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A Cultura

Introdução – conceitos principais


Em todos os momentos da nossa vida, diante da nossa formação filogenética e ontogenética,
somos influenciados pelo meio social. Então, não podemos dizer que o ser humano é um ser
isolado. Somos seres individualizados e, ao mesmo tempo, coletivos, somos influenciados pela
sociedade a partir das relações sociais/culturais.

O indivíduo: ser social


Cada indivíduo, ao nascer encontra-se num sistema social criado através de gerações já
existentes. O ser humano, desde sempre, é considerado um ser de relações sociais, que
incorpora normas, valores vigentes na família, com os seus pares ou na sociedade. Assim, a
formação da personalidade do ser humano resulta de um processo de socialização, no qual
intervêm fatores inatos e adquiridos. Entende-se, por fatores inatos, aquilo que herdamos
geneticamente da nossa espécie e dos nossos familiares, e os fatores adquiridos provém da
sociedade e da cultura humana.

Lembre-se: a personalidade é um somatório de características, resultantes da ação dos fatores


hereditários/genéticos (constituição física, caracteres morfológicos e físico-químicos do indivíduo) e dos
fatores ambientais (interação entre as pessoas e o mundo, que envolve os hábitos, valores, capacidades,
aspirações, etc).

O ser humano é um ser vivo que depende de interação com os outros seres vivos para receber
afeto, cuidados e até mesmo para se manter vivo. Somos seres vivos profundamente sociais: o
ser humano precisa de se relacionar com os outros por diversos motivos: por necessidade de
comunicar, de aprender, de ensinar, de dizer que ama o seu próximo, de exigir melhores
condições de vida, bem como de melhorar o seu ambiente externo, de expressar seus desejos e
vontades, etc.
Então, quando estudamos o indivíduo, percebemos a forma como ele organiza o seu pensamento
e o seu comportamento. Assim, iremos concluir que essa construção e organização ocorrem a
partir do contato que tem com os outros. Por isso, ao estudar o indivíduo enquanto ser social,
estudamos o indivíduo enquanto indivíduo influenciado pelas relações com os outros, isto é, por
padrões culturais e pela socialização a que está sujeito durante o seu processo de
desenvolvimento pessoal.

A cultura
O indivíduo, enquanto ser particular e social, desenvolve-se num contexto cultural, em que
temos regras, padrões, crenças, valores, identidades muito diferenciadas.
A partir do momento em que faz uso da linguagem, o indivíduo encontra-se num processo
cultural. Cada sociedade humana tem a sua própria cultura, característica expressa e identificada
pelo comportamento do indivíduo.
Então, o que é a cultura? A cultura refere-se ao conjunto de hábitos, regras sociais, valores,
tipos de relacionamento interpessoal e de comportamentos aprendidos.
Podemos considerar a cultura como uma herança social, que é transmitida por ensinamento a
cada nova geração. E é nessa realidade sociocultural que o indivíduo se socializa. Sua
personalidade, suas atitudes e opiniões formam-se a partir dessas relações.
Assim, o processo de socialização consiste numa aprendizagem social, através da qual
aprendemos comportamentos sociais considerados adequados ou não e que motivam os
membros da própria sociedade a nos elogiar ou a nos punir. Daí a necessidade de estudarmos os
agentes do processo de socialização.
Agentes socializadores do processo de socialização
Fazemos parte de diversos grupos sociais e é por meio desses grupos que o nosso processo de
socialização ocorre. Temos, então, como agentes socializadores, vários grupos: a família, os
amigos, a escola, os meios de comunicação, etc.
O primeiro contato que o ser humano tem, ao nascer, é a família: primeiramente, com a mãe/ou
alguém que faz o seu papel, por meio dos cuidados físicos e afetivos, e, paralelamente, por
exemplo, com o pai e os irmãos, que transmitem atitudes, crenças e valores que influenciarão no
seu desenvolvimento psicossocial. Num segundo momento, tem a interferência da escola e da
sociedade, em geral.

O processo de socialização ocorre durante toda a vida do indivíduo, por isso, esse processo é
dividido em etapas:
socialização primária: ocorre na infância com os agentes socializadores citados anteriormente,
que exercem uma influência significativa na formação da personalidade social;
socialização secundária: ocorre na idade adulta.

Papéis sociais
Ao nascer, já temos alguns papéis prescritos como idade, sexo ou posição familiar. À medida
que adquirimos novas experiências, ampliando nossas relações, vamos nos transformando,
adquirindo outros papéis que são definidos pela sociedade e cultura: desempenhamos vários
papéis sociais (de filha(o), pai ou mãe, patrão ou empregado, etc.

