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relacionamento entre tecnologia e ciência é, sem dúvida, fértil para discussões polêmicas, principalmente
quando as duas variáveis são associadas ao desenvolvimento econômico de países.
Especificamente, uma das consequências mais enganosas de se pensar em tecnologia como mera
aplicação do conhecimento científico preexistente é que tal perspectiva deturpa um ponto extremamente
elementar: a tecnologia é ela própria um corpo de conhecimentos sobre certos tipos de eventos e
atividades. Não significa meramente uma aplicação de conhecimentos trazidos de outra esfera. Trata-se de
um conhecimento de técnicas, métodos e projetos que funcionam, e que funcionam de maneiras
determinadas e com efeitos determinados, mesmo quando não se possa explicar exatamente por quê.
Tecnologia é, portanto, se preferirmos colocar desta forma, não um tipo fundamental de conhecimento,
mas sim uma forma de conhecimento que gerou durante muitos milhares de anos uma certa taxa de
progresso econômico. Por isso, se a humanidade tivesse sido confinada a tecnologias compreendidas em
termos científicos, ela já teria desaparecido há muito tempo.
Por exemplo, a Revolução Industrial durante o século XVIII e início do século XIX foi realizada por
empreendedores, engenheiros e técnicos, empresários sem educação sistemática em ciência ou tecnologia,
não havendo, praticamente, intercâmbio de ideias entre os cientistas e os inventores dos processos
industriais. A maioria das inovações, de importância capital para o início da industrialização, foi obtida à
base de experimentações movidas por conhecimento adquirido pela experiência. De fato, os primórdios
da tecnologia moderna, a partir da Revolução Industrial, deveram-se virtualmente nada à ciência e tudo
aos frutos da tradição de invenção nas artes mecânicas e artesanais, assim como as invenções da
Revolução Industrial derivaram do engenho artesanal e de muito trabalho árduo. 2
época existia muito pouco conhecimento científico sobre a deterioração por idade e
fragilidade dos metais, o que intrigava os cientistas que não conseguiam encontrar uma
explicação para tal fenômeno. Mesmo assim, os engenheiros desenvolveram, por meio de
processos de tentativa e erro, uma liga superior denominada Duralumínio sem que alguém
entendesse cientificamente o fenômeno do endurecimento pela idade. Tal fenômeno apenas foi
explicado posteriormente a partir da introdução de instrumentações, incluindo as técnicas de
difração de raios X e o microscópio eletrônico. Isto possibilitou que, mais tarde, pesquisadores
como o químico Alfred Wilm (de Berlim, que inventou o processo de Wilm, a partir de 1906)
e pesquisadores como H. Hunsicker e S. Stumpf (a partir da década de 1950) fizessem
descobertas que permitiram explicar, à base de busca por meio de microscópios potentes, que
o fenômeno do endurecimento pela idade estava associado a inconsistências em medições de
dureza de certas espécies de ligas de alumínio. Mesmo sem essa explicação científica, o
Duralumínio foi amplamente usado na indústria de aviação (incluindo a construção de
zepelins) durante a Primeira Guerra Mundial.
Vale também lembrar o exemplo do extraordinário desempenho da economia japonesa no século XX,
principalmente depois da Segunda Guerra Mundial. Porém, reconhece-se que, após ter conquistado a
liderança tecnológica e industrial, o Japão tratou de construir uma estrutura científica. Embora se admita
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uma relação simbiótica entre ciência e tecnologia, uma não pode ser tomada como substituta da outra.
Isto, por sua vez, pode conduzir gestores a uma visão enganosa e perigosa de que esforços internos
de desenvolvimento de capacidade tecnológica própria não seriam necessários, uma vez que tecnologia
estaria disponível “em prateleiras” no mercado global e à disposição para venda. De fato, uma parte dela
está na forma de sistemas técnico-físicos (equipamentos, maquinaria, software etc.), produtos, manuais de
instrução e patentes. Estes são elementos óbvios, tangíveis da tecnologia, isto é, sua parte codificada, mas
não podem ser confundidos com tecnologia em si. Afinal, uma pessoa usando um telefone celular de
última geração no deserto do Saara ou na Selva Amazônica está tendo acesso ao uso do produto (de uma
empresa de telefonia móvel), mas não à sua tecnologia.
