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Capítulo 21

O modelo de seleção por conseqüências e a


subjetividade
Amélia PicA bib Atuicry
ÍX /C A P

/
E difícil definir o momento, na obra de Skinner, em que ele formula a 'noção' de
seleção por conseqüências. A influência darwiniana sobre Skinner se torna patente com a
formulação desta noção que, entretanto, de certo modo sempre esteve presente em sua
obra, a ponto de Skinner se referir à evolução para explicar, já na década de 30, o
condicionamento respondente e operante (Skinner, 1935). Do mesmo modo, a própria
postulação do comportamento operante traz a marca da conseqüência enquanto modo
causai. Além disto, Skinner já parecia supor, de alguma maneira, uma tríplice determinação
do comportamento desde o final da década de 40 e, certamente, em Science and Human
Behavior (1953). Ali, aparecem estas duas marcas: a influência da Teoria da Evolução
darwiniana e os primórdios do que viria a ser a proposta de uma determinação do
comportamento em três níveis. Assim, por exemplo, para responder por que os reforçadores
reforçam, Skinner se remete à evolução, para responder por que somos submetidos a
condicionamento operante, mais uma vez temos que nos voltar à evolução. Mas o que há
de novo neste período é que aí Skinner já aponta a necessidade de se considerar, de

'E sta ó um a versão preliminar, ainda por ser revista, de trabalho apresontado om 1993.

Sobrr comporlimento r coflnlç.lo 1 9 9


maneira especial, a cultura como determinante do comportamento, quando define
comportamento social e discute o controle social, especialmente através das agências
controladoras. Pode-se dizer que algumas das bases para o modelo de seleção por
conseqüências estavam dadas, na obra de Skinner, pelo menos desde a década de 50, no
sentido de que certamente o operante é um conceito que envolvo, de maneira central, o
controle do comportamento através de suas conseqüências e de que o comportamento
humano precisa ser explicado através da interação de variáveis que são filogenéticas,
ontogenéticas e culturais.
É inegável, porém, que o papel que parece ter adquirido o modelo de seleção por
conseqüências, como conceito articulador em sua obra, é algo lentamente construído e
que só aparece com plenitude nos seus escritos a partir do final da década de 70. Fazendo
um corte que certamente é arbitrário, podemos considerar o artigo Seleção por
Conseqüências (1981) como um marco, aqui.
Mesmo então, este não é um conceito que estava completamente estabelecido.
Assim, há diferenças no modo de tratamento e interpretação nos vários artigos (por exemplo,
1981,1989), ainda que sutis, sugerindo tratar-se de um tema em elaboração. Entretanto,
parece que o modelo de seleção por conseqüências é de extrema importância conceituai
na obra de Skinner, e eu arriscaria até dizer que com ele Skinner introduz uma marca
revolucionária em seu sistema, do tipo que já havia feito antes com a noção de
comportamento operante, com a noção de comportamento verbal e com a noção de tríplice
contingência.
O que afinal Skinner propõe e por que é tão importante? A resposta a esta questão
não é única: o modelo de seleção por conseqüências é importante porque definitivamente
separa Skinner do mecanicismo. A causalidade deixa de ser descrita em termos
mecanicistas de um efeito para uma causa. Enquanto modelo de causalidade, a seleção
por conseqüências opera sobre variações pequenas e aleatórias que, por se mostrarem
adaptativas, são selecionadas e reproduzidas.
O modelo de seleção por conseqüências também é importante porque define o
ambientalismo skinneriano: a adaptação das espécies, do comportamento individual e
das práticas sociais ao ambiente, passa a ser referida a um mecanismo causai quo coloca
nas conseqüências e na sobrevivência a ênfase, afastando Skinner de uma visão do
ambiente como simples detonador e modulando, portanto, sua proposta de controle. Dirá
Skinner que exatamente porque seres vivos não são máquinas, o que podemos fazer é
operar sobre variações, mas que ainda teremos que esperar pela seleção para que estas
variações sejam ou não selecionadas (Skinner, 1987).

