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Todos os estudos reunidos neste livro estão ligados, por caminhos diferentes, ao tema
do costume, assim como ele se manifestou na cultura dos trabalhadores no século XVIII
e parte do XIX. Defendo a tese de que a consciência e os usos costumeiros eram
particularmente fortes no século XVIII. Na verdade, alguns desses “costumes” eram de
criação recente e representavam as reivindicações de novos “direitos”. – p. 13
Assim, desde sua origem, o estudo do folclore teve este sentido de distância implicando
superioridade, de subordinação [...], vendo os costumes como remanescentes do
passado. – p. 14
Nos séculos precedentes, o termo “costume” foi empregado para denotar boa parte do
que hoje está implicado na palavra “cultura”. O costume era a “segunda natureza” do
homem. – p. 14
Se a muitos desses “pobres” se negava o acesso à educação, ao que mais eles podiam
recorrer senão à transmissão oral, com sua pesada carga de “costumes”. Se o folclore do
século XIX, ao separar os resíduos culturais do seu contexto, perdeu o sentido do
costume como contexto e mentalité, deixou igualmente de perceber a função racional de
muitos costumes, nas rotinas do trabalho diário e semanal. Muitos costumes eram
endossados e frequentemente reforçados pela pressão e protesto populares. [...] Se, de
um lado, o “costume” incorporava muitos dos sentidos que atribuímos hoje à “cultura”,
de outro, apresentava muitas afinidades com o direito consuetudinário. Esse deriva dos
costumes, dos usos habituais do país; usos que podiam ser reduzidos a regras
precedentes, que em certas circunstâncias eram codificados e podiam ter força de lei. –
p. 15
Muitas das disputas clássicas do início da Revolução Industrial diziam respeito tanto aos
costumes como aos salários e condições de trabalho. – p. 16
[...], espero que a cultura plebéia tenha se tornado um conceito mais concreto e
utilizável, não mais situado no ambiente dos “significados, atitudes, valores”, mas
localizado dentro de um equilíbrio particular de relações sociais, um ambiente de
trabalho de exploração e resistência à exploração, de relações de poder massacradas
pelos ritos do paternalismo e da deferência. Desse modo, assim espero, a “cultura
popular” é situada no lugar material que lhe corresponde. – p. 17
Portanto, essa era uma cultura de formas conservadoras, que recorria aos costumes
tradicionais e procurava reforça-los. As formas são também não racionais; não apelam
para a razão por meio do panfleto, do sermão ou do palanque do orador. Elas impõem
uma variedade de sanções pela força, o ridículo, a vergonha, a intimidação. Mas o
conteúdo ou os significados dessa cultura não podem ser qualificados facilmente de
conservadores, porque na realidade social o trabalho se libera cada vez mais, década
após década, dos controles senhoriais, paternais, da paróquia e da corporação,
distanciando-se da Dependência direta em que ficavam a princípio os clientes da gentry.
– p. 19
A lei pode estabelecer os limites tolerados pelos governantes; porém, na Inglaterra do
século XVIII, ela não penetra nos lares rurais, não aparece nas preces das viúvas, não
decora as paredes com ícones, nem dá forma à perspectiva de vida de cada um. – p. 19
Temos assim um paradoxo característico daquele século: uma cultura tradicional que é,
ao mesmo tempo, rebelde. A cultura conservadora da plebe quase sempre resiste, em
nome do costume, às racionalizações e inovações da economia (tais como os
cercamentos, a disciplina de trabalho, os “livres” mercados não regulamentados de
cereais) que os governantes, os comerciantes ou os empregadores querem impor. – p. 19
Adotando outros termos, esse foi um problema que preocupou Gramsci. Ele observou o
contraste entre a “moralidade popular” da tradição do folclore e a “moralidade oficial”.
Seu “homem-massa” podia ter “duas consciências teóricas (ou uma consciência
contraditória)”: a da práxis e a “herdada do passado e absorvida acriticamente”. Ao
discutir a ideologia nos seus cadernos da prisão, Gramsci a vê fundamentada na
“filosofia espontânea comum a todas as pessoas”. Uma filosofia – conclui – que deriva
de três fontes: a primeira é “a própria linguagem, que é um conjunto de determinadas
noções e conceitos, e não apenas de palavras desprovidas gramaticalmente de
conteúdo”; a segunda é o “senso comum”; e a terceira, o folclore e a religião popular.
Das três, hoje a maioria dos intelectuais do Ocidente não hesitaria em conceder primazia
teórica à primeira (a linguagem), não só por ser o veículo, mas a influência constitutiva
sobre a consciência. – p. 20
Assim, as “duas consciências teóricas” podem ser vistas como derivadas de dois
aspectos da mesma realidade: de um lado, a conformidade com o status quo, necessária
para a sobrevivência, a necessidade de seguir a ordenação do mundo e de jogar de
acordo com as regras impostas pelos empregadores, os fiscais dos pobres etc. De outro
lado, o “senso comum”, derivado da experiência de exploração, dificuldades e repressão
compartilhada com os companheiros de trabalho e os /vizinhos, que expõe
continuamente o texto do teatro paternalista à crítica irônica e, com menos freqüência, à
revolta. – p. 20-21
Por isso, podemos entender boa parte da história social do século XVIII como uma série
de confrontos entre uma economia de mercado inovadora e a economia moral da plebe,
baseada no costume. – p. 21
[...], não podemos esquecer que “cultura” é um termo emaranhado, que, ao reunir tantas
atividades e atributos em um só feixe , pode na verdade confundir ou ocultar distinções
que precisam ser feitas. Será necessário desfazer o feixe e examinar com mais cuidado
os seus componentes: ritos, modos simbólicos, os atributos culturais da hegemonia, a
transmissão do costume de geração para geração e o desenvolvimento do costume sob
formas historicamente específicas das relações sociais e de trabalho. – p. 22
Nunca retornaremos à natureza humana pré-capitalista; mas lembrar como eram seus
códigos, expectativas e necessidades alternativas pode renovar nossa percepção da gama
de possibilidades implícita no ser humano. Isso não poderia até nos preparar para uma
época em que se dissolvessem as necessidades e expectativas do capitalismo e do
comunismo estatal, permitindo que a natureza humana fosse reconstruída sob uma nova
forma? É possível que eu esteja querendo demais. Seria invocar a possibilidade da
redescoberta, sob novas formas, de um novo tipo de / “consciência costumeira”. – p. 23-
24