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DPE/RJ – PRÉ-EDITAL

TEMAS INSTITUCIONAIS
DPE/RJ 2023

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PROCESSO PENAL. RECONHECIMENTO PESSOAL.

Em primeiro lugar, há que se ter a premissa de que o ônus probatório do processo penal indica que
compete ao Ministério Público desvendar a identificação e postular a inquirição dos terceiros que tenham avistado o
denunciado no local em que teria praticado o fato delituoso ou, pelo menos, o tenham reconhecido nas imagens, não
sendo possível a condenação ser respaldada em indícios e conjecturas. Essa é a decorrência do sistema penal
acusatório adotado pela CF (art. 129) e do princípio “favor rei” (conjunto de garantias processuais do réu a fim de
equilibrar e oferecer, de fato, paridade de armas entre a parte e o Estado com seu aparato investigatório).

O conteúdo acima SEMPRE deve estar presente em uma resposta discursiva na BANCA II da DPE/RJ,
devendo ser ressaltado na peça processual escrita.

Pois bem.

É consabido que o CPP disciplina, no art. 226, o modo pelo qual deve ser feito o reconhecimento pessoal,
a saber:

Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela
seguinte forma:

I - a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser
reconhecida;

Il - a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com
ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;

III - se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação
ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade
providenciará para que esta não veja aquela;

IV - do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa
chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.

Parágrafo único. O disposto no no III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou
em plenário de julgamento.

Note-se, pela leitura do próprio CPP, há um procedimento bastante claro a ser seguido para o
reconhecimento pessoal: i) pessoa descreverá a pessoa; ii) pessoa a ser reconhecida será colocada ao lado de outras
que com ela forem semelhantes (dentro da possibilidade); iii) lavrar-se-á o auto de reconhecimento.

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A jurisprudência do STJ sempre foi refratária quanto à necessidade de se observar o procedimento
do art. 226, do CPP para reconhecimento de pessoa, alegando, em síntese que o procedimento era facultativo e
não havia prejuízo da sua inobservância, havendo inúmeros precedentes nesse sentido.

Ocorre que, APÓS OUTUBRO DE 2020, as decisões que chancelavam o entendimento de que o art.
226, do CPP, era “mera recomendação”, “mera formalidade”, começaram a ser SUPERADAS (overruling) pela 6ª
Turma daquele Tribunal, que firmou no HC 598.886 o seguinte paradigma:

1) O reconhecimento de pessoas deve observar o procedimento previsto no art. 226 do


Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem GARANTIA MÍNIMA PARA
QUEM SE ENCONTRA NA CONDIÇÃO DE SUSPEITO da prática de um crime;
2) À vista dos efeitos e dos riscos de um reconhecimento falho, a inobservância do procedimento
descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita e não
poderá servir de lastro a eventual condenação, mesmo se confirmado o reconhecimento em juízo;
3) Pode o magistrado realizar, em juízo, o ato de reconhecimento formal, desde que observado o
devido procedimento probatório, bem como pode ele se convencer da autoria delitiva a partir do
exame de outras provas que não guardem relação de causa e efeito com oato viciado de
reconhecimento;
4) O reconhecimento do suspeito por simples exibição de fotografia(s) ao reconhecedor, a
par de dever segui o mesmo procedimento do reconhecimento pessoal, há de ser visto como
etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal e, portanto, não pode servir como
prova em ação penal, ainda que confirmado em juízo. STJ. 6ª Turma. HC 598.886-SC, Rel. Min.
Rogerio Schietti Cruz, julgado em 27/10/2020 (Info 684)

A 5ª Turma, que também julga casos criminais, chegou a manter por um tempo sua jurisprudência, mas
logo após, em meados de 2021, também superou o entendimento e se alinhou ao decidido pela 6ª Turma no HC
652284 :

1. O Superior Tribunal de Justiça, alinhando-se à nova jurisprudência da Corte Suprema, também


passou a restringir as hipóteses de cabimento do habeas corpus, não admitindo que o remédio
constitucional seja utilizado em substituição ao recurso ou ação cabível, ressalvadas as situações
em que, à vista da flagrante ilegalidade do ato apontado como coator, em prejuízo da liberdade do
paciente, seja cogente a concessão, de ofício, da ordem de habeas corpus. (AgRg no HC
437.522/PR, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 07/06/2018, DJe
15/06/2018)
2. A jurisprudência desta Corte vinha entendendo que "as disposições contidas no art. 226
do Código de Processo Penal configuram uma recomendação legal, e não uma exigência
absoluta, não se cuidando, portanto, de nulidade quando praticado o ato processual
(reconhecimento pessoal) de forma diversa da prevista em lei" (AgRg no AREsp n. 1.054.280/PE,
relator Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Sexta Turma, DJe de 13/6/2017).Reconhecia-se,
também, que o reconhecimento do acusado por fotografia em sede policial, desde que ratificado em
juízo, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, pode constituir meio idôneo de prova apto a
fundamentar até mesmo uma condenação.

