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A INTERIORIDADE DO SÍMBOLO NO INDIVÍDUO: UMA APROXIMAÇÃO

ENTRE KIERKEGAARD E JUNG

Hareli Fernanda Garcia Cecchin 74


35F

André de Oliveira 75
425B 36F

426B Universidade Federal do Tocantins (UFT)

RESUMO: Filosofia e a Psicologia podem complementar-se em relação à existência


1695B 1696B

humana? Para responder a essa pergunta, este trabalho busca algumas correlações
entre a Filosofia Existencial de Søren Kierkegaard e a Psicologia Analítica de Carl
Jung. Um comparativo entre as ideias desses dois pensadores, irá demonstrar que a
complementaridade entre a Filosofia e a Psicologia não só é possível, mas traz
importantes contribuições para ambas.

1697B PALAVRAS-CHAVE: Existência; Kierkegaard; Jung; Interioridade.

ABSTRACT: Philosophy and psychology can complement each other in relation to


1698B 1699B

human existence? To answer this question, this paper seeks some correlations
between the Existential Philosophy of Søren Kierkegaard and Analytical Psychology of
Carl Jung. A comparison between the ideas of these two thinkers will demonstrate
that the complementarity between philosophy and psychology is not only possible,
but brings important contributions to both.

1700B KEY-WORDS: Existence; Kierkegaard; Jung; Interiority.

INTRODUÇÃO

142
428B O presente trabalho aborda a Filosofia da Interioridade na perspectiva de
Kierkegaard e Jung, tendo como objetivo traçar a ideia de existência dos dois
autores. Inicia com uma discussão sobre a interioridade do indivíduo para os dois
pensadores. Em seguida, aborda o Existencialismo Psicológico de Jung e o

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Graduação em Psicologia pelo Centro Universitário Luterano de Palmas (CEULP/Ulbra). Pós-
graduanda em Gestão Pública e Sociedade pela Universidade Federal do Tocantins. (E-mail:
harelifernanda@gmail.com)
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Professor Titular de Ética e Teoria Política da Universidade Federal do Tocantins e Doutorando em
Filosofia - Ontologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. (E-mail:
andreoliveira@mail.uft.edu.br).
Existencialismo Filosófico de Kierkegaard, e seus pontos de contato mais
importantes.
429B Após abordar os três modos de existência para Kierkegaard, o discute os
pontos de contato entre as ideias de autenticidade e interioridade de Kierkegaard e
as ideias de persona e processo de individuação de Jung. E então trata da questão
da Felicidade Existencial e suas possibilidades. Após abordar as ideias dos dois
autores, traça um quadro analógico, apontando as semelhanças. Como metodologia,
foi utilizada a Revisão Bibliográfica.

