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THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

INTRODUÇÃO: Costume e Cultura

Todos os estudos reunidos neste livro estão ligados, por caminhos diferentes, ao tema
do costume, assim como ele se manifestou na cultura dos trabalhadores no século XVIII
e parte do XIX. Defendo a tese de que a consciência e os usos costumeiros eram
particularmente fortes no século XVIII. Na verdade, alguns desses “costumes” eram de
criação recente e representavam as reivindicações de novos “direitos”. – p. 13

Assim, desde sua origem, o estudo do folclore teve este sentido de distância implicando
superioridade, de subordinação [...], vendo os costumes como remanescentes do
passado. – p. 14

Nos séculos precedentes, o termo “costume” foi empregado para denotar boa parte do
que hoje está implicado na palavra “cultura”. O costume era a “segunda natureza” do
homem. – p. 14

Se a muitos desses “pobres” se negava o acesso à educação, ao que mais eles podiam
recorrer senão à transmissão oral, com sua pesada carga de “costumes”. Se o folclore do
século XIX, ao separar os resíduos culturais do seu contexto, perdeu o sentido do
costume como contexto e mentalité, deixou igualmente de perceber a função racional de
muitos costumes, nas rotinas do trabalho diário e semanal. Muitos costumes eram
endossados e frequentemente reforçados pela pressão e protesto populares. [...] Se, de
um lado, o “costume” incorporava muitos dos sentidos que atribuímos hoje à “cultura”,
de outro, apresentava muitas afinidades com o direito consuetudinário. Esse deriva dos
costumes, dos usos habituais do país; usos que podiam ser reduzidos a regras
precedentes, que em certas circunstâncias eram codificados e podiam ter força de lei. –
p. 15

Com freqüência, a invocação do “costume” com respeito a um ofício ou ocupação


refletia uma prática tão antiga que adquiria a cor de um privilégio ou direito. – p. 15

Muitas das disputas clássicas do início da Revolução Industrial diziam respeito tanto aos
costumes como aos salários e condições de trabalho. – p. 16

As cerimônias e as procissões dos ofícios, que no passado faziam parte do calendário


corporativo [...], no século XVIII ainda podiam ser celebradas em ocasiões especiais,
como coroações e aniversários. No século XIX, porém, perderam o endosso consensual
dos respectivos “ofícios”; eram temidas pelos empregadores e pelas corporações, por
propiciarem explosões de alegria e distúrbios, o que realmente às vezes acontecia. – p.
16

Isso é sintomático da dissociação entre as culturas plebéia e patrícia no século XVIII e


no início do XIX. É difícil não ver essa divisão em termos de classe. Um folclorista
perspicaz, G. L. Gomme, via o folclore como um conjunto de costumes, ritos e crenças
de um povo: - p. 16

No século XVIII, o costume constituía a retórica de legitimação de quase todo uso,


prática ou direito reclamado. [...] longe de exibir a permanência sugerida pela palavra
“tradição”, o costume era um campo para a mudança e a /disputa, uma arena na qual
interesses opostos apresentavam reivindicações conflitantes. Essa é uma razão pela qual
precisamos ter cuidado quanto a generalizações como “cultura popular”. Esta pode
sugerir, numa inflexão antropológica influente no âmbito dos historiadores sociais, uma
perspectiva ultraconsensual dessa cultura, entendida como “sistema de atitudes, valores
e significados compartilhados, e as formas simbólicas (desempenhos e artefatos) em que
se acham incorporados”. Mas uma cultura é também um conjunto de diferentes
recursos, em que há sempre uma troca entre o escrito e o oral, o dominante e o
subordinado, a aldeia e a metrópole; é uma arena de elementos conflitivos, que somente
sob uma pressão imperiosa – por exemplo, o nacionalismo, a consciência de classe ou a
ortodoxia religiosa predominante – assume a forma de um “sistema”. E na verdade o
próprio termo “cultura”, com sua invocação confortável de um consenso, pode distrair
nossa atenção das contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes
dentro do conjunto. – p. 16-17

Nesse ponto, as generalizações dos universais da “cultura popular” se esvaziam, a não


ser que sejam colocadas firmemente dentro de contextos históricos específicos. A
cultura plebéia, que se reveste da retórica do “costume” e que corresponde ao tema
central deste livro, não se autodefinia, nem era independente de influências externas.
Assumira sua forma defensivamente, em oposição aos limites e controles impostos
pelos governantes patrícios. – p. 17

[...], espero que a cultura plebéia tenha se tornado um conceito mais concreto e
utilizável, não mais situado no ambiente dos “significados, atitudes, valores”, mas
localizado dentro de um equilíbrio particular de relações sociais, um ambiente de
trabalho de exploração e resistência à exploração, de relações de poder massacradas
pelos ritos do paternalismo e da deferência. Desse modo, assim espero, a “cultura
popular” é situada no lugar material que lhe corresponde. – p. 17

As práticas e as normas se reproduzem ao longo das gerações na atmosfera lentamente


diversificada dos costumes. As tradições se perpetuam em grande parte mediante a
transmissão oral, com seu repertório de anedotas e narrativas exemplares. Sempre que a
tradição oral é suplementada pela alfabetização crescente, os produtos impressos de
maior circulação [...] tendem a se sujeitar a expectativas da ordem oral, em vez de
desafiá-las com novas opções. – p. 18

Essa cultura transmite com vigor – e possivelmente também gera – desempenhos


ritualísticos ou estilizados, na recreação ou em formas de protesto. – p. 18

Portanto, essa era uma cultura de formas conservadoras, que recorria aos costumes
tradicionais e procurava reforça-los. As formas são também não racionais; não apelam
para a razão por meio do panfleto, do sermão ou do palanque do orador. Elas impõem
uma variedade de sanções pela força, o ridículo, a vergonha, a intimidação. Mas o
conteúdo ou os significados dessa cultura não podem ser qualificados facilmente de
conservadores, porque na realidade social o trabalho se libera cada vez mais, década
após década, dos controles senhoriais, paternais, da paróquia e da corporação,
distanciando-se da Dependência direta em que ficavam a princípio os clientes da gentry.
– p. 19
A lei pode estabelecer os limites tolerados pelos governantes; porém, na Inglaterra do
século XVIII, ela não penetra nos lares rurais, não aparece nas preces das viúvas, não
decora as paredes com ícones, nem dá forma à perspectiva de vida de cada um. – p. 19

Temos assim um paradoxo característico daquele século: uma cultura tradicional que é,
ao mesmo tempo, rebelde. A cultura conservadora da plebe quase sempre resiste, em
nome do costume, às racionalizações e inovações da economia (tais como os
cercamentos, a disciplina de trabalho, os “livres” mercados não regulamentados de
cereais) que os governantes, os comerciantes ou os empregadores querem impor. – p. 19

Por isso a cultura popular é rebelde, mas o é em defesa dos costumes. – p. 19

Adotando outros termos, esse foi um problema que preocupou Gramsci. Ele observou o
contraste entre a “moralidade popular” da tradição do folclore e a “moralidade oficial”.
Seu “homem-massa” podia ter “duas consciências teóricas (ou uma consciência
contraditória)”: a da práxis e a “herdada do passado e absorvida acriticamente”. Ao
discutir a ideologia nos seus cadernos da prisão, Gramsci a vê fundamentada na
“filosofia espontânea comum a todas as pessoas”. Uma filosofia – conclui – que deriva
de três fontes: a primeira é “a própria linguagem, que é um conjunto de determinadas
noções e conceitos, e não apenas de palavras desprovidas gramaticalmente de
conteúdo”; a segunda é o “senso comum”; e a terceira, o folclore e a religião popular.
Das três, hoje a maioria dos intelectuais do Ocidente não hesitaria em conceder primazia
teórica à primeira (a linguagem), não só por ser o veículo, mas a influência constitutiva
sobre a consciência. – p. 20

Assim, as “duas consciências teóricas” podem ser vistas como derivadas de dois
aspectos da mesma realidade: de um lado, a conformidade com o status quo, necessária
para a sobrevivência, a necessidade de seguir a ordenação do mundo e de jogar de
acordo com as regras impostas pelos empregadores, os fiscais dos pobres etc. De outro
lado, o “senso comum”, derivado da experiência de exploração, dificuldades e repressão
compartilhada com os companheiros de trabalho e os /vizinhos, que expõe
continuamente o texto do teatro paternalista à crítica irônica e, com menos freqüência, à
revolta. – p. 20-21

Ao examinarmos o comportamento das classes trabalhadoras no século XVIII, sentimos


que é necessário “decodifica-lo” e decodificar suas formas de expressão simbólica,
revelando as regras invisíveis, distintas daquelas que os historiadores dos movimentos
operários subseqüentes se habituaram a esperar. – p. 21

Por isso, podemos entender boa parte da história social do século XVIII como uma série
de confrontos entre uma economia de mercado inovadora e a economia moral da plebe,
baseada no costume. – p. 21

Nesses confrontos, é possível perceber o delineamento das subseqüentes formações de


classe, bem como da consciência de classe; e os fragmentos residuais das antigas
estruturas são revividos e reintegrados no âmbito dessa consciência de classe emergente.
Em um certo sentido, a cultura plebéia é o povo: [...]. É, sim, picaresca, [...]. As
flutuações da mortalidade, dos preços, do desemprego, são experimentadas como acasos
externos, fora de qualquer controle. De modo geral, a população trabalhadora tem pouca
possibilidade de prever o futuro: essas pessoas não planejam sua “carreira”, nem sua
/família; não vêem sua vida como uma forma definida diante de si, não economizam os
altos ganhos de algumas semanas para fazerem poupança, não planejam a compra de
uma choupana, e nunca tiram férias. – p. 21-22

[...], não podemos esquecer que “cultura” é um termo emaranhado, que, ao reunir tantas
atividades e atributos em um só feixe , pode na verdade confundir ou ocultar distinções
que precisam ser feitas. Será necessário desfazer o feixe e examinar com mais cuidado
os seus componentes: ritos, modos simbólicos, os atributos culturais da hegemonia, a
transmissão do costume de geração para geração e o desenvolvimento do costume sob
formas historicamente específicas das relações sociais e de trabalho. – p. 22

A Revolução Industrial e a concomitante revolução demográfica foram o pano de fundo


da maior transformação da história, ao revolucionar as “necessidades” e destruir a
autoridade das expectativas baseadas /nos costumes. É sobretudo o que estabelece a
distinção entre o “pré-industrial” ou “tradicional” e o mundo moderno. – p. 23

Nunca retornaremos à natureza humana pré-capitalista; mas lembrar como eram seus
códigos, expectativas e necessidades alternativas pode renovar nossa percepção da gama
de possibilidades implícita no ser humano. Isso não poderia até nos preparar para uma
época em que se dissolvessem as necessidades e expectativas do capitalismo e do
comunismo estatal, permitindo que a natureza humana fosse reconstruída sob uma nova
forma? É possível que eu esteja querendo demais. Seria invocar a possibilidade da
redescoberta, sob novas formas, de um novo tipo de / “consciência costumeira”. – p. 23-
24

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