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O dogma da tipicidade dos vícios da vontade

e o contributo do Decreto-Lei n.° 57/2008,


de 26 de Março, para a sua superação
Nuno Manuel Pinto Oliveira

I.
A relação pré-contratual constitui-se com a assunção de negociações
para a conclusão de um contrato: as partes saem do círculo dos deveres
gerais para entrarem no círculo dos deveres especiais (entre sujeitos
determinados).
Os deveres compreendidos na relação pré-contratual fundam-se no
princípio da boa fé - logo, são deveres de conduta ou deveres laterais.
Como relação jurídica constituída exclusivamente por deveres de con­
duta ou deveres laterais, a relação jurídica pré-contratual é o paradigma
das relações obrigacionais em sentido amplo sem deveres primários de
prestação.
O princípio de que a assunção de negociações para a conclusão de
um contrato engendra uma relação obrigacional em sentido amplo sem
deveres primários de prestação concretiza-se em normas sobre a validade
ou a invalidade do contrato e em normas sobre a responsabilidade dos
contraentes.
Em normas sobre a eficácia — sobre a validade ou invalidade — do
contrato: assim, caso a violação de deveres pré-contratuais surja sob a
forma de dolo, de coacção ou de usura, ou sob a forma de uma prática
comercial desconforme à diligência profissional, que distorça ou seja
susceptivel de distorcer de maneira substancial o comportamento eco­
nómico do consumidor, o negócio jurídico é anulável, por aplicação dos
I

68 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA

arts. 253.°-254.°, 255.°-256.° e 282.° do Código Civil ou então dos arts.


5.° e 14.° do Decreto-Lei n.° 57/2008, de 26 de Março.
No dolo, a violação concretiza-se em induzir o declarante em erro,
em encobrir o erro em que o declarante se encontra ou em manter o
erro em que o declarante se encontra (art. 253.°, n.° 1, do Cód. Civ.);
na coacção, em ameaçar ilicitamente o declarante (art. 255.°, n.° 1, do
Cód. Civ.); nos negócios usurários, em explorar uma situação de neces­
sidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza
de carácter (art. 282.°, n.° 1, do Cód. Civ.).
Em normas sobre a responsabilidade dos contraentes: na norma geral do
art. 227.° e nas normas especiais dos arts. 229°, 245.°, 246.° e 908.° - aplicável
à venda de coisas defeituosas por remissão do art. 913.° do Código Civil

II.
O legislador define os casos de responsabilidade dos contraentes
através de uma cláusula geral - contida no art. 227.° do Código Civil
- e define os casos de validade ou de invalidade do contrato através de
uma enumeração.
Os tipos de vícios da vontade descritos na lei são três - e só três
o erro, o dolo e a coacção. O erro, por corresponder a uma perturbação
endógena do processo de formação da vontade do declarante, está des­
ligado da violação de deveres compreendidos na relação pré-contratual;
o dolo e a coacção, por corresponderem a perturbações exógenas, estão
ligados à violação de deveres.
Quando os tipos dolo e coacção sejam insuficientes para a protecção
plena da autonomia privada do declarante contra condutas contrárias à
boa fé do declaratário, põe-se o problema da relação sistemática entre a
norma sobre a conduta dos contraentes contida no art. 227.° e as normas
sobre a validade ou invalidade do contrato contidas nos arts. 253.°-354.°
e nos arts. 254.°-255.°

1 Criticando a relação entre os dois tipos de normas, defendendo a não interferência


das normas de conduta c das normas de validade, Giovanni D’Amico, “Rcgole di validità
e regole di comportamento nella formazionc dcl contralto”, in: Rivista di diritto civile,
2002,1, págs. 37-61.
O DOGMA DA TIPICIDADE DOS VÍCIOS DA VONTADE E O CONTRIBUTO DO
DECRETO-LEI N.” 57/2008, DE 26 DE MARÇO, PARA A SUA SUPERAÇÃO 69

