhidos nos autos, há de negar validade à pronúncia
baseada em elemento informativo colhido em desacordo com as regras
probatórias e não confirmado, legitimamente, em Juízo.

Saliento que o dispositivo em apreço estabelece um


procedimento e requisitos mínimos para que essa importante fonte de
informações possa ter valor probatório, mesmo que produzida na fase
inquisitorial, sem, portanto, o contraditório judicial e quase sempre sem o
acompanhamento de um advogado ou mesmo do representante do Ministério
Público.

Eis por que não se poderia transigir com a inobservância do


procedimento probatório, indispensável para que esse meio de prova produza
seus efeitos no futuro convencimento judicial acerca da autoria delitiva.

Não olvido que a jurisprudência dos Tribunais, inclusive desta


Corte Superior, tem tolerado essas irregularidades, sob o argumento de que o
art. 226 do CPP constitui “mera recomendação”, não ensejando nulidade
da prova, a despeito de eventual descumprimento dos requisitos formais ali
previstos.

Exemplificativamente:

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Superior Tribunal de Justiça
[...] 3. O acórdão recorrido está alinhado à jurisprudência desta Corte
Superior, no sentido de que as disposições contidas no art. 226 do
Código de Processo Penal configuram uma recomendação legal,
e não uma exigência absoluta, não se cuidando, portanto, de
nulidade quando praticado o ato processual (reconhecimento pessoal)
de forma diversa da prevista em lei (AgRg no AREsp n.
1.054.280/PE, de minha relatoria, Sexta Turma, DJe 13/6/2017). [...]
(REsp n. 1.853.401/SP, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, 6ª T.,
DJe 4/9/2020, grifei.)

[...] 2. É pacífico o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no


sentido de que é legítimo o reconhecimento pessoal ainda quando
realizado de modo diverso do previsto no art. 226 do Código de
Processo Penal, servindo o paradigma legal como mera
recomendação.
3. É firme o entendimento jurisprudencial no sentido de que o
Magistrado é livre para formar sua convicção com fundamentos
próprios a partir das evidências apresentadas no curso da instrução
processual, não estando obrigado a ficar adstrito aos argumentos
trazidos pela defesa ou pela acusação, nem tendo que responder, de
forma pormenorizada, a cada uma das alegações das partes, bastando
que exponha as razões do seu convencimento, ainda que de maneira
sucinta.
4. Neste caso, o Tribunal apresentou motivação suficiente para rejeitar
os argumentos que davam base à tese absolutória, solucionando a
quaestio iuris de modo claro e coerente, não se vislumbrando
deficiência de fundamentação apta a ensejar a nulidade do feito.
5. Habeas corpus não conhecido.
(HC n. 474.655/PR, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª
T., DJe 3/6/2019, destaquei.)

É de se obtemperar, ainda, que não há razão que justifique o


risco de se consolidar, na espécie, possível erro judiciário, mercê da notória
fragilidade do conjunto probatório. Não é despiciendo lembrar que, em um
modelo processual onde sobrelevam princípios e garantias voltados à
proteção do indivíduo contra eventuais abusos estatais que interfiram em
sua liberdade, dúvidas relevantes hão de merecer solução favorável ao réu
(favor rei). Afinal,
A certeza perseguida pelo direito penal mínimo está, ao contrário, em
que nenhum inocente seja punido à custa da incerteza de que também
algum culpado possa ficar impune.
(FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. São Paulo: Revista dos
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Superior Tribunal de Justiça
Tribunais, 2002, p. 85)

Um dos grandes perigos dos modelos substancialistas de direito


penal – alerta o jusfilósofo peninsular – é o de que, em nome de uma
fundamentação metajurídica (predominantemente de cunho moral ou social),
se permita incontrolado subjetivismo judicial na determinação em concreto do
desvio punível. Daí por que a verdade a que aspira esse modelo é a chamada
“verdade substancial ou material”, ou seja, uma verdade absoluta, carente de
limites, não sujeita a regras procedimentais e infensa a ponderações axiológicas,
o que, portanto, degenera em julgamentos privados de legitimidade, ante a
ausência de apoio ético no modo de ser do processo.

De lado oposto, sob a égide de um processo penal de cariz


garantista – o que nada mais significa do que concebê-lo como atividade estatal
sujeita a permanente avaliação de conformidade com a Constituição da
República (“O direito processual penal não é outra coisa senão Direito
constitucional aplicado”, dizia-o W. Hassemer) – busca-se uma verdade
processual em que reconstrução histórica dos fatos objeto do juízo se vincula a
regras precisas, que assegurem às partes maior controle sobre a atividade
jurisdicional.

Assim, não é possível ratificar a pronúncia do paciente, visto


que apoiada em prova absolutamente desconforme ao modelo legal, sem
a observância das regras probatórias próprias.

V. Dispositivo

À vista do exposto, concedo a ordem para anular a decisão


de pronúncia, relativamente ao Processo n. 01912.19.0001942-0
(0004514-16.2019.8.21.0019), e determinar a expedição de alvará de soltura
em favor do acusado, se por outro motivo não estiver preso.

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CERTIDÃO DE JULGAMENTO
SEXTA TURMA

Número Registro: 2021/0010669-9 PROCESSO ELETRÔNICO HC 639.792 / RS


MATÉRIA CRIMINAL

Números Origem: 00045141620198210019 00406923620208217000 0046923620208217000 01921900019420


1921900019420 4052015100922 406923620208217000 45141620198210019
46923620208217000

EM MESA JULGADO: 16/03/2021

Relator
Exmo. Sr. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ
Presidente da Sessão
Exmo. Sr. Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO
Subprocuradora-Geral da República
Exma. Sra. Dra. RAQUEL ELIAS FERREIRA DODGE
Secretária
Bela. GISLAYNE LUSTOSA RODRIGUES

AUTUAÇÃO
IMPETRANTE : MATHEUS GONCALVES DOS SANTOS TRINDADE
ADVOGADO : MATHEUS GONÇALVES DOS SANTOS TRINDADE - RS101928
IMPETRADO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
PACIENTE : JEFERSON TABORDA PEREIRA
INTERES. : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

ASSUNTO: DIREITO PENAL - Crimes contra a vida - Homicídio Qualificado

SUSTENTAÇÃO ORAL
Dr. MATHEUS GONÇALVES DOS SANTOS TRINDADE, pela parte PACIENTE: JEFERSON
TABORDA PEREIRA

CERTIDÃO
Certifico que a egrégia SEXTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão
realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
A Sexta Turma, por unanimidade, concedeu o habeas corpus, nos termos do voto do Sr.
Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Antonio Saldanha Palheiro, Laurita Vaz e Sebastião Reis Júnior
votaram com o Sr. Ministro Relator.

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