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Carol Fiorotti – 62 1

RAIVA HUMANA E TÉTANO

1. Raiva:
É causada por um vírus RNA envelopado, semelhante a um projétil, do gênero Lyssavirus e
espécie Rabies vírus.

a) Transmissão: pela saliva de animal raivoso.


Eventualmente a arranhadura do animal pode gerar a doença, pois pode haver saliva na unha
do animal.

Além disso, raramente pode ser transmitida por aerossol em cavernas com morcegos raivosos
ou por transplante. Não existe transmissão inter-humana da doença.

- Animais: atualmente o morcego é o principal responsável pela manutenção da cadeia


silvestre e também dos casos em cidades. Além disso, cães e gatos são importantes na cadeia
urbana. Também há relatos de transmissão por macacos.

Não apresentam risco de raiva: ratos, camundongos, hamster, coelhos e cobaia (porquinho da
índia).

b) Patogenia:
Após a infecção, há replicação viral no local da inoculação, em células musculares e em células
subepiteliais.

Geralmente o vírus está presente em terminações nervosas, estando parcialmente protegidos


da imunidade humoral e celular pela bainha neural de Schwann, gerando pouca reação
inflamatória – ausência de viremia, não havendo transmissão pelo sangue.

Assim, a partir das terminações nervosas, o vírus alcança as junções neuromusculares e chega
ao SNC, havendo disseminação centrípeta via neurônios aferentes para locais altamente
inervados – gera uma encefalite, pela inoculação do encéfalo.

Nas junções neuromusculares o vírus também se liga ao receptor nicotínico da acetilcolina


através de glicoproteínas.

c) Clínica:
c.1) Período de incubação: variável.
Tem em média 1-3 meses, porém pode variar de 4 dias até 8 anos.

Depende de vários fatores, como:


- Concentração viral no inóculo.
- Proximidade da ferida com o cérebro: mordidas na face, pescoço e mãos são mais perigosas
pois há maior número de terminações nervosas.
- Gravidade da ferida.
- Idade do hospedeiro
- Imunidade do hospedeiro.

A doença ocorre em 32-67% das pessoas expostas ao vírus, sendo que o simples ato de lavar as
mãos após o contato evita cerca de 80-90% das transmissões. É uma doença de notificação
compulsória!
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c.2) Período prodrômico: duração de 2-10 dias.


Inicialmente ocorrem disestesias, que consistem na alteração de sensações, gerando sintomas
como dor, formigamento e coceira. Assim, há evolução para um quadro neurológico, que cursa
com febre, cefaleia, anorexia e agitação.

c.3) Período neurológico: duração de 2-10 dias.


Ocorrem sinais e sintomas mais intensos.

- Aerofobia e hidrofobia: fobia ao ar e à água. É o quadro mais clássico da doença,


diferenciando-a de encefalites.
- Espasmos do músculo da deglutição: há recusa de líquidos.
- Agitação psicomotora e ansiedade em paroxismos com períodos depressivos.
- Comprometimento bulbo, cerebelo e medula: hiperventilação, hipóxia, afasia,
incoordenação, paresias e paralisias.
- Alucinações e fobias.

c.4) Coma: horas a dias.


Ocorrem arritmia, apneia, parada cardíaca e morte em quase 100% dos pacientes.

OBS: Existe um protocolo nos EUA (adaptado em recife) que gera um coma induzido, tentando
proteger o cérebro do paciente e evitar o óbito, no entanto gera muitíssimas sequelas. Por isso
a doença deve ser prevenida.

d) Diagnóstico virológico:
É feito por biópsia, realizando isolamento viral ou imunofluorescência direta, geralmente após
a morte.

- Histopatológico: visualiza-se corpúsculos de Negri, que consistem em inclusões específicas


das células infectadas na região do hipocampo, células piramidais do córtex e células de
Purkinje no cerebelo.

d.1) Teste de triagem:


- Imunofluorescência direta.

d.2) Teste confirmatório:


- Isolamento viral: inoculação intracerebral em camundongos ou cultivo.

e) Profilaxia pré-exposição:
- Vacinação: três doses (0, 7 e 28 dias).
É indicada para pacientes em risco, como estudantes de veterinária ou pessoas que trabalham
com animais de rua e animais selvagens.