III.
O tipo coacção só abrange a ameaça, esquecendo, p. ex., as condutas
contrárias à boa fé concretizadas no assédio ou na influência indevida.
A Directiva 2005/29/CE, de 11 de Maio de 2005, e o Decreto-Lei
n.° 57/2008, de 26 de Março, sobre as práticas comerciais desleais nas
relações entre os profissionais e os consumidores, consagram o princí­
pio da equiparação entre a coacção, o assédio e a influência indevida
(art. 8.° da Directiva 2005/29/CE, de 11 de Maio de 2005, e art. 11.° do
Decreto-Lei n.° 58/2008).
O Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.° 7/2009, de 12 de
Fevereiro, define assédio como um “ comportamento indesejado, [...]
praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, traba­
lho ou formação profissional, com o objectivo ou o efeito de perturbar
ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade, ou de lhe criar um
ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador”;
a Directiva 2005/29/CE e o Decreto-Lei n.° 57/2008 não o definem, só
o relacionam com um comportamento indesejado do profissional “que
limite ou seja susceptível de de limitar significativamente a liberdade
de escolha ou o comportamento do consumidor em relação a um bem
ou serviço e, por conseguinte, conduz ou é susceptível de conduzir o
consumidor a tomar uma decisão de transacção que não teria tomado
de outro modo”.
Embora não definam o assédio, a Directiva e o Decreto-Lei sobre
as práticas comerciais desleais definem a influência indevida como
“utilização pelo profissional de urna posição de poder para pressionar
o consumidor, mesmo sem recurso ou ameaça de recurso à força física,
de forma que limita significativamente a capacidade de o consumidor
tomar uma decisão esclarecida” [art. 2.°, al. j), da Directiva e art. 3.°, al.
j), do Decreto-Lei n.° 58/2008],
Inexistindo uma disposição legal que expressamente determine a
anulabilidade do contrato - designadamente, do art. 14.° do Decreto-Lei
n.° 58/2008, de 26 de Março -, os arts. 255.° e 256.° do Código Civil
poderão porventura aplicar-se por analogia aos casos de assédio ou
influência indevida!

IV.
O tipo dolo só abrange (em princípio) a indução intencional em erro.
O art. 253.° do Código Civil contrapõe dolo comissivo e dolo omissivo:
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Quanto ao dolo comissivo ou positivo, o art. 253.° abrange condutas


intencionais e condutas não intencionais: a) nas primeiras, nas condutas
intencionais, o deceptor actua com dolo directo ou com dolo necessário
- i.e., actua com a intenção: (i) de induzir alguém em erro, (ii) de enco­
brir o erro em que alguém se encontre ou (iii) de manter o erro em que
alguém se encontre b) nas segundas, nas condutas não intencionais,
o deceptor actua com dolo eventual ou com negligência consciente -
i. e.: actua com a consciência de prosseguir os fins anteriormente indi­
cados. Quanto ao dolo omissivo ou negativo ou negativo, o art. 253.°
abrange, tão-só, condutas intencionais (“dissimulação [...] do erro”) 2 .
A norma de conduta do art. 227.° conflitua com a norma de validade/
/invalidade do art. 253.°: a primeira abrange quer a indução dolosa, quer
a indução negligente em erro; a segunda só abrangeria a indução dolosa.
Entre as propostas para a resolução conflito entre a norma de conduta
do art. 227.° e as normas de validade / invalidade relativas ao dolo do
art. 253.° sobressaem três:
A primeira consiste em corrigir a disciplina jurídica do erro para
atribuir ao declarante o direito potestativo de anulação do contrato sem­
pre que o erro seja causado pela declaratário 3; a segunda, em corrigir
disciplina jurídica do dolo para atribuir ao declarante o direito potestativo
de anulação do contrato sempre que o erro seja culposamente causado
pelo declaratário (seja com dolo, seja com negligência)4; a terceira, em
aplicar as regras da responsabilidade pré-contratual.

2 Cf. Manuel de Andrade, Teoria geral da relaçãojurídica, vol. II, Livraria Almcdina,
Coimbra, 1974 (reimpressão), pág. 262 (em especial, na nota n.° 3); Carlos Alberto da
Mota Pinto / António Pinto Monteiro / Paulo Mota Pinto, Teoria geral do direito civil,
4? ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2005, pág. 526; Luís Alberto Carvalho Fcmandes,
Teoria geral do direito civil, vol. II, 3.a cd., Universidade Católica Editora, Lisboa,
2001, pág. 169.
3 Emst Kramer, anotação ao § 119 do BGB, in: Miinchener Kommentar zum
Burgerliches Gesetzbuch, vol. I (§§1-240), 3.“ cd, C. H. Bcck, Miinchcn, 1993, págs.
907-967 (945-957); Martin Joscf Schcrmaicr, “§§ 116-124. Willensmãngel”, in:
Historisch-kristischer Kommentar zum BGB, vol. 1 (§§ 1-240), J. C. B. Mohr (Paul
Siebcck), Túbingcn, 2003, págs. 401-497 (495-497).
4 Rodolfo Sacco, “11 dolo”, in: Pietro Rcscigno (dir.), Trattato di diritto privato. vol.
10,2.'ed., UTET, Torino, 1995, págs. 197-207; págs. 198-199; Hans-Christoph Grigoleit,
Vorvertragliche Informationshaftung - Vorsatzdogma, Rechtsfolgen, Schranken, C. H.
Bcck, Miinchcn, 1997; “Rcformperspcktiven der vorvertraglichcn Informationshaftung”, in:
Rcincr Schulze / Hans Schulte Nõlkc (org.), Die Schuldrechtsreform vor dem Hintergnmd
des Gemeinschaftsrechts, J. C. B. Mohr (Paul Sicbeck), Ttibingcn, 2001, págs. 269-294.
O DOGMA DA TIPICIDADE DOS VÍCIOS DA VONTADE E O CONTRIBUTO DO
DECRETO-LEI N “ 57/2008, DE 26 DE MARÇO. PARA A SUA SUPERAÇÃO 71

O lesado (deceptus) teria um direito de destratação ou de desvincu­


lação do contrato: a comunicação de elementos incorrectos ou inexactos
constitui o lesante (deceptor) no dever de indemnizar, com fundamento
na inobservância de deveres pré-contratuais; o dever de indemnizar há-de
em regra assumir a forma de um dever de reconstituir uma situação
hipotética - de um dever de reconstituir a “situação que existiria, se não
se tivesse verificado o evento que obriga à reparação” (reconstituição
natural: arts. 562.° e 566.°, n.° 1, do Cód. Civ.) ora, se o erro fosse
essencial, a “situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento
que obriga à reparação”, seria a da não conclusão do contrato 5; pelo que
os contraentes devem dispor de um direito de desvinculação do contrato
fundado nos princípios e nas regras sobre o dever de indemnizar 6.
O acórdão da Corte di Cassazione italiana de 29 de Setembro de 2005
(n.° 19 024) contém uma quarta proposta: o lesado teria a faculdade de
optar por uma de duas soluções — por pedir a adaptação ou modificação
do contrato (atribuindo-lhe o conteúdo que teria se não tivesse sido
infringido o dever de boa fé) ou por pedir a resolução do contrato nos
termos dos arts. 1453.° ss. do Código Civil italiano (correspondentes aos
arts. 801.° e 802.° do Código Civil português)7.
O problema engendrado pelo tipo coacção dos arts. 255.° e 256.° é em
tudo semelhante ao problema suscitado pelo tipo dolo dos arts. 253.° e 254.°:
Inexistindo uma disposição legal que expressamente determine a anu-
labilidade do contrato, os arts. 253.° e 254.° do Código Civil poderão por­
ventura aplicar-se por analogia aos casos de indução negligente em erro?