Finalmente, o modelo de seleção por conseqüências permite a Skinner


definitivamente resolver o problema da teleologia: é através deste modelo que se esclarece
a aparente finalidade das mudanças comportamentais: é através dele que se esclarece
que o ambiente opera como um selecionador e não como um indicador da direção a ser
seguida por uma espécie, um indivíduo, ou uma cultura.
Mas o modelo de seleção por conseqüências é importante também porque resgata
à teoria skinneriana uma unidade conceituai que desde sempre foi almejada. A partir de
sua formulação, Skinner poderia afirmar a generalidade das leis comportamentais em
relação a todas as espécies, a um só tempo afirmando o comportamento humano como

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regido pelas mesmas leis e princípios e como especial. O comportamento humano, como
o de qualquer outra espécie, passa a ser explicado por um só modelo causai, mas ao
mesmo tempo, torna-se possível considerar as diferenças entre diferentes espécies e
diferentes comportamentos e, ao mesmo tempo, resgatar sua unidade e as interações
entre níveis de determinação ató então potencialmente separados.
A perspectiva de uma ciência abrangente do comportamento humano, que já teria
unidade metodológica e epistemológica, em seus vários níveis, podo ser concretizada de
uma maneira mais importante a partir do modelo de seleção por conseqüências que
empresta a esta ciência unidade a partir de seu modelo causai. O que torna o comportamento
uma coisa a ser estudada de um só ponto de vista, não importa se filogenético (instintivo,
não aprendido, incondicionado, típico da espécie), individual ou cultural é que o mesmo
modelo causai opera em todos os eventos comportamentais. E, também importante, este
modelo opera de forma tal que é possível interpretar qualquer evento como sendo realmente
multideterminado, mas com uma determinação que não é mecânica. Os mesmos princípios
- reprodução (com erro) / variação e seleção - podem e devem ser usados na descrição
de todo comportamento, de outras espécies e da espécie humana.
Partindo do suposto de que todo ser vivo evoluiu enquanto espécie através do
processo descrito por Darwin como seleção natural, Skinner propõe o seu modelo de
seleção por conseqüências.
Para Darwin, ao se reproduzir, os seres vivos transmitem aos seus descendentes
um conjunto de características que, entretanto, apresentam sempre alguma variação
aleatória em relação aos seus progenitores. A reprodução garante a sobrevivência da
espécie desde que o ambiente permaneça estável. As variações, que habilitam de maneira
diferente aqueles membros que as carregam, são importantes no caso de mudanças no
ambiente que exigem então novas habilidades dos indivíduos. Quando estas mudanças
ocorrem, aqueles indivíduos quo possuem as características mais adaptadas à sobrevivência
nas novas condições são selecionados, isto é, sobrevivem, e se reproduzem transmitindo,
a longo prazo, estas mudanças para toda a espécie. Indivíduos, sobre os quais a seleção
opera, são selecionados quando acontecem de ter sido reproduzidos com a variação que,
então, com uma mudança ambiental, se mostra adaptativa. Com esse processo, espécies
se adaptam, transformando-se, complexificando-se e sobrevivem, ou não se adaptam e
perecem. A evolução é, portanto, um mecanismo de seleção: são, como as chama Skinner,
contingências de seleção natural que operam sobre variações aleatórias que ocorrem em
membros de uma dada espécie, levando, como resultado, à sobrevivência (ou não) da
espécie (Skinner, 1981).
A evolução, que opera sobre indivíduos, mas que seleciona espécies, também
atua sobre os repertórios comportamentais, necessários para a interação dos indivíduos
com o ambiente. Quando Skinner fala do que chama primeiro nível de seleção por
conseqüências - as contingências de seleção natural - como Darwin, refere-se às
características dos membros de uma espécie e a padrões comportamentais que seriam
selecionados segundo os mesmos mecanismos. Dizer, portanto, que a evolução seleciona
características dos indivíduos de uma espécie significa dizer que ela atua também sobre
padrões de comportamento e modos de operação destes padrões. O processo de seleção
atua sobre padrões que, uma vez selecionados, dotam os membros de uma espécie de
repertórios comportamentais que lhes permitem comportar-se no mundo - interagir com o

