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O gene CCR5 e
a mutação que
confere proteção
contra o vírus HIV
Palavras-chave: vírus HIV, gene CCR5, sistema imunológico, linfócitos TCD4, Síndrome da
Imunodeficiência Adquirida (AIDS), mutação CCR5Δ32
Figura 1.
Representação esquemática
dos principais componentes
que formam a estrutura do
vírus HIV. O HIV é envolvido
por uma bicamada lipídica
derivada da membrana da
célula hospedeira, denominada
de envelope. No envelope,
glicoproteínas de superfície
gp120, encontram-se
ancoradas ao vírus por meio de
interações com a glicoproteína
transmembrana gp41.
Componentes internos como
as enzimas integrase, protease
e transcriptase reversa são
essenciais para a transcrição
e replicação viral. O HIV é um
vírus de RNA e seu material
genético está envolto por uma
estrutura proteica conhecida
como capsídeo. Imagem:
Duarte, M. J.
Figura 2.
Representação geral da
estrutura e localização
cromossômica do gene CCR5.
Segundo informações obtidas no GeneBank expressão de transcritos que se originam a O gene CCR5 encontra-se
localizado no braço curto do
do NCBI, o gene CCR5 de humanos (ID: partir de sítios de iniciação encontrados no cromossomo 3, banda 21,
1234) pode ser transcrito em duas formas éxon 2 A ou B e resultam na geração de vá- possui 6 kb de comprimento,
alternativas de RNA, CCR5A e CCR5B. rias isoformas consideradas truncadas, uma com três éxons, dois íntrons
Esses transcritos são produzidos a partir de vez que não possuem o éxon 1. e duas regiões promotoras,
P2 e são considerados isoformas longas que P1 e P2. A ORF completa e a
O transcrito primário que codifica a isofor- sequência 3’UTR encontra-se
codificam a mesma proteína, mas se dife- no éxon 3.
renciam um do outro pelo tamanho da re- ma mais abundante apresenta 3661 nucleo-
gião 5’UTR, sendo a 5’UTR do transcrito tídeos. Após processado, o RNA mensageiro
CCR5A maior. Com relação ao P1, segundo apresenta 1056 nucleotídeos e a proteína
dados da literatura, esse promotor conduz a possui 352 resíduos de aminoácidos, com
peso molecular correspondente a 40,6 kDa. kDa - unidade de massa
molecular, correspondente a mil
Daltons.
Figura 3.
Estrutura predita da proteína
CCR5. A proteína codificada
pelo gene CCR5 é uma proteína
transmembranar, apresenta sete
domínios ligados por alças, nas Além de estar envolvido no processo de in- aterosclerose, esclerose múltipla, doença in-
quais três estão voltadas para fecção pelo HIV-1, o gene CCR5 tem sido flamatória intestinal e outras doenças como
o lado extracelular e, as outras associado a doenças inflamatórias como o câncer.
três, para o lado intracelular. A
porção N-Terminal (extremidade
superior da proteína, destacada
em amarelo) e a segunda alça
extracelular são sítios de ligação
da célula CD4 a receptores do
HIV. Imagem: Duarte, M.J.
Figura 4.
Interação e ligação do HIV
a célula CD4. (a) O complexo
ativo das glicoproteínas
Em seguida, ocorre a fusão da membrana vi- novas moléculas de RNA mensageiro do vírus de superfície gp120 e
ral com a membrana da célula CD4, e o vírus são transcritas e as suas proteínas traduzidas transmembrana gp41 controlam
a entrada dos componentes do
libera no citoplasma da célula o seu RNA e as e translocadas para a superfície celular. Na vírus na célula em conjunto com
enzimas transcriptase reversa, integrase e pro- quinta etapa ocorre o processo de montagem os receptores e os correceptores
tease. Na segunda etapa acontece a transcrição da estrutura central viral, onde longas cadeias de superfície CCR5 e CXCR4
reversa do RNA viral em DNA pela enzima de proteínas sintetizadas são cortadas em pro- da célula CD4. (b) A entrada
transcriptase reversa e, na terceira etapa ocor- teínas individuais pela enzima protease. Assim, do vírus HIV é iniciada pela
ligação da proteína gp120 com
re a integração do DNA viral ao genoma da novos vírus são formados, e por fim, na sexta o receptor de superfície celular
célula hospedeira pela enzima integrase. Pos- etapa ocorre a maturação viral e, uma vez ma- CD4. Essa ligação resulta em
teriormente, na quarta etapa, a replicação vi- duro, os novos vírus nascentes estão prontos um rearranjo da proteína gp120,
ral, através da maquinaria da célula hospedeira para infectar outras células CD4 (Figura 5). permitindo que ela se ligue
ao correceptor na superfície
da célula. (c) As interações
entre a proteína gp120 e os
correceptores CCR5/CXCR4 são
estabelecidas. Imagem: Duarte,
M.J
Figura 5.