Em suma, tende-se a assumir, equivocadamente, que tecnologia é uma informação necessária para
projetar e produzir bens e serviços. Esta informação seria de natureza pública, estaria disponível
livremente, seria reproduzida sem custo e existiria de maneira formatada ou explícita na forma de
patentes, projetos, manuais de operação, equipamentos etc. Contrariamente a essa visão convencional,
que iguala informação a conhecimento, eles são, de fato, essencialmente diferentes: informação
representa a soma total de mensagens geradas no mundo e são, em princípio, comercializáveis.
Conhecimento (e tecnologia) geralmente não são comercializáveis, sendo incorporados no processo de
aprendizagem de pessoas e de empresas e é usualmente tácito. Não obstante, tal conhecimento pode ser
usado para gerar informação na forma de manuais, livros, patentes, designs. Por exemplo, o que existe de
relevante na Internet é informação, que foi gerada a partir de conhecimento de pessoas e de organizações.
exemplo, um refrigerador da década de 1960 tinha, no máximo, três a quatro tecnologias, uma delas o
compressor. Os atuais, principalmente aqueles já desenhados para conexão com a Internet, têm
aproximadamente oito a dez tecnologias. Da mesma forma, um telefone celular da década de 1980 tinha
perto de oito tecnologias, enquanto os mais simples atuais têm cerca de 15 a 18 tecnologias. Cada vez
mais, produtos, processos de produção e serviços, como automóveis, software, aviões, extração de
petróleo em águas profundas, serviços hospitalares, serviços bancários e de transporte público envolvem
um crescente número de diferentes tecnologias.
Assim, no sentido de arte, habilidade ou destreza existem, por exemplo, técnicas de fazer poesias, de
tocar um instrumento musical, de fotografar ou de dançar; no que concerne a assunto específico de uma
profissão, as técnicas cirúrgicas, esportivas, de gestão, comerciais (disposição dos produtos em uma loja
de departamentos), agrícolas, de armazenagem de produtos perecíveis. E no sentido de termos ou
expressões confinados a um campo especializado de ocupação há, por exemplo, os termos administrativos
(break-even point, over-head), econômicos, jornalísticos e do mercado de ações.
Dessa forma, tudo é técnica, mas nem toda técnica é tecnologia. Técnica define a capacidade de
produzir e fazer mesmo sem artefatos; já a tecnologia engloba conhecimento acumulado, trabalho e
habilidades, englobando não só os empreendimentos mais difíceis, mas também os esforços pacientes e
contínuos; não só as mudanças rápidas costumam ser chamadas de revolucionárias, mas também as lentas
melhorias nos processos e ferramentas, além das inúmeras ações que podem não ter significância
inovadora imediata, mas que são fruto de conhecimento acumulado. Assim, tecnologia é o resultado e a
extensão de técnica, mas não sua equivalente nem substituta; é muito mais especializada e se refere a
estágios mais avançados da técnica. Explicitados os termos que equivocadamente são definidos como
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sinônimos de tecnologia nos dias de hoje, pode-se agora apresentar seu significado atual.
1.2.2Mas o que é, afinal, tecnologia?
Natureza da tecnologia: breve comentário
Depois do que já foi mencionado, começa a ficar claro que tecnologia é um corpo específico de
conhecimento, conhecimento este fortemente relacionado com a engenharia. Trata-se de um tipo
específico de conhecimento. De fato, como tem sido mostrado em diversos estudos ao longo das últimas
décadas, e claramente argumentado pelo clássico Keith Pavitt, tecnologia deveria ser compreendida como
um quantum de conhecimento retido por pessoas e organizações. Este conhecimento, resultante de sua
experiência acumulada em projeto (design), produção, desenvolvimento de produtos e aprimoramento de
processos é, em sua maioria, tácito. Isto significa que não está formatado, em sua totalidade, em nenhum
tipo de manual ou software. Mas é adquirido por pessoas e organizações por meio de solução de
problemas, permanecendo lá dentro em um estado substancialmente não codificado. 11
Apenas parte deste conhecimento está codificada na forma de manuais de operação, produtos,
equipamentos, publicações técnicas e científicas. De fato, tecnologia é uma forma de conhecimento
(know-how) aberto, no sentido de ter um caráter não proprietário, por exemplo, tecnologia
(conhecimento) sobre energia nuclear, de projeto e fabricação de aviões, ou de explorar petróleo no mar.
Porém, isto não significa que todas as empresas teriam fácil acesso a tais conhecimentos (tecnologias)
específicos. Esses conhecimentos estão armazenados, impregnados e acumulados em empresas
especializadas, na forma de suas capacidades tecnológicas para fazer tais atividades. Mais
especificamente, está armazenado na forma de qualificação das pessoas, suas experiências e talentos e no
tecido organizacional de uma ou mais empresas. Porém, grande parte deste quantum de conhecimento é
tácito, tanto em pessoas como em organizações inteiras.