Sobre comport.imento e co^niçilo 2 0 1


ambiente - e garantir a sobrevivência da espécie, desde que o ambiente não mude muito.
O que significa dizer que nas espécies, ao lado de suas características fisiológicas,
anatômicas, morfológicas, evoluem também comportamentos específicos de espécies.
São estes repertórios, moldados portanto por seu valor de sobrevivência para a espécie,
que possibilitam as trocas necessárias do indivíduo com o ambiente. O problema dos
comportamentos e repertórios assim selecionados, lembra Skinner, é que estes são
repertórios adaptados desde que o ambiente se mantenha razoavelmente idêntico àquele
existente quando da sua seleção2.
O condicionamento respondente, enquanto nova forma de interação organismo-
ambiente, teria surgido a partir de pequenas variações em relação a respostas específicas
de espécie, presumivelmente, em primeiro lugar respostas a estímulos aversivos (Skinner,
1987). Com o condicionamento respondente, indivíduos podem passar a reagir a um mundo
em mudança com respostas que antes só seriam possíveis em condições preestabelecidas,
permitindo que uma nova parcela do mundo se torne significativa. Isso quer dizer que os
organismos passam a ser capazes de responder, ainda que com as mesmas respostas,
a estímulos que antes não podiam, aumentando assim a sua possibilidade de adaptação
ao ambiente. Entretanto, os reflexos condicionados só mantêm seu valor de sobrevivência
se forem acompanhados dos reflexos incondicionados com que foram pareados, o que
exige uma certa ‘ordenação’ do ambiente, por assim dizer: reflexos condicionados, enquanto
modo de aquisição de repertórios, só são adaptativos se os estímulos condicionados
sistematicamente forem pareados no mundo com os estímulos incondicionados.
Após estas mudanças, mais uma vez através de pequenas variações que de
início poderiam ter sido redundantes em termos de sobrevivência, em relação aos
mecanismos comportamentais em efeito para uma determinada espécie, as espécies
desenvolvem uma suscetibilidade ao reforçamento e um repertório não comprometido com
padrões típicos da espécie ou com padrões eliciados, que podem ser condicionados à
maneira operante. Estabelece-se assim uma possibilidade inteiramente nova de responder
a um mundo em mudanças. Indivíduos suscetíveis ao reforçamento operante podem aprender
respostas que não estão preparadas filogeneticamente, e um parcela muito maior do
mundo pode se tornar significativa para eles.
Aqui se estabelece, segundo Skinner, um segundo tipo de seleção por
conseqüências. Este novo modo de seleção por conseqüências permite que membros
individuais de uma espécie sejam capazes de operar sobre o mundo de modos que não
estão pré-determinados, e também, que esta operação seja na direção agora não mais da
sobrevivência da espécie, mas da aquisição de comportamento individual que permite a
obtenção de conseqüências que são importantes para o indivíduo durante sua vida particular.

3 Ao discutir os procossos com portam entais controlados pelas contingências de seloçfio natural, Skinner
aborda o com p o rta m e n to Im itatlvo. S ugere que pequenas variações no m odo com o se com portam os
indivíduos de uma espécie surgem , do início, redundantes à seleção de com portam entos característicos das
ospócios, porm itindo aos Indivíduos m em bros se tornarem suscetíveis à im itaçõo o à m odelaçflo Embora
ostos sejam processos ainda controlados por contingências de seleção filogenóticas, oles perm item aos
m em bros de espócies suscetíveis a eles beneficiarem -se de reações ao am biente de outros m em bros da
espécie, tornando-so assim um processo com portam ental selecionado filogeneticam ente

