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Cultura

O que torna o ‘Batman’ de Robert Pattinson perturbador, mas


imperdivel

Bruce Wayne nunca foi tão traumatizado quanto na interpretação do ator, nem Gotham tão doente
quanto no Batman notável — e opressivo — de Matt Reeves

Por Isabela Boscov Atualizado em 4 mar 2022, 16h21 - Publicado em 4 mar 2022, 06h00

O mal-estar sempre pairou sobre Gotham. Mas agora a metrópole é ainda mais ameaçadora que o
fora na trilogia Cavaleiro das Trevas, e mais degradada até que na versão moldada na Nova York dos
anos 70 de Coringa. No Batman (The Batman, Estados Unidos, 2022) do diretor Matt Reeves, já em
cartaz no país, Gotham é suja, insalubre, corrupta, doente, desgovernada — um pesadelo urbano do
qual não se pode acordar. O sinal do Homem-Morcego, personagem que encontrou Robert Pattinson
na hora certa (leia a entrevista), é projetado quase sem pausa no céu, mas o justiceiro mal faz
diferença contra as criaturas que devoram a cidade à noite; os criminosos, os delinquentes, os cafetões,
as gangues de cabeça raspada são como um burburinho que não para. Mas é com o som de uma
respiração pesada, concentrada, que começam os eventos que farão Bruce Wayne de fato mergulhar
na persona que criou: por uma mira, alguém observa um menino que, fantasiado para o Halloween,
alegra-se com a chegada dos pais de uma festa — um eco do próprio Bruce, que teve os pais
assassinados na infância em circunstâncias semelhantes. Mas a vítima, agora, é o prefeito Don
Mitchell, pela quarta vez candidato a reeleição e pela primeira vez prestes a perder o cargo para uma
jovem negra que enuncia com clareza o que ele tenta obscurecer: que Gotham esta largada aos cães.
A vez do próprio Mitchell acaba de chegar, e é o filho pequeno quem encontra o corpo do pai,
morto de maneira horripilante por uma figura encapuzada e mascarada, com um emblema no peito e
sem nenhuma feição à mostra. Quem pensar no Zodíaco, o serial killer que instaurou o pânico na área
da Baía de São Francisco entre 1968 e 1969, acertou no alvo: foi ele a inspiração para Reeves
materializar no vilão Charada, aqui interpretado por Paul Dano, seu conceito de um terror sem rosto
e sem propósito que se possa adivinhar. O mesmo, porém, vale para Bruce Wayne. Quando põe a
máscara e se torna Batman, também ele é um agente do terror, e também ele está um passo mais
próximo de linhas que não devem ser cruzadas.
O anonimato em que Batman age e a dualidade que a identidade oculta permite a ele são a
razão fundamental pela qual ele é o herói de quadrinhos ao qual mais o cinema retorna — a cada vez
em clima mais sombrio. Esta, entretanto, é a encarnação mais jovem do personagem, e de longe a
mais traumatizada. No desempenho repleto de riscos de Robert Pattinson, Bruce Wayne é quase um
vazio; não é ele quem preenche a fantasia, mas ela que o preenche. Sem vida fora da sua missão e
desinteressado da fortuna que herdou e que, como avisa o mordomo Alfred (Andy Serkis), está
minguando, este Bruce não se faz de playboy e pouco tem de arsenal além da armadura, das lentes de
contato capazes de gravar o que está vendo — sempre em imagens escuras e afuniladas — e do carro
que é todo motor, armamento e ângulos duros. Nessa Gotham lamacenta, nem o Pinguim (Colin
Farrell, irreconhecível) ganha a graduação de adversário. Ele é, isso sim, um facilitador repelente, um
fornecedor de vícios e perversões que os poderosos praticam juntos, amarrando-se uns aos outros.

Esse é, enfim, o Batman da solidão urbana e da depressão, que só pela sensação de fracasso ou pelo
luto consegue se conectar com alguém. Por exemplo, com o detetive Gordon (o excelente Jeffrey
Wright), cronicamente posto de escanteio nesse ninho de corrupção promiscua que é Gotham porque
a honestidade exala dele como um cheiro ruim. Ou ainda com Selina Kyle, que ensaia os primeiros
passos como Mulher-Gato na busca por uma amiga desaparecida e que, em mais uma 6tima
interpretação de Zoé Kravitz, é um retrato muito reconhecível de uma mulher habituada a ser usada
mas cansada de se resignar a isso.

Depois de seu trabalho vigoroso, cheio de músculo, em Planeta dos Macacos: o Confronto e a
Guerra, Matt Reeves parte aqui para uma reconceituação ainda mais ambiciosa, além de
profundamente pessimista. Trabalhando com uma paleta feita quase só de vermelho e de escuridão
em densidades diversas que a música de Michael Giacchino faz pulsar, e filmando em closes fechados
ou em cenários sufocantes nos quais as pessoas se amontoam em orquestrações notáveis de
movimentos, Reeves dá ao submundo de Gotham um sentido adicional, o de uma terra de penumbra
em que ninguém está morto nem completamente vivo. Se faltam ao seu Batman os crescendos, o
arrebatamento e a realização exuberante do espetáculo da trilogia de Christopher Nolan, é porque o
mundo já não é o de dez ou quinze anos atras e não se trata mais aqui da erupção do caos, mas, sim,
dos escombros que ele deixa na sua passagem.

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