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Chlamydia trachomatis:
A Epidemia Silenciosa
Chlamydia trachomatis: A Epidemia Silenciosa

O gênero ao qual pertence a Chlamydia trachomatis é


composto por espécies de bactérias com capacidade
metabólica limitada e crescimento restrito ao meio intra-
Quadro 2 - Doenças comumentes associadas com
sorotipos de C. trachomatis

celular, através de um ciclo reprodutivo peculiar. A Sorotipo Doença


Chlamydia trachomatis é um patógeno exclusivo de huma-
A, B, Ba, C Tracoma endêmico
nos, já a C. psittaci é encontrada em diversos mamíferos e
pássaros psitáceos (papagaios, periquitos, pombos, perus e
B, D, E, F, G, K Óculo Genital
galinhas), sendo responsável pela zoonose ornitose (antes Uretrite/Síndrome uretral aguda
psitacose), transmitida por meio da inalação de partículas Oftalmia
ao contato com aves infectadas. Cervicite
Recentemente, uma nova espécie foi reconhecida como Bartholinite
causadora de doença respiratória: a Chlamydia pneumoniae Endometrite
– anteriormente conhecida por TWAR – parece ser trans- Salpingite (DIP)
mitida por contato interpessoal e provoca infecção das vias Peri-hepatite
aéreas superiores e pneumonia, apresentando, Pneumonia
freqüentemente, índices de soroprevalência superiores a Síndrome de Reiter
Câncer de colo uterino ???
50% em populações adultas.
Em virtude do pequeno tamanho e do parasitismo
L1, L2, L3 Linfogranuloma venéreo
intracelular obrigatório, as clamídias foram consideradas
vírus, desde sua descrição original até os anos 60. Entre-
tanto, possuem parede celular característica, ribossomos, Os membros da família das Clamidiáceas são bactérias
DNA, RNA e funções metabólicas que confirmam sua na- intracelulares obrigatórias com um extraordinário ciclo vi-
tureza bacteriana. tal bifásico. Durante este ciclo, o corpo elementar (CE),
uma forma extracelular, infecciosa, metabolicamente ina-
Quadro 1 - Características distintas das clamídias
tiva, alterna-se com o corpo reticulado (CR), uma forma
intracelular, não infecciosa metabolicamente ativa e
- Parasitas intracelulares obrigatórios
replicativa. Na primeira etapa do ciclo reprodutivo, os CEs
- Deficiência na produção de ATP endógeno
infecciosos ligam-se a receptores de células hospedeiras
- Contém DNA, RNA e ribossomos procarióticos típicos
não fagocitárias receptivas. O complexo receptor de CE é
- Membrana externa semelhante a de bactérias Gram-negativas
- Ciclo de desenvolvimento dimórfico que ocorre na inclusão intracelular Figura 1 - Ciclo de desenvolvimento da C. trachomatis
citoplasmática
na célula hospedeira
- Genoma pequeno (cerca de 1/8 Escherichia coli)
- Extrema diversidade na homologia de DNA

A primitiva correlação da clamídia com as doenças sexual-


mente transmissíveis (DST) ocorreu em 1910, quando foi
descrita a associação de conjuntivite de inclusão em recém-
nascidos, a uretrite não-gonocócica (UNG) e cervicite mater-
nas. Nos anos 30, foi relacionada ao linfogranuloma venéreo
(LGV). As cepas de C. trachomatis podem se classificadas
por anti-soro ou por anticorpos monoclonais em 18 sorotipos
prontamente distinguíveis. O tracoma endêmico geralmente
é associado com infecção pelos sorotipos A, B, Ba e C, en-
quanto a infecção óculo-genital não tracomatosa é causada
pelos sorotipos B, C, D, E, F, G, K. Já o linfogranuloma
venéreo relaciona-se aos sorotipos L1, L2 e L3.
internalizado num vacúolo revestido por uma membrana
que inibe a fusão fagolisossômica. Os vacúolos contendo
CE movem-se para formar uma inclusão citoplasmática.
Nessa inclusão, os CEs se diferenciam em CRs e inicia-se
a síntese protéica. Os CRs começam a dividir-se por fissão
binária, utilizando os recursos energéticos da célula hos-
pedeira. A inclusão contendo CR cresce e os CRs são gra-
dualmente transformados em CEs. Finalmente, a célula
hospedeira morre e a inclusão se rompe, liberando nume-
rosos CEs para infectar novas células.

