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ARTIGO DE REVISÃO | REVIEW ARTICLE

Cirrose RESUMO
As hepatopatias crônicas são importantes causas de morbimortalidade em todo

hepática –
o mundo. Admite-se que existam mais de 70 milhões de indivíduos infectados
pelo vírus da hepatite C (HCV) e mais de 350 milhões de infectados pelo
vírus da hepatite B (HBV), distribuídos pelos cinco continentes. Essas duas

abordagem enfermidades podem se cronificar e complicar, ocasionando o surgimento


de cirroses e de carcinoma hepatocelular.

diagnóstica e
O consumo e uso abusivo de álcool e a doença hepática gordurosa não
alcoólica continuam sendo outras importantes causas de cirrose hepática,
rivalizando-se com as hepatites virais, como as maiores etiologias da

terapêutica cirrose hepática. Nesse artigo abordaremos os principais fatores etiológicos,


manifestações clínicas e abordagem diagnóstica e terapêutica.
Palavras-chave: cirrose hepática; hipertensão portal; hepatites virais;
Liver cirrhosis hepatopatia crônica

- diagnostic and ABSTRACT

therapeutic approach
Chronic liver diseases are major causes of morbidity and mortality all over
the world. The main causes of chronic liver diseases are Hepatitis C (HCV)
and B (HBV) vírus infection, as well as non alcoholic and alcoholic liver
disease. More than 70 and 350 millions respectively are infected by HCV
and HBV worldwide.
Carlos Eduardo Brandão Mello In this chapter we review the major clinical, etiological and diagnostic aspects
of liver cirrhosis and evaluate the principal diagnostic and therapeutic tools.
Professor Titular Departamento de Clínica Médica
Escola de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro (EMCRJ) – Keywords: cirrhosis; portal hypertension; viral hepatitis; chronic liver disease
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
Professor Adjunto da Disciplina de Clínica Médica - Faculdade
de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ)
Membro Titular da Academia Nacional de Medicina INTRODUÇÃO
Presidente da Sociedade Brasileira de Hepatologia
As hepatopatias crônicas são importantes
causas de morbimortalidade em todo o mundo.
Admite-se que existam mais de 70 milhões de
indivíduos infectados pelo vírus da hepatite C
(HCV) e mais de 350 milhões de infectados pelo
vírus da hepatite B (HBV), distribuídos pelos cin-
co continentes. Essas duas enfermidades podem se
cronificar e complicar, ocasionando o surgimento
de cirroses e de carcinoma hepatocelular.(1-4)
O consumo e uso abusivo de álcool e a doença
hepática gordurosa não alcóolica continuam sen-
do outras importantes causas de cirrose hepática,
rivalizando-se com as hepatites virais, como as
Correspondência maiores etiologias da cirrose hepática.(1-4)
Carlos Eduardo Brandão Mello
Avenida Maracanã 650/102 - Tijuca No Brasil estima-se que cerca de 0,7% a 1%
Rio de Janeiro, RJ CEP 20511-011
Email: cedubrandao@gmail.com da população esteja infectada pelo HCV e 0.5%

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Cirrose hepática – abordagem diagnóstica e terapêutica
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pelo HBV. A hepatite crônica pelo HCV é O espectro de apresentação clínica dos
uma das principais causas de cirrose e de pacientes com cirrose hepática pode com-
indicação para o transplante hepático no preender desde formas assintomáticas, nas
mundo industrializado.(1-4) quais os pacientes são identificados inci-
Além das cirroses de etiologias viral e al- dentalmente ao se submeterem a exames
coólica, extremamente prevalentes em todo médicos periódicos e de rotina laboratorial,
o mundo, destacamos, também, as hepatites até formas de apresentação exuberante,