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3. Recentemente, no entanto, a Sexta Turma desta Corte, no julgamento do HC 598.886 (Rel.
Min. Rogério Schietti Cruz, DJe de 18/12/2020, revisitando o tema, propôs nova interpretação
do art. 226 do CPP, para estabelecer que “O reconhecimento de pessoa, presencialmente ou
por fotografia, realizado na fase do inquérito policial, apenas é apto, para identificar o réu
e fixar a autoria delitiva, quando observadas as formalidades previstas no art. 226 do Código
de Processo Penal e quando corroborado por outras provas colhidas na fase judicial, sob o
crivo do contraditório e da ampla defesa”.
4. Uma reflexão aprofundada sobre o tema, com base em uma compreensão do processo
penal de matiz garantista voltada para a busca da verdade real de forma mais segura e
precisa, leva a concluir que, com efeito, o reconhecimento (fotográfico ou presencial)
efetuado pela vítima, em sede inquisitorial, não constitui evidência segura da autoria do
delito, dada a falibilidade da memória humana, que se sujeita aos efeitos tanto do
esquecimento, quanto de EMOÇÕES E DE SUGESTÕES VINDAS DE OUTRAS PESSOAS QUE
PODEM GERAR “FALSAS MEMÓRIAS”, além da influência decorrente de fatores, como, por
exemplo, o tempo em que a vítima esteve exposta ao delito e ao agressor; o trauma gerado
pela gravidade do fato; o tempo decorrido entre o contato com o autor do delito e a realização
do reconhecimento; as condições ambientais (tais como visibilidade do local no momento
dos fatos); estereótipos culturais (como cor, classe social, sexo, etnia etc.).
5. Diante da FALIBILIDADE DA MEMÓRIA SEJA DA VÍTIMA SEJA DA TESTEMUNHA DE UM
DELITO, tanto o reconhecimento fotográfico quanto o reconhecimento presencial de pessoas
efetuado em sede inquisitorial devem seguir os procedimentos descritos no art. 226 do CPP,
de maneira a assegurar a melhor acuidade possível na identificação realizada.Tendo em conta
a ressalva, contida no inciso II do art. 226 do CPP, a colocação de pessoas semelhantes ao
lado do suspeito será feita sempre que possível, devendo a impossibilidade ser devidamente
justificada, sob pena de invalidade do ato.
6. O reconhecimento fotográfico serve como prova apenas inicial e deve ser ratificado por
reconhecimento presencial, assim que possível. E, no caso de uma ou ambas as formas de
reconhecimento terem sido efetuadas, em sede inquisitorial, sem a observância (parcial ou
total) dos preceitos do art. 226 do CPP e sem justificativa idônea para o descumprimento do
rito processual, ainda que confirmado em juízo, o reconhecimento falho se revelará incapaz
de permitir a condenação, como regra objetiva e de critério de prova, sem corroboração do
restante do conjunto probatório, produzido na fase judicial.
7. Caso concreto: situação em que a autoria de crime de roubo foi imputada ao réu com base
exclusivamente em reconhecimento fotográfico e pessoal efetuado pela vítima em sede policial,
sem a observância dos preceitos do art. 226 do CPP, e muito embora tenha sido ratificado em juízo,
não encontrou amparo em provas independentes. Configura induzimento a uma falsa memória,
o fato de ter sido o marido da vítima, que é delegado, o responsável por chegar à primeira foto do
suspeito, supostamente a partir de informações colhidas de pessoas que trabalhavam na rua em
que se situava a loja assaltada, sem que tais pessoas jamais tenham sido identificadas ou mesmo
chamadas a testemunhar. Revela-se impreciso o reconhecimento fotográfico com base em uma
única foto apresentada à vítima de pessoa bem mais jovem e com traços fisionômicos diferentes
dos do réu, tanto mais quando, no curso da instrução probatória, ficou provado que o réu havia se
identificado com o nome de seu irmão. Tampouco o reconhecimento pessoal em sede policial pode
ser reputado confiável se, além de ter sido efetuado um ano depois do evento com a apresentação
apenas do réu, a descrição do delito demonstra que ele durou poucos minutos, que a vítima não
reteve características marcantes da fisionomia ou da compleição física do réu e teve suas

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lembranças influenciadas tanto pelo decurso do tempo quanto pelo trauma que afirma ter sofrido
com o assalto.8. Tendo a autoria do delito sido estabelecida com base unicamente em questionável
reconhecimento fotográfico e pessoal feito pela vítima, deve o réu ser absolvido.9. Habeas
corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício, para absolver o paciente.(HC 652284, julgado
em 03/05/2021, 5ª Turma)

A unificação da jurisprudência sobre o tema e superação da divergência entre ambas as Turmas foi objeto
de notícia no sítio do STJ[2]:

“A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), alinhando-se ao entendimento firmado


pela Sexta Turma no RHC 598.886, decidiu que o reconhecimento fotográfico ou presencial
feito pela vítima na fase do inquérito policial, sem a observância dos procedimentos descritos
no artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP), não é evidência segura da autoria do delito.

Para o colegiado, tendo em conta a ressalva contida no inciso II do artigo 226 – segundo o
qual a colocação de pessoas semelhantes ao lado do suspeito deve ser feita sempre que
possível –, eventual impossibilidade de seguir o procedimento precisa ser justificada, sob
pena de invalidade do ato. No entender do relator, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, o
reconhecimento fotográfico do suspeito é uma prova inicial, que deve ser ratificada pelo
reconhecimento presencial e, mesmo havendo confirmação em juízo, não pode servir como
prova única da autoria do crime. ”

Antes de abordar decisões contrárias ao paradigma fixado, cumpre descrever o que motivou a
superação da jurisprudência – E QUE DEVE ESTAR PRESENTE EM UMA RESPOSTA DISCURSIVA.

1. Erros Judiciários

A situação decidida pelo STJ levou o CNJ, em dezembro de 2022, editar a resolução n.º 484/2022), a
qual BEM ESCLARECE os erros sistemáticos pela inobservância da forma (forma é garantia, Aury Lopes Jr.). É
importante observar (lembre-se de citá-la na prova) os “considerandos” abaixo destacados e que certamente estarão
em espelho-resposta:

RESOLUÇÃO N. 484, DE 19 DE DEZEMBRO DE 2022.


Estabelece diretrizes para a realização do reconhecimento de pessoas em procedimentos e
processos criminais e sua avaliação no âmbito do Poder
Judiciário.

A PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DA JUSTIÇA (CNJ), no uso de suas atribuições


legais e regimentais,

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CONSIDERANDO os princípios fundamentais da DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, do DEVIDO
PROCESSO LEGAL, da AMPLA DEFESA e a VEDAÇÃO ÀS PROVAS ILÍCITAS (arts. 3º, III, e 5º,
LIV, LV e LVI);

CONSIDERANDO as discussões do Grupo de Trabalho criado pela Presidência do CNJ para realizar
estudos e elaborar proposta de regulamentação de diretrizes para o reconhecimento de pessoas em
processos criminais e a sua aplicação no âmbito do Poder Judiciário, com vistas a evitar condenação
de pessoas inocentes (Portaria CNJ n. 209/2021);

CONSIDERANDO que o RECONHECIMENTO DE PESSOAS EQUIVOCADO É UMA DAS


PRINCIPAIS CAUSAS DE ERRO JUDICIÁRIO, conforme demonstrado por ampla produção
científica, nacional e internacional, que indica a existência de diversos fatores sensíveis no
procedimento de reconhecimento;

CONSIDERANDO o ALTO POTENCIAL DE IDENTIFICAÇÕES INCORRETAS DECORRENTES


DE PRÁTICAS QUE IGNORAM A NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA DE
VÍTIMAS e testemunhas;

CONSIDERANDO a vasta literatura científica existente, a qual aponta para as POSSÍVEIS


DISTORÇÕES DA MEMÓRIA, BEM COMO OS CASOS DE RECONHECIMENTOS
IRREGULARES REALIZADOS POR AGENTES PÚBLICOS A PARTIR DA APRESENTAÇÃO
INFORMAL OU INADEQUADA DE FOTOS ou investigados não vinculados aos fatos, ou ainda
mediante sugestões, induções ou reforço às respostas apresentadas pelas vítimas ou testemunhas;

CONSIDERANDO o dever do Poder Judiciário de exercer a jurisdição criminal de maneira eficiente,


a fim DE IMPEDIR A CONDENAÇÃO DE INOCENTES E POSSIBILITAR A
RESPONSABILIZAÇÃO DOS CULPADOS, A PARTIR DA ADOÇÃO DE PROCEDIMENTOS
PROBATÓRIOS CONSTRUÍDOS À LUZ DAS EVIDÊNCIAS CIENTÍFICAS e das regras do devido
processo legal, que não constituam fator de incremento da seletividade penal e do racismo estrutural;

CONSIDERANDO que levantamento feito PELA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO


DO RIO DE JANEIRO, em âmbito nacional, identificou que (i) em 60% dos casos de
reconhecimento fotográfico equivocado em sede policial houve a decretação da prisão preventiva e,
em média, o tempo de prisão foi de 281 dias, ou seja, aproximadamente 9 meses, e que (ii) em 83%
DOS CASOS DE RECONHECIMENTO EQUIVOCADO AS PESSOAS APONTADAS ERAM
NEGRAS, O QUE REFORÇA AS MARCAS DA SELETIVIDADE E DO RACISMO ESTRUTURAL
DO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL;

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CONSIDERANDO os casos EMBLEMÁTICOS DE ERROS JUDICIAIS DECORRENTES DE
RECONHECIMENTOS EQUIVOCADOS IDENTIFICADOS PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE
JUSTIÇA, pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Innocence Project Brasil;

CONSIDERANDO a jurisprudência recente do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal


Federal no sentido da obrigatoriedade da observância das garantias mínimas previstas no art. 226
do Código de Processo Penal para a realização do reconhecimento de pessoas, com o fim de
ELEVAR O PADRÃO DE QUALIDADE DA PROVA e minimizar a ocorrência de erros (HC n.
598.886/STJ, HC n. 652.284/STJ, REsp n. 1.954.785/STJ, HC n. 712.781/STJ e RHC n.
206.846/STF);

CONSIDERANDO que a normatização de boas práticas vai ao encontro dos macrodesafios do


Poder Judiciário elencados na Resolução CNJ n. 325/2020, que dispõe sobre a Estratégia Nacional
do Poder Judiciário entre 2021-2026, valendo pontuar, especificamente: (i) a garantia dos direitos
fundamentais; (ii) consolidação do sistema de precedentes obrigatórios, que visa fortalecer as
decisões judiciais e garantir a segurança jurídica e a integridade dos provimentos judiciais; e (iii) o
aperfeiçoamento da gestão da justiça criminal;

CONSIDERANDO a decisão plenária tomada no julgamento do Ato Normativo n. 0007613-


32.2022.2.00.0000, na 361ª Sessão Ordinária, realizada em 06 de dezembro de 2022;

RESOLVE:

Art. 1º Estabelecer diretrizes para a realização do reconhecimento de pessoas em procedimentos e


processos criminais e sua avaliação no âmbito do Poder Judiciário.

Art. 2º Entende-se por reconhecimento de pessoas o procedimento em que a vítima ou testemunha


de um fato criminoso é instada a reconhecer pessoa investigada ou processada, dela desconhecida
antes da conduta.
§ 1º O reconhecimento de pessoas, por sua natureza, consiste em prova irrepetível, realizada uma
única vez, consideradas as necessidades da investigação e da instrução processual, bem como os
direitos à ampla defesa e ao contraditório.
§ 2º A pessoa cujo reconhecimento se pretender tem direito a constituir defensor para acompanhar
o procedimento de reconhecimento pessoal ou fotográfico, nos termos da legislação vigente.

Art. 3º Compete às autoridades judiciais admitir e valorar o reconhecimento de pessoas à luz das
diretrizes e procedimentos descritos em lei e nesta Resolução e zelar para que a prova seja
produzida de maneira a evitar a ocorrência de reconhecimentos equivocados.

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Parágrafo único. A observância das diretrizes e dos procedimentos estabelecidos nesta Resolução
e no Código de Processo Penal será considerada pelos magistrados para avaliação da prova.