Mas o que é conhecimento tácito? Pela perspectiva individual, é aquilo que certas pessoas sabem
como fazer, mas dificilmente conseguem contar ou escrever como o fazem. Por exemplo, se você tentar
replicar uma receita culinária dificilmente conseguirá o mesmo sabor obtido pela pessoa que criou a
receita. Se pedirmos para uma pessoa descrever como é andar de bicicleta ou nadar, assim como se
perguntarmos a craques do futebol como eles marcam gol, dificilmente eles conseguirão descrever essa
atividade. Esse conhecimento (do chef de cozinha ao do jogador de futebol) é um conhecimento tácito.
Reflete talentos, habilidade e experiências natas e/ou adquiridas e aprimoradas ao longo do tempo.
Levando-se para o nível organizacional e do ponto de vista tecnológico e empresarial, o conhecimento
tecnológico pode ser subdividido em tácito (não codificável e codificável) e codificado, como mostrado
na Figura 1.1.
Mas onde reside este conhecimento específico (ou tecnologia)? Certamente não está no vácuo ou
solto no ar. A tecnologia é sempre concebida, desenvolvida e alterada dentro de contextos organizacionais
específicos. Estes, por sua vez, localizam-se dentro de contextos regionais e nacionais. Cada empresa é
um lócus onde ocorre uma progressiva acumulação de conhecimento tecnológico que possui elementos
muito específicos e idiossincráticos da empresa e do país em que foi concebida, desenvolvida e
aprimorada.
Recapitulando, portanto, a capacidade das empresas para criar, adaptar, gerir e gerar esses quatro
componentes e a interação entre eles é denominada capacidade tecnológica. Existe uma relação
inseparável e simbiótica entre esses quatro componentes. É essa relação simbiótica que reflete a
capacidade tecnológica que é própria, intrínseca e específica a uma empresa ou país. Por isso, podemos
nos referir à capacidade tecnológica da Petrobras para explorar e produzir petróleo, da Usiminas ou CSN
para projetar e produzir aços, da Motorola para projetar e produzir celulares, da Aracruz ou Votorantim
para produzir florestas e celulose e da Klabin para produzir papel. A capacidade que essas empresas
possuem de realizar tais atividades com alto grau de eficiência, mas também de criatividade e de inovação
é, portanto, a sua capacidade tecnológica. Trata-se de um ativo cognitivo ou base de conhecimento muito
próprio a cada uma dessas empresas e que reflete o conhecimento tácito de seus engenheiros, gerentes,
técnicos e operadores, de seus conhecimentos codificados e tácitos impregnados em suas rotinas
organizacionais, procedimentos, manuais de instrução, técnicas gerenciais, estruturas organizacionais e
gerenciais, sistemas técnico-físicos, instalações, do processo de projetar, desenvolver e aprimorar seus
produtos e serviços, mas também seus valores e normas (jeito como as coisas são feitas) da empresa.
No entanto, existe um grau de importância e prioridade entre esses quatro componentes. Isto é
importante principalmente à gestão da capacidade tecnológica no contexto de economias emergentes (ou
países em desenvolvimento), como é caso do Brasil, da Rússia, Índia, China, África do Sul, Argentina,
México, e vários outros. Como veremos com mais detalhes no Capítulo 2, as empresas nesses países
normalmente começam (ou começaram) seu negócio a partir de tecnologia importada de empresas de
outros países (normalmente daqueles que se industrializaram mais cedo, como, por exemplo, Reino
Unido, França, Estados Unidos, Alemanha e Japão). Por isso, no contexto de países em desenvolvimento,
os componentes recursos humanos (capital humano) e sistemas organizacionais e gerenciais (capital
organizacional) têm importância maior do que sistemas técnico-físicos e produtos e serviços, como
enfatizado na Figura 1.3. Os sistemas técnico-físicos (máquinas, equipamentos e software) podem ser
adquiridos no mercado global com relativa facilidade. Porém, o sistema organizacional (em função da
especificidade das rotinas organizacionais, como mencionado anteriormente) e os recursos humanos
dificilmente são comercializáveis. Eles precisam ser desenvolvidos internamente. É com base neles que
tecnologias adquiridas de outras empresas e de outros países serão assimiladas, absorvidas e,
posteriormente, alteradas, aprimoradas e até transformadas em novas tecnologias. Por isso, são
componentes preciosos que merecem atenção e esforços diferenciados por parte da gestão da empresa
FIGURA 1.3 Pessoas e sistema organizacional: componentes críticos da capacidade tecnológica.