Aspectos gerais do
mecanismo de infecção do
vírus HIV na célula CD4.
Ilustração dos principais passos
da infecção da célula CD4 e A identificação da função do CCR5 como ao bloqueio da entrada do vírus na célula
o ciclo de replicação do vírus
correceptor do HIV na célula CD4possi- CD4.
HIV, caracterizados pelos
seguintes processos: ligação bilitou a revelação de que ele é um alvo
importante para o desenvolvimento de Entretanto, a eficiência do Maraviroc é li-
do vírus ao receptor CD4 e
correceptores CCR5 ou CXCR4; uma nova classe de drogas antirretro- mitada, visto que algumas cepas virais con-
fusão com a membrana da virais, conhecida como antagonistas de seguem utilizar alternativamente o corre-
célula hospedeira; liberação do
correceptores ou bloqueadores/inibido- ceptor CXCR4, enquanto outras cepas são
RNA e enzimas virais dentro capazes de interagir com o CCR5 mesmo
do citoplasma; transcrição res de interação. Como exemplo destaca-
reversa do RNA viral para DNA; -se o fármaco Maraviroc (aprovado para quando está ligado ao fármaco. Além dis-
integração do DNA viral no utilização pela ANVISA em 2007), uma so, há evidências de toxicidade, causada
genoma; transcrição do RNA
pequena molécula que se liga ao correcep- por falta de especificidade ao receptor. Ou-
viral e tradução de proteínas tros fármacos antagonistas do correceptor
virais que são translocadas tor CCR5 e causa uma mudança em sua
conformação estrutural, especificamente CCR5 foram desenvolvidos, mas raramente
para superfície celular para
montagem de estrutura central nos sítios de interação do HIV, levando são utilizados por serem de alto custo.
do vírus seguido do processo
de maturação onde os novos
vírus formados estão prontos
para infectar novas células CD4.
Imagem: Duarte, M.J.
HIV após o transplante de medula óssea diagnosticado com HIV em 1995 e, a partir
provenientes de doadores portadores da mu- de então, começou a fazer o tratamento an-
tação CCR5∆32/∆32. Esses pacientes são tirretroviral. Porém, dez anos mais tarde foi
conhecidos popularmente como: “o paciente diagnosticado com leucemia mieloide aguda,
de Berlim e o paciente de Londres”. após tratamento quimioterápico sem suces-
so; a alternativa utilizada para tratar o câncer
O paciente de Berlim, Timothy Ray Bro- foi o transplante de medula óssea. Surpreen-
wn, foi a primeira pessoa a ser considerada dentemente, Timothy encontrou 267 doado-
curada da infecção pelo HIV no mundo res compatíveis.
após o transplante de medula óssea. Ele foi
Figura 6.
Diagrama das diferenças
apresentadas pelo gene e
pela proteína CCR5 selvagem
e a mutante CCR5∆32. Devido ao grande número de doadores, o pia antirretroviral. Em 2012, esse paciente
Ilustração da região da proteína médico hematologista alemão Gero Hütter foi diagnosticado com o câncer Linfoma de
CCR5 traduzida afetada pela
mutação Δ32. A porção da
selecionou dentre eles um portador da mu- Hodgkin e após ser submetido a uma qui-
proteína selvagem (CCR5) tação CCR5∆32/∆32. Assim, no início de mioterapia ineficaz, os médicos optaram por
traduzida é apresentada 2007, Timothy recebeu o transplante de me- realizar o transplante de medula óssea pro-
na parte da superior da dula óssea e, no mesmo dia, a terapia antir- veniente de um doador portador da mutação
imagem, enquanto a mutante
retroviral foi interrompida. Na recuperação CCR5∆32/∆32. Mais de trinta meses após
(CCR5Δ32), é apresentada na
parte inferior da figura. Os pós-transplante, os testes não indicaram pre- o transplante, o câncer do paciente de Lon-
nucleotídeos destacados em sença do HIV no sangue do paciente, porém, dres continua em remissão e a sorologia para
vermelho na sequência do em 2008, a leucemia reincidiu. Os médicos HIV permanece negativa.