crônicas e cirroses de natureza autoimune, florida, nas quais os pacientes exibem ma-
nifestações de insuficiência hepatocelular,
medicamentosas, principalmente pelo uso
com icterícia, diáteses hemorrágicas, ascite
de alfa-metildopa, isoniazida, propiltioura-
e hipertensão portal(6-8) (Figura 1).
cil, as metabólicas, aquelas por sobrecarga
de ferro (hemocromatose) e cobre (doença Nos estágios iniciais da cirrose os
de Wilson), dentre outras. Lembramos que pacientes podem ser assintomáticos ou,
as cirroses encontram-se, nos dias de hoje, quando muito, exibir sintomas de fadiga e
dentre as dez principais causas de morte sintomas gastrointestinais. As aminotrans-

na população mundial, juntamente com as ferases podem ser modestamente elevadas,

doenças cerebrovasculares, coronarianas, enquanto as provas de síntese e funcionais


hepáticas podem ser inteiramente normais.
neoplasias, traumas e doenças renais.(1-5)
Deste modo, é de fundamental impor-
tância a coleta e a realização de anam-
AVALIAÇÃO CLÍNICA(1-5)
nese dirigida para o sistema digestório,
Na avaliação dos pacientes com cirrose explorando a presença de sintomas cons-
hepática e de sua gravidade faz-se necessá- titucionais como astenia (fadiga crônica),
ria a utilização de propedêutica diagnóstica, náusea, vômitos, anorexia, febre, além dos
calçada principalmente em bases clínicas, sintomas específicos como icterícia, co-
laboratoriais (bioquímica e virológica), de lúria, acolia fecal e hemorragia digestiva
métodos de imagem e anatomopatológicos. alta, sob a forma de hematêmese e melena.
Todos esses procedimentos objetivam Desnutrição, sarcopenia, emagrecimento e
identificar precocemente a doença e a pre- dor abdominal, secundária ao desenvolvi-
venção do desenvolvimento das formas mento de hepatomegalia, esplenomegalia,
avançadas e descompensadas da doença ascite e suas complicações, como peritonite
e de suas complicações, como as hemorra- bacteriana primária e suas variantes, são
gias digestivas e a falência hepática, com manifestações tardias e que devem ser
alta morbimortalidade, longo período de investigadas.
internação e a inclusão dos pacientes na Faz-se necessária, também, a reali-
lista de transplante. zação de exame físico geral e segmentar,

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objetivando verificar a presença de palidez anormal nos levam a pensar em alterações


cutâneo-mucosa, secundária a episódios da coagulação e de redução da contagem
de hemorragia digestiva alta e baixa, de de plaquetas, esta última secundária à
icterícia, sinal maior da falência hepática, síndrome de hiperesplenismo.
de edema generalizado ou localizado na Manifestações extra-hepáticas, mais
cavidade abdominal, nos casos de sín- comumente encontradas nas hepatites crô-
drome edemigênica. A identificação de nicas pelo HBV e HCV, são bem caracteri-
equimoses, hematomas e de sangramento zadas, incluindo a crioglobulinemia mista

Figura 1
Manifestações clínicas da síndrome de insuficiência hepática e hipertensão portal (apud Netter F: The
Netter Collection of Medical Illustrations - Digestive System: 3, 1964).

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essencial, as glomerulonefrites, vasculites, Outros exames que se fazem necessários