Art. 4º O reconhecimento será realizado preferencialmente pelo alinhamento presencial de pessoas


e, em caso de impossibilidade devidamente justificada, pela apresentação de fotografias,
observadas, em qualquer caso, as diretrizes da presente Resolução e do Código de Processo Penal.
Parágrafo único. Na impossibilidade de realização do reconhecimento conforme os parâmetros
indicados na presente Resolução, devem ser priorizados outros meios de prova para identificação
da pessoa responsável pelo delito.
Art. 5º O reconhecimento de pessoas é composto pelas seguintes etapas:
I – entrevista prévia com a vítima ou testemunha para a descrição da pessoa investigada ou
processada;
II – fornecimento de instruções à vítima ou testemunha sobre a natureza do procedimento;
III – alinhamento de pessoas ou fotografias padronizadas a serem apresentadas à vítima ou
testemunha para fins de reconhecimento;
IV – o registro da resposta da vítima ou testemunha em relação ao reconhecimento ou não da
pessoa investigada ou processada; e
V – o registro do grau de convencimento da vítima ou testemunha, em suas próprias palavras.
§ 1º Para fins de aferição da legalidade e garantia do direito de defesa, o procedimento será
integralmente gravado, desde a entrevista prévia até a declaração do grau de
convencimento da vítima ou testemunha, com a disponibilização do respectivo vídeo às
partes, caso solicitado.
§ 2º A inclusão da pessoa ou de sua fotografia em procedimento de reconhecimento, na condição
de investigada ou processada, será embasada em outros indícios de sua participação no delito,
como a averiguação de sua presença no dia e local do fato ou outra circunstância relevante.

Art. 6º A entrevista prévia será composta pelas seguintes etapas:


I – solicitação à vítima ou testemunha para descrever as pessoas investigadas ou
processadas pelo crime, por meio de relato livre e de perguntas abertas, sem o uso de
questões que possam induzir ou sugerir a resposta;
II – indagação sobre a dinâmica dos fatos, a distância aproximada a que estava das pessoas
que praticaram o fato delituoso, o tempo aproximado durante o qual visualizou o rosto dessas
pessoas, as condições de visibilidade e de iluminação no local;
III – inclusão de autodeclaração da vítima, da testemunha e das pessoasinvestigadas
ou processadas pelo crime sobre a sua raça/cor, bem como heteroidentificação da vítima e
testemunha em relação à raça/cor das pessoas investigadas ou processadas; e
IV – indagação referente à apresentação anterior de alguma pessoa ou fotografia,
acesso ou visualização prévia de imagem das pessoas investigadas ou processadas pelo

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crime ou, ainda, ocorrência de conversa com agente policial, vítima ou testemunha sobre as
características da(s) pessoa(s) investigada(s) ou processada(s).
§ 1º A entrevista será realizada de forma separada e reservada com cada vítima ou testemunha,
com a garantia de que não haja contato entre elas e de que não saibam nem ouçam as respostas
umas das outras, constando o registro dessas circunstâncias no respectivo termo.
§ 2º Nas hipóteses do inciso IV deste artigo ou naquelas em que a descrição apresentada pela vítima
ou testemunha não coincidir com as características das pessoas investigadas ou processadas, o
reconhecimento não será realizado.
§ 3º As fichas de autodeclaração e de heterodeclaração de que trata o inciso III obedecerão ao
sistema classificatório utilizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com as
seguintes opções de resposta: “amarelo, branco, indígena, pardo e preto”.

Art. 7º Imediatamente antes de iniciar o procedimento de reconhecimento, a vítima ou a testemunha


será alertada de que:
I – a pessoa investigada ou processada pode ou não estar entre aquelas que lhes serão
apresentadas;
II – após observar as pessoas apresentadas, ela poderá reconhecer uma dessas, bem como
não reconhecer qualquer uma delas;
III – a apuração dos fatos continuará independentemente do resultado do
reconhecimento;
IV – deverá indicar, com suas próprias palavras, o grau de confiança em sua resposta.
Parágrafo único. As orientações de que trata este artigo serão apresentadas sem o
fornecimento, à vítima ou testemunha, de informações sobre a vida pregressa da pessoa
investigada ou processada ou acerca de outros elementos que possam influenciar a resposta
da vítima ou testemunha.

Art. 8º O reconhecimento será realizado por meio do alinhamento padronizado de pessoas ou de


fotografias, observada a ordem de preferência do art. 4º, de forma que nenhuma se destaque das
demais, observadas as medidas a seguir:
I – o alinhamento de pessoas ou de fotografias poderá ser simultâneo, de modo que a pessoa
investigada ou processada e as demais pessoas serão apresentadas em conjunto a quem tiver
de fazer o reconhecimento, ou sequencial, de forma que a pessoa investigada ou processada
e as demais sejam exibidas uma a uma, em iguais condições de espaço e períodos de tempo;
II – a pessoa investigada ou processada será apresentada com, no mínimo, outras 4 (quatro)
pessoas não relacionadas ao fato investigado, que atendam igualmente à descrição dada pela
vítima ou testemunha às características da pessoa investigada ou processada.
§ 1º Na realização do alinhamento, a autoridade zelará pela higidez do procedimento, nos moldes
deste artigo, inclusive a fim de evitar a apresentação isolada da pessoa (show up), de sua fotografia
ou imagem.

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§ 2º A fim de assegurar a legalidade do procedimento, a autoridade zelará para a não ocorrência de
apresentação sugestiva, entendida esta como um conjunto de fotografias ou imagens que se refiram
somente a pessoas investigadas ou processadas, integrantes de álbuns de suspeitos, extraídas de
redes sociais ou de qualquer outro meio.
§ 3º Na apresentação de que trata o inciso II, será assegurado que as características físicas, o sexo,
a raça/cor, a aparência, as vestimentas, a exposição ou a condução da pessoa investigada ou
processada não sejam capazes de diferenciá-la em relação às demais.
§ 4º Nos casos em que a vítima ou testemunha manifestar receio de intimidação ou outra influência
pela presença da pessoa investigada ou processada, a autoridade providenciará para que a pessoa
e os demais participantes do alinhamento não vejam quem fará o reconhecimento.

Art. 9º Após a realização da entrevista prévia, das instruções pertinentes e do alinhamento, de


acordo com os artigos anteriores, a vítima ou a testemunha será convidada a apontar se reconhece,
entre as fotografias ou pessoas apresentadas, aquela que participou do delito.
Parágrafo único. Após a resposta da vítima ou testemunha, será solicitado que ela indique, com
suas próprias palavras, o grau de confiança em sua resposta, de modo que não seja transmitida à
vítima ou à testemunha qualquer tipo de informação acerca de sua resposta coincidir ou não com a
expectativa da autoridade condutora do reconhecimento.