V.
A relação sistemática entre as normas sobre a conduta dos contraentes
do art. 227,° e as normas sobre a validade ou invalidade do contrato dos

5 Jorge Ferreira Sinde Monteiro, Responsabilidade por conselhos, recomendações


ou informações, Livraria Alinedina, Coimbra, 1989, págs. 355-384; Eva Sónia Moreira
da Silva, Da responsabilidade pré-contratual por violação dos deveres de informação.
Livraria Almcdina, Coimbra, 2003, esp. nas págs. 227-244
6 Sobre a doutrina e a jurisprudência alemãs em tema de indução negligente em erro,
vide Holger Flcischer, “Konkurrcnzprobleme um dic culpa in contrahendo: Fahrlãssigc
Irrefuhrung versus arglistigc Tãuschung”, in: Archiv jur die civilistiche Praxis, vol. 200
(2000), págs. 91-120; Idem, Informationsasymmetrie im Vertragsrecht, C. H. Beck,
Miinchen, 2001.
7 Sobre a jurisprudência da Corte di Cassazione, vide Giovanni Meruzzi, “La res-
ponsabilità prccontrattuale tra regole di validità c rcgolc di condotta”, in: Contralto e
inipresa, Julho-Outubro de 2006, págs. 944-976.
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arts. 253.°-254.° e 255.°-256.° exige uma resposta afirmativa às duas


questões:
a) A aplicação das normas dos arts. 255.° e 256.° aos casos de assédio e
de influência indevida apoia-se em argumentos sistemáticos e teleológicos.
Os casos de coacção, de assédio e de influência indevida são casos
análogos: as razões justificativas da regulamentação do caso previsto nos
arts. 255.° e 256.° do Código Civil - do caso da coacção - procedem
para os casos não previstos nos dois artigos - para os casos de assédio
e de influência indevida.
b) O argumento da analogia entre os três tipos de casos é confirmado
- logo, reforçado - pela interpretação das leis em conformidade com a
constituição.
O princípio da autonomia privada, como princípio de direito consti­
tucional, implica um dever de protecção das pessoas que concluem um
contrato desvantajoso por causa de uma perturbação da sua possibilidade
fáctica de autodeterminação - p. ex., por causa de assédio ou de influ­
ência indevida -:
“a autonomia privada - constitucionalmente protegida - não pode ser entendida
apenas num sentido formal, mas antes também materialmente e [...], portanto,
uma concreta parte pode carecer, em determinadas condições, de ser protegida
perante a vinculação a um contrato que lhe é desvantajoso, na medida em que,
por ocasião da sua conclusão, estivesse consideravelmente afectada a sua pos­
sibilidade fáctica de auto-determinação, no exercício da autonomia privada” 8.
Inspirando-se na analogia entre os três tipos de situações, o art.
8.° da Directiva 2005/29/CE, de 11 de Maio de 2005, e o art. 11.° do
Decreto-Lei n.° 57/2008, de 26 de Março, sobre as práticas comerciais
desleais, consagram a regra da equiparação entre a coacção, o assédio
e a influência indevida. O problema é tão-só o de averiguar se a regra
da equiparação deve restringir-se ao direito do consumo ou estender-se
a todo o direito privado - seja a todo o direito privado geral ou comum
(ao direito civil), seja aos direitos privados especiais (designadamente,
ao direito comercial e ao direito do trabalho9).