gene que codifica a proteína então resolveram fazer um novo transplante
selvagem correspondem
com o mesmo doador e dessa vez a leucemia Mesmo com resultados eficientes, o trans-
aos 32 pb deletados (do plante de medula óssea não é utilizado como
nucleotídeo 794 ao 825) no não reincidiu e a carga viral continuou inde-
alelo com a mutação Δ32. Os tectável. tratamento usual para cura do HIV, pois é
aminoácidos representados um procedimento árduo e ariscado, que pode
por letras vermelhas (I, K, D, Ao longo dos anos, Timothy foi testado con- colocar a vida do paciente em risco e requer
S, H, L, G) na sequência da tinuamente com os métodos mais sensíveis um alto investimento financeiro. Além disso,
proteína mutada são os novos
para detecção do HIV e, 12 anos pós-trans- a mutação é rara, portanto, é difícil encontrar
aminoácidos inseridos devido à
mudança da matriz de leitura, plante, os resultados permaneceram negati- doadores de medula que sejam portadores da
seguidos pelo códon de parada vos para o HIV. Porém, no fim de setembro mutação CCR5∆32/∆32 e que sejam imu-
(stop códon) prematuro. de 2020, após uma batalha de cinco meses nologicamente compatíveis com indivíduos
Imagem: Duarte, M.J. contra a leucemia que reincidiu, infelizmente HIV positivos. Outro ponto importante a
Timothy foi a óbito. ser considerado: uma vez que o HIV não
consegue se ligar ao CCR5, ele pode desen-
Recentemente foi divulgado o caso do “pa- volver mecanismos adaptativos que possibili-
ciente de Londres”, diagnosticado com tem sua ligação ao correceptor CXCR4 para
HIV em 2003 e a partir daí iniciou a tera- infectar as células hospedeiras.
Figura 7.
Efeito protetor da mutação
CCR5∆32 na célula CD4 contra
a infecção causada pelo HIV.
CRISPR - do inglês, Clustered Já em 2019, um pesquisador chinês chamou a atenção da Demonstração do mecanismo
Regularly Interspaced Short comunidade cientifica e da sociedade quando, por meio de de interação e ligação dos
Palindromic Repeats, ou seja, uma notícia, revelou ao mundo que deu origem em laborató- receptores da célula CD4 CCR5
Repetições Palindrômicas Curtas selvagem (esquerda) e CCR5∆32
rio a duas crianças gêmeas do sexo feminino portadoras da mutante (direita) com o HIV.
Agrupadas e Regularmente
Inter espaçadas; mecanismo
mutação CCR5∆32/∆32, usando a técnica de edição gênica A mutação CCR5∆32 gera uma
molecular de proteção do (CRISPR). Essa pesquisa não foi publicada em revista cientí- proteína CCR5 não funcional
genoma bacteriano que tem fica especializada, onde deveria ter sido submetida à análise de que, ao invés de ser exportada
sido utilizado em laboratório para a superfície da célula CD4
outros especialistas e gerou um conflito bioético pois a edição e atuar como correceptor do
como técnica de edição gênica em humanos não possui autorização legal para ser rea-
genômica, que possibilita HIV, localiza-se no citoplasma e,
a indução de mutações lizada. consequentemente, o vírus não
específicas e permanentes no consegue interagir e entrar na
DNA. Estudos científicos demonstram também que, apesar da mu- célula hospedeira, conferindo
tação CCR5∆32/∆32 conferir proteção contra o HIV, indi- assim um fenótipo protetor
víduos portadores dessa mutação podem apresentar um pior contra a infecção causada
pelo HIV ao indíviduo com a
prognóstico em casos de doenças inflamatórias. Além disso, mutação. Imagem: Duarte, M.J.
a mutação causa um aumento no risco de morte em caso de
Vírus do Nilo ocidental - infecção pelo vírus do Nilo ocidental e/ou da influenza, e
retrovírus transmitido para também uma maior predisposição para o desenvolvimento
humanos principalmente por de problemas ósseos. Embora a técnica de CRISPR tenha o
mosquitos do gênero Culex sp;
causa a febre do Nilo Ocidental,
uma doença febril aguda.
Conclusão
A descoberta de que o gene CCR5 codifica
um correceptor na célula CD4, que é essen-
cial para a infecção pelo HIV, trouxe contri-
buições importantes para o entendimento
sobre a patogênese desse vírus. Além disso,
a evidência de que indivíduos homozigo-
tos para a mutação CCR5Δ32 apresentam
um fenótipo que confere proteção contra a
infecção pelo HIV abriu e continua abrin-
do perspectivas para novas possibilidades
terapêuticas contra o vírus, seja por meio
do desenvolvimento de novos fármacos, do
transplante de medula a partir de doadores
portadores da mutação CCR5∆32/∆32, ou
até mesmo a possibilidade de terapia gênica.
Desta maneira, os estudos que abordam o
gene CCR5 contribuem para o desenvolvi-
mento de novas abordagens de tratamento e
proteção contra a infecção pelo HIV.