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REGIME TRIBUTÁRIO DE TRANSIÇÃO – RTT:

QUE NEUTRALIDADE?

Edison Carlos Fernandes, Advogado, Graduado em Direito pela Faculdade de


Direito da USP; Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie; Doutor em Direito das Relações Econômicas
Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; ex-membro
do Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda – atual Conselho
Administrativo de Recursos Fiscais; ex-juiz do Tribunal de Impostos e Taxas do
Estado de São Paulo; Professor de Direito Tributário e de Mercado de Capitais
da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie; Professor
convidado dos cursos de pós-graduação do Instituto Internacional de Ciências
Sociais – IICS (Centro de Extensão Universitária), da Fundação Getúlio
Vargas (GVLaw e GVPEC) e da FIPECAFI; Titular da Cadeira n° 29 da
Academia Paulista de Letras Jurídicas – APLJ.

Introdução

Uma breve revisão histórica demonstra que já a partir da edição da Lei n°

6.404, em 15 de dezembro de 1976, houve uma tentativa de desvincular a

escrituração societária da escrituração utilizada na apuração dos tributos sobre o

lucro. Pouco mais de um ano após a publicação da primeira lei a tratar de

maneira sistemática das demonstrações financeiras, para fins societários, foi

editado, em 26 de dezembro de 1977, o Decreto-lei n° 1.598, que tratou da

apuração do imposto sobre a renda das pessoas jurídicas, considerando as (então)

recentes mudanças das normas contábeis. O que era para ser a declaração de

divórcio entre a contabilidade societária e a tributária foi, na verdade, o início da

forte influência da legislação referente ao imposto sobre a renda sobre as

demonstrações financeiras.
A comparação de dois dispositivos do Decreto-lei n° 1.598, de 1977,

registra, muito bem, essa relação conflituosa entre a contabilidade societária e a

contabilidade tributária. De um lado, o artigo 8°, I instituiu o Livro de Apuração

do Lucro Real – LALUR, no qual seriam inscritas as operações financeiras

sujeitas ao imposto sobre a renda (de rigor, os ajustes à contabilidade societária

determinados pela legislação tributária); de outro, o artigo 20 determinava como

deveria ser registrado contabilmente o investimento em participação societária e

o respectivo ágio ou deságio. Embora os dispositivos da legislação tributária não

impusessem de maneira expressa a adoção de critérios para o registro contábil, o

poder de coação da Administração Tributária e o correspondente receio das

empresas em ter suas contas questionadas resultaram na adoção das normas

tributárias para fins de escrituração societária1.

As alterações trazidas pela Lei n° 11.638, de 2007, complementadas pelas

alterações promovidas pela Lei n° 11.941, de 2010, ao capítulo das

demonstrações financeiras da Lei n° 6.404, de 1976, finalmente estabeleceram a

segregação entre contabilidade societária e contabilidade tributária. Por meio do

estabelecimento do Regime Tributário de Transição – RTT e da neutralidade

tributária, a apuração dos tributos sobre o lucro tomará por base a escrituração

contábil tal como disciplinada pela legislação societária (Lei n° 6.404, de 1976)

em 31 de dezembro de 2007. Acontece que, mesmo segregadas, a influência

recíproca das normas societária e tributária continua existindo (até porque é

1
Nesse sentido, além do registro contábil do investimento em participação societária, a lei
tributária determinava o registro da provisão para devedores duvidosos, da depreciação e a
ausência de reconhecimento de provisões para contingências, dentre outros.
inevitável), restando, então, ser definido qual o alcance da neutralidade inserta no

Regime Tributário de Transição – RTT.

Repercussões tributárias das normas contábeis

Como mencionado anteriormente, com a neutralidade instituída pelo RTT,

as alterações ocorridas nas normas contábeis para fins societários não têm

qualquer aplicação à apuração dos tributos sobre o lucro. Se esse entendimento,

teoricamente, parece de fácil compreensão (e aplicação), as complexas

repercussões tributárias das normas contábeis suscitam diversas questões que

demonstram a falsidade dessa conclusão. E exatamente nessas questões estão os

pontos que exigem análise mais criteriosa e cautelosa da aplicação da

neutralidade tributária.

Em primeiro lugar, as normas contábeis determinam a classificação e a

avaliação (reconhecimento e mensuração) de ativos e passivos. O registro de

ativos e passivos na contabilidade implica, invariavelmente, o lançamento

contraparte em rubricas de resultado, isto é, custos, despesas e receitas.

Considerando que alguns tributos tomam por base a composição do lucro

(receitas subtraídas de custos e despesas), tem-se que a primeira repercussão

tributária das normas contábeis é a apuração dos tributos sobre o lucro (Imposto

sobre a Renda das Pessoas Jurídicas – IRPJ e Contribuição Social sobre o Lucro

Líquido – CSLL) e dos tributos sobre as receitas (Contribuição para o Programa


de Integração Social – PIS e Contribuição para o Financiamento da Seguridade

Social – COFINS).

Depois, esse resultado final registrado na contabilidade servirá para

remunerar os sócios e os investidores (podendo, também, aumentar a

remuneração dos empregados, por meio da participação nos lucros e resultados),

o que ocorre, essencialmente, por meio da distribuição de dividendos. Também

nesse caso verifica-se uma relevante repercussão tributária, que influencia

diretamente o montante do retorno aos sócios: trata-se da tributação sobre a

distribuição de lucros. Considerando que, de acordo com a legislação tributária

brasileira, os dividendos são isentos dos tributos sobre o lucro, na apuração feita

pelos beneficiários, a definição desse lucro, que é feita por meio das normas

contábeis, implica o recebimento de valores tributariamente desonerados.