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Comportamentos passam a ser controlados por suas conseqüências imediatas e são
selecionados por conta dessas conseqüências, em termos de fortalecimento para o
repertório comportamental de indivíduos e não mais de espécies. Mais uma vez, são as
conseqüências que operam como modo causai; entretanto, não são mais as conseqüências
filogenóticas de sobrevivência da espécie, mas conseqüências ontogenéticas de
fortalecimento do comportamento individual. É produto deste processo evolucionário a
suscetibilidade ao reforçamento pelas conseqüências imediatas do comportamento.
A evolução teria operado, assim, de modo que o comportamento que de início
seria selecionado apenas através das conseqüências para a sobrevivência da espécie
como um todo passasse a ficar sob controle de um novo nível de seleção por conseqüências:
o reforçamento (fortalecimento) do comportamento dos indivíduos. As contingências
operantes de seleção permitem aos indivíduos que se tornam suscetíveis a este tipo de
condicionamento uma flexibilidade e adaptabilidade ao ambiente que os torna muito mais
capazes de sobreviver em ambientes constantemente em mudança. Por seu lado, este
mesmo tipo de contingência de seleção certamente acelera, pela própria ação dos indivíduos
e espécies suscetíveis de condicionamento operante, as mudanças ambientais. As trocas
entre indivíduos e ambientes tornam-se maiores e mais intensas provocando, por seu
turno, enormes mudanças em ambos. Também conseqüência deste processo evolucionário
mais rapidamente adaptativo, o condicionamento operante tende a se tornar mais
preponderante, de modo que parcelas cada vez maiores do repertório dos indivíduos tendem
a se colocar sob controle operante. O surgimento do segundo nível de controle pelas
conseqüências põe em cena, por assim dizer, um indivíduo mais maleável, capaz de
responder a um ambiente que muda durante sua vida de maneiras inteiramente novas e
inesperadas, e põe em cena um indivíduo que, pela primeira vez na evolução, é controlado
pelas conseqüências de seu comportamento individual. O condicionamento operante
também torna possível aos indivíduos de uma espécie adaptarem-se a mudanças ambientais
que até então certamente poderiam levar à extinção da espécie. A história individual,
enquanto história comportamental, só se torna possível a partir deste passo evolucionário.
A seleção não opera mais sobre a sobrevivência da espécie, mas sobre o comportamento
do indivíduo, é comportamento que passa a ser selecionado - fortalecido ou enfraquecido
através de reforçamento. A contingência selecionadora não mais é a sobrevivência da
espécie, mas o comportamento individual. Não mais o organismo, mas o comportamento,
o operante, torna-se o foco sobre o qual opera a seleção.
Isso certamente nos leva a supor que a noção de individuação só se torna
ontologicamente possível a partir do segundo nível de seleção por conseqüências. Apenas
através do condicionamento operante os diferentes indivíduos de uma espécie podem
passar a desenvolver repertórios que são adaptados a sua história individual, o que vale
dizer, à sua interrelação particular com o ambiente. Assim, cada indivíduo de uma espécie,
descontados os limites filogenéticos, passa a ser um indivíduo no sentido de possuir um
repertório de comportamentos que é sempre necessariamente diferente dos outros membros
de sua espécie.

Sobre comportamento e cogniçilo 2 0 3


Certamente, tanto nos níveis um (seleção natural, sobrevivência da espécie), como
dois (contingências de reforçamento, seleção de comportamento operante), certas formas
de interação entre indivíduos, membros de uma mesma espécie, são importantes para a
manutenção e a aprendizagem de comportamentos relevantes para a espécie e para o
indivíduo. Daí, e da evolução fisiológica de um certo aparato (segundo Skinner, a faringe e
as cordas vocais), surge um terceiro tipo de comportamento que é de suma importância -
o comportamento social propriamente dito. A partir da possibilidade de que o comportamento
de um indivíduo seja mediado pelo comportamento de outro indivíduo e seja reforçado por
esta mediação, surge a possibilidade de imitação e modelação, agora controladas por
reforçamento operante, ou melhor, pelas conseqüências do comportamento sobre o indivíduo
e, finalmente, o comportamento verbal. O que a imitação e a modelação permitem é uma
espécie de encurtamento da aprendizagem, que pode agora ser feita através do mostrar e
fazer, como diz Skinner. Membros da espécie podem se beneficiar do comportamento
aprendido por outros membros da espécie. Esta tendência de ser reforçado por imitação e
modelação constrói uma tendência para imitar e copiar modelos que também prepara para
o passo evolucionário mais importante, pelo menos enquanto especificidade, da espécie
humana; o surgimento de comportamento verbal.
Com o aparecimento do comportamento social e especialmente com o
comportamento verbal, torna-se possível que o comportamento de um indivíduo seja efetivo,
ainda que não entre em relação mecânica com o ambiente. O comportamento verbal
permite mais do que mostrar e fazer, permite um mostrar e fazer que leva os indivíduos a
fazerem pelo outro. Uma parcela muitíssimo maior do mundo pode então passar a ser
significativa para os indivíduos. Essa característica, entretanto, leva à evolução de um
novo modo de controle das conseqüências sobre o comportamento: a seleção de práticas
culturais. O que significa dizer que os homens, capazes de comportamento verbal, tornam-
se suscetíveis a um novo modo de seleção por conseqüências: a seleção que atua sobre
práticas culturais - práticas embasadas em reforçamento social, práticas que dependem
da participação de mais de um indivíduo - selecionando aquelas práticas que permitem a
sua própria sobrevivência e a do grupo praticante. Os mecanismos que operam sobre
cada indivíduo praticante são os de condicionamento operante; entretanto, o critério que
permite a manutenção ou não das práticas é a sobrevivência do grupo praticante. Isso traz
uma nova maneira de ação sobre o mundo. Uma ação que permite que parcelas não
existentes do mundo para os indivíduos possam passar a ter significação para eles e,
mais importante talvez, que os indivíduos passem a independer do suas experiências
diretas com o mundo para enfrentar o ambiente. Por seu turno, a seleção das práticas que
se reproduzem em cada indivíduo se dão no grupo praticante. O homem passa a ser
capaz de lidar com, de se comportar, de adquirir repertórios transmitidos socialmente.
Além de poder interagir com o mundo de certo modo libertos de suas relações mecânicas,
os homens passam a ser capazes de se beneficiar de interações que nem sequer foram
vividas ou presenciadas por eles. A experiência do mundo, a aquisição do novos repertórios
não mais depende da história de vida individual.
A cultura, que emerge com o terceiro nível do seleção por conseqüências - definida
por Skinner como o conjunto das contingências sociais -, permite não apenas a