Art. 10. O ato de reconhecimento será reduzido a termo, de forma pormenorizada e com informações
sobre a fonte das fotografias e imagens, para juntada aos autos do processo, em conjunto com a
respectiva gravação audiovisual.

Art. 11. Ao apreciar o reconhecimento de pessoas efetuado na investigação criminal, e considerando


o disposto no art. 2º, § 1º, desta Resolução, a autoridade judicial avaliará a higidez do ato, para
constatar se houve a adoção de todas as cautelas necessárias, incluídas a não apresentação da
pessoa ou fotografia de forma isolada ou sugestiva, a ausência de informações prévias, insinuações
ou reforço das respostas apresentadas, considerando o disposto no art. 157 do Código de Processo
Penal.
Parágrafo único. A autoridade judicial, no desempenho de suas atribuições, atentará para a
precariedade do caráter probatório do reconhecimento de pessoas, que será avaliado em conjunto
com os demais elementos do acervo probatório, tendo em vista a falibilidade da memória humana.

Art. 12. Para o cumprimento desta Resolução, os tribunais, em colaboração com a Escola Nacional
de Formação e Aperfeiçoamento dos Magistrados e as demais Escolas de Magistratura, promoverão
cursos destinados à permanente qualificação e atualização funcional dos magistrados e
serventuários que atuam nas Varas Criminais em relação aos parâmetros científicos, às regras
técnicas, às boas práticas, aos problemas identificados pelo GT Reconhecimento de Pessoas.
§ 1º Os cursos de qualificação e atualização mencionados no caput também poderão ser oferecidos
aos membros do Ministério Público e da Defensoria Pública, mediante convênio a ser firmado entre
o referido órgão e o Poder Judiciário, respeitada a independência funcional das instituições.

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§ 2º Os tribunais, com o apoio do CNJ, poderão firmar convênios com o Poder Executivo a fim de
realizar cursos de qualificação e atualização funcional dos agentes de segurança pública sobre as
diretrizes da presente Resolução.

Art. 13. O Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de


Execução de Medidas Socioeducativas do Conselho Nacional de Justiça elaborará, em até 180
(centro e oitenta) dias, manual de boas práticas quanto à implementação das medidas previstas
nesta Resolução.

Art. 14. Esta Resolução entra em vigor em 90 (noventa) dias após a sua publicação.

A Resolução do CNJ é bastante clara quanto à preocupação em condenação errônea e erro judiciário,
apontando DIRETRIZES mais complexas que o próprio CPP, determinando inclusive a gravação do ato e outras
providências.

Note-se, ainda, a citação expressa de pesquisas levadas a efeito pela DPE/RJ comprovando o
reconhecimento “show-up” (indução por mostra de apenas uma foto à vítima) e quem é reconhecido pela prática ilegal:
pessoas negras e pobres, o que demonstra o RACISMO ESTRUTURAL DO SISTEMA CRIMINAL, o PERFILAMENTO
RACIAL feito pela Polícia Ostensiva e Judiciária e uma NECROPOLÍTICA de Estado, especialmente pela prática nas
favelas da PMERJ de tirar foto de transeuntes com seu RG ao lado e, posteriormente e sem critérios, incluí-los em
álbuns de reconhecimento1.

1Sobre o tema, interessante a leitura do Acórdão do Recurso de Apelação 0006376-54.2021.8.19.0036 pelo TJ/RJ, que
abordou essa prática de inclusão de fotografias em álbuns. Veja-se trecho do voto:

“Sentença de procedência (ind. 357) em que se reconheceu a possibilidade de criação do álbum de suspeitos e de
relativização do direito à imagem do investigado. Entendeu, contudo, que a fotografia retirada para fins investigatórios não
pode ser incluída em álbum de suspeitos, pois a UTILIZAÇÃO DE FOTO SEM AUTORIZAÇÃO É PRODUÇÃO DE PROVA
CONTRA SI MESMO, CONSTITUINDO ABUSO DE AUTORIDADE. Sustentou que a lei de identificação civil permite a
fotografia para fins de investigação criminal, mas para inclusão em álbum de suspeitos deve haver, além de autorização
do investigado, despacho fundamentado, e que a LGPD prevê que a utilização de imagens para segurança pública
deve preservar a proporcionalidade, o devido processo legal e as garantias de direitos do titular. Compreendeu que,
como ato administrativo, a inclusão no álbum deve ser motivada. Concluiu que a foto do investigado não possui a
indicação de onde foi tirada ou a data do registro ou menção a seu consentimento para fins de investigação
criminal, não havendo justificativa idônea da autoridade coatora para a manutenção da fotografia em álbum de
suspeitos nem quanto ao critério adotado, reconhecendo o risco a que o impetrante vem sendo submetido e que eventual
condenação é materialização de arbitrariedades que vem sofrendo, havendo direito líquido e certo a ser resguardado.

Apesar destas colocações, o nobre magistrado sentenciante adentrou em questões sobre a forma como as identificações
policiais devem ser realizadas, o que não parece ter sido objeto do processo. Até porque não é desarrazoado que a polícia
trabalhe com álbum de suspeitos sem a anuência dos investigados.

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Não há a menor possibilidade deste assunto não ser abordado em alguma fase da DPE/SP e DPE/RJ
2023.

2. Falsas Memórias

O STF, STJ e CNJ também chamam a atenção para os seguintes pontos:

i) falibilidade da memória humana;

O que é desproporcional e desconforme com a legalidade e com as garantias e direitos fundamentais é que este
álbum seja tornado público de modo a ser utilizado pelos policiais para análise pelas vítimas ou testemunhas de
crimes de possíveis identificações com intuito de reconhecimento e induzimento à autoria, as quais podem, no
entender da jurisprudência dos tribunais superiores acima apontada, causar falsas memórias e possíveis erros
judiciários.

Importante destacar que, da forma como a segurança foi concedida, concluir-se-ia pela necessidade de anuência do
investigado em sua inclusão em álbum fotográfico de suspeitos, o que, na prática, faria com que tal procedimento deixasse
de existir, pois qual investigado permitiria a inclusão de sua imagem para essa finalidade?

De outra sorte, não parece haver necessidade de fundamentação para a inclusão pela autoridade policial de fotografias em
cadastros de suspeitos em relação aos investigados.

Neste ponto, por oportuno, o art. 5º da Lei 12.037/09 permite o processo fotográfico para fins de identificação criminal,
o que não pode ser estendido, entretanto, para o fito de reconhecimento por parte da vítima ou testemunha de
crimes. Esta fotografia, contudo, pode ser utilizada para o inquérito, para o próprio processo ou para investigações
policiais. Jamais, repita-se, para fins de reconhecimento na forma do art. 226 do Código de Processo Penal.

Já a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), Lei 13.709/18, como bem apontado pela Procuradoria de Justiça, não se
aplica para tratamento de dados pessoais para fins exclusivos de segurança pública ou atividades de investigação ou
repressão a infrações penais, na forma do art. 4º da indigitada norma jurídica. E o § 1º deste mesmo art. 4º menciona,
expressamente, que este tratamento de dados se dará por legislação específica com medidas proporcionais e estritamente
necessárias ao atendimento do interesse público, observados o devido processo legal, os princípios gerais de proteção e
os direitos do titular previstos nesta Lei.

Logo a orientação é a de preservação dos direitos e garantias fundamentais, razão pela qual a interpretação
direcionada ao reconhecimento pessoal é aquela que melhor se coadune com o asseguramento da presunção de
inocência, do devido processo legal e da intimidade e privacidade do envolvido.

Forçosa a conclusão, portanto, de que a publicação de álbuns fotográficos de suspeitos de crimes para possíveis
vítimas ou testemunhas destes traduz-se em ilegalidade que vulnera os princípios da presunção de inocência e do
devido processo legal e viola o direito à imagem, à privacidade e à intimidade. “

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ii) falsas memórias; e
iii) NECESSIDADE DE ELEVAÇÃO DO STANDARD PROBATÓRIO POR MEIOS
CIENTÍFICOS E TÉCNICOS.

A memória humana está sujeita à manipulação, sugestão e equívocos.

Eventual reconhecimento pode se tratar de uma falsa memória, criada a partir de uma sugestão ou
equívoco (APRESENTAR APENAS UMA FOTO À VÍTIMA), e que passa a ser considerada cognitivamente como
verdade. Nesse sentido:

“As pesquisas estão começando a nos dar uma compreensão de como falsas recordações
de experiências emocionalmente envolventes e completas são criadas em adultos."
(...)
Falsas recordações são construídas combinando-se recordações verdadeiras com o conteúdo das
sugestões recebidas de outros. Durante o processo, os indivíduos podem esquecer a fonte da
informação. Este é um exemplo clássico de confusão sobre a origem da informação na qual o
conteúdo e a proveniência da informação estão dissociados.” (LOFTUS, ELIZABETH F. (1997).
Creating false memories. Scientific American, 70-75).

Considerando que as memórias são sugestíveis e podem ser manipuladas por fatores externos,
não podem ser consideradas como provas inequívocas.

Esclarecendo sobre essa sugestionabilidade, GUSTAVO NORONHA DE ÁVILA explica que: “as
informações que recebemos, depois do evento que vivenciamos, podem interferir em nossa memória. O efeito da
sugestionabilidade da memória pode ser definido como uma aceitação e subsequente incorporação na memória de
falsa informação posterior à ocorrência do evento original” (ÁVILA, Gustavo Noronha de – Falsas memórias e sistema
penal: a prova testemunhal em xeque – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 114).

Ainda que se conheça a tendência humana de se sensibilizar pela versão da pessoa ofendida, em
se tratando de análise técnico-jurídica, não pode um depoimento preponderar em relação a outro, simplesmente
pela condição que este ou aquele ostenta no processo.

Aliás, ADALBERTO JOSÉ CAMARGO ARANHA professa entendimento no sentido de que o depoimento
da vítima deve ser tomado com cautela, isso quando não deve ser desprezado por completo, em face de seu
envolvimento na causa:

“[...]. A situação psicológica da vítima no processo é bem paradoxal: de um lado, está


capacitada mais do que qualquer outra de reproduzir a verdade, e, do outro, a sua vontade
não pode ser considerada como isenta de fatores emocionais. Além do mais, não podemos
esquecer que não são raros os casos de pseudovítimas, criadas por uma imaginação
traumatizada, como bem narrado por Érico Veríssimo em seu livro O senhor embaixador,
demonstrando que um ódio racial profundo e congênito levou a rapariga a acusar um negro de

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estupro. Farinácio considerava um absurdo (valde absurdum reputatur) admitir a palavra do
ofendido contra o acusado, afirmando textualmente que ‘o depoimento dele contra o réu nada
significa” (ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo - Da prova no Processo Penal - 5ª Ed.,
1999, Ed. Saraiva S. Paulo, fl. 133).

De fato, FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, ao enfrentar o problema, ensina que a prova
circunscrita unicamente ao depoimento da vítima não serve para autorizar um decreto condenatório, sendo
imprescindível que além da versão do ofendido existam outros elementos de prova a lhe dar sustentação:

“[...]. 4. Valor probatório da palavra do ofendido. Acusado e ofendido são os sujeitos da


relação jurídico-material. Situam-se em pólos diferentes. [...]. “Suas palavras, por
conseguinte, por si só, não merecem crédito, dados os interesses em jogo. Grosso modo,
ambos procuram narrar os fatos a sua maneira, e, assim, suas declarações devem ser aceitas com
reservas. Foi o ofendido quem sofreu a ação delituosa e, por isso mesmo, estará apto a prestar os
necessários esclarecimentos à Justiça. Sendo assim, qual seria o valor probatório de suas
palavras? Prima facie, parecerá que suas declarações devem ser aceitas sem reservas, pois
ninguém melhor que a vítima para esclarecer o ocorrido. É de ponderar que aquele que foi
objeto material do crime, levado pela paixão, pelo ódio, pelo ressentimento e até mesmo pela
emoção, procura narrar os fatos como lhe pareçam convenientes; às vezes, a emoção
causada pela cena delituosa é tão intensa que o ofendido, julgando estar narrando os fatos
com fidelidade, omite ou acrescenta particularidades, desvirtuando os fatos. Atendendo a tais
circunstâncias, o ofendido nem presta compromisso nem se sujeita a processo por falso
testemunho. Desse modo, sua palavra deve ser aceita com reservas, devendo o Juiz confrontá-la
com os demais elementos de convicção, por se tratar de parte interessada no desfecho do
processo.” (TOURINHO FILHO, Fernando da Costa – Valor probatório da palavra do ofendido –
Processo Penal – 3.º vol. – 19.ª ed. – São Paulo: Saraiva, p. 295/296).

3. Jurisprudência da Corte IDH

A Corte Interamericada de Direitos Humanos julgou o “Caso Ruano Torres vs. El Salvador (2015)”, o qual
apontou falhas na atuação da Defensoria Pública em favor do defendido e pelo reconhecimento viciado (entre
outras falhas) que deixou de ser alegado.

Franklyn Roger e Diogo Esteves abordaram o tema em coluna no CONJUR2:

“O tema da responsabilidade do Estado por falhas decorrentes da atuação da Defensoria


Pública foi analisado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em duas oportunidades. No
ano de 2008 a Corte IDH já havia traçado as primeiras linhas no caso Chaparro Álvarez e Lapo
Íñiguez vs. Equador, sancionando aquele país pela atuação deficiente da Defensoria Pública no ato
de interrogatório de Lapo Íñiguez[1].

2
Disponível em <https://www.conjur.com.br/2018-set-18/responsabilidade-internacional-pelas-deficiencias-defensoria>

____________________________________________________
Posteriormente, o tema foi profundamente debatido no caso Ruano Torres e outros vs. El
Salvador, com sentença publicada em 5 de outubro de 2015 e cuja abordagem faremos neste tópico.
Em rápida síntese, José Agapito Ruano Torres teria sido detido no interior de sua residência
e na frente de seus familiares, sofrendo maus-tratos físicos e verbais, pela suposta acusação de
estar envolvido em um sequestro e por ser apontado como a pessoa de apelido “El Chopo”.
O processo de correlação entre o apelido “El Chopo” e a pessoa de Ruano Torres foi o mais
rudimentar possível, através de colaboração fornecida por indivíduo que respondia por crimes da
mesma natureza, apontando características que não correspondiam à exatidão com o perfil de
Ruano Torres.
Efetuada a prisão de Ruano Torres, com evidente excesso e maus tratos na condução da
diligência, deu-se início à persecução penal com a ocorrência de várias nulidades verificadas no
procedimento perante a corte. Um dos temais centrais da denúncia era exatamente o fato de que os
vícios não teriam sido alegados pela defesa técnica, acarretando a condenação do acusado.
Houve também questionamentos a respeito da atuação dos defensores públicos no caso, os
quais deixaram realizar pronta intervenção no início do processamento da causa criminal; de
formular perguntas e exigir esclarecimentos sobre a forma de identificação do acusado; e de interpor
recurso contra a decisão de primeiro grau.
Diante de todos os elementos do caso, a Corte IDH reconheceu a violação aos direitos
previstos na convenção, especialmente a garantia da não tortura, a inobservância da presunção de
inocência, o direito ao recurso, a garantia da liberdade pessoal e o direito à defesa, este último com
relação direta à atuação dos defensores. De início, a Corte IDH rememorou a importância da defesa
técnica no processo penal e a necessidade de haver uma política pública de organização do serviço
de assistência jurídica gratuita prestada pelo Estado, de modo que a defesa no processo penal
prestada em favor de quem não pode custear um advogado seja eficaz.
Não bastaria apenas a instituição formal do serviço, sendo necessário que a instituição seja
capaz de prestar um serviço eficiente e em igualdade de condições com o órgão acusatório, inclusive
assegurando-se a autonomia funcional e a presença de membros que gozem de capacidade técnica
e idoneidade[2].
A adequação do serviço de Defensoria Pública, na ótica da Corte IDH,
também passa pela necessária implementação de processos adequados de seleção dos membros
da instituição, além do desenvolvimento de filtros de controle sobre sua atuação e a permanente
capacitação.
Definidas estas premissas, para a Corte IDH não é possível atribuir uma
responsabilidade objetiva ao Estado pela falha da atuação da Defensoria Pública, diante de sua
autonomia funcional, sendo necessário avaliar se a intervenção institucional constituiu uma
negligência inescusável ou uma falha manifesta no exercício da defesa.
Assim, só se torna possível avaliar a responsabilidade do Estado por ato
praticado pela Defensoria Pública quando for verificada que em sua atuação a instituição e seus
membros: (1) Não desenvolvem atividade probatória mínima; (2) Deixam de apresentar argumentos
em favor dos interesses do acusado; (3) Apresentam falta de conhecimento técnico e jurídico do
processo penal; (4) Deixam de interpor recursos para a tutela de direitos do acusado;
(5) Apresentam fundamentação inadequada aos recursos interpostos; (6) Abandonam a defesa.
Ao final do procedimento foram aplicadas diversas sanções em virtude das violações de direitos
humanos, destacando-se, como apontam os Profs. Caio e Paiva e Thim Heemann, uma reparação
simbólica, de duvidosa efetividade, através da determinação da colocação de uma placa no âmbito
da Defensoria Pública com o nome de Ruano Torres[3].

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No conjunto da obra a decisão da Corte é muito acertada, pois prestigia a independência
funcional dos membros e a autonomia da instituição, mas ao mesmo tempo procura proteger o
vulnerável, evitando que a condição de autonomia da Defensoria Pública a torne uma fortaleza
impenetrável a qualquer tipo de responsabilização pelos seus atos.
Peca, todavia, a Corte IDH quando sugere no caso que houve falha por parte do Poder
Judiciário por não ter feito o controle da atuação da Defensoria Pública no caso[4], em virtude
da deficiência no exercício da defesa. Aqui talvez seja o maior problema do precedente
construído pelo tribunal internacional.
Como prever que a Defensoria Pública tem autonomia e, ao mesmo tempo, sustentar
que o Judiciário deva controlar os seus atos? É certo que a autonomia institucional não torna
a Defensoria Pública invulnerável a qualquer tipo de controle e pode o Judiciário, observados
certos limites, verificar o acerto ou não na atuação
institucional.
Faltou à Corte IDH estabelecer melhor como o Poder Judiciário deve exercer a
verificação da regularidade da defesa técnica e como agir em caso de deficiência na atuação
de um defensor.
Os critérios de avaliação da existência de falhas na atuação da Defensoria Pública
construídos no corpo da decisão criam mais névoa do que claridade na interpretação do
tema. Das seis hipóteses caracterizadoras da negligência ou falha manifesta uma delas é
demasiadamente aberta e, em certo ponto, flexibiliza a independência funcional, como é o
caso daquela referente à “indevida fundamentação dos recursos interpostos”.
Trata-se de avaliação extremamente subjetiva, pois desconsidera o
pensamento deduzido pelo defensor público na condução da atividade de defesa técnica e
parte da premissa de que o defensor público deve exaurir a defesa, quase que sugerindo a
aplicação do princípio da eventualidade (alegação de teses conflitantes), norteador do
exercício da defesa no processo civil.
A atuação do processo penal reveste-se de certas particularidades e o ônus argumentativo
varia a partir de aspectos subjetivos (quantidade de defensores que intervêm no processo) e
temporais (momentos de conveniência e oportunidade para apresentação dos argumentos).
Por fim, analisando a questão da responsabilidade financeira pelo
pagamento, é importante apenas considerar que em nosso sistema jurídico, apesar de gozar de
autonomia, a Defensoria Pública, o Ministério Público e os demais poderes não possuem
personalidade jurídica, de modo que a responsabilidade civil por atos praticados por estas
instituições será atribuída à pessoa jurídica de direito público, no caso o estado ou a União, conforme
a instituição. “

Além de esclarecer o direito assegurado pela CADH (art. 8.2) de uma defesa, assinalou que a defesa
técnica efetiva prestada pela Defensoria Pública deve ser eficaz e material (a ser controlado pelo Poder
Judiciário), e não meramente formal (se contrapondo ao modelo fordista de condenação criminal, citado pelo
Min. Schietti).

A Corte ainda fixou os seguintes parâmetros para verificar adequabilidade da atuação defensiva:

i) desenvolver atividade probatória mínima;

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ii) não deixar de apresentar argumentos em favor dos interesses do acusado;
iii) não apresentar falta de conhecimento técnico e jurídico do processo penal;
iv) não deixar de interpor recursos em detrimento dos direitos do acusado;
v) apresentar fundamentação adequada aos recursos interpostos;
vi) não abandonar a defesa.

4. Decisões contrárias após o paradigma

No dia 13.02.2023, foi prolatada decisão no AgRg no HC 775986/SC (assim como outras similares) em
sentido contrário à obrigatoriedade de observar o art. 226, do CPP, para todo e qualquer reconhecimento. Veja-
se a ementa:

AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. ROUBO MAJORADO. PRETENSÃO DE ABSOLVIÇÃO.


NULIDADE DO RECONHECIMENTO PESSOAL. EXISTÊNCIA DE TESTEMUNHA QUE SE DIZ CONHECIDO
DO ACUSADO, TENDO RECONHECIDO O SUSPEITO NA OCASIÃO DA CONDUTA CRIMINOSA (LUTA
CORPORAL). POSSIBILIDADE.
1. O art. 226, antes de descrever o procedimento de reconhecimento de pessoa, diz em seu caput que o rito
terá lugar "quando houver necessidade", ou seja, o reconhecimento de pessoas deve seguir o
procedimento previsto quando há dúvida sobre a identificação do suposto autor. A prova de autoria não
é tarifada pelo Código de Processo Penal (AgRg no AgRg no HC n. 721.963/SP, Ministro Sebastião Reis Júnior,
Sexta Turma, DJe de 13/6/2022).
2. No caso, a vítima foi capaz de identificar o agente pois teve contato próximo com este (houve luta
corporal), razão pela qual, impingir o método legal, apenas pelo esgotamento do rito, resultaria
desaguaria em mero esgotamento da norma, sem sopesar o seu espírito, em detrimento da eficiência e
economicidade processual.
3. Agravo regimental improvido.
AgRg no HC 775986 / SC AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS 2022/0318375-6 Relator Ministro
SEBASTIÃO REIS JÚNIOR

Apesar deste precedente refratário e em aparente contradição com o estabelecido e comentado, não
penso que haverá uma mudança de paradigma.

A decisão retro parece muito mais caminhar para um cunho decisório pragmático em que não há
controvérsia substancial sobre o reconhecimento pessoal do agente, em vez de propriamente retroceder ao
decidido nos precedentes mencionados.

Se assim não fosse, improvável que houvesse a articulação e edição da Resolução 484/2022,
pelo CNJ, com necessidade de ampla mudança prática na dilação probatória no processo penal.

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No entanto, é válido seguir acompanhando os desdobramentos e a implementação da
Resolução, que ainda não entrou em vigor e demanda forte organização administrativa pelo Poder Judiciário
para cumprimento.

Dúvidas, sugestões, apontamentos, podem me enviar !

JEAN RODRIGUES
@jean.rodrigs

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