poliarterites nodosas, alterações hematoló- dizem respeito à investigação etiológica,
gicas, cutâneas e tireoidianas, na maioria como a pesquisa de marcadores virais para
das vezes desencadeadas por antígenos as hepatites B (HBsAg, anti-HBc, HBeAg
virais e complexos imunes circulantes. e anti-HBe) e C (anti-HCV).(1-4)
Na avaliação laboratorial da infecção
AVALIAÇÃO LABORATORIAL pelo HCV existem dois tipos de testes para
o diagnóstico e monitoramento da infecção
Na avaliação laboratorial do paciente
pelo HCV: os testes sorológicos de detec-
com cirrose hepática pode-se empregar
ção de anticorpos anti-HCV e os testes
conjunto abrangente de testes bioquímicos
virológicos que detectam, quantificam e
que refletem a lesão hepatocelular, como as
caracterizam os componentes virais, como
aminotransferases (alanina aminotransfe-
o RT-PCR (reação em cadeia da polimerase)
rase – ALT e aspartato aminotransferase
para o HCV-RNA qualitativo e quantitativo
– AST), e canalicular, como a fosfatase
e os genótipos do HCV.(1-4)
alcalina e a gama-glutamiltranspeptidase,
Os testes sorológicos de anticorpos es-
importantes na investigação de doenças
pecíficos contra o HCV (anti-HCV) podem
crônicas colestáticas do fígado, como a
ser detectados cerca de 7 a 8 semanas após
colangite biliar primária (CBP), hepatite
a infecção pelo HCV pelos testes atuais de
autoimune, síndromes de superposição e
2a e 3a geração, persistem por toda a vida
aquelas induzidas por medicamentos.(1-5)
nos pacientes cronicamente infectados
Além desses testes existem aqueles que
e podem se tornar indetectáveis quando
avaliam a capacidade funcional hepática de
de imunodepressão profunda ou durante
captar, conjugar e excretar a bilirrubina
hemodiálise.(1-4)
e de sintetizar a albumina e os fatores da
A detecção do HCV-RNA por RT-PCR
coagulação dependente da vitamina K.
no sangue periférico é o marcador mais
O critério diagnóstico habitual para a confiável de replicação viral. Na infecção
definição de hepatopatia crônica é tem- aguda o HCV-RNA torna-se detectável uma
poral, caracterizado pela persistência de a duas semanas após a infecção, porém
anormalidades funcionais hepáticas por nas formas crônicas os níveis são está-
intervalo de tempo superior a seis meses. veis, embora possam flutuar por dias ou
A avaliação hematológica, incluindo a semanas. Os títulos de HCV-RNA não se
contagem de plaquetas, é de fundamental correlacionam com a gravidade das lesões
importância na investigação das cirroses, hepáticas, embora títulos baixos ou indetec-
principalmente quando complicadas por táveis possam ser encontrados nas formas
hipertensão portal e hiperesplenismo. (6-8)
de doença hepática crônica avançada.(1-4)

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Existem seis genótipos principais do Os testes virológicos baseiam-se na