Mais especificamente, esses dois componentes têm elevado grau de especificidade e de propriedade
tácita. Um país precisa desenvolver sua própria base de recursos humanos em áreas relacionadas às
atividades tecnológicas, tais como engenheiros, pesquisadores, gerentes, técnicos, operadores. Assim
também as empresas precisam formar os seus próprios recursos humanos. O sistema organizacional, por
sua vez, é ainda mais tácito e único a empresas específicas.
É a partir da construção e acumulação de capacidade tecnológica que uma empresa poderá realizar ou
não, de maneira independente, atividades uso/operação de tecnologias e de sistemas de produção
existentes (capacidades de produção ou operação) e/ou de atividades para modificar tecnologias e
sistemas de produção existentes ou mesmo para gerar novas tecnologias e novos sistemas de produção de
bens e serviços (capacidades tecnológicas inovadoras). Estas últimas poderão variar desde pequenas
adaptações até atividades mais sofisticadas, podendo evoluir para a geração de sua própria tecnologia,
como representado na Figura 1.4.
Ou seja, ao se referir à capacidade tecnológica de uma empresa ou país é importante discernir se de
produção/operação ou se de inovação, a qual, por sua vez, pode variar de básica até avançada. Portanto,
em se tratando de capacidade tecnológica para realizar uma atividade específica (por exemplo, produzir
carros ou petróleo), tanto em nível de empresa como de país, a pergunta não é se tem ou não tem, mas
qual tipo (se de produção/operação ou de inovação) e em que grau ou nível. Por exemplo, uma empresa
pode ter capacidade para produzir milhões de unidades de certo produto, com alto grau de eficiência; mas
pode não ter capacidade para alterar nenhum de seus componentes. Ou seja, a empresa poderia ter
avançada capacidade tecnológica avançada de produção e nenhuma ou limitada capacidade tecnológica
para inovação. Exploraremos mais detalhes dessa importante distinção no Capítulo 2.
FIGURA 1.4 Capacidade tecnológica e seus impactos.
Essa acumulação de capacidade tecnológica poderá gerar impacto em seu desempenho técnico
(aumento de produtividade, melhoria de qualidade de processos e produtos, redução de custos etc.). A
acumulação de capacidade para inovação poderá significar não apenas performance distintiva no
mercado, mas liderança de mercado, nacional e internacional, superioridade econômica e, também, mais
força política para empresas, países e regiões.
Quanto mais complexa e profunda é esta capacidade tecnológica, mais difícil é de ser imitada e
copiada por outros competidores. De fato, empresas podem adquirir profissionais e equipes inteiras de
outras empresas. Porém, esses componentes podem funcionar de forma criativa e inovadora dentro de um
contexto organizacional repleto de rotinas e práticas que possibilitam que a sua criatividade e ideias novas
se transformem e se materializem em produtos e serviços inovadores. Por isso, convém esclarecer aqui até
que ponto é possível haver transferência de tecnologia.
Uma invenção é uma ideia, um esboço ou modelo voltado para um dispositivo, produto, processo ou
sistema novo ou aperfeiçoado, que pode ser patenteada, mas que não resulta necessariamente em
inovação tecnológica. Já a inovação, em sentido econômico, emerge apenas quando ocorre a primeira
transação comercial envolvendo o novo produto, processo ou sistema, ou seja, é somente quando a
invenção atinge a etapa de comercialização e inserção no mercado. Portanto, existe uma cadeia de eventos
desde a invenção até sua especificação ou aplicação como inovação, o que frequentemente envolve um
caminho longo e arriscado.14
Algumas das mais famosas invenções do século XIX foram realizadas por pessoas cujos nomes
foram esquecidos. Os nomes que se tornaram associados a elas foram os de empreendedores que as
trouxeram para o uso comercial, como, por exemplo: (i) o aspirador de pó, que foi inventado por J.
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Murray e originalmente chamado de “vassoura elétrica de sucção”. Ele abordou um fabricante de artigos
de couro que não conhecia nada sobre aspiradores a vácuo, mas tinha uma boa ideia de como colocá-los
no mercado e vendê-los. O nome dele era W. Hoover e, posteriormente, a marca Hoover ganhou liderança
de mercado; e (ii) a máquina de costura foi inventada por Howe. Ele viajou para a Inglaterra para vender
sua ideia e, quando retornou para os Estados Unidos, Isaac Singer tinha lhe tomado a patente e
estabelecido um negócio de sucesso a partir dela. Embora Singer tenha pagado a Howe os royalties sobre
todas as máquinas produzidas, o nome ao qual a maioria das pessoas associa a máquina de costura é o de
Singer. Não obstante, há exceções notáveis como os filtros para café Melitta, que ilustra como inovações
bem-sucedidas e duradouras podem emergir a partir de busca de soluções para problemas diários. Em
1908, a Sra. Melitta Benz queria encontrar uma solução para eliminar a presença da borra em seu café.