EPIDEMIOLOGIA
Segundo dados da Organização Mundial de Saúde Estimativas da Coordenação Nacional de DST/aids
(OMS), a estimativa de novos casos de infecção pela apontam para a existência de 1.967.200 casos novos a
Chlamydia trachomatis em adultos era de 92 milhões em cada ano. Nesses, a incidência em mulheres e homens
1999, sendo que 9,5 milhões ocorreram na América Lati- sexualmente ativos é de 3,5% (1.508.500 casos no-
na e Caribe. Nas estimativas dos Centros de Controle de vos/ano) e 2,32% (478.700 casos novos/ano), respec-
Doenças e Prevenção (CDC), nos Estados Unidos, exis- tivamente.
tem mais casos novos diagnosticados de infecção pela A baixa idade é um dos fatores de risco mais impor-
clamídia do que qualquer outra DST, incluindo sífilis, tantes entre os relatados nos estudos realizados. A idade
gonorréia, condiloma acuminado, herpes e aids. Entre eles, inferior a 20 anos, ou a 25, dependendo da população
é estimado que entre 3 e 4 milhões de casos novos de estudada, é o principal fator de risco para a maioria dos
clamídia ocorram a cada ano. autores. Alguns trabalhos e seus autores estão descritos
No Brasil, não há muitos dados que demonstrem a na tabela 1.
situação da infecção pela Chlamydia trachomatis. Os da- Todos esses trabalhos possuem vários dados interes-
dos publicados na literatura científica sobre prevalência santes. Do de Varella et al, que foi um estudo realizado
dessa infecção são estudos isolados, em populações espe- numa cidade do interior do Estado do Rio de Janeiro,
cíficas, em serviços determinados, mas que mostram a onde a taxa de positividade para clamídia no canal
importância dessa infecção silenciosa em nosso meio. cervical de mulheres atendidas em consultas ginecológi-

Tabela 1 - Taxas de prevalência da infecção pela Chlamydia trachomatis em mulheres brasileiras relatadas na literatura

Prevalência Autor N Ano Local População Método diagnóstico


18,0% Gonçalves Raddi et al 142 1993 Araraquara/SP Ambulatório ginecologia Cultura endocérvice
4,0% Passos et al 186 1995 Porto Alegre/RS Planejamento Familiar IFD
9,0% Amaral et al 122 1995 São Paulo/SP Pré-natal ELISA
2,1% Simões et al 328 1997 Campinas/SP Pré-natal IFD1
6,6% Faundes et al 407 1998 Campinas/SP Planejamento familiar IFD
2
8,4% Moherdaui et al 348 1998 Multicêntrico Serviços DST IFD
8,5% Lowndes et al 796 1999 Rio de Janeiro/RJ Ambulatório ginecologia IFD/ELISA
13% Miranda et al 119 2000 Vitória/ES Penitenciária feminina ELISA
8,9% Melles et al 189 2000 São Paulo/SP Ambulatório ginecologia Cultura endocérvice
18,5% Varella et al 108 2000 Piraí/RJ Ambulatório ginecologia ELISA
5,0% Frias et al 100 2002 Teresópolis/RJ Clínica particular ELISA
3,2% Bastos et al 123 2002 Rio de Janeiro/RJ Clínica particular ELISA
20,2% Smith et al 424 2002 São Paulo/SP Ambulatório CA cervical IFD
3
11,4% Miranda et al 149 2002 Vitória/ES PSF – Adolescentes LCR4
0,6% Ramos et al 155 2002 Porto Alegre/RS PSF – Mulheres PCR 5
19,6% Araujo et al 296 2002 Goiânia/GO Ambulatório ginecologia PCR
1. IFD = imunofluorescência direta – 2. Estudo multicêntrico: Manaus, Recife, Belo Horizonte, São Paulo e Porto Alegre
3. PSF = Programa da Saúde da Família – 4. LCR = Reação em cadeia da ligase – 5. PCR = Reação em cadeia da protease
cas foi de 18%, veja as principais características das mu- cos que atendem DST. Muitos citam que o exame é caro.
lheres infectadas no quadro abaixo (quadro3). Todavia, se for procurado na tabela de honorários sugerida
pela Associação Médica Brasileira, poderá encontrar-se o
Quadro 3 - Varella RQ et al: clínica privada 18,8% e posto
de saúde 18% valor de 90 CH (coeficiente de honorários-CH). Conside-
rando um CH de R$ 0,30, uma pesquisa de clamídia por
• 50% em até 29 anos de idade ELISA ou imunofluorescência tem o valor de R$ 27,00.
• 70% casada (relatando monogamia) Honestamente, não pode-se alegar que é um valor proibitivo.
• 85% sem uso de preservativo Infelizmente, o Brasil (serviços públicos, privados e
• 95% sem passado de DST sociedades médicas) carece de normas enfáticas com orien-
• 40% motivo da consulta: Rotina tações para o rastreamento de Chlamydia trachomatis.
• 30% motivo da consulta: Corrimento Seria importante um grande esforço envolvendo todos
• 30% motivo da consulta: Dor Pélvica os seguimentos, no sentido de se promover a pesquisa siste-
• 15% muco turvo mática nos indivíduos potencialmente mais acometidos e,
• 20% toque doloroso sobretudo, em mulheres sexualmente ativas com idade en-
tre 15 e 25 anos. Isso porque, como veremos nas próximas
• 70% usavam ACO (anticoncepção oral)
separatas, as complicações e seqüelas causadas por uma
Técnica; Elfa Vidas DST - J bras Doenças Sex Transm 12(3):1-18,2000
doença clamidiana podem assumir grandes proporções or-
gânicas, sociais, emocionais e econômicas para a pessoa
Vários estudos internacionais, entretanto, procuram de- portadora, bem como para o sistema de saúde, seja ele pú-
terminar quem são os mais infectados por Chlamydia tra- blico ou privado. Tudo isso, sem contar com os vários dias
chomatis. Assim, é aceito hoje que o perfil das doenças cau- perdidos na jornada de trabalho, o que fatalmente afetará a
sadas pela clamídia atinjam as seguintes pessoas (quadro 4): produtividade, caso o paciente tenha uma ocupação.
Quadro 4 - Grupos de indivíduos com alto risco de DST DST em uma população
por clamídia