HCV (de 1 a 6), que são subdivididos em identificação do HBV-DNA (quantitativo).
subtipos identificados por letras (1a, 1b, Uma vez que a infecção pelo HBV pode
2a, 2b). Os tipos, subtipos e isolados do permanecer silenciosa é importante a utili-
HCV são identificados pela média de di- zação de métodos confiáveis e acurados que
vergência de suas sequências genômicas, determinem a presença de replicação viral,
sendo respectivamente de 30%, 20% e principalmente na monitoração terapêutica
10%.(1-4) e na identificação de resistência e mutações
Na avaliação da infecção pelo vírus da virais. O melhor método é a determinação
hepatite B (HBV), de igual modo, podemos quantitativa do HBV-DNA pelas técnicas
lançar mão de testes sorológicos e viroló- de RT-PCR ou branched DNA.(1-4)
gicos. Dentre os marcadores sorológicos Na avaliação das formas de cirrose au-
destaca-se a pesquisa dos antígenos de toimune devemos valorizar os achados de
superfície do HBV (HBsAg) e do HBeAg, maior prevalência do sexo feminino (propor-
marcador de replicação viral, infectividade ção de 4:1); hipergamaglobulinemia; autoanti-
e patogenicidade. Na fase de imunotole- corpos circulantes (antinuclear, antimúsculo
rância da infecção pelo HBV observa-se liso; anti-LKM-1 em títulos > 1:80); doenças
intensa replicação viral, caracterizada por autoimunes associadas; boa resposta à terapia
altos títulos de antígenos virais (HBsAg e imunossupressora; presença de HLA-DR3 e
HBeAg), altos títulos de HBV-DNA, porém HLA-DR4 e ausência de marcadores virais e
transaminases normais. Na fase imunoa- de ingestão alcoólica. Estas características
tiva (imunoclearence) da hepatite crônica foram agrupadas em um sistema de escore
B, os títulos de HBV-DNA e de HBeAg elaborado pelo Comitê Internacional de Es-
diminuem, as transaminases se elevam e tudos das Hepatites Autoimunes.(1-5)
os sintomas clínicos podem surgir.(1-4) De acordo com os autoanticorpos identi-
A soroconversão de HBeAg para anti- ficados, as hepatites autoimunes podem ser
-HBe é acompanhada de diminuição nos classificadas em: tipo 1, pela presença de
títulos de HBV-DNA (habitualmente < 104 anticorpos do tipo FAN e antimúsculo liso;
cópias por mL) e remissão clínica. Não tipo 2, quando da presença de anti-LKM-1
obstante, certas variantes do HBV podem (anticorpo contra antígeno microssomal
carregar mutações na região pré-core do de fígado e rim) e tipo 3, com o achado de
genoma do HBV, que impedem a produção anticorpos anti-SLA (soluble liver antigen)
do HBeAg. Os outros dois marcadores e anti-LP (anticorpo contra antígenos de
sorológicos são o anti-HBc e o anti-HBs, fígado e pâncreas).(1-5)
marcadores de contato prévio e de cura ou Nas cirroses e hepatites crônicas medi-
resolução do processo, respectivamente. (1-4)
camentosas é de fundamental importância a

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anamnese cuidadosa e o interrogatório clí- AVALIAÇÃO POR IMAGEM E


nico concernente ao tempo de uso e o empre- ENDOSCÓPICA
go de fármacos e drogas ilícitas injetáveis ou Os métodos de imagem, como ultrasso-
inalatórias. Tipicamente, o quadro clínico nografia, tomografia e ressonância mag-
é variável, refletindo o amplo espectro de nética do abdome, se prestam para o diag-
apresentação das doenças hepatobiliares. nóstico e prognóstico das doenças crônicas
Na maioria das vezes as hepatites induzidas do fígado, principalmente nas suas formas
por fármacos apresentam-se sob a forma de
avançadas e progressivas para cirrose.
hepatite aguda ou crônica ou sob a forma
Todos conseguem, com maior ou menor
de síndrome colestática, com icterícia e
sensibilidade, caracterizar o tamanho, o
prurido. Com a interrupção dos fármacos,
contorno e a superfície do fígado, descre-
a remissão clínica é o desfecho habitual.
vendo a presença ou não de lesões focais
Destaca-se neste grupo as hepatites suspeitas, como o carcinoma hepatocelular,
induzidas por isoniazida, anti-inflama- além de se prestarem ao estudo da síndrome
tórios não esteroidais, estrógenos, sulfas,
da hipertensão portal, através da carac-
hidralazina, metotrexato e alfa-metildopa
terização de esplenomegalia, circulação
e antibióticos à base de clavulanato, dentre
colateral e ascite.(6-8)
outros fármacos.
Mais recentemente, nos principais cen-
Nas cirroses de origem metabólica é de
tros europeus, foi incorporada a avaliação
fundamental importância o diagnóstico da
indireta do grau de fibrose por métodos la-
sobrecarga férrica, com a determinação do
boratoriais (APRI, Fibrotest, dentre outros)
ferro, da ferritina e a saturação da trans-
e de elastografia hepática (Fibroscan) aco-
ferrina nos casos de hemocromatose, bem
plada ao ultrassom (ARFI, Shear Wave).(6-10)
como a pesquisa das mutações do gene
HFE (C282Y e H63D). Na sobrecarga de De igual modo, a avaliação endoscópica
cobre (doença de Wilson) é importante serve para a confirmação diagnóstica da
a determinação da ceruloplasmina e do síndrome de hipertensão portal, através da
cobre sérico e urinário, juntamente com a identificação de varizes esôfago-gástricas,
pesquisa do anel de Kayser-Fleischer por gastropatia congestiva, como para a avalia-
biomicroscopia e lâmpada de fenda. ção prognóstica de sangramento varicoso