430B DOIS PENSADORES, MUITAS IDEIAS

431B Um leitor distraído pode encontrar mais diferenças do que semelhanças nas
ideias de Kierkegaard e Jung. Mas um estudo acurado mostra que existem afinidades
entre as reflexões destes dois pensadores. Uma delas é a visão de homem, onde o
mesmo é visto pelo seu interior. Embora eles usem vocabulários diferentes, o que é
compreensível devido ao período histórico em que viveram e aos campos de estudo
que se dedicaram.
432B Jung trata da interioridade sobre o prisma simbólico. E Kierkegaard aborda a
interioridade do ponto de vista metafísico. Essa é uma diferença e ao mesmo tempo
uma semelhança, pois ambos oferecem reflexões sociais sobre como o homem se
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define e como toma suas decisões, em outras palavras, como conduz sua existência.
Tanto Kierkegaard como Jung abordaram, de modo perspicaz, as esferas existenciais
e suas complexidades, num esforço intelectual para a compreensão da existência
humana.
433B Em Jung vamos verificar um Existencialismo Psicológico, e em Kierkegaard
um Existencialismo Filosófico. Kierkegaard é a ponte entre a psicologia de sua época
que se focava principalmente na observação de fenômenos externos e na aplicação
destas técnicas para a sua própria auto-compreensão, precedendo Freud, Jung e
Rogers sobre temas como o inconsciente, introversão, e self, ideal de eu e conflito
(CARR, 1973).
434B Para Kierkergaard há três modos de Existência: a estética, a ética e a
religiosa. E elas são irreconciliáveis entre si, pois definem modos diferentes de
encarar a vida. No modo estético, o maior interesse é o prazer, embora, haja
diferentes níveis de sofisticação e autoconsciência em que esta busca se manifeste.
O homem que vive esteticamente não está no controle de si mesmo e nem da
situação. Ele sempre vive o momento, e por isso está à mercê dos acontecimentos.
Ele muda de rumo de acordo com as circunstâncias, e por isso lhe falta estabilidade.
435B O indivíduo estético não impõe um padrão coerente a sua vida. Pelo
contrário, ele “permite que ‘o que acontece’ aja sobre ele e governe o seu
comportamento” (GARDINER, 2001, p.54), vivendo sempre preocupado com o
externo. O indivíduo vê suas qualidades e disposições como algo dado na natureza,
ao qual deve se submeter.
436B No entanto, embora no modo estético haja uma busca pelo prazer, isso não
significa que haja uma satisfação a todo tempo. Há indivíduos estéticos que
experimentam tristeza, vendo a situação como algo a que ele está condenado,
destinado. E a infelicidade é atribuída a algo fixo, não passível de alteração, presente
em si, ou no ambiente. Ao aceitar o ponto de vista fatalista, o indivíduo se exime da
responsabilidade por sua vida e suas escolhas. Trata-se de uma melancolia, uma
dificuldade de desejar, de querer com profundidade.
437B No modo ético valoriza-se os deveres e as responsabilidades. O ponto de
vista centra-se no indivíduo, e este se vê como um objetivo, uma missão. De modo
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que sua atenção dirige-se a sua própria natureza, a sua realidade substancial como
ser humano com talentos, inclinações e paixões que permanecem sobre seu controle
(GARDINER, 2001). No modo ético, o sujeito assume a responsabilidade por si
mesmo de modo consciente. Ele vê suas qualidades como um desafio, conhecendo a
si mesmo, não como contemplação, mas como uma reflexão sobre si mesmo, de
uma forma realista. Ele não conhece apenas aquilo que é, mas aquilo que deseja ser,
tem um eu ideal sobre o qual projeta suas aspirações.
438B O modo religioso diverge dos dois anteriores, pois está além do domínio
ético e resiste a racionalidade, o que não significa que ela deva ser primitiva. Pela
linha de raciocínio de Kierkegaard, somente um indivíduo ético, disposto a
transcender a ética, poderia chegar ao modo religioso. O modo religioso, que
envolve primordialmente a fé, pressuposta por uma consciência religiosa, exige que
o indivíduo seja maduro e moralmente sensível. Um indivíduo que se crê
vocacionado a um chamado único, pode decidir abandonar certos princípios
universalmente aceitos. Não se trata de negar a importância das exigências morais,
mas de aceitar que a ética não é soberana.
439B Gardiner (2001) explica que a fé está além dos padrões de racionalidade, e a
transição para ela não se justifica por meio de argumentos éticos. Pelo contrário, ela
exige uma ruptura radical e um compromisso com algo que é objetivamente incerto,
e talvez contraditório. Para Silva (2007), o estágio religioso se aproxima da
experiência da interioridade.