8 Claus-Wilhelm Canaris, Direitos fundamentais e direito privado (título original:


Grundrechte und Privatrecht), Livraria Almcdina, Coimbra, 2003, pág. 73.
’ Sobre a aplicação, por analogia, das regras sobre a coacção aos casos de rescisão
de contratos de trabalho determinada por assédio ou mobbing, vide Júlio Gomes, Direito
do trabalho, vol. 1 - Relações individuais de trabalho, Coimbra Editora, Coimbra, 2007,
pág. 441.
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Entre os dois termos da alternativa, pensamos que deve dar-se pre­


ferência ao segundo.
c) A aplicação das normas dos arts. 253.° e 254.° aos casos de indu­
ção negligente em erro apoia-se sobretudo em argumentos teleológicos.
Quanto ao dolo comissivo ou positivo, o art. 253.° só abrange condutas
dolosas (em que o deceptor actua com dolo directo, necessário ou even­
tual) e condutas não dolosas em que o deceptor actua com negligência
consciente.
Entre a negligência consciente e a negligência inconsciente, não há
nenhuma diferença capaz de explicar e/ou de justificar que o art. 253.°
se aplique no primeiro caso e não se aplique no segundo: na negligência
consciente, o agente apercebe-se da possibilidade de induzir em erro o
declarante; na negligência inconsciente, o agente não se apercebe dessa
possibilidade por culpa sua, e só por culpa sua', ora, como o agente não
deve ser beneficiado por ter actuado com culpa, o arts. 253.° deve aplicar-
-se directamente aos casos de dolo (dolo directo, necessário ou eventual)
e de negligência consciente e deve aplicar-se indirectamente — ou seja,
por analogia — aos casos de negligência inconsciente.
Quanto ao dolo omissivo ou negativo, o (texto do) art. 253.° só abrange
as condutas intencionais. Os argumentos sistemáticos e teleológicos em
favor da ampliação do conceito devem prevalecer sobre os argumentos
textuais: o intérprete deverá corrigir o art. 253.°, através de uma extensão
teleológica; deverá alargar o alcance do conceito de dolo negativo ou
omissivo de forma a abranger os casos em que o declaratário desconhece,
com culpa sua, o erro do declarante.
Os argumentos convocados nos parágrafos precedentes são reforçados
pelos arts. 892.° e 898.° e pelo art. 908.° do Código Civil, sobre a compra
e venda de bens alheios e sobre a compra e venda de bens onerados,
respectivamente10.
Sónia Moreira critica-nos a afirmação de que o art. 253.° do Código
Civil se aplica directamente (por interpretação declarativa ou por inter­
pretação extensiva) aos casos em que o deceptor actua com negligência

10 Cf. Nuno Manuel Pinto Oliveira, “O conceito de dolo dos arts. 892.° e 908.“ do
Código Civil”, in: Nos vinte anos do Código das Sociedades Comerciais. Estados em
homenagem aos Professores Doutores António Ferrer Correia, Vasco da Gama Lobo
Xavier e Orlando de Carvalho', vol. 111 - Pária. Coimbra Editora, Coimbra, 2007, págs.
725-740.
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consciente. Os casos de dolo - directo, necessário ou eventual - caberiam


na previsão do art. 253.°; os casos de negligência (consciente), não".
Os seus argumentos não conseguem convencer-nos. O art. 253.° diz
que dolo é “qualquer sugestão ou artificio que alguém empregue com
a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da
declaração”. O critério decisivo para apreciar o valor ou o desvalor da
crítica pode resumir-se nos seguintes termos: a expressão consciência de
induzir em erro deverá interpretar-se de forma a abranger a consciência
da possibilidade de induzir em errol
Os termos da alternativa são dois - e só dois: Caso se considere que
o art. 253.° pressupõe a consciência de uma indução em erro actual, só
haverá dolo, como vicio da vontade, se o erro do deceptus for provocado
com dolo directo ou com dolo necessário. Caso se entenda que o art.
253.° só pressupõe a consciência de uma indução em erro potencial — caso
se entenda que o art. 253.° só pressupõe a consciência da possibilidade
de induzir em erro haverá dolo, como vicio da vontade, se o erro do
deceptus for provocado com dolo eventual ou com negligência consciente.
Se os argumentos textuais são inconclusivos, porque compatíveis com
as duas interpretações, os argumentos sistemáticos e teleológicos são
inequívocos. O art. 253.° só pressupõe a consciência da possibilidade de
induzir em erro - logo, há dolo, como vício da vontade, nos casos em que
haja dolo, como forma de culpa, ou em que haja negligência consciente.