Recentemente, têm-se avolumado na e não varicoso.


prática clínica os casos de cirrose cripto- Também, com o intuito de avaliar o
gênica, de natureza metabólica, principal- grau de hipertensão portal e de predizer
mente relacionada a doença gordurosa não a progressão da doença hepática crônica
alcoólica do fígado, secundária à doença tem-se utilizado em centros de excelência
metabólica (MAFLD ou NAFLD).(1-5) a determinação do gradiente de pressão da

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veia hepática, através da medida da pressão ainda se subdivide em pré-sinusoidal, sinu-


da veia hepática livre e ocluída (GPVH). soidal e pós-sinusoidal. Exemplificando, a
Nos cirróticos, o GPVH > 12 mmHg HP pode ser pré-hepática (trombose da veia
reflete a presença de hipertensão portal; porta); intra-hepática (cirrose hepática) e
níveis superiores a esse podem refletir a pós-hepática (síndrome de Budd-Chiari, pe-
progressão da cirrose de sua forma com- ricardite constritiva) e a forma hepática ser
pensada para as descompensadas. O GPVH subdividida em pré-sinusoidal (esquistos-
é considerado o padrão-ouro na carac- somose hepatoesplênica, fibrose hepática);
terização da hipertensão portal e o mais sinusoidal (cirrose hepática); pós-sinusoidal
empregado, principalmente nos centros (cirrose hepática e doença veno-oclusiva).(6-12)
europeus e pela escola espanhola de Barce- A manifestação clínica cardinal da sín-
lona. Valores acima > 5 mmHg caracterizam drome de hipertensão portal é o desenvol-
hipertensão portal sinusoidal; valores > 10 vimento de circulação colateral clinica-
mmHg definem o conceito de hipertensão mente manifesta pela presença de varizes
portal clinicamente significativa (CSPH). de esófago e gástricas. Muitas vezes as
A medida do gradiente de pressão da veia manifestações clínicas da síndrome de
hepática pode também ser usada no controle hipertensão portal se misturam com aque-
terapêutico da CSHP, em que a redução de las da insuficiência hepática, uma vez que
10% do gradiente de pressão ou pressão < 12 a cirrose hepática é a principal causa do
mmHg após a introdução dos betabloquea- desenvolvimento da hipertensão portal na
dores é considerada como determinante prática clínica.
de sucesso na profilaxia primária e menor O surgimento de circulação colateral
risco de sangramento digestivo.(6-12) e de varizes na síndrome da hiperten-
Além de se prestar para a avaliação são portal habitualmente ocorre quando o
diagnóstica, a endoscopia digestiva é ex- GPVH estiver > 10 a 12 mmHg e se encontra
celente ferramenta no manejo da hemorra- presente em 40% dos cirróticos compen-
gia digestiva varicosa, com o emprego da sados versus 60% naqueles com cirrose
ligadura elástica e da escleroterapia das descompensada. O risco de sangramento
varizes de esôfago. é estimado em 25% ao final de dois anos
A hemorragia digestiva alta (HDA) va- e esse risco aumenta consideravelmente
ricosa é a segunda causa mais frequente quando o GPVH estiver > 12 mmHg. Esse
de HDA e é dependente da presença de sangramento pode cessar espontaneamen-
hipertensão portal (HP). Do ponto de vista te em 40% dos casos por hipovolemia e
conceitual, a hipertensão portal pode ser vasoconstrição esplâncnica e, também,
classificada em pré-hepática, hepática e depende em muito do calibre das varizes
pós-hepática, sendo que na forma hepática e da reserva funcional hepática.