Tomou algumas folhas de papel mata-borrão do caderno escolar de seus filhos. Depois fez alguns furos
em uma panela e usou o papel mata-borrão como coador. No mesmo ano, a Sra. Melitta Benz obteve uma
patente para seu filtro de papel que deu origem à empresa até hoje bem-sucedida no mercado
internacional.
Serendipidade
Serendipidade refere-se às descobertas aparente e relativamente fortuitas. É considerada uma das várias
formas de manifestação da criatividade que, embora conhecida como acidental, acontecem sob um
contexto de busca, perseverança, curiosidade, exploração e senso de observação. Por isso, as descobertas
(e/ou invenções) científicas e técnicas advindas da serendipidade não são exatamente feitas por acaso.
Decorrem, sim, de disposição e esforços criativos prévios, como refletido na célebre frase do cientista
francês Louis Pasteur: “O acaso apenas favorece as mentes preparadas.” Várias inovações importantes
para a vida de pessoas e de empresas evoluíram a partir de eventos de serendipidade. Alguns exemplos
são mostrados no Boxe 1.1.
BOXE 1.1Alguns exemplos de serendipidade 16
Todos esses exemplos sugerem que ideias novas, invenções e descobertas, por mais interessantes que
sejam, nem sempre são inovações. Inovação implica uma combinação de conhecimentos. Ou seja,
significa juntar conhecimentos diversos e transformá-los em produtos, serviços e processos úteis para o
mercado. Como nos foi ensinado há décadas por Joseph Schumpeter, a inovação envolve novas
combinações de conhecimento com aplicabilidade comercial e geração de benefícios econômicos, como 17
Os motores desse processo são empreendedores individuais, as médias e pequenas empresas, assim
como as grandes empresas locais e multinacionais. A inovação precisa de recompensa, daí a economia
dinâmica permitir enormes lucros ao inovador. Schumpeter contribuiu também quando buscou ampliar a
perspectiva sobre inovação para além de processo e produto. Por isso, defendeu que inovação também
envolve: (i) introdução de novos produtos; (ii) introdução de novos métodos de produção; (iii) abertura de
novos mercados; (iv) desenvolvimento de novas fontes provedoras de matérias-primas e outros insumos;
e (v) criação de novas estruturas de mercado. Defendeu que o conceito de inovação não se restringe a
produtos e processos, mas envolve, também, novas formas de gestão (para articulação das novas
combinações), novos mercados e novos insumos de produção.
Inovação é mais do que criatividade. É a implementação de novos produtos, serviços, processos ou
arranjos de organização. Isto significa que ideias criativas têm que ser colocadas em prática e lançadas no
mercado. Toda inovação começa a partir de ideias criativas. Assim, definimos inovação como a
implementação de ideias criativas dentro de uma organização. Desta maneira, a criatividade de indivíduos
e grupos representa um ponto de partida para a inovação. A criatividade, portanto, é uma condição
necessária, mas não suficiente para a inovação. A existência de inovação envolve mais do que a junção de
várias ideias criativas. Ideias devem ser colocadas em prática para fazer uma diferença genuína, como a
implementação de uma nova rotina organizacional, de uma nova técnica de produção, ou nova maneira de
prestação de um serviço. Assim, criatividade deve ser mostrada por pessoas, mas inovação ocorre apenas
em um contexto organizacional. 18
erros. Conta-se que ele trouxe sua cama para próximo de sua bancada no laboratório, onde morou por
vários anos e meses. Na Tabela 1.1 a seguir podemos notar alguns exemplos correlatos. 20
mais tarde superadas por outros grupos de pesquisadores, entre eles os chamados “neosschumpeterianos”,
assim como os estudiosos da “Teoria Evolucionária” para a mudança tecnológica e econômica.
aprendizagem específicos às empresas. Estes, por sua vez, são afetados pela natureza do contexto
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Esta abordagem à inovação alinha-se com diversas correntes de trabalho, em particular, a pesquisa de
longa data em sistemas de inovação em nível nacional, regional e setorial. São também incorporadas no
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trabalho em métodos de levantamento de inovação em sucessivas coletas à base do Manual de Oslo, que
tem mostrado distinções entre as inovações que são novas à empresa, ao mercado e para o mundo. Este27
espectro de uma compreensiva perspectiva da inovação é bem capturada na definição fornecida por G.