440B INTERIORIDADE E PERSONA

441B Na filosofia de Kierkegaard, a autenticidade está relacionada com a


interioridade, contrapondo-se a racionalidade. Afinal, existir de modo autêntico é
assumir a existência, um movimento de interioridade, que não pode ser medido pela
lógica ou por qualquer tipo de conceito (BARROS, 2009).
442B A autenticidade está relacionada a viver de acordo com os próprios
princípios, sem buscar agradar a outrem. Para Cox (2012), o indivíduo autêntico é
aquele que assume a responsabilidade por seus atos e não culpa os outros por suas 145
escolhas, buscando suportar incertezas e verdades duras. Ao ser autêntico, o
indivíduo não deseja ser diferente do que ele é, mas luta pelo que almeja,
empenhando-se para transformar a si mesmo, ao invés de encontrar desculpas para
a atitude que ele não teve coragem de tomar.
443B No entanto, algumas vezes o homem prefere a conveniência da vida social,
em detrimento de ser sincero consigo. A realidade e a moral exercem certa pressão
para o desvencilhamento de si, fazendo com que o indivíduo busque se igualar aos
demais, eximindo-se de sua responsabilidade, intransferível, perante sua existência.
Isso leva a uma vida de disfarce, onde o indivíduo age exteriormente, representando
papéis, e agindo segundo normas e conveniências.
444B A esse respeito, Jung concorda, trazendo o conceito de persona, trata-se
de uma máscara social que permite ao indivíduo comunicar-se com o meio externo,
com base nos diferentes papéis que assume e na coerção social inerente a eles. Ela
está ligada a formação de compromisso entre o indivíduo e a sociedade, tratando-se
de um cargo que o homem encarna e que às vezes os outros participam mais que o
próprio personagem (TARDAN-MASQUELIER, 1994). No entanto, Jung afirma que
máscara é algo que se põe e que se tira, ao sabor das necessidades. Mas alguns
indivíduos não conseguem fazer este movimento, dedicando-se a uma vida dirigida
para os outros, para a sociedade, e não para si mesmo. Isso se constitui num fator
adoecedor.
445B Para Barros (2009), a interioridade do homem está intimamente ligada a
subjetividade, uma vez que se constitui naquilo que verdadeiramente se é. Para isso,
ele precisa refletir sobre si mesmo, e interiorizar as suas verdades. Em certo modo,
este ponto coincide com o processo de individuação, postulado por Jung, que se
constitui num “processo que cria um ‘indivíduo’ psicológico, isto é, uma unidade
autônoma e indivisível, uma totalidade” (TARDAN-MASQUELIER, 1994, p.78). Esse
processo é uma marcha para frente, onde articulam-se a queda da máscara da
persona, a luta com a sombra e o equilíbrio entre anima e animus, culminando uma
compreensão mais real da vida interior.
446B Quando o homem consegue se autêntico, num verdadeiro processo de
individuação, ele consegue ser feliz. Para o Existencialismo Filosófico, a felicidade
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não é um contínuo de alegria e satisfação, mas é marcada de momentos pontuais de
contentamento. Nas palavras de Cox (2012), a filosofia existencialista ensina que,
para ser feliz: “é preciso parar de buscar a felicidade completa, uma vez que isso só
pode levar à frustração” (p. 19). Não há felicidade total ou realização plena, pois a
consciência está sempre procurando o que falta em cada situação.
447B Já Jung não falou diretamente em felicidade, mas, ao discutir o
desenvolvimento e a personalidade humana, ele abordou a ideia de Individuação, na
qual ele sinaliza a possibilidade de uma vida plena. Para Jung, a busca da felicidade,
na vida adulta, estaria mais pautada em valores éticos, pessoais e subjetivos e
menos ligada à satisfação imediata. Isso estaria relacionado a maturidade
psicológica, e a capacidade de reconhecer-se como uma pessoa individualizada,
agindo em sintonia com seus próprios desejos, anseios, potencialidades e objetivos.
448B Um indivíduo maduro seria capaz de estabelecer uma relação verdadeira
com o outro, por meio de influência mútua, mas sem perda da identidade. Jung fala
da presença da imagem feminina (anima) e masculina (animus) e no matrimônio
desses opostos complementares, por meio dos símbolos. Esses opostos seriam pólos
que sintetizam diversos elementos da cultura manifestados sob a forma de imagens
arquetípicas. A partir do processo de individuação, e de união dos opostos, seria
possível “a realização da plenitude, que jamais pode ser totalmente realizada e que
implica, portanto um exercício sempre recomeçando, uma verdadeira ascese do
imaginário” (TARDAN-MASQUELIER, 1994, p.90).
449B A seguir, um quadro comparativo entre Kierkegaard e Jung, abordando
semelhanças e diferenças entre os dois pensadores.