Vimos que o ser humano, na verdade, é fruto das relações sociais. Ao mesmo tempo em que ele
é um individuo, é também coletivo, pois vive em um processo constante de transformação,
desde o nascimento até sua morte, por meio de interações grupais (família, vizinho, trabalho),
sendo influenciado por padrões culturais.
Para finalizar este capítulo, é importante que você tenha compreendido que nós construímos o
nosso “eu”, a partir do contexto social e cultural em que nós somos formados pelo processo de
aprendizagem e de socialização. A forma como você se expressa, comunica, anda, reflete o
contexto social que vive ou que viveu. As interações sociais que estabelecemos são
denominadas pela cultura existente.

Resumo - A cultura como um eixo central no desenvolvimento do ser humano.


A história do ser humano é a história duma transformação, a passagem da ordem da
natureza à ordem da cultura. (As funções biológicas não desaparecem com a
emergência da cultura, mas adquirem uma nova forma de existência: elas são
incorporadas na história humana.)
A linguagem humana é um bom exemplo de uma função biológica, ligada ao
pensamento e à construção do significado, mas que é um marco também do
desenvolvimento cultural do ser humano, dado que a linguagem humana só se
desenvolve em sociedade e é à sociedade que vamos buscar os significados que
usamos quando falamos, por exemplo.
Uma criança nasce com as condições biológicas de falar, mas só desenvolverá a fala se
aprender com os mais velhos da comunidade, a começar pela família.
Damos razão aqueles que afirmam que o ser humano é um ser que se forma em
contato com a sociedade. Na ausência dos outros, o ser humano não se constrói ser
humano, como se observou nas histórias das “crianças selvagens”. Por isso,
observamos que o indivíduo ao se desenvolver, é influenciado pela raça, etnia, cultura,
estilo de vida, sistema familiar e condição socioeconómica (classe social, educação,
ocupação e rendimentos). Algumas experiências do ser humano são individuais e
únicas, outras são comuns a certos grupos de idade, de gerações ou de pessoas que
vivem ou foram criadas em determinadas sociedades e culturas em épocas diferentes.
Os processos psicológicos mais complexos - ou funções psicológicas superiores, que
diferenciam os humanos dos outros animais, como o raciocínio e a memória - só se
formam e se desenvolvem pela aprendizagem em sociedade. Mas é claro que o
desenvolvimento humano é, em qualquer momento, um produto da interação
contínua da hereditariedade e da influência do meio/da cultura.

AS “CRIANÇAS SELVAGENS”: O caso Victor de Aveyron

O caso de Victor de Aveyron e de muitas outras crianças “selvagens” faz-nos


duvidar da nossa condição humana. De facto, é difícil reconhecer a humanidade destas
crianças, apesar de elas terem sido geneticamente determinadas a nascer com as
características que são comuns a todos os indivíduos da espécie humana (olhos, boca,
nariz, orelhas, etc). Através destes casos, podemos compreender a absoluta
importância das vinculações precoces da criança e da sua socialização primária: é
através do contacto com outros seres humanos que aprendemos a ser humanos.
À partida, os modos como estas crianças se relacionam com os outros e com o
mundo provoca em nós uma estranheza imensa. Apesar de, biologicamente, serem
humanas, é-nos difícil relacionar a nossa experiência com a delas, compreender a
forma como sentem, pensam e agem. Assim como nós não nos reconhecemos nelas,
elas também não se reconhecem em nós. As suas capacidades, as suas características
muito próprias, as marcas desse isolamento (sejam elas físicas ou mentais) provam-nos
o quanto dependemos dos outros, do contacto físico e sociocultural com os outros,
para nos tornarmos os seres humanos que somos.
O caso mais conhecido é a história de um garoto com idade entre 12 e 15 anos,
encontrado na floresta de Aveyron, na França, em 1797. Com hábitos “selvagens”, ele
parecia surdo e mudo, emitindo apenas alguns grunhidos. Levado para o Instituto
Nacional de Surdos-Mudos, em Paris e após uma tentativa fracassada de usar para
com ele o método da língua gestual, ele foi considerado irrecuperável. Todavia um
médico chamado Jean Itard interessou-se pelo caso e, partindo do princípio que o
comportamento do menino era consequência da privação de contato social, propôs ao
governo francês um projeto de educação daquele que ele veio a chamar de Victor.
Com a ajuda de Mme Guérin, sua governanta, passou a desenvolver com ele atividades
voltadas para a exercitação continua da atenção, memória, raciocínio e todas as
possibilidades dos seus sentidos. Por exemplo:
- utilizar o gosto do menino pela ordem para exercitar a atenção sobre as coisas,
- desenvolver o tato para que se mostrasse mais sensível aos corpos quentes e frios,
lisos e rugosos, moles ou duros,
- desenvolver a capacidade de escutar distintamente algumas palavras e distinguir com
precisão diferentes entoações da linguagem, quer exprimissem censura, cólera,
tristeza ou amizade,
- desenvolver sentimentos como a alegria ou a tristeza ou o sentido interior de justiça,
- desenvolver o interesse pela vida social, interagindo com os outros,
- desenvolver a memória e a inteligência prática.

