Você está na página 1de 5

Quentin Skinner: Uma Genealogia do Estado

Somos, atualmente, todos cidadãos de Estados.

Nunca houve um conceito fechado sobre o Estado. Novas definições surgem, sempre
pautadas por ideologias. A genealogia do Estado demonstra isso, mas alguns fundamentos
são quase sempre presentes.

As genealogias não possuem inícios definidos, mas o momento mais antigo nessa discussão
se daria entre o final do XVI e início do XVII. É aqui que começamos. Nesse momento, o
conceito de Estado é usado para definir um tipo específico de associação política, em que há
uma comunidade de pessoas governadas por um único soberano - geralmente um monarca -
que ficaria conhecido como “chefe de estado”. Outros autores desse contexto citam também
nações ou reinos - Estado não era o único conceito, nem o mais comum.
● Nas discussões da Renascença sobre as funções do príncipe, já se falava em “manter o
Estado”. O chefe de Estado deve olhar para o corpo dos cidadãos, senão sofrerá um
golpe. Para se manter o Estado, deve-se manter a segurança eo bem estar da
população.

O termo é originalmente usado como uma metáfora de cabeça e corpo: existe a cabeça do

Estado (o soberano) e existe o corpo do Estado (o povo) → Os reis possuem um corpo

físico e um corpo formal, político. Essa é a primeira forma de se especular sobre o Estado.

Bodin: o Estado é formado pela união do povo em submissão a um único soberano.

Essa é a visão absolutista sobre o Estado. Existe também uma visão populista, que surge

após 1600. Segundo essa visão, quando se fala sobre o Estado, fala-se sobre uma união

civil sobre o domínio de um governo. Os populistas acreditam que o poder soberano se

encontra não na cabeça, mas no corpo → O conjunto das pessoas é que detém a

soberania.
A Europa do século XVII era profundamente monárquica, mas também possuía suas

repúblicas, cada uma com sua própria tradição especulativa. Essas repúblicas

reivindicavam a noção populista de Estado. A obra mais importante, nesse sentido, seriam

os discursos de Maquiavel → Maquiavel possui uma forte preferência pelo autogoverno

republicano, que é expressa nos discursos. Essa visão é sustentada pela ideia de como é

possível se manter livre em um Estado auto-governado. Segundo ele, perde-se a liberdade

uma vez que se está dependente de um poder arbitrário; se você vive em uma monarquia,

você perde a liberdade. Se você quer viver livre, a única alternativa é viver sem ser

politicamente dependente de ninguém, e isso só é possível em uma república → Essa é

uma visão que influenciará bastante a tradição anglo-americana, com Algernon Sidney
(1623 - 1683), James Harrington (1611 - 1677) e os pais fundadores dos EUA.

Por conta disso, no pensamento político nos princípios da idade moderna, as repúblicas são
chamadas de Estados livres, em contraste com as monarquias.

A segunda e talvez mais importante crítica à visão absolutista é aquela que emerge a partir

das guerras religiosas na França e na Europa como um todo, em que o esforço está sendo

feito para impedir a imposição forçada de uma só religião aos súditos. Essa política foi

combatida da seguinte forma: por mais que os governos possuam um poder soberano,

esse poder soberano foi antes propriedade do povo → a propriedade do soberano é vista

como a propriedade do povo, e essa visão está presente na obra de Locke e nas famosas
vindicações contra a tirania, escritas ao longo das guerras religiosas na França. Essas visões
viajaram o canal da mancha e se tornaram o fundamento do parlamentarismo contrário à
monarquia Stuart, nos 1640. O Republicanismo de Oliver Cromwell teve como seu grande
ideólogo John Milton, que era seu secretário durante o período do protetorado e escreveu A
posse de reis e magistrados no qual ele defende o direito das pessoas de executar um
soberano culpado, seja tirânico ou não.

Há, agora, uma terceira fase na genealogia, em que a segunda fase é atacada. Um dos lados
desse ataque parte de um retorno à noção de direito divino dos reis, que possui como
expoente Robert Filmer, que denunciou a monarquia fazendo uso do argumento religioso. Há
uma outo lado, que nega tanto a teoria absolutista quanto a teoria populista. O maior expoente
dessa vertente foi o arqui-inimigo de John Milton: Thomas Hobbes.

A teoria de Hobbes sobre o Estado é a sua principal contribuição para o pensamento

político anglófono e foi extremamente influente. Hobbes começa a parte política do

Leviatã definindo o estado de natureza, como você sabe. A visão de Hobbes sobre a

condição natural dos homens é um ataque violento à tradição populista do Estado → Não

era possível haver uma sociedade de pessoas dotada de soberania, pois a condição natural

é anti-social, de modo que a tradição populista do Estado estaria baseada em uma ilusão.

Não havia na natureza a detenção da soberania pelo corpo do povo pois não havia um

corpo do povo: havia apenas indivíduos em guerra uns com os outros.

Ao mesmo tempo em que critica a teoria populista, ele critica a teoria do direito divino, pois
afirma que a única fonte para a autoridade política é o consentimento dos súditos. A política,
ao contrário do que afirma Filmer, não é dada por Deus: ela é artificial, feita pelos homens.

A visão de Hobbes é a de que o soberano é apenas um representante autorizado: o soberano é


aquele que está autorizado a falar em nome de seus súditos. Desse modo, as ações do
soberano são atribuídas aos seus súditos.

Se os soberanos são representantes autorizados, qual o nome da pessoa que ele representa?

Não é o corpo do povo, pois não há esse corpo, visto que os homens são anti sociais. Para

responder a essa pergunta, eis a ideia do contrato. O contrato de Hobbes não é um

contrato entre o povo e o rei, mas um contrato entre os indivíduos →Nós fazemos um

acordo para designar alguém para ser o detentor do poder soberano. Quando nós

acordamos entre si para criar um governo soberano, deixamos de ser muitos para nos

tornarmos um. Com isso, a vontade de todos passa a ser uma única vontade. “Uma

multidão de homens se torna uma pessoa, quando ela é por uma pessoa representada.

Respondendo a pergunta: o soberano representa a pessoa do Estado. O verdadeiro detentor da


soberania é a pessoa do Estado, e não aquele que chamamos de soberano, pois esse é apenas
um representante. Soberanos e pessoas vem e vão, mas a unidade das pessoas na forma do
Estado permanece. O Estado é uma entidade eterna e independe de figuras individuais para
continuar existindo.

A filosofia política hobbesiana foi massivamente influente para o direito público na

Europa continental → Um autor desse campo muito influenciado por ele é Samuel von

Pufendorf, em seu livro De iure naturae et gentium: O Estado existe como uma pessoa,
dotada de vontade própria, cujos interesses são distintos daqueles dos indivíduos privados; o
Estado é como uma pessoa moral, de modo que não pode agir em conta própria e precisa de
alguém para representá-lo. Outro é Emer de Vattel: o Estado é uma pessoa moral distinta,
dotada de uma razão e uma vontade peculiares. Essa pessoa é uma ficção, não fala e nem age,
de modo que alguma forma de autoridade pública deve representá-la. O dever dessa
autoridade é preservar o Estado, ou seja preservar o bem do povo como um todo.

Essa visão Hobbesiana foi para o direito público europeu, seguiu para a lei comum inglesa e
depois para a lei americana (William Blackstone, Comentários sobre a Lei Inglesa, 1765).
Blackstone teceu esses comentários tendo em mente a noção hobbesiana de um contrato
político a partir do qual se deu a criação de um Estado soberano.

A partir dos anos finais do século XVIII, tem-se um grande ataque a essa noção do Estado

como uma ficção. Esse ataque tem como principal nome Jeremy Bentham. Seu primeiro

trabalho foi um ataque violento a Blackstone e a toda a tradição que ele defendia. Esse

ataque à teoria ficcional do Estado se deu em duas ondas sucessivas que se misturam. A

primeira delas é associada a Bentham e à ascensão do Utilitarismo clássico. Bentham diz

que era necessário abandonar a ficção associada ao estado de natureza, ao contrato e a

todas essas baboseiras. No lugar, deve-se basear os argumentos legais em fatos observáveis

sobre indivíduos reais → Bentham não está discordando dessas idéias, ele está dizendo que

elas não têm nenhum sentido, são completamente inúteis: ficções, segundo ele, não

possuem espaço no campo do direito, e a maior das ficções em seu tempo era a de que os

Estados eram pessoas.


Nenhum dos primeiros utilitários, com exceção de John Austin, discutiam a teoria do Estado,
pois a achavam inútil. Austin já diz que o Estado e o detentor do poder soberano são a mesma
coisa. Ou seja, o governo e o Estado podem seriam sinônimos.

Depois disso, veio toda a teoria hegeliana do Estado, no final do século XIX. A teoria
hobbesiana volta a ser importante.

Você também pode gostar