VI.

O raciocínio desenvolvido para explicar a aplicação das regras dos


arts. 253.° e 254.° aos casos de indução negligente em erro ou das regras
dos arts. 255.° e 256.° aos casos de assédio e de influência indevida, con­
corre para a construção de um princípio: toda a declaração de vontade
negociai determinada por uma conduta do declaratário contrária à boa
fé é - e deve ser - anulável *2.
a) Quando uma declaração de vontade é determinada por uma con­
duta contrária à boa fé do declaratário, o declarante tem o direito de se
desvincular.
i
11 Eva Sónia Moreira da Silva, As relações entre a responsabilidade pré-contratual
por informações e os vícios da vontade (erro e dolo): o caso da indução negligente em
erro, Braga, 2008.
12 Horst Eidcnmúller, “Exerting pressure in contractual ncgotiations”, in: European
Review of Contract Law, vol. 3 (2007), n.° 1, págs. 21-40 (39).
O DOGMA DA T1PICIDADE DOS VÍCIOS DA VONTADE E O CONTRIBUTO DO
DECRETO-LEI N.° 57/2008, DE 26 DE MARÇO, PARA A SUA SUPERAÇÃO 75

O declaratário tem o dever jurídico de indemnizar o declarante, por


aplicação do princípio do art. 227.° do Código Civil; a indemnização
em espécie tem prioridade sobre a indemnização em dinheiro; ora,
a indemnização em espécie dos danos decorrentes da vinculação a um
contrato determinado por uma conduta contrária à boa fé consiste na
desvinculação do declarante.
b) Nas relações entre o declarante e o declaratário, os efeitos da
anulação aproximam-se dos efeitos da desvinculação do contrato, sob
a forma de indemnização em espécie do dano da conclusão de um con­
trato indesejado.
Quem conclui um contrato indesejado por causa de assédio ou de
influência indevida, p. ex., terá o direito de se desvincular, através da
aplicação coordenada dos princípios dos arts. 227.° e 566.°, n.° 1, do
Código Civil.
Nas relações com terceiros — p. ex., com terceiros subadquirentes
— os efeitos da anulação distanciam-se dos efeitos da desvinculação
do contrato: A anulação tem efeitos em relação a terceiros (art. 289.°
do Cód. Civ.); a desvinculação, sob a forma de uma indemnização em
espécie, não os tem.
Os arts. 251.°-252.°, 253.°-254.° e 255.°-256.°, em ligação com o art.
289.° do Código Civil, consagram implicitamente o princípio de que a
liberdade do declarante deve prevalecer sobre a segurança do declara­
tário e de terceiros. Existindo uma perturbação grave da possibilidade
fáctica de autodeterminação - como existe, p. ex., nos casos de assédio,
de indução em erro ou de influência indevida —, o princípio em causa
pode e deve aplicar-se.
c) Os argumentos expostos nos parágrafos precedentes implicam que
a afirmação de que, quando uma declaração de vontade é determinada
por uma conduta contrária à boa fé do declaratário, o declarante tem
o direito de se desvincular deva explicitar-se dizendo que o declarante
tem o direito de a anular.
Quem conclui um contrato indesejado por causa de assédio ou de
influência indevida, p. ex., terá o direito de se desvincular, anulando-o.
Os arts. 5.° e 14.° do Decreto-Lei n.° 57/2008, de 26 de Março,
consagrando a regra da anulabilidade dos contratos determinados por
uma conduta desconforme à diligência profissional que distorça ou
seja susceptivel de distorcer de maneira substancial o comportamento
económico do consumidor, devem interpretar-se como afloramentos de
um princípio de direito civil.

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