• indivíduos com outras DST


• indivíduos com síndromes associadas à clamídia
• parceiros sexuais de indivíduos com gonorréia ou síndromes
associadas à clamídia
• indivíduos mais jovens
• recém-nascidos de mães infectadas

Pelo que já foi citado, fica evidente que mesmo em


países desenvolvidos, como EUA, as infecções por
Chlamydia trachomatis ainda são inadequadamente con-
troladas pelos serviços de saúde, apesar da ênfase na pre- Pelo diagrama exposto, é possível perceber o quanto
venção. Conscientes da situação, o CDC e a Associação pode ser difícil controlar uma doença com poucos sinto-
Americana de Saúde Social, no ano passado, passaram a mas, como as causadas pela Chlamydia trachomatis. Vá-
indicar rastreamento de rotina para todas as mulheres se- rios são os problemas a serem enfrentados. Desde a per-
xualmente ativas entre 15 e 25 anos. cepção de estar em risco para uma DST, seus sinais e sin-
No Brasil, nos serviços públicos, são raros os locais que tomas, até o correto tratamento do parceiro sexual.
oferecem sistematicamente a pesquisa desse patógeno. Nos Observem que o diagnóstico laboratorial é vital no
serviços privados, normalmente só se pesquisa clamídia em enfrentamento dos danos causados pela clamídia. Óbvio
casos sintomáticos ou quando um dos parceiros sexuais que não adianta diagnosticar e não disponibilizar, imedia-
relata a presença da bactéria. Mesmo nessas situações, a tamente, tratamento adequado. Todavia, se o parceiro se-
pesquisa de Chlamydia trachomatis ainda não faz parte da xual for esquecido ou negligenciado, a cadeia de trans-
rotina da maioria dos ginecologistas, urologistas ou médi- missão ainda será forte.

Em foco - Chlamydia trachomatis: A Epidemia Silenciosa é uma publicação periódica da PhOENIX Produções Editoriais, patrocinada por
Farmoquímica. Jornalista Responsável: José Antonio Mariano (Mtb: 22.273-SP). Tiragem: 20.000 exemplares. Endereço: Rua Gomes Freire,
439 – Cj. 6 – CEP 05075-010 – São Paulo – SP. Tel.: (11) 3645-2171 – Fax: (11) 3831-8560 – E-mail: phoenix@editoraphoenix.com.br –
Nenhuma parte desta edição pode ser reproduzida, gravada em sistema de armazenamento ou transmitida em forma alguma, por qualquer
procedimento.
Autor:
Mauro Romero Leal Passos
Professor Adjunto Doutor, Chefe do Setor de DST e Coordenador do Programa de Pós-graduação em
DST, Universidade Federal Fluminense - Niterói - RJ.

Colaboradores:
Renata de Queiroz Varella
Especialista em DST, Setor de DST, Universidade Federal Fluminense.

Angélica Espinosa Miranda


Núcleo de Doenças Infecciosas, Universidade Federal do Espírito Santo, aluna de Doutorado da
Escola Nacional de Saúde Pública, FIOCRUZ.

Referências Bibliográficas:
- Brasil, Ministério da Saúde, SPC-CNDST/aids. Manual de Controle Rio de Janeiro, Revinter, 2002.
de DST, 3a. ed., Brasília, 1999. - Schachter J, Barnes R. Infecções Causadas por Chlamydia trachomatis
- Centers for Disease Control and Prevention. Sexually transmitted discases in Morse AS, Moreland AA, Holmes KK. Doenças Sexualmente
treatment guidelines 2002. MMWR 2002; 51 (No. RR-6): 32-36. Transmissíveis e AIDS, 2a. ed., Porto Alegre, Artes Médicas, 1997.
- Passos MRL et al. Doenças Sexualmente Transmissíveis, 4 . ed. Rio
a
- Varella RQ, Passos MRL, Pinheiro VMS et al. Pesquisa de Chlamydia
de Janeiro, Cultura Médica, 1995. trachomatis em mulheres do município de Piraí – Rio de Janeiro.
- Passos MRL, Almeida GL. Atlas de DST e Diagnóstico Diferencial DST - J brás Doenças Sex Transm 12(3): 27-44, 2000.

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