Através da audição e da visão, Victor desenvolveu a capacidade de ler algumas


palavras. É de realçar, no entanto, que Victor lia sem perceber o significado real das
palavras, mas sim de uma leitura meramente intuitiva/mecânica, sem compreensão.
Por exemplo, é possível identificar esta situação quando o Prof. Itard tenta ensinar o
alfabeto, ainda antes do “a, e, i, o, u “, ou mesmo, quando pretende que Victor associe
as letras para formar palavras, conseguindo apenas atos mecânicos e intuitivos.
No processo de humanização, a linguagem ocupa papel de destaque, tendo como
primeira função a comunicação, a troca entre os membros de uma mesma espécie; a
segunda função é a do pensamento generalizante. Podemos considerar que a
linguagem nasce da necessidade de comunicação, junto com as ações - é um
instrumento de expressão e compreensão entre os homens. A linguagem é
considerada o instrumento mais importante de desenvolvimento da consciência, pois
penetra em todos os campos da atividade consciente do ser humano. A sua principal
função na formação da consciência é tornar possível o processo de abstração e
generalização, sem a qual seria impossível adquirir a experiência das gerações
anteriores, e ao mesmo tempo é a base do pensamento; permite a reorganização da
perceção e da memória.
O contato de Victor com a sociedade era insuficiente, sua convivência restringia-se ao
jovem médico, à Madame Guérin e a alguns vizinhos que, periodicamente, visitavam.
O menino já demonstrara a sua dificuldade de interação com outras pessoas e preferia
a solidão ao caos da multidão, mas isso era compreensível, dadas as circunstâncias em
que foi tirado da floresta, enclausurado na prisão de Rodez e, posteriormente,
despejado no colégio de surdos-mudos, no qual demonstrou grande insociabilidade,
tendo sido maltratado por outras crianças e explorado por guardas que o expunham à
população como um espetáculo exótico.
Nos aspetos cognitivos Victor não desenvolve os conceitos necessários para o
desenvolvimento do pensamento. É bem visível no caso do conceito de “tijela”. A
tigela, para Victor, serve à finalidade única de receber o leite, o que indica que ele:
a) não tem consciência muito desenvolvida da finalidade da ação,
b) não é capaz de analisar e generalizar as propriedades objetivas do objeto
“tijela”, de modo que ele não compreende que o mesmo objeto pode ser
utilizado de outras formas e para outros fins. Não terá na mente o conceito de
“tijela”.
Esse processo também pode ser verificado na relação mecânica e “irracional” que o
menino estabelece com outros objetos e algumas palavras escritas. Em alguns
momentos, o menino tem acessos de fúria, mediante algumas ações que lhe são
solicitadas por Itard. O menino não vê sentido em conhecer, nomear, ler algumas
palavras e objetos, pois tais ações estão relacionadas unicamente à compensação de
beber água. Não há, portanto, uma operação mental relacionada aos objetos e às
ações necessárias. Para haver pensamento é precisa a distinção e a tomada de
consciência das características dos objetos e das relações entre objetos, para além da
relação entre os objetos e a intenção do indivíduo (ação). A linguagem falada é
decisiva nessa tomada de consciência e sobretudo porque a fala(linguagem) torna-se a
forma e o suporte dos níveis mais abstratos do pensamento.

Durante o tempo em que permaneceu sob os cuidados especiais de Itard, Victor


progrediu. Entretanto, conforme apontam os estudos de Banks-Leite e Galvão, nos dez
anos subsequentes, vividos no Instituto de Surdos-Mudos, poucos avanços foram
obtidos, de modo que sua guarda foi concedida em definitivo à Madame Guérin, com
quem permaneceu até 1828, nos últimos 20 anos de sua vida. Segundo as autoras, o
último relato sobre Victor, datado de 1817, afirmava que ele permanecia atemorizado,
semisselvagem e afásico (sem fala).

Texto adaptado a partir de:


O garoto selvagem: importância das relações sociais e da educação no processo de desenvolvimento
humano, Tatiane Anjos Pereira e Maria Terezinha Galuch.
A interação social no processo de desenvolvimento humano do menino selvagem de Aveyron, Lucyanne
Dias e Nerli Ribeiro Mori.

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