Deve-se dosar os anticorpos de forma frequente, devendo este estar presente em


concentração >0,5 UI/mL, indicando reforço vacinal quando encontra-se em níveis menores.
Essa avaliação pode ser anual em pessoas que realizam um trabalho periódico ou semestral
em indivíduos com grande exposição.
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f) Profilaxia pós-exposição:
- Tratamento local da ferida: lavar com água e sabão – se bem feita e imediata pode prevenir
até 90% das infecções. Não se deve suturar a ferida.

- Verificar necessidade de antibiótico: indicado para mordeduras mais profundas, pois há


grande número de anaeróbios na boca do animal, sendo desnecessário em arranhaduras.
O antibiótico mais indicado para mordeduras é amoxicilina-clavulanato, que engloba
anaeróbios, estafilococos e estreptococos.

- Vacinação anti-tetânica: deve ser realizada quando não houver vacinação prévia – verificar o
cartão de vacina.

- Imunização pós-exposição: vacinação ou imunoglobulinas anti-rábica (soro).

OBS: Depende do ferimento grave ou não, animal sadio ou doente e do indivíduo afetado.

f.1) Imunização pós-exposição:

 Soro anti-rábico: homólogo ou heterólogo. Tenta-se aplicar ao redor da ferida ou o


mais próximo possível dela.
Deve ser administrado no máximo 7 dias após a aplicação da 1ª dose da vacina, pois
após esse tempo não possui eficácia. Seus efeitos adversos não contraindicam sua
aplicação.

- Choque anafilático: administra-se Ig humana hiperimune anti-rábica 20 UI/Kg.

 Vacinação: via IM nos dias 0, 3, 7 e 14 (4 doses).


Geralmente administra-se a vacina no músculo deltoide ou vasto lateral. Na ausência
de vacina intramuscular pode-se realizar intradérmica.

Na maioria dos locais administrava-se uma quinta dose no dia 28, porém ela
praticamente não gera benefícios, por isso diminui-se para 4, principalmente devido à
escassez da vacina.

 Sorovacinação: é indicada para lesões mais graves, como mordeduras/arranhaduras


em mãos, pés, cabeça ou pescoço, lesões múltiplas e/ou profundas. Também é
indicada para lambedura em mucosa por um animal raivoso ou por um morcego.
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f.2) Profilaxia com vacina de cultivo celular:


Quando o ferimento ocorre por gato ou o cão não raivoso, com ou sem suspeita da doença,
deve-se observá-lo por 10 dias, pois quando o animal adquire raiva ele se torna um
transmissor por 5 dias, indo a óbito dentro desse tempo (no máximo até 10 dias). Quando não
se conhece o animal considera-o como doente.

Condição do animal agressor


Cão ou gato sem Cão ou gato com Cão ou gato raivoso,
Tipo de exposição suspeita de raiva na suspeita de raiva na desaparecido ou
agressão agressão morto, animais
silvestres ou animais
de produção
Acidentes leves: Lavar com água e Lavar com água e Lavar com água e
- Ferimentos sabão. sabão e iniciar sabão e iniciar
superficiais pouco profilaxia com 2 imediatamente a
extensos. Observar o animal doses da vacina profilaxia com 4
- Únicos por 10 dias. Se sadio, (dias 0 e 3). doses da vacina
- Em tronco e encerrar o caso. (dias 0, 3, 7 e 14).
membro (exceto Se raivoso, morrer Observar o animal
mãos, polpas digitais ou desaparecer, por 10 dias. Se sadio, Também administra-
e planta dos pés) realiza-se 4 doses de suspender vacinas. se soro em caso de
- Mordedura ou vacina (dias 0, 3, 7 e Se raivoso, morrer morcego.
arranhadura. 14). ou desaparecer,
- Lambedura de pele completar o
com lesões esquema até 4
superficiais. doses de vacina
(dias 7-10 e 14).

