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Medicina Veterinária, Recife, v.3, n.2, p.

30-38, abr-jun, 2009 ISSN 1809-4678

Urinálise como instrumento auxiliar no diagnóstico de enfermidades em pequenos


ruminantes

(Urinalysis as an auxiliary tool in diagnosis of small ruminants diseases)

“Revisão/Review”

PB AraújoA(*), DS PereiraA, MN TeixeiraB, MCOC CoelhoB, SP AlencarC


A
Discente de graduação em Medicina Veterinária e participante do Programa de Educação Tutorial.
Universidade Federal Rural de Pernambuco. Av. Dom Manoel de Medeiros, s/n, Dois Irmãos, 52171-900
Recife - PE/Brasil.
B
Docente do Departamento de Medicina Veterinária. Universidade Federal Rural de Pernambuco. Av. Dom
Manoel de Medeiros, s/n, Dois Irmãos, 52171-900 Recife - PE/Brasil.
C
Médica Veterinária da Universidade Federal Rural de Pernambuco.

Resumo
A urina é um líquido orgânico secretado pelos rins e produzido a partir da filtração sanguínea pelo néfron e constitui
uma via de eliminação de medicamentos, metabólitos e outras substâncias indesejáveis ao organismo, contribuindo para
manutenção da homeostase. A urina ainda pode ser acrescida de células do trato urinário bem como bactérias. A análise
deste fluido surge como instrumento de extrema utilidade para o diagnóstico de diversas enfermidades. A urinálise é um
procedimento laboratorial simples, rápido e de baixo custo que pode fornecer um grande número de informações acerca
de vários sistemas, tornando-se indispensável, sobretudo na avaliação do sistema urinário.
Palavras-chave: análise, caprinos, urina, ovinos.

Abstract
Urine is an organic liquid secreted by kidneys and produced by nefron blood filtration and is a route for the elimination
of medicines, metabolites and other undesirable substances to the body, helping to maintain homeostasis. The urine can
still be increased by cells of urinary tract as well as bacterias. The analysis of this fluid becomes a tool of great utility for
diagnosis of many diseases. Urinalysis is a simple, fast and low cost laboratory procedure that can provide a lot of
information about different systems, becoming indispensable especially in the evaluation of urinary system.
Key-words: analysis, goats, urine, sheeps.

Introdução e inúmeros outros produtos resultantes do


A urina é uma solução aquosa catabolismo, podendo ocorrer grandes
complexa, formada pela eliminação da água variações na concentração dessas substâncias
desnecessária, dos sais inorgânicos e de outros devido à influência de fatores como a ingestão
produtos orgânicos provenientes do alimentar, a atividade física, o metabolismo
metabolismo, que não devem ser acumulados orgânico e a função endócrina (AMARO et
no sangue. Partindo do rim, a urina segue pelo al., 1997; REECE, 2006).
ureter, chegando à vesícula urinária e saindo A urinálise compõe-se de três etapas, o
pela uretra. Através da urina são eliminados exame físico, o químico e a análise
diariamente água, sódio, cálcio, fósforo, uréia microscópica do sedimento. Esses exames
e inúmeros outros produtos resultantes do
(*)
Autora para correspondência/Corresponding author (pris.de.araujo@gmail.com).
(§)
Recebido em 16/01/2009 e aceito em 18/05/2009.
Araújo et al. Urinálise como instrumento auxiliar no diagnóstico de enfermidades em pequenos ruminantes 31

fornecem informações sobre o funcionamento sanguíneos e os nervos que chegam e saem do


do sistema urinário, no entanto, outros órgãos rim. O parênquima renal apresenta o córtex
também podem ser avaliados, como o externo e a medula interna (SISSON, 1986;
pâncreas endócrino e o fígado. A urinálise DYCE et al., 1996; KÖNIG e LIEBICH,
fornece ainda informações preliminares no 2004).
que diz respeito a distúrbios como hemorragia O ureter é um tubo muscular que se
glomerular, hepatopatias, erros inatos do inicia numa expansão comum, a pelve renal,
metabolismo e infecções do trato urinário. A na qual os ductos papilares se abrem e
aferição da densidade urinária ajuda na terminam na vesícula urinária (DYCE et al.,
avaliação da função dos túbulos renais. Os 1996). Segundo Ellenport (1986) a primeira
resultados do exame físico da urina também parte do ureter esquerdo dos ruminantes tem
podem ser utilizados para confirmar ou um percurso peculiar devido à posição do rim
explicar achados do exame químico e correspondente, iniciando-se na parte ventral
microscópico (GARCIA-NAVARRO, 1996). do hilo.
A vesícula urinária difere em forma,
1. Anatomia do sistema excretor tamanho e posição, de acordo com seu grau de
Os órgãos urinários são, sob o ponto de enchimento. Ela é um saco ovóide situado no
vista embriológico e anatômico, intimamente assoalho pélvico quando vazia. No meio do
unidos aos órgãos genitais, de tal forma que é ápice há uma massa de tecido cicatricial, um
possível reuni-los em um único aparelho vestígio do úraco, que no feto forma uma
denominado urogenital, cujo desenvolvimento ligação tubular entre a vesícula e o alantóide
ocorre a partir de uma crista mesodérmica (SISSON, 1986). A uretra expele a urina do
comum (ELLENPORT, 1986; KÖNIG e corpo. Nas fêmeas faz parte exclusivamente
LIEBICH, 2004). O sistema urinário do sistema urinário, ao passo que, nos
compreende um par de rins, que formam a machos, grande parte atua como via de urina e
urina a partir do sangue coletado na pelve sêmen (KÖNIG e LIEBICH, 2004).
renal. Da pelve, a urina é transportada para a
vesícula urinaria pelos ureteres, onde fica 2. Formação da urina
armazenada até ser liberada, pela uretra 2.1 Considerações estruturais
(KÖNIG e LIEBICH, 2004). A urina é produzida nos rins, mais
Os rins dos pequenos ruminantes têm o precisamente nos néfrons, em diversas etapas
formato de um grão de feijão, são lisos, sem que permitem eliminar resíduos do organismo.
qualquer lobação superficial, de coloração Os principais mecanismos através dos quais
marrom-avermelhada. Sua localização é os rins exercem as suas funções são a filtração
retroperitoneal na região sublombar da glomerular, a reabsorção tubular e a secreção
cavidade abdominal adjacente à coluna tubular de diversas substâncias (SISSON,
vertebral. O rim direito situa-se mais 1986)
cranialmente do que o esquerdo. Nos O rim é constituído de unidades
ruminantes, o rim esquerdo, