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INTEGRAÇÃO DE LACUNAS

Estipula o artigo 33.º do Decreto-Lei n.º X/1986, relativo ao contrato de agência, que “o
agente tem direito, após a cessação do contrato, a uma indemnização de clientela, desde que
tenha angariado novos clientes para a outra parte ou aumentado substancialmente o volume
de negócios com a clientela já existente, e desde que a outra parte tenha beneficiado
consideravelmente, após a cessação do contrato, da atividade prestada pelo agente”.

Em abril de 2021, cessou o contrato de concessão comercial, celebrado entre as


empresas Alfa – Produtos Farmacêuticos, S.A. e Gamma – Produtos de Higiene, Lda. no qual
se acordou que esta última (concedente) se obrigaria a vender certa quantidade de bens da
marca Tierno àquela (concessionária) que, por sua vez, se obrigaria a comprar tais bens para
revenda, sujeitando-se a um certo controlo e fiscalização.

Ora, apesar de não se tratar de um contrato de agência, a sociedade Alfa – Produtos


Farmacêuticos, S.A. exige o pagamento de 350 mil euros a título de indemnização de
clientela, nos termos do artigo 33.º do Decreto-Lei n.º X/1986, alegando que:
(i) apesar de o contrato de concessão comercial não ter previsão legal, este consiste
num contrato socialmente típico;
(ii) tanto o contrato de agência, como o de concessão comercial, são contratos de distribuição
comercial, em que uma das partes (agente/concessionário) age enquanto intermediário na
cadeia de distribuição, aproximando a outra parte (principal/concedente) dos consumidores;
(iii) a ratio de tutela da parte mais fraca pela "mais-valia" que proporciona à outra parte,
graças à actividade por si desenvolvida, após o termo do contrato, também é válida para o
contrato de concessão.

Quid juris?

Na presente hipótese, estamos perante um problema interpretativo (lato sensu) de


saber se o artigo 33.º do Decreto-Lei n.º X/1986, relativo ao contrato de agência, é também
aplicável no âmbito do contrato de concessão comercial.

Conforme esclarece o enunciado, o contrato de concessão comercial não tem previsão


legal. Ou seja, não existe nenhuma regra que, por via interpretativa, regule diretamente uma
eventual “indemnização de clientela” a pagar ao concessionário após a extinção do contrato
de concessão comercial. Relativamente ao artigo 33.º do Decreto-Lei n.º X/1986, o mesmo é
inequívoco no sentido de limitar a referida indemnização / compensação ao “agente”, não
havendo um “mínimo de correspondência verbal” (cf. artigo 9.º, n.º 2, do CC) ou de apoio
semântico para fundamentar a aplicação direta do referido preceito à concessão comercial.

Estamos, portanto, perante uma lacuna, na medida em que existe uma omissão de
regulamentação jurídica para o contrato de concessão comercial. Não se trata de lacuna
aparente, porquanto este caso não se resolve nem por via de interpretação extensiva ou
enunciativa, nem por via de regra remissiva. Efetivamente, inexiste qualquer regra que, por
via interpretativa, se aplique ao caso omisso. Ademais, por se tratar de contrato socialmente
típico, parece-nos existir uma necessidade de regulamentação jurídica, ou seja, tratar-se-á de
uma lacuna não intencional, e não uma solução remetida para as demais ordens normativas.

Não havendo, à partida, qualquer proibição de analogia no presente caso (e.g., normas
excecionais, normas penais incriminadoras, restrições a direitos, liberdades e garantias, casos
de tipicidade ou de taxatividade fechada, ou ainda normas criadoras de impostos), conclui-se
que existe uma lacuna que carece de ser integrada nos termos do artigo 10.º do CC.

Assim, e atendendo à proibição de non liquet prevista no artigo 8.º, n.º 1, do CC, dispõe
o artigo 10.º, n.º 1, do CC, que “os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma
aplicável aos casos análogos”. Neste sentido, teremos o contrato de concessão comercial
como “caso omisso” (i.e., lacuna) e o artigo 33.º do Decreto-Lei n.º X/1986, relativo ao
contrato de agência, como norma potencialmente aplicável, no que diz respeito ao
pagamento da denominada “indemnização de clientela”.

Para o efeito, estabelece o artigo 10.º, n.º 2, do CC, que “há analogia sempre que no
caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei”. Ou
seja, deve-se averiguar a existência de uma identidade de razão entre o contrato de agência
(“caso previsto na lei”) e o contrato de concessão comercial (“caso omisso”), no que toca à
obrigação de pagamento da indemnização de clientela.

Do ponto de vista factual, o contrato de concessão comercial e o contrato de agência


são idênticos, na medida em que ambos são contratos de distribuição comercial, em que uma
das partes (agente/concessionário) age enquanto intermediário na cadeia de distribuição,
aproximando a outra parte (principal/concedente) dos consumidores finais.

Verifica-se igualmente, em ambos os contratos, uma idêntica ratio legis de tutela da


parte mais fraca pela "mais-valia" que proporciona à outra parte, graças à actividade por si
desenvolvida, após o termo do contrato. Este entendimento é tão válido para o contrato de
agência como para o contrato de concessão.

Face ao exposto, é de concluir pela aplicação analógica do artigo 33.º do Decreto-Lei


n.º X/1986 ao contrato de concessão comercial. Trata-se de analogia legis, visto que existe a
aplicação analógica (i.e., por equiparação) de uma norma legal ao caso omisso. Em suma, a
sociedade Alfa – Produtos Farmacêuticos, S.A. poderá exigir o pagamento da indemnização
de clientela, por aplicação analógica do artigo 33.º do Decreto-Lei n.º X/1986.

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