Você está na página 1de 2

A (in)constitucionalidade da vedação do ágio

Já comentei neste espaço (“Bônus e ônus do ágio” – 21/11/2013) que a Medida


Provisória n° 627, no âmbito da regulamentação tributária da adoção dos padrões
internacionais de contabilidade (International Financial Reporting Standards – IFRS),
aproveitou para “corrigir” o que a Receita Federal do Brasil entende estar “errado” em
relação ao ágio (“goodwill”). Essa “correção” implicou a vedação ao ágio interno e ao
ágio em que não há circulação de recursos financeiros (substituição de ações ou quotas).

Naquela oportunidade, foi esclarecido que o ágio (“goodwill”) é o sobrepreço que o


adquirente paga em relação ao valor patrimonial do bem adquirido – no caso, a
participação societária (ações ou quotas). No caso de compra de empresa, a justificativa
econômica natural para que o valor pago seja superior ao valor de mercado (com o
perdão do reducionismo) da empresa vendida reside na expectativa de rentabilidade
futura.

Por “ágio interno”, entende-se aquele que decorre de operações de aquisição de


participação societária (ações ou quotas) realizadas entre empresas pertencentes a um
mesmo grupo econômico, operação na qual não haveria justificativa econômica para
que uma empresa pague sobrepreço (ágio) para adquirir outra que esteja sob o mesmo
controle (partes de um mesmo grupo econômico), porque, ao fim e ao cabo, o
comprador e o vendedor seriam a mesma pessoa.

Por outro lado, com relação ao ágio em operações de reestruturação societária que não
contam com fluxo financeiro, ou seja, sem pagamento em dinheiro, cujos principais
exemplos são a permuta de ações e a incorporação de ações, foi destacado que a norma
contábil reconhece que o controle de uma empresa pode ser adquirido sem que haja
transferência de caixa (pagamento em dinheiro), citando as seguintes hipóteses: (i) pela
assunção de passivos; (ii) quando a empresa recompra um número tal de suas próprias
ações de forma que determinado investidor acaba obtendo o controle sobre ela; (iii)
quando um eventual direito de veto de não controladores que antes impedia uma
determinada pessoa de controlar a empresa perde efeito; ou (iv) por meio de acordos
puramente contratuais (acordo de acionistas, por exemplo).

Considerando que é possível justificar economicamente o ágio em ambas as situações,


embora de maneira mais restrita no primeiro caso (“ágio interno”), foram propostas
emendas à MP 627 para “corrigir” essa “correção” da Receita Federal. Nesse sentido, o
ágio em operações sem fluxo financeiro (dinheiro) seria integralmente permitido e o
“ágio interno” seria aceito quando chancelado pela Comissão de Valores Mobiliários –
CVM (quando houvesse minoritários a proteger).

Acontece que o relator da MP 627, de acordo com o seu voto lido no Congresso
Nacional na semana passada (19/02), não aceitou qualquer modificação nesses temas
relacionados ao ágio. Portanto, prevaleceu o entendimento da Receita Federal do Brasil.

A se confirmar a posição do relator na deliberação do Poder Legislativo, será criado


mais um foco de contencioso tributário, pois a vedação do ágio em operações
economicamente justificadas é inconstitucional.
Para entender isso, primeiro precisa ser afirmado que a dedução do ágio (sobrepreço)
não é um benefício fiscal ou um favor que a lei concede aos contribuintes; trata-se de
um elemento necessário à composição do conceito constitucional de renda.

O conceito de “renda”, na seara tributária, apresentado pela Constituição Federal e


ratificado pelo Código Tributário Nacional (como lei complementar que é), reside no
acréscimo patrimonial (riqueza nova). Para se chegar ao acréscimo patrimonial, torna-se
imprescindível considerar o patrimônio inicial, as riquezas geradas e os custos
necessários a produção dessas riquezas. Dessa forma, deduzir custo e despesa na
apuração dos tributos sobre o lucro (IRPJ/CSLL) não é beneplácito das autoridades
fiscais, mas, sim, decorre de mandamento constitucional.

No último mandado do presidente Fernando Henrique Cardoso, o então secretário da


Receita Federal Everaldo Maciel propôs a obrigatoriedade da adoção do lucro
presumido a algumas empresas. Tal proposta não prosperou, e não poderia prosperar,
porque imporia um imposto sobre algo que não é renda, já que as empresas assim
obrigadas não poderiam deduzir suas despesas legítimas.

Desde que economicamente justificado, o ágio pago na aquisição de controle de uma


empresa, seja em operação dentro do mesmo grupo econômico ou em operação que não
implica pagamento em dinheiro, terá a natureza de despesa necessária e, portanto, com
garantia constitucional para a sua dedução no cálculo dos tributos sobre o lucro
(IRPJ/CSLL).

Caberia, eventualmente, à legislação ordinária determinar os critérios e os prazos para o


aproveitamento dessa despesa. Sendo declarados inconstitucionais os dispositivos da
MP 627 que tratam dessas vedações – o que parece ser inexorável –,voltaria a vigorar a
legislação anterior, assim como suas condições e seus prazos.

Você também pode gostar