Kierkegaard Jung

Filosofia Existencial Psicologia Analítica


A consciência produz a incompletude. A consciência, e o ego, quando excessivamente
“A consciência constantemente introduz não-ser centrado em si, produz a incompletude.
(...) a fim de entendê-lo e de atuar nele com “Enquanto o divino não é entrevisto, o ser
propósito” (COX, 2012, p.32). humano vive na incompletitude” (TARDAN-
“Uma situação é sempre compreendida (...) em MASQUELIER, 1994, p.71).
termos do que falta à pessoa encontrar nela”
(COX, 2012, p.32).
Kierkegaard faz uso de pseudônimos em seus Os arquétipos, assim como os símbolos, são
escritos, tanto para refletir sua subjetividade, meios de expressar conteúdos insconcientes.
como para ocultar sua persona e o 147
afastamento filosófico.
O modo de existência religioso é o último grau A experiência espiritual provoca modificações na
de desenvolvimento. consciência, enriquecendo o ser (TARDAN-
MASQUELIER, 1994).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

463B O trabalho é um primeiro intento de compreensão e de ligação entre o


Existencialismo Filosófico de Kierkegaard e o Existencialismo Psicológico de Jung.
Percebem-se diversos pontos de contato, pois ambos veem o homem a partir da sua
existência, como um ser livre para fazer escolhas. E consideram que a felicidade não
é plena, mas deriva-se da capacidade do homem em conectar-se com seus desejos,
suas vontades, e fazer escolhas conscientes, independente da pressão social. Os dois
teóricos vêem o homem a partir de sua capacidade de vir a ser, onde reside a sua
verdadeira liberdade. Mas não descartam a influência social, presente nos
arquétipos, de Jung, e na ética de Kierkegaard.

148
B REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARR, L. C. Kierkegaard: On guilt. Journal of Psychology and Theology, v.1, n.3,


465B

p.15-21, 1973.
COX, Gary. Como ser existencialista – ou Caia na real, vá à luta e pare de
466B

arrumar desculpas. Tradução de Leila V. B. Gouvêa. São Paulo: Alaúde Editorial,


2012.
BARROS, Wagner de. Racionalidade e Interioridade: um breve apontamento
467B

sobre o tema da autenticidade no pensamento de Kierkegaard. Revista


Kínesis, v.1, n.1, março, 2009, p.114-132. Recuperado de:
<http://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/Kinesis/WagnerdeBarros(11
4-132).pdf>
GARDINER, P. Kierkegaard. Tradução Antonio Carlos Vilela. São Paulo: Loyola,
468B

2001.
LIMA, Fransmar Costa. ALTER E EGO: Uma reflexão ética entre Kafka e
469B

Kierkegaard. Biblioteca Kierkegaard, Argentina. Recuperado de


<http://www.sorenkierkegaard.com.ar/index2.php?clave=trabajo&idtrabajo=10&clav
ebot=jornadask>
TARDAN-MASQUELIER, Ysé. C.G. Jung: a sacralidade da experiência interior.
470B

Tradução de Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 1994.


SILVA, Franklin Leopoldo. Kierkegaard: o indivíduo diante do absoluto. Revista
471B

Cult, Bookmark, n. 116, ago., 2007. Recuperado de:


<http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/kierkegaard-o-individuo-diante-do-
absoluto/>

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