Finalmente, eventual parcela dos lucros não distribuída aos sócios (ou aos

investidores ou aos empregados), bem como determinadas contrapartidas do

registro de ativos e passivos, serão alocadas em rubricas do patrimônio líquido. O

patrimônio líquido caracteriza-se, fundamentalmente, por reconhecer “dívidas”

que a empresa tem perante os sócios em razão da separação de patrimônios, além

de, em sendo medida de garantia a credores, representar a limitação das

responsabilidades dos mesmos sócios. Embora de natureza eminentemente

societária, o patrimônio líquido é utilizado como referência para questões


tributárias, como é o caso da remuneração de juros sobre o capital próprio e do

controle de empréstimos de sócio estrangeiro (thin capitalization).

Disciplina do Regime Tributário de Transição – RTT

O Regime Tributário de Transição – RTT está disciplinado pelos artigos

15 a 24 da Lei n° 11.941, de 2010. Esse regime vigerá até que seja editada lei

tributária específica disciplinando a incidência dos tributos sobre o lucro (IRPJ e

CSLL) e sobre a receita (Contribuição para o PIS e COFINS) no contexto da

adoção das normas internacionais de contabilidade – IFRS (artigo 15, § 1°). Por

enquanto, a adoção das novas regras contábeis (de acordo com as manifestações

do Comitê de Pronunciamentos Contábeis – CPC) que modifiquem o critério de

reconhecimento de receitas, custos e despesas computadas na apuração do lucro

comercial, não terão efeitos para fins de apuração do lucro real da pessoa jurídica

sujeita ao RTT, devendo ser considerados, para fins tributários, os métodos e

critérios contábeis vigentes em 31 de dezembro de 2007 (artigo 16).

Com relação à conduta a ser adotada pelas empresas, elas devem seguir,

em linhas gerais, o seguinte procedimento (artigo 17):

(i) utilizar os métodos e critérios definidos pela legislação contábil, para

apurar o resultado do exercício antes das despesas de IRPJ/CSLL,

deduzido das as participações de debêntures, empregados,


administradores e partes beneficiárias, mesmo na forma de

instrumentos financeiros, e de instituições ou fundos de assistência ou

previdência de empregados, que não se caracterizem como despesa,

com a adoção dos métodos e critérios determinados pelas novas

normas contábeis (IFRS/CPC);

(ii) realizar ajustes específicos ao lucro líquido do período, apurado nos

termos acima, no Livro de Apuração do Lucro Real - LALUR, que

revertam o efeito da utilização de métodos e critérios contábeis

diferentes daqueles da legislação tributária, baseada nos critérios

contábeis vigentes em 31 de dezembro de 2007; devendo ser utilizado

o formulário específico do LALUR Eletrônico (sucessor do Controle

Fiscal Contábil de Transição – FCONT, instituído pela Instrução

Normativa RFB n° 949, de 2009); e

(iii) realizar os demais ajustes, no Livro de Apuração do Lucro Real -

LALUR, de adição, exclusão e compensação, prescritos ou autorizados

pela legislação tributária, para apuração da base de cálculo do imposto.

Em outras palavras, tem-se que os lançamentos contábeis promovidos em

decorrência da adoção dos IFRS (CPC), deverão ser estornados para fim de

apuração dos tributos sobre o lucro e sobre a receita. Embora, deve-se advertir

que existem registros contábeis disciplinados pelos IFRS (CPC) que, com outra

nomenclatura, estão também disciplinados na legislação tributária (como, por

exemplo: amortização do ágio de investimento, realização da reserva de


reavaliação e impairment ou recuperabilidade em alguns casos). De qualquer

forma, importante destacar que o RTT, e a consequente reversão dos lançamentos

contábeis adotados de acordo com os IFRS (CPC), é aplicado, exclusivamente,

na determinação de receitas, custos ou despesas.

Repercussões tributárias não abrangidas pelo RTT

Consoante foi apresentado anteriormente, os novos padrões contábeis

repercutem de duas formas em matéria tributária: na apuração dos tributos sobre

o lucro e sobre a receita e nas questões relacionadas aos aspectos societários,

como a composição do patrimônio líquido e a distribuição isenta de dividendos.

Por outro lado, de acordo com a disciplina legal do RTT, tem-se que ele, ao tratar

do registro de receita, custos e despesas, tem sua abrangência limitada à primeira

repercussão, ou seja, à apuração dos tributos. Portanto, o RTT, e o estorno de

lançamentos contábeis para fins tributários que ele representa, não abrangem as

repercussões tributárias ligadas às questões societárias.

Nesse sentido, destacam-se duas situações, a saber: controle fiscal dos

empréstimos de sócios estrangeiro (thin capitalization) e remuneração dos juros

sobre o capital próprio. Em ambos os casos, toma-se, como referência para os

referidos cálculos, a composição do patrimônio líquido. Isso implica dizer que

nenhuma das duas citadas situações de apuração de despesa dedutível (juros

pagos aos sócios estrangeiros, em função de empréstimo tomado, e juros pagos


aos sócios em geral, em decorrência do capital social) está abrangida pelo RTT.

Sendo assim, não há que se proceder a qualquer ajuste ao patrimônio líquido,

determinado de acordo com o padrão internacional de contabilidade (IFRS/CPC),

para fins tributários desses dois controles (exceto pela exclusão da conta “ajuste

de avaliação patrimonial” no cálculo dos juros sobre o capital próprio, já que

expressamente determinada pelo artigo 59 da Lei n° 11.941, de 2009).

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