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Outras medidas indiretas e que têm se compensada o risco de sangramento admite-


popularizado nos últimos anos são o em- -se que seja de 7% em dois anos e o controle
prego da elastografia hepática transitória endoscópico deve ser anual (Figura 2).(6-15)
(fibroscan) e de marcadores bioquímicos Naqueles pacientes com doença des-
indiretos de fibrose, como o APRI, Fibro- compensada e varizes de médio a grosso
test, FIB-4, que na verdade são marcadores calibre a recomendação é de controle seria-
indiretos de fibrose hepática, na identifi- do semestral, uma vez que o risco de res-
cação precoce de pacientes com doença sangramento é de 30%. Além de se prestar
hepática crônica avançada compensada para a avaliação diagnóstica, a endoscopia
(cACLD) com risco de desenvolver hiper- digestiva é excelente método terapêutico no
tensão portal clinicamente significativa. (6-15)
manejo da hemorragia digestiva varicosa,
Valores de elastografia hepática abaixo com o emprego da ligadura elástica e da
de 10 KPa descartam a possibilidade de escleroterapia das varizes de esôfago. No
cACLD; valores entre 10 e 15 KPa suge- estudo de D'Amico et al. (2003) o sangra-
rem cACLD e valores acima de 15 KPa são mento digestivo ativo visto à endoscopia
altamente sugestivos de doença hepática digestiva foi considerado como preditor de
crônica compensada. Valores acima de ressangramento precoce, porém não de mor-
20 a 25 KPa em duas aferições realizadas talidade, que era muito mais relacionada à
em dias diferentes e em jejum têm sensi- presença de falência hepática caracterizada
bilidade e especificidade de 76% e 78%, por albumina baixa, presença de encefa-
respectivamente, em predizer a presença lopatia, bilirrubina elevada e presença de
de varizes de esofago, principalmente nas carcinoma hepatocelular. A mortalidade
hepatopatias crônicas de etiologia viral imediata relacionada ao episódio de san-
(Baveno VI, Franchis, 2015). (6-15)
gramento varicoso é estimada em 5% a 8%;
De igual modo, a avaliação endoscópica de 30% a 50% após 6 semanas, e de 50% a
serve para a confirmação diagnóstica da 60% após ressangramento (Figura 3).(6-15)
síndrome de hipertensão portal, através da A profilaxia primária do sangramento
identificação de varizes esôfago-gástricas, digestivo consiste em prevenir o primeiro
gastropatia congestiva, como para a avalia- sangramento. Naqueles sem varizes ou
ção prognóstica de sangramento varicoso com varizes incipientes ou de fino calibre e
e não varicoso. Nos pacientes com doença sem sinais preditivos de sangramento (red
hepática crônica compensada sem varizes signs) a orientação é de observar e moni-
esôfago-gástricas na avaliação inicial o torar o paciente ou até mesmo de iniciar
controle endoscópico pode ser realizado a betabloqueadores. Naqueles com varizes de
cada dois anos. Naqueles com varizes de fino médio e grosso calibre a recomendação é o
ou de pequeno calibre e doença hepática emprego de betabloqueadores não seletivos

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(propranolol, nadolol), que reduzam em 25% O grau de classificação de Child apre-