Acidentes graves: Lavar com água e Lavar com água e Lavar com água e
- Ferimentos sabão e iniciar sabão e iniciar sabão e iniciar
profundos, múltiplos profilaxia com 2 imediatamente a imediatamente a
ou extensos (em doses da vacina profilaxia com 4 profilaxia com 4
qualquer local) (dias 0 e 3). doses da vacina doses da vacina
- Em cabeça, face, (dias 0, 3, 7 e 14) e (dias 0, 3, 7 e 14) e
pescoço, mãos, Observar o animal administrar soro. administrar soro.
polpa digital ou por 10 dias. Se sadio,
planta do pé. suspender vacinas. Observar o animal
- Lambedura de Se raivoso, morrer por 10 dias. Se sadio,
mucosas. ou desaparecer, suspender profilaxia
- Lambedura da pele completar o e encerrar o caso.
com lesão grave. esquema até 4
- Ferimento doses de vacina
profundo por (dias 7-10 e 14) e
arranhadura. administrar soro.

Em ferimentos mais leves por cão ou gato há maior tempo de período de incubação, sendo a
vacina suficiente, pois há tempo para sua ação. No entanto, a contaminação por morcegos
determina uma infecção mais grave, devendo administrar o soro em todo caso.
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O soro deve ser administrado em até 7 dias, sendo idealmente administrado antes da vacina. O
objetivo do soro (composto por anticorpos) é que ele se infiltre ao redor da ferida para evitar a
disseminação do vírus.

A vacina e o soro são seguros, sem efeitos colaterais.

OBS: Lembrar da notificação compulsória!

2. Tétano:
a) Bacilo:
É causada por bactérias do gênero Clostridium, que são produtoras de toxinas, sendo estas o
principal fator patogênico do bacilo. É um bacilo gram positivo, móvel, esporulado, e
anaeróbio estrito – difícil cultivo em amostras clínicas. Possuem esporos com aparência de
raquete de tênis.

Cerca de 14 bactérias podem causar doença em humanos, havendo 2 mais comuns, o C.


difficile e C. perfringers, e 4 menos comum, o C. tetani, C. botulinum, C. septicum e C. tertium.

Essa bactéria é associada ao uso de antibiótico, principalmente cefalosporinas e


carbapenemicos, gerando maior risco de infecção, que possui um tratamento difícil.

a.1) Tetanospasmina ou toxina tetânica: responsável pelas manifestações clínicas.


- Neurotoxina termolábil.
- Sintetizada na fase vegetativa (em ambientes de anaerobiose). Após liberação, é clivada por
proteases endógenas em subunidade leve (cadeia A) e subunidade pesada (cadeia B).

b) Patogenia:
Após a inoculação dos esporos, em condições de anaerobiose, eles se transformam na forma
vegetativa e produzem tetanospasmina. Assim, as moléculas intactas da toxina são
internalizadas em vesículas endossômicas e transportadas pelo axônio até a substância
cinzenta do corno anterior da medula, onde se localiza o corpo do neurônio motor.

Assim, no neurônio motor ocorre alteração na cadeia pesada da toxina, a qual se insere na
face interna do endossomo, facilitando a passagem da cadeia leve para o citosol dessa célula.

A cadeia leve possui atividade enzimática (endopeptidase) e atua no aparelho pré-sinaptico,


inativando proteínas que regulam a liberação de neurotransmissores inibitórios, como glicina e
GABA.
Dessa forma, atua basicamente “liberando” a sinapse, gerando grande atividade sináptica
excitatória, por causar perda da regulação inibitória do neurônio motor, o que resulta em
paralisia espástica – hipertonia e espasmos e contraturas repetidos.

- Condições que geram baixo potencial de oxirredução: queimaduras, corpos estranhos,


tecido necrosado  anaerobiose  formas vegetativas  síntese de tetanospasmina.

c) Clínica:
c.1) Período de incubação: variável, podendo ser de dias até semanas. Depende da distância
da infecção primária em relação ao SNC.

c.2) Período de progressão:


É o período entre o primeiro sintoma e o primeiro espasmo – tempo muito curto.
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c.3) Tétano generalizado: mais frequente, com duração de 4-6 semanas.


- Trismo: envolvimento do músculo masseter.
- Riso sardônico: tônus aumentado em musculatura orbicular.

- Espasmos: contratura da musculatura dorsal, gerando posição de


decorticação – opistótono (flexão dos braços e extensão do MMII).
Pode haver sintomas álgicos durante espasmos, sem alteração da
consciência. Também pode ser desencadeado por estímulos.

Pode ocorrer obstrução das vias aéreas associada a contração do


diafragma durante o espasmo, podendo ser fatal.

- Rigidez abdominal.
- Sialorreia e irritabilidade.
- Sistema nervoso autônomo: arritmia, alteração da PA e
sudorese.

A principal manifestação é a contratura. A doença pode ser curada, porém não gera
imunidade, podendo o paciente infectar-se novamente.

c.4) Principais manifestações clínicas:


- Tétano localizado: alterações apenas na musculatura do sítio de infecção. Geralmente ocorre
na fase inicial da generalização.

- Tétano cefálico (feridas na cabeça ou pescoço): é localizado em seguimento cefálico, tendo


péssimo prognóstico.

- Tétano neonatal: infecção inicial do cordão umbilical. Possui mortalidade >90%, porém é
rara, já que todas as grávidas devem ser vacinadas.

d) Diagnóstico:
O diagnóstico é basicamente clínico, a partir da história clínica, epidemiológica e exame clínico,
já que não existem exames específicos.

- Microbiologia: baixa sensibilidade, devido ao difícil isolamento e anaerobiose. Há <30%


positividade de culturas.

As toxinas não são detectadas.

e) Tratamento:
- Manter vias aéreas pérvias.
- Hidratação.
- Determinar e desbridar a porta de entrada da infecção: eliminar formas esporuladas e criar
ambiente de aerobiose, evitando a transformação em formas vegetativas.
- Antibioticoterapia: metronizadol ou penicilina G – eliminar formas vegetativas.
- Imunoglobulina tetânica humana: 5000 UI – neutralizar toxina tetânica.
- Vacina para tétano: a doença não gera imunidade – auxiliar na produção de anticorpos para
combate da doença atual e para prevenção de novos episódios.
- Controle do espasmo: diazepam (BDZ).

OBS: Notificação compulsória!


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f) Prevenção:
- Vacina: administra-se 3 doses (2, 4 e 6 meses de idade), com reforço aos 4-5 anos de vida e
posteriormente a cada 10 anos.

Caso haja ferimento sujo considera-se o paciente vacinado apenas se tiver recebido a vacina
em menos de 5 anos, devendo tomar um reforço caso haja maior tempo.

g) Profilaxia tétano:
- Ferida simples e limpa: utiliza-se o critério de 10 anos, realizando reforço vacinal apenas se a
vacina tiver sido tomada há mais de 10 anos.

- Ferimento sujo ou qualquer ferida que não seja simples: utiliza-se o critério de 5 anos, ou
seja, considera-se o paciente vacinado apenas se tiver recebido a vacina em menos de 5 anos,
devendo tomar um reforço vacinal caso haja maior tempo.

Na presença de uma ferida suja em um indivíduo que não foi vacinado ou não há informação
deve-se administrar vacina e soro – praticamente é o único caso em que realiza-se soro, já que
a maioria da população é vacina.

Doses Ferimento limpo e pequeno Todos os outros tipos de


prévias de ferimento
toxóide Vacina Imunoglobulina Vacina Imunoglobulina
tetânico contendo do tétano contendo do tétano
toxóide humano (soro) toxóide humano
tetânico tetânico (soro)
<3 doses ou Sim Não Sim Sim
desconhecido
≥ 3 doses Apenas se a Não Apenas se Não
última dose última dose
foi feita ≥10 foi feita ≥ 5
anos atrás anos atrás

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