Dosi: “Em um sentido essencial, inovação refere-se à busca, descoberta, experimentação,
desenvolvimento, imitação e adoção de novos processos de produção e novas configurações
organizacionais”, como ilustrado na Figura 1.7.
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A Figura 1.7 é importante para mostrar que quando se trata de inovação a questão não é “ser ou não
ser inovador”, mas em que grau ou estágio. Especificamente, a ideia binária de empresa inovadora ou não
inovadora é limitada e equivocada. Essa perspectiva de inovação como um contínuo de atividades com
crescentes graus de dificuldade e sofisticação é particularmente importante para compreendermos o
processo de inovação em empresas que operam em países em desenvolvimento — ou economias
emergentes, diferentemente de empresas que operam na fronteira de inovação, normalmente localizadas
em países industrializados.
atividades inovadoras à base de avanços consideráveis nem sempre derivam de sofisticados laboratórios
de P&D, realizadas em câmaras superlimpas por pessoas de jalecos brancos olhando microscópios ou
telescópios ultrassofisticados ou aceleradores de partículas ou envolvidas com o desenho e a produção de
produtos altamente sofisticados como grandes naves espaciais ou simuladores de voo. Tais mitos sobre a
inovação refletem uma ideia limitada de atividades inovadoras em todos os tipos de empresas. Podem
também conduzir a processos de tomada de decisão errados relativos à atividade industrial.
Um esclarecimento apropriado desta ideia é particularmente importante para o contexto de empresas
de economias de industrialização tardia. Há indicações da existência de diversos tipos de atividades não
relacionadas à P&D realizadas em diversos outros tipos de unidades organizacionais dentro de empresas
inseridas em economias de industrialização tardia. Estas podem ser vistas como condições prévias para a
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realização de atividades inovadoras de níveis mais elevados, baseados, por exemplo, em P&D e
atividades da patente. A Tabela 1.3 ilustra esses diferentes tipos e graus de inovação em nível de
empresas. A primeira coluna representa os diferentes níveis de inovação, variando de simples (iniciação à
inovação) à complexa (inovação de nível mundial); a segunda coluna contém exemplos de atividades que
expressam esses diferentes graus de inovação. Nossa ideia aqui é simplesmente ilustrar os variados níveis
de novidade ao longo do espetro da inovação em empresas em economia de industrialização tardia.
Assim, as atividades que variam da inovação básica à inovação incremental (do simples à
complexa/arquitetural) podem ser consideradas novas para a empresa, enquanto os níveis variando
de incremental (simples à complexa/arquitetural) para avançado podem ser considerados novos para o
mercado (doméstico/regional/continental). As inovações de nível mundial, entretanto, são expressas pela
implementação de processos, produtos, equipamentos, configurações organizacionais que adicionam um
grau original de novidade à fronteira tecnológica internacional. Essas, entretanto, não significam que
devem sempre ser relacionadas a equipamentos impressionantes e muito complexos, tais como um
acelerador de partículas, navios, aviões ou simuladores de voo. Podem igualmente envolver, por exemplo,
produtos simples tidos como certos nas rotinas diárias das pessoas, como escovas de dentes e lâminas de
barbear (produtos que a maioria das pessoas não pode viver sem), que são também suportados por
esforços sofisticados de inovação, como ilustrado pelos exemplos a seguir.
•Inovações arquiteturais
—Aparelhos de telefone celulares menores e mais leves. Se considerarmos os primeiros modelos
comerciais de aparelhos celulares, é possível constatar a grande evolução em termos de design que
esse produto sofreu. Mesmo quando não há grandes alterações de funcionalidade e recursos, os
modelos têm-se tornado cada vez mais leves e finos, permitindo transporte e uso mais confortáveis
para o usuário.
—Motor de automóveis bicombustível. Desde o final dos anos 1980, com o declínio do álcool
hidratado como opção de combustível e a instabilidade no mercado de petróleo, a indústria
automotiva, especialmente os fornecedores de sistemas eletrônicos para controle do motor, buscava
uma alternativa à utilização da gasolina como combustível, aliando a experiência brasileira com o
uso do álcool à necessidade de redução de emissão de poluentes. A empresa Magneti Marelli
desenvolveu um sistema de injeção bicombustível baseado em software, com custo competitivo. A
Volkswagen adotou essa solução, e por causa da experiência com motores a álcool, não foram muito
significativas as modificações necessárias para o motor tornar-se bicombustível.