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sobrevivência de um grupo praticante, mas certamente torna este um grupo especial: um
grupo capaz de transmitir o que (oi aprendido através do tempo, através de indivíduos e até
mesmo através de lugares. A cultura permite uma certa atemporalidade da experiência no
sentido de que permite que o mundo seja conhecido através da experiência de outros, que
nem sequer precisam estar presentes fisicamente. Isso traz à espécie humana um nova
capacidade de adaptação ao meio ambiente, uma adaptação que começa libertando o
indivíduo do contato direto com o mundo mecânico na obtenção de seus reforçadores e
que termina - hoje - por tornar este contato uma necessidade urgente. As práticas culturais,
selecionadas por sua capacidade em tornar sobreviventes os grupos praticantes, são, é
certo, produzidas e reproduzidas pelos indivíduos através de mecanismos de reforçamento
social, mas permitem ao ser humano uma abrangência em sua ação que é única, ao
mesmo tempo que o submete de maneira indissolúvel ao grupo.
Ao postular o modelo de seleção por conseqüências, portanto, Skinner aborda o
comportamento humano como um produto de três níveis de seleção por conseqüências.
O comportamento humano, especialmente o comportamento tipicamente humano, só
pode ser compreendido em termos da ação de cada um destes níveis e especialmente de
sua interação. Os padrões comportamentais complexos - aqueles que constroem os
indivíduos e as culturas nas quais vivemos - estão necessariamente vinculados, portanto,
a nossa história natural e pessoal, mas estão também determinados pelas práticas culturais
que são em última instância selecionadas por seu efeito sobre o grupo e não sobre o
índivíduo. A análise experimental do comportamento, assim, pode continuar, e deve, sendo
compreendida como aquele campo do saber que se ocupa de compreender comportamento
dos indivíduos, mas não o fará se não considerar a cultura, se não considerar os efeitos
das práticas culturais sobre o grupo como parâmetro para considerá-las em relação aos
indivíduos.
E é apenas através da cultura que um outro contato importante pode ser feito
entre o indivíduo e o ambiente: o comportamento verbal permite que os indivíduos passem
a ter um acesso a uma parte importante do mundo: o mundo privado. Embora o
condicionamento operante prepare o indivíduo para o contato com o mundo dentro de sua
pele, no sentido de que torna cada indivíduo único e singular, produto de uma história
ambiental particular, é, certamente, através do comportamento verbal que este contato
pode efetivamente ser realizado. É a cultura que permite o autoconhecimento e o
autogoverno como modos de preparar os indivíduos a atuarem socialmente e como modo
de garantir a reprodução de práticas culturais. É através da comunidade verbal que se
constrói uma parte importante do repertório dos seres humanos: sua subjetividade. Se o
condicionamento operante permite a individuação, permite a construção, para cada indivíduo
de uma espécie, ainda que dentro de certos parâmetros, através de uma história de
interação com o ambiente particular, de uma singularidade que não pode ser idêntica a
qualquer outra. O conhecimento desta individualidade e a conseqüente reação a ela, na
forma de comportamento operante, de autoconhecimento e de autogoverno só é possível
com a emergência do comportamento verbal e seu conseqüente e necessário resultado: a
evolução de ambientes sociais - em uma palavra, a cultura.

Sobre comportamento e coRnlçdo 205


Sem o terceiro nível de seleção por conseqüências, ó impossível, por assim dizer,
discutir-se a construção da subjetividade. E sem compreender a cultura, as práticas
culturais, as contingências sociais em efeito na vida de cada indivíduo, é difícil entender a
subjetividade, que é sempre, deste ponto de vista, estritamente social. A nossa subjetividade,
por paradoxal que pareça, talvez seja a mais social de todas as características humanas.
É paradoxal, porque apenas através de correlatos outros a conhecem, e porque o próprio
ato de torná-la pública em certo sentido a desfaz; entretanto sem o acompanhamento
público, sem a modelagem e o reforçamento social, o comportamento verbal e a cultura,
não podemos sequer falar dela. Mais ainda, as contingências responsáveis pela construção
da subjetividade não são sequer um conjunto de contingências que modelam o
comportamento operante no sentido mais estrito do termo; são sim, um conjunto de
contingências que só permanecem em efeito por suas conseqüências em termos da
sobrevivência do grupo praticante. Não se pode, portanto, compreender a subjetividade
como mero conjunto de resultados de interações entre indivíduos, uma vez que estas
interações são mediadas pela comunidade verbal, uma comunidade que mantém um
conjunto de práticas por suas conseqüências para o grupo.
As conseqüências de compreender a subjetividade como fenômeno que é produzido
não apenas dentro do modelo de seleção por conseqüências, mas que está essencialmente
vinculado ao terceiro nível de seleção, nos remetem, em primeiro lugar, para o
reconhecimento do fato de que talvez a subjetividade aparentemente tão absolutamente
individual e singular só sobreviva enquanto puder ser também social e diretamente ligada
à sobrevivência do grupo social. Em segundo lugar, e isso é especialmente relevante aqui,
para Skinner, pelo menos uma parcela importante do que temos reconhecic|p como
subjetividade - o self - é produto da evolução das culturas. E Skinner então afirma que
enquanto podemos descrever uma pessoa como "um repertório de comportamentos", o
selfé "um conjunto de estados internos acompanhantes, <que> é observado apenas
através de sentimento ou introspecção", ou ainda, que "o selfé como uma pessoa se
sente” (Skinner, 1989, p.28). Tanto é assim que, neste mesmo artigo, Skinner prossegue
analisando como contingências verbais e sociais, então construiriam a auto-observação,
a auto-estima, o self responsável, a autoconfiança e a relação entre selfe mente. Isso
significaria, me parece, que a partir do modelo de seleção por conseqüências, o fenômeno
da subjetividade, a sua construção, do ponto de vista behaviorista radical, deverá envolver
necessariamente a compreensão de como se articulam indivíduo e cultura e, mais ainda,
quais são, porque e como operam as contingências sociais que caracterizam a cultura na
qual vivemos.
Se voltarmos ao modo como evoluiu o comportamento operante, temos que
atentar para o que Skinner chama a atenção, em artigo publicado em 1985. Ali, Skinner
afirma que o reforçamento, na realidade, atua de duas maneiras (pelo próprio modo
como evoluiu enquanto modo de inter-relação organismo-ambiente): como evento que
imediatamente dá prazer - e está ligado à questão do drive - e como evento que fortalece
o comportamento tornando-o mais provável no futuro. Skinner chama a atenção para o
fato de que o reforçamento, enquanto conseqüência imediata do comportamento tem
um efeito de prazer (produto da própria suscetibilidade ao reforço) - assim, quando
agimos de um dado modo o fazemos pelo prazer e não necessariamente por uma
tendência maior para nos comportarmos. Mas o reforçamento tem também um papel