a frequência cardíaca ou que mantenham- senta boa correlação com a sobrevida do pa-
-na em 55-60 bpm, ou ainda o emprego de ciente, de maneira que paciente com Child
carvedilol. O carvedilol parece ser mais A apresenta 44% de chance de sobrevida ao
eficiente do que os betabloqueadores não final de cinco anos, ao passo que o Child
seletivos, mas estudos head-to-head pre- C apenas 21%. Outra classificação muito
cisam ser realizados.(6-15) empregada nos serviços de transplante é
O emprego de betabloqueadores não sele- o escore MELD, idealizada com o objetivo
tivos deve ser feito com cautela e até com do- de otimizar a fila de pacientes listados para
ses reduzidas em pacientes com hipotensão transplante hepático. Nessa classificação
(< 90 mmHg), hiponatremia (< 130 mEq/L) acrescentou-se às variáveis determinação
e insuficiência renal na presença de ascite do tempo de protrombina (INR) e bilirru-
refratária. Outra conduta preventiva pode bina, a dosagem da creatinina.(6-15)
ser a realização de ligadura profilática de Mais recentemente, acrescentou-se ao
varizes esofágicas, principalmente naqueles escore MELD a determinação do sódio (Na)
pacientes com reserva funcional hepática sérico, importante preditor de falência renal
pior ou varizes com sinais preditivos de associada à cirrose hepática na síndrome
sangramento, com a presença de sinais hepatorrenal.
vermelhos (red signs) e telangiectasias. O
emprego e a injeção do cianoacrilato parece
ser mais efetivo que os betabloqueadores na
prevenção primária do sangramento digesti-
vo de pacientes com varizes gastroesofágicas
tipo 2 ou varizes gástricas isoladas tipo 1
(Baveno VI, Franchis R, 2015).(6-15)
Na avaliação da gravidade e prognós-
tico da hemorragia digestiva alta leva-se
muito em consideração o grau de reserva
funcional hepática. A classificação mais
frequentemente empregada ainda é a de
Child-Pugh-Turcotte, na qual cada variável
(ascite, encefalopatia, tempo de protrombi-
na, bilirrubina e albumina) é graduada em
escores de 1 a 3 pontos, sendo que a soma
final permite diferenciar os pacientes em Figura 2
graus de gravidade de A a C. Varizes esofagianas: Visão endoscópica

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identificação do binômio fibrose mais nó-


dulo de regeneração.(1-4)
A análise em conjunto das informa-
ções clínicas, bioquímicas e histológicas
obtidas permite, em última análise, a de-
terminação da gravidade da cirrose, seu
prognóstico e planejamento terapêutico. Na
quase maioria dos casos, o diagnóstico de
cirrose hepática prescinde da realização
da biópsia hepática, principalmente nos
quadros avançados, em que a presença
de ascite, icterícia, sinais periféricos de
Figura 3 insuficiência hepatocelular, como eritema
Varizes esofagianas: Procedimento de ligadura palmar, telangiectasias, ginecomastia e de
elástica
hipertensão portal, como esplenomegalia,
varizes de esôfago e circulação colateral,
denunciam a presença da doença.
AVALIAÇÃO HISTOLÓGICA Em situações muito particulares, a bióp-
A avaliação histológica do paciente com sia hepática pode ser útil quando da melhor
doença hepática crônica é fundamental caracterização etiológica, como nos casos de
para o diagnóstico acurado da condição e doenças autoimunes e metabólicas, como a he-
de sua etiologia, determinando-se através mocromatose, doença de Wilson e NASH.(1-5)
de sua leitura e interpretação o grau de Em resumo, a cirrose hepática conti-
atividade necroinflamatória e o estágio nua sendo um imenso desafio para clíni-
de fibrose. Várias classificações recen- cos, gastroenterologistas e hepatologistas,
tes foram incorporadas ao conhecimento importante causa de morbimortalidade,
médico, como as descritas por Ishak e de etiologias as mais variadas possíveis,
colaboradores e pela escola francesa de destacando-se as causas virais, alcoólica
Bedossa e colaboradores (Metavir). e metabólica. A avaliação clínica e labora-
Num passado remoto, as hepatites crô- torial cuidadosa e o emprego de medidas
nicas eram divididas em persistente e ativa, de diagnóstico endoscópico, por imagem
na dependência da integridade da lâmina e histológica ainda requerem atenção por
limitante entre o espaço portal e o parên- parte dos médicos, assim como o seu manejo
quima hepático, e a cirrose hepática pela terapêutico farmacológico e endoscópico.

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