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I.
A relação pré-contratual constitui-se com a assunção de negociações
para a conclusão de um contrato: as partes saem do círculo dos deveres
gerais para entrarem no círculo dos deveres especiais (entre sujeitos
determinados).
Os deveres compreendidos na relação pré-contratual fundam-se no
princípio da boa fé - logo, são deveres de conduta ou deveres laterais.
Como relação jurídica constituída exclusivamente por deveres de con
duta ou deveres laterais, a relação jurídica pré-contratual é o paradigma
das relações obrigacionais em sentido amplo sem deveres primários de
prestação.
O princípio de que a assunção de negociações para a conclusão de
um contrato engendra uma relação obrigacional em sentido amplo sem
deveres primários de prestação concretiza-se em normas sobre a validade
ou a invalidade do contrato e em normas sobre a responsabilidade dos
contraentes.
Em normas sobre a eficácia — sobre a validade ou invalidade — do
contrato: assim, caso a violação de deveres pré-contratuais surja sob a
forma de dolo, de coacção ou de usura, ou sob a forma de uma prática
comercial desconforme à diligência profissional, que distorça ou seja
susceptivel de distorcer de maneira substancial o comportamento eco
nómico do consumidor, o negócio jurídico é anulável, por aplicação dos
I
II.
O legislador define os casos de responsabilidade dos contraentes
através de uma cláusula geral - contida no art. 227.° do Código Civil
- e define os casos de validade ou de invalidade do contrato através de
uma enumeração.
Os tipos de vícios da vontade descritos na lei são três - e só três
o erro, o dolo e a coacção. O erro, por corresponder a uma perturbação
endógena do processo de formação da vontade do declarante, está des
ligado da violação de deveres compreendidos na relação pré-contratual;
o dolo e a coacção, por corresponderem a perturbações exógenas, estão
ligados à violação de deveres.
Quando os tipos dolo e coacção sejam insuficientes para a protecção
plena da autonomia privada do declarante contra condutas contrárias à
boa fé do declaratário, põe-se o problema da relação sistemática entre a
norma sobre a conduta dos contraentes contida no art. 227.° e as normas
sobre a validade ou invalidade do contrato contidas nos arts. 253.°-354.°
e nos arts. 254.°-255.°
III.
O tipo coacção só abrange a ameaça, esquecendo, p. ex., as condutas
contrárias à boa fé concretizadas no assédio ou na influência indevida.
A Directiva 2005/29/CE, de 11 de Maio de 2005, e o Decreto-Lei
n.° 57/2008, de 26 de Março, sobre as práticas comerciais desleais nas
relações entre os profissionais e os consumidores, consagram o princí
pio da equiparação entre a coacção, o assédio e a influência indevida
(art. 8.° da Directiva 2005/29/CE, de 11 de Maio de 2005, e art. 11.° do
Decreto-Lei n.° 58/2008).
O Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.° 7/2009, de 12 de
Fevereiro, define assédio como um “ comportamento indesejado, [...]
praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, traba
lho ou formação profissional, com o objectivo ou o efeito de perturbar
ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade, ou de lhe criar um
ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador”;
a Directiva 2005/29/CE e o Decreto-Lei n.° 57/2008 não o definem, só
o relacionam com um comportamento indesejado do profissional “que
limite ou seja susceptível de de limitar significativamente a liberdade
de escolha ou o comportamento do consumidor em relação a um bem
ou serviço e, por conseguinte, conduz ou é susceptível de conduzir o
consumidor a tomar uma decisão de transacção que não teria tomado
de outro modo”.
Embora não definam o assédio, a Directiva e o Decreto-Lei sobre
as práticas comerciais desleais definem a influência indevida como
“utilização pelo profissional de urna posição de poder para pressionar
o consumidor, mesmo sem recurso ou ameaça de recurso à força física,
de forma que limita significativamente a capacidade de o consumidor
tomar uma decisão esclarecida” [art. 2.°, al. j), da Directiva e art. 3.°, al.
j), do Decreto-Lei n.° 58/2008],
Inexistindo uma disposição legal que expressamente determine a
anulabilidade do contrato - designadamente, do art. 14.° do Decreto-Lei
n.° 58/2008, de 26 de Março -, os arts. 255.° e 256.° do Código Civil
poderão porventura aplicar-se por analogia aos casos de assédio ou
influência indevida!
IV.
O tipo dolo só abrange (em princípio) a indução intencional em erro.
O art. 253.° do Código Civil contrapõe dolo comissivo e dolo omissivo:
70 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA
2 Cf. Manuel de Andrade, Teoria geral da relaçãojurídica, vol. II, Livraria Almcdina,
Coimbra, 1974 (reimpressão), pág. 262 (em especial, na nota n.° 3); Carlos Alberto da
Mota Pinto / António Pinto Monteiro / Paulo Mota Pinto, Teoria geral do direito civil,
4? ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2005, pág. 526; Luís Alberto Carvalho Fcmandes,
Teoria geral do direito civil, vol. II, 3.a cd., Universidade Católica Editora, Lisboa,
2001, pág. 169.
3 Emst Kramer, anotação ao § 119 do BGB, in: Miinchener Kommentar zum
Burgerliches Gesetzbuch, vol. I (§§1-240), 3.“ cd, C. H. Bcck, Miinchcn, 1993, págs.
907-967 (945-957); Martin Joscf Schcrmaicr, “§§ 116-124. Willensmãngel”, in:
Historisch-kristischer Kommentar zum BGB, vol. 1 (§§ 1-240), J. C. B. Mohr (Paul
Siebcck), Túbingcn, 2003, págs. 401-497 (495-497).
4 Rodolfo Sacco, “11 dolo”, in: Pietro Rcscigno (dir.), Trattato di diritto privato. vol.
10,2.'ed., UTET, Torino, 1995, págs. 197-207; págs. 198-199; Hans-Christoph Grigoleit,
Vorvertragliche Informationshaftung - Vorsatzdogma, Rechtsfolgen, Schranken, C. H.
Bcck, Miinchcn, 1997; “Rcformperspcktiven der vorvertraglichcn Informationshaftung”, in:
Rcincr Schulze / Hans Schulte Nõlkc (org.), Die Schuldrechtsreform vor dem Hintergnmd
des Gemeinschaftsrechts, J. C. B. Mohr (Paul Sicbeck), Ttibingcn, 2001, págs. 269-294.
O DOGMA DA TIPICIDADE DOS VÍCIOS DA VONTADE E O CONTRIBUTO DO
DECRETO-LEI N “ 57/2008, DE 26 DE MARÇO. PARA A SUA SUPERAÇÃO 71
V.
A relação sistemática entre as normas sobre a conduta dos contraentes
do art. 227,° e as normas sobre a validade ou invalidade do contrato dos
10 Cf. Nuno Manuel Pinto Oliveira, “O conceito de dolo dos arts. 892.° e 908.“ do
Código Civil”, in: Nos vinte anos do Código das Sociedades Comerciais. Estados em
homenagem aos Professores Doutores António Ferrer Correia, Vasco da Gama Lobo
Xavier e Orlando de Carvalho', vol. 111 - Pária. Coimbra Editora, Coimbra, 2007, págs.
725-740.
74 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA
VI.