Terminada a votação sobre as alterações nas regras dos níveis
diferenciados de governança corporativa da BM&FBovespa, o resultado não foi o esperado pelos órgãos de regulação e de auto-regulação e significativa parcela dos investidores. Já se passa a cogitar, conforme notícias veiculadas em meios especializados, a alteração no próprio texto da Lei das Sociedades por Ações – LSA. Nesse contexto de busca de alternativas para a melhoria das práticas de governança das empresas brasileiras, entendo conveniente prestarmos atenção às lições que o padrão internacional de contabilidade (International Financial Reporting Standards – IFRS), que tem a sua adoção integral inicial neste ano de 2010, pode trazer ao Direito. Um dos pilares dos IFRS é a primazia da essência sobre a forma: “Para que a informação represente adequadamente as transações e outros eventos que ela se propõe a representar, é necessário que essas transações e eventos sejam contabilizados e apresentados de acordo com a sua substância e realidade econômica, e não meramente sua forma legal” (item 35 do Pronunciamento Conceitual Básico do Comitê de Pronunciamentos Contábeis – CPC). Isso não significa que a forma jurídica deva ser simplesmente desconsiderada, mas que o mais importante é a substância e a realidade econômica das transações. E essa mudança de paradigma pode perfeitamente ocorrer no campo da interpretação e da aplicação das normas jurídicas. Nesse sentido, lembro o marcante ensinamento do professor e filósofo do Direito Miguel Reale: “acontece que a norma jurídica está imersa no mundo da vida, ou seja, na nossa vivência cotidiana, no nosso ordinário modo de ver e de apreciar as coisas. Ora, o mundo da vida muda. Então acontece uma coisa que é muito importante e surpreendente: uma norma jurídica, sem sofrer qualquer mudança gráfica, uma norma do Código Civil ou do Código Comercial, sem ter alteração alguma de uma vírgula, passa a significar outra coisa” (Teoria tridimensional do direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 125). Não há a menor dúvida de que as relações societárias mudaram muito no Brasil nos últimos anos, especialmente com o fortalecimento do mercado de capitais a partir de meados dos anos 2000. O que proponho, então, é que a LSA, mesmo não sofrendo alteração sequer numa vírgula, produza normas jurídicas que sejam decorrentes da refrangência das atuais intenções de valor incidentes sobre a interação fática das relações societárias; no que os IFRS têm muito a colaborar, conforme se verá em seguida. Uma primeira lição dos IFRS, relacionada à reorganização de empresas (participação societária, fusões e aquisições), pode ser encontrada no registro contábil do ágio, considerado, de maneira bastante sumária, como a mais valia entre o valor pago pela participação societária e o justo valor econômico dessa mesma participação societária. De acordo com os IFRS, somente se verifica a existência de ágio quando se tratar de aquisição de controle de uma empresa ou de um negócio autônomo (combinação de negócios). Isso quer dizer que nas reorganizações societárias ocorridas internamente dentro de um mesmo grupo empresarial, por não ter havido aquisição de controle, não há justificativa econômica para o ágio, não podendo ele ser constituído contabilmente (item 10 do CPC 15). Outra lição dos IFRS, ainda relacionada ao ágio, refere-se a sua valoração: na antiga prática contábil brasileira (prevista expressamente nas legislações societária e tributária), o valor do ágio seria apurado considerando o preço da transação e o valor do patrimônio líquido da empresa adquirida, tal como registrado na contabilidade; não se levava em conta, portanto, a possível diferença de valor dos ativos e os eventuais ativos intangíveis. A segregação da mais valia nessas três ordens de ativos, quais sejam, (i) diferença de valor dos ativos, (ii) existência de ativos intangíveis não registrados contabilmente e (iii) propriamente (e exclusivamente) o ágio por expectativa de rentabilidade futura (goodwill), justifica-se economicamente, sendo, inclusive, reconhecida para fins de tratamento tributário (artigo 7° da Lei n° 9.532, de 1997). Note-se que o critério para a classificação de cada parte (cada ativo) não obedece a critérios tributários – seja em benefício do contribuinte ou da arrecadação –, mas deve ser determinada pela substância econômica da operação, normalmente descrita em laudo de peritos independentes. Também com relação ao direito de saída conjunta (tag along), previsto no artigo 254-A da LSA, os IFRS têm lições a ministrar para o Direito. A disciplina contábil sobre a combinação de negócios aplica-se a qualquer situação em que haja a aquisição de poder para governar a política financeira e operacional da empresa de forma a obter benefícios de suas atividades (Apêndice A do CPC 15); e o efetivo exercício desse poder deve ser considerado independentemente da quantidade de participação societária transferida (adquirida). Portanto, à luz dos IFRS, a oferta pública de aquisição de ações – OPA, prevista no citado artigo 254-A da LSA, seria obrigatória para qualquer transferência de controle, seja ele definido (controlador identificado) ou em decorrência da pulverização da titularidade das ações de uma companhia (controlador minoritário ou não identificado). A adoção no Brasil dos IFRS tem causado uma verdadeira revolução na contabilidade das empresas – inclusive com relação à reeducação dos seus profissionais. Em decorrência disso, os administradores das empresas são chamados a participar mais ativamente (e com mais responsabilidade) nas decisões referentes às informações financeiras. Diante dessa mudança de cultura empresarial, não há porque o Direito e os seus profissionais ficarem alheios a esse processo, tanto com relação à reeducação quanto à responsabilidade.
Edison Carlos Fernandes, advogado, professor de
Mercado de Capitais e Direito Tributário na Universidade Mackenzie e professor da FGV (GVLaw e GVPEC).
TONETTO FILHO and FREGONESI. (2010) - CONGRESSO USP - Análise Da Variação Nos Índices de Endividamento E Liquidez E Do Nível de Divulgação Das Empresas Do Setor de Alimentos