•Inovações modulares
—Entrada para conexão USB em computadores, em substituição aos antigos disquetes.
—Injeção eletrônica de combustível, que substituiu o carburador.
•Inovações incrementais avançadas
—Lâmpadas do tipo LED. Com o objetivo de oferecer produtos visando à economia de energia, as
empresas fabricantes de lâmpadas desenvolveram as lâmpadas fluorescentes compactas, que
consomem 75 % menos energia que as lâmpadas incandescentes. No entanto, era necessário pensar
em produtos que fossem ambientalmente corretos, considerando que as lâmpadas fluorescentes
contêm uma pequena quantidade de mercúrio. Neste sentido, tem sido realizado um significativo
investimento no desenvolvimento de lâmpadas do tipo LED (Light Emission Diode). O LED, uma
forma de semicondutor, gera luz quando uma corrente elétrica passa por materiais positivos e
negativos. Diferentes cores e maior eficiência são criadas por meio de alterações na composição do
material. Tipicamente, uma lâmpada fluorescente compacta usa cerca de 20 % da energia necessária
para que uma lâmpada comum gere o mesmo volume de luz. Hoje, os LEDs usam cerca de 15 %.
—Post-it para computadores. Este produto simples e prático, adotado em todo o mundo, ganhou uma
versão utilizada em computadores, que simula o formato e o uso das etiquetas que ficam disponíveis
na área de trabalho da interface de computadores baseados nas plataformas Windows ou Macintosh.
•Inovações incrementais intermediárias
—Embalagens de papel para alimentos frios ou congelados. Visando oferecer um tipo de embalagem
ao mercado de produtos frigorificados, a empresa Klabin Papéis e Embalagens desenvolveu um
cartão que foi capaz de substituir as tradicionais embalagens que contêm uma camada interna
composta de polietileno, um plástico não biodegradável, dificultando o processo de reciclagem. O
cartão, por meio de uma resina de látex à base de água, é capaz de proporcionar uma barreira à
umidade, além de facilitar o processo de reciclagem. Por suas características, é possível desenvolver
embalagens para produtos alimentícios com contato direto ou indireto.
—Prestação de serviços adicionais para telefonia celular. No processo de evolução dos serviços em
telefonia celular, destacam-se a prestação do serviço fora da área de cobertura original do usuário
(roaming), serviços de mensagem instantânea, identificação de chamadas, acesso à Internet.
•Inovações incrementais básicas
—Dispositivo mouse para computadores. Inicialmente o dispositivo “mouse” foi projetado para ser
ligado por um cabo ao microcomputador e o estabelecimento do posicionamento do cursor pela
rolagem mecânica de dois eixos internos acionados por uma bola. Posteriormente, o dispositivo
evoluiu para o acionamento óptico para o posicionamento do cursor e atualmente está disponível com
uma interface sem fio.
1.3.3Características do processo inovador
As atividades inovadoras emergem a partir de processo de inovação. Segundo o clássico Giovanni
Dosi, o processo inovador possui propriedades típicas, como detalhadas a seguir:
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“O ‘telefone’ tem muitas limitações para ser considerado um meio de comunicação. Este
equipamento não tem valor algum para nós.”
Memorando interno da Western Union, 1876
“Daqui a 15 anos, mais eletricidade será vendida para veículos elétricos do que para iluminação.”
Thomas Edison, 1910
“Eu creio que há um mercado mundial para talvez uns cinco computadores.”
Thomas Watson, Presidente da IBM, 1943
“Os computadores no futuro poderão pesar não mais que 1,5 tonelada.”
Popular Mechanics Magazine, 1949
Essa incerteza também existe nos dias de hoje. Se perguntarmos a especialistas sobre os
desdobramentos do projeto de genoma e da Internet teremos certamente respostas diversas, contraditórias
e mesmo simplesmente vários “não sei”. Essa impossibilidade de se conhecer previamente (ex ante) os
efeitos ou impactos das inovações faz com que profissionais como professores, engenheiros, médicos e
políticos atuem à base de tentativa e erro. Segundo Mark Twain, grande parte das inovações tecnológicas
baseia-se em lições aprendidas dos erros humanos e da tentativa de superar obstáculos e solucionar
problemas, assim como em processos de eliminação. Por isso, o conhecido processo de tentativa e erro é
parte importante e inevitável do processo de inovação. Por exemplo, em certas atividades profissionais, os
seguintes tipos de situação:
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Cumulatividade
O último elemento destaca a cumulatividade do processo inovador, caracterizado como um processo de
aprendizado, onde a natureza das tecnologias em uso define as direções da mudança tecnológica. Assim, a
probabilidade de realizar avanços tecnológicos é uma função dos níveis tecnológicos já atingidos pela
organização, ou seja, depende de uma base de competências e trajetórias que foram sendo desenvolvidas e
seguidas pela organização. Porém, a aparição de inovações radicais não destrói conhecimentos anteriores.
