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A
cultura das aparências: uma história da indumentária (séculos XVII-XVIII). São Paulo:
SENAC, 2007.
Matheus Bonfim Soares
“A reconstituição da hierarquia das aparências parisienses é prejudicada por lacunas nas
fontes. Entretanto, essas mesmas lacunas podem elucidar certos aspectos do antigo sistema
indumentário.” (p.97)
“Não é o valor comercial das roupas que nos interessa, mas suas mudanças e, na medida do
possível, a comparação com outros elementos que com elas combinam para formar um
sistema, tais como jóias e acessórios.” (p.98)
“Cuidadosamente registrada pelo notário, a declaração feita pela esposa do mestre Pierre
Richandeau, um fabricante de fitas, mostra que a revenda e a reutilização de roupas não se
limitavam às classes inferiores, e que as duas práticas eram freqüentemente associadas - era
um modo de as famílias enfrentarem um período de dificuldades.” (p.99)
“A transmissão das roupas do avô para os filhos e netos era talvez em parte uma expressão da
transferência de autoridade e redistribuição de papéis de uma geração a outra, especialmente
no campo, apesar de nas cidades também.” (p.99)
“Doações de roupa como caridade eram comuns em todos os estratos da sociedade. Eram
parte da economia de doação, e sem dúvida uma parte não negligenciável, tanto por suas
consequências financeiras diretas quanto por seus efeitos culturais indiretos; quer por revenda
quer por doação de caridade, as roupas de um grupo ficavam disponíveis para outro.” (p.100)
“Podemos assim prosseguir do patrimônio à sua composição, da avaliação do lugar das roupas
na riqueza, que revela a topografia social das aparências, à composição dos guarda-roupas,
que expressam na vida cotidiana a hierarquia das aparências e seus elementos constitutivos.”
(p.101)
“As roupas são, portanto, um bom meio de perceber o processo por meio do qual se forjam as
personalidades socioculturais, entre as práticas que constituem os principais tipos da
existência social e os da economia ordinária. Elas definem o campo do cotidiano na interação
do consumo e da necessidade.” (p.101)
“Numa sociedade desigual, a hierarquia das representações deve coincidir com a hierarquia
social; era a própria representação que a estruturava.” (102)
“Se o nobre era basicamente o que representava, e o burguês o que produzia, aquele devia
antes de tudo parecer e este, ser.” (p.102)
“Nada acontece como deveria, e a sociedade não mais funciona como deve, quando não se
pode mais confiar nas aparências.” (p.103)
“Nas jóias dos ricos e nos modestos tesouros dos pobres, os papéis da aparência e do
investimento estavam intimamente relacionados. Elas podem elucidar as diferenças sociais de
comportamento.” (p.106)
“(...) as roupas mais· caras eram encontradas entre as famílias que freqüentavam a corte.
Havia uma hierarquia de maneiras e de guarda-roupas determinada pela riqueza e pelo papel
social.” (p.107)
“Nos lares mais abastados, as roupas, novas e velhas, de cima e de baixo, eram
proporcionalmente menos importantes do que nos lares mais pobres. É possível entender
então por que as famílias pobres ameaçadas de doença, desemprego ou morte de um parceiro
eventualmente recorriam às roupas como expediente temporário. A vestimenta, mais ainda do
que entre a nobreza parisiense, é um signo efetivo da hierarquia econômica e sua expressão
nas representações sociais, que são mais facilmente medidas contra a mobilização dos valores
de uso.” (p.109)
“Dois mundos existiam lado a lado: um em que a moda e a acumulação eram tudo, como La
Bruyere observou e explicou no capítulo intitulado "De la mode” de sua obra Les caracteres;
o outro em que a necessidade imperava, e a família típica precisava de todos os seus recursos
para sobreviver, e nada sobrava para a boa vida.” (p.109)
“Na época do reinado de Luís XIV, boa parte dos criados domésticos parisienses já havia
ultrapassado a fronteira da necessidade. Pregadores e moralistas havia muito vinham
denunciando o luxo excessivo das roupas dos criados; e, durante todo o século XVIII,
satiristas e polemistas continuaram a denunciar esse comportamento tão propício à usurpação
elo status.” (p.110)
“A principal característica da classe doméstica urbana, comparada ao conjunto das classes
trabalhadoras, era sua visibilidade. Os criados domésticos em geral vestiam-se melhor. Uma
minoria usava libré e marcas distintivas, cuja função social desempenhava um importante
papel simbólico, quer afirmando o status e a riqueza dos senhores quer contribuindo para uma
ambivalência no comportamento dos criados, despersonalizados mas beneficiários de um
valor social agregado.” (p.110)
“(...) os criados mais ricos imitavam o comportamento dos seus senhores, e mesmo os mais
pobres, graças a um padrão de vida mais alto por volta do fim do século XVII, ainda tinham
mais roupas do que os pobres em geral.” (p.111)
“Não era a libré o elemento crucial. As librés pertenciam aos senhores, faziam parte do
conjunto de símbolos exteriores do status; contribuíam para uniformizar uma população
desigual facilitando a identificação e, além disso, na virada do século XVII, espicaçavam as
vaidades aristocráticas em competição.” (p.111)
“A história das librés da criadagem era parte da história elos gastos suntuários da nobreza
parisiense, e ressalta a importância das marcas sociais numa sociedade desigual.” (p.112)
“Tais legados eram úteis e vantajosos, além de serem um agente eficaz de mudança cultural
por meio da influência que acabavam exercendo sobre o comportamento e as maneiras. Eles
eram um fator de coesão na população urbana e um elemento na ambigüidade moral e social
dos criados domésticos.” (p.113)
“As roupas dos criados eram os estandartes de seus senhores, e por meio delas eles esposavam
os modelos e aspirações dominantes e instruíam as pessoas comuns sobre outros estilo de
vida.” (p.113)
“Se esses magistrados gastavam apenas moderadamente e evitavam a ostentação, isso em
parte se devia provavelmente a uma opção econômica - eram parcimoniosos em questão
financeira - e provavelmente também à expressão de uma atitude religiosa e moral.” (p.114)
“Os mais ricos não desejavam sucumbir à desvairada imitação de um modelo mais
extravagante de consumo, enquanto os mais pobres não podiam fazê-lo. O jogo das aparências
era, entretanto, um elemento fundamental nas divisões da sociedade dos artesãos e lojistas
parisienses.” (p.116)
“É significativo que, nesse mundo das aparências, o traje dos criados domésticos tinha o
propósito de ser uma demonstração-adicional da onipotência dos seus senhores. Por meio das
roupas, os criados eram introduzidos nos hábitos de consumo que eles, por sua vez, passavam
adiante a outros setores da população.” (p.117)
Três tipos de habitus são visíveis. No primeiro, a posse de roupas estava reduzida ao utilitário:
o indivíduo tinha as roupas necessárias, apropriadas às convenções do meio e adaptadas às
exigências religiosas, sociais e econômicas. Para os mais pobres, a escolha das roupas era uma
questão de necessidade e o motivo proteção vinha em primeiríssimo lugar. No segundo, dava-
se grande importância ao requinte indumentária como indicador de distinção social. A
preocupação com as aparências e o efeito que causavam era basicamente uma característica
dos grupos intermediários da burguesia mercantil, artesanal e liberal, isto é, daqueles que
constituíam a principal coluna social da vida urbana, nem pobres nem ricos, porém em
situação confortável e desejando uma vida melhor. A atitude fundamental destes estava
conforme com as regras religiosas e morais da civi1ização das boas maneiras. No terceiro,
havia indivíduos e micromeios abertos à mudança. Os valores de imitação e a influência da
moda vindos do alto ditavam uma estética específica. Para os mais ricos, ela podia levar à
acumulação primitiva de um considerável capital indumentária.” (p.117-118)
“A roupa era o espelho da vida de homens e mulheres. Estas tiveram um papel dinâmico e
motor em todos os meios, salvo talvez entre assalariados, classe em que prevalecia a
igualdade do necessário, e entre os mais abastados da aristocracia, homens "obrigados a
afirmar seu prestígio e posição mediante gastos suntuários, símbolo de status social", que
gastavam em roupas tanto quanto suas companheiras; cortesãos e íntimos do rei eram
impelidos pela lógica da etiqueta a um excessivo consumo indumentária, elemento integral do
ethos aristocrático, fundamentalmente distinto do das classes profissionais burguesas.”
(p.118)
“Assim, no alvorecer do Século das Luzes, o sistema indumentária parisiense obedecia a três
lógicas: a da sociedade de status e posição, a da racionalidade controlada das escolhas
econômicas burguesas e a da necessidade para os pobres.” (p.118)
“As mulheres tendiam não apenas a conservar as roupas mas também a adquirir novas. A
classe trabalhadora integrada havia entrado no ciclo do consumo. Essa foi uma revolução
silenciosa fundamental, tão importante quanto a alfabetização. A busca por mais conforto foi
inicialmente uma característica feminina, e o desejo de parecer melhor, um traço de ambos os
sexos.” (p.120)
“Mais do que em outros meios, as roupas circulavam entre os criados po doação, furto e
ganância, que era facilmente satisfeita pela apropriação, voluntária ou involuntária, de peças
dos guarda-roupas de seus empregadores.” (p.121)
“O que antes estivera confinado ao estreito círculo da alta nobreza ou da burguesia abastada
tornara-se um fenômeno generalizado, donde o baralhamento social das condições c posições.
Camareiros e senhores, criadas e senhoras confundiam-se no teatro urbano, como havia muito
já o eram na convenção do palco.” (p.121)
“A maior parte das famílias nobres gastava com vestuário e roupa-branca cem vezes mais do
que as famílias proletárias e quase dez vezes mais do que as famílias burguesas, o que
corresponde à integração geral das aparências.” (p.122)