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fortalecedor sobre o comportamento, muito mais importante em termos evolucionários, e
que não é concomitante com o seu outro efeito - assim, quando sentimos uma tendência
para nos comportarmos de determinado modo, não necessariamente sentimos o que
havíamos sentido quando, ao nos comportarmos anteriormente, obtivemos reforçamento.
O papel fortalecedor do reforçamento é mais importante em termos de sobrevivência, uma
vez que dele depende nossa adaptação ao ambiente.
Entretanto, ainda segundo Skinner, estes dois papéis do reforçamento, no caso
humano, não parecem ter sido sequer igualmente privilegiados na evolução da cultura
ocidental. O papel de algo que dá prazer se tornou preponderante na seleção dos
comportamentos culturais que produzem reforçamento. Isso significa que desenvolvemos
muitas práticas culturais porque garantem este efeito, e que não necessariamente garantem
o efeito fortalecedor de certas práticas, muito mais importantes em termos da sobrevivência
da espécie. O resultado disto ó, para Skinner, uma cultura em risco e que coloca em risco
a própria sobrevivência da espécie.
Se pudermos imaginar que esse privilégio sobre o efeito de prazer do reforçamento
é realmente predominante em nossa cultura, e se concordarmos que a subjetividade, o
self, são produtos de contingências culturais, podemos então discutirem que circunstâncias
e com que características se desenvolverá a subjetividade e o self de cada um de nós
nesta cultura. Aparentemente, se concordarmos com Skinner que o selfé a construção
da subjetividade via cultura, e se vivemos em uma cultura que desenvolveu práticas em
que o reforçamento imediato, o prazer, é o que controla o comportamento e as práticas,
então o indivíduo, o self que daí emerge, é um self controlado por estas mesmas questões,
um self que se conhece a partir destas conseqüências e não de outras que estão operando
e que são, do ponto de vista da evolução e talvez da sobrevivência da espécie, mais
importantes. Isso poderia significar que as tendências para supor um "eu iniciador” como
diz Skinner, seriam produto também destas contingências, de contingências que em certo
sentido se descolaram de conseqüências mais importantes, porque mais atrasadas, e
que controlam não apenas nosso comportamento, mas nosso autoconhecimento, tomando
sempre como referência nós mesmos (o que é ainda mais acentuado pelo fato de que o
controle das conseqüências imediatas deve operar também em nível encoberto). O que eu
estou querendo dizer é que talvez Skinner esteja abrindo uma via importante para a
discussão da subjetividade, não apenas porque estaria demonstrando a necessidade de
entender as contingências culturais para se compreender a emergência da subjetividade,
mas também porque nos dá uma boa pista para interpretarmos algumas das características
mais marcantes da concepção de sujeito e de subjetividade que predominam em nosso
tempo: até onde as ideologias de liberdade, livre-arbítrio, de vontade, necessidade, desejo
são produtos não apenas de uma história intelectual que sempre privilegiou aquilo que é
privadamente experienciado, mas são também, e talvez principalmente, produtos de
contingências culturais que foram presas da própria armadilha da seleção natural?
A cultura que emergiu do terceiro nível de seleção por conseqüências é, como
não poderia deixar de ser, em certo sentido, refém de mecanismos evolucionários que,
em primeiro lugar, não nos dão consciência dos processos a que estamos submetidos
(como lembra Skinner, talvez o problema seja que não consigamos perceber, por conta
da própria estrutura do sistema nervoso, os processos a que estamos submetidos, mas
percebemos apenas os resultados destes processos - o que, aliás, desemboca com

Sobrr comportamento e cognlç<lo 207


facilidade na idéia de que somos o sujeito iniciador de nossas ações), e que, em segundo
lugar, nos colocaram sob o império das conseqüências imediatas de nossa ação, o que
levou necessariamente a uma predominância de práticas que valorizam o prazer-como
conseqüência do reforçamento, e não sua ação fortalecedora. Isso é traduzido, na
construção da subjetividade, em uma subjetividade que em certo sentido ó sempre alienada,
no sentido de que temos consciência apenas de parte de nossa ação o suas
conseqüências, e de que estamos presos a esta consciência parcial, especialmente quando
vivemos em uma cultura cujas práticas culturais acabam por se caracterizar por isso.

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