Por exemplo, o Windows aproveitou muito do conhecimento adquirido em DOS. E a tradicional física
newtoniana está presente nos projetos e na mecânica de produtos à base de tecnologias ultra-avançadas,
como os modernos aviões AirBus 380, Boeing 777 e o EMB 190 da Embraer.
Assim, é importante que gestores estejam atentos aos movimentos de obsolescência tecnológicas e de
emergência de novas tecnologias no intuito de decidir se permanecem com as tecnologias existentes ou as
abandona. De um lado, é preciso controlar a tentação dos lucros imediatos e da zona de conforto. Por
outro, é fundamental preparar a empresa para um crescimento de longo prazo. Empresas que conseguem
longevidade com liderança tecnológica e competitividade parecem adotar uma estratégia ambidestra: de
um lado, implementam inovações incrementais em produtos e processos existentes; de outro, com os
ganhos obtidos de suas tecnologias existentes, investe em desenvolvimento de capacidades tecnológicas
para inovações de ruptura e radicais, no intuito de garantirem o crescimento e competitividade no longo
prazo. A Curva S de inovação é um dos instrumentos que pode auxiliar os gestores nesse constante
processo de monitoramento e de mudança.
1.3.4O processo de inovação difere entre setores industriais
Por isso, as empresas de setores industriais distintos são diferentes em termos da maneira como inovam.
Obviamente, empresas farmacêuticas possuem um processo de inovação muito diferente de empresas do
setor de aço, que, por sua vez, são diferentes das do setor de software. Deste modo, podemos nos valer da
clássica taxonomia desenvolvida por Keith Pavitt, conforme mostrado na Tabela 1.4.
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De fato, a capacidade tecnológica tem um forte componente tácito, mas o que é tácito hoje não o é
amanhã. Por mais tácito e intrínseco que seja, o conhecimento tecnológico pode “vazar”, dependendo dos
esforços de aprendizagem dos imitadores. Por isso é que empresas e países que antes eram meros
imitadores e/ou usuários de tecnologias de outros, por exemplo, as empresas eletrônicas do Japão dos
anos 1950, Hyundai da Coreia do Sul e Embraer do Brasil, tornaram-se líderes internacionais.
As inovações são o resultado do processo de inovação, que pode ser definido como as atividades
combinadas que conduzem a novos produtos e serviços negociáveis e/ou a novos sistemas de produção e
entrega. Há inovações que adquirem respeitável longevidade no mercado, como a aspirina. Mas há
inovações que não duram mais do que um ano no mercado e são rejeitadas por consumidores.
Diferentes tipos de inovação têm sido identificados nos estudos existentes. As inovações
incrementais envolvem adaptação, refinamento e melhoria de produtos existentes. As inovações radicais
envolvem categorias de produto e de serviço inteiramente novas e/ou sistemas da produção e de entrega
(por exemplo, comunicações sem fio). As inovações arquitetônicas referem-se às reconfigurações do
sistema de componentes que constituem o produto (por exemplo, os efeitos da miniaturização dos
componentes-chave do rádio).
Rosenberg (1982).
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Este processo foi desenvolvido pelo engenheiro metalurgista do Reino Unido, Henry Bessemer. A produção de aço com
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base no conversor de Bessemer significou um avanço em relação a processos anteriores como aquele à base do cadinho
desenvolvido por Benjamim Huntsman.
Rosenberg (1993); Salomon (1984).
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Salomon (1984).
10
Freeman (1982).
14
Royston (1989).
16
Amabile (1996).
18
Teece (2007).
19
Marchetti (1980).
20
Marchetti (1980).
21
Rosenberg (1982).
23
Freeman (1987); Lundvall (1992); Nelson (1993); Cooke (2001); Malerba (2002).
26
OECD (2005).
27
Dosi (1988:222).
28
OECD (2005).
29
Dosi (1988).
31
Pavitt (1997).
32
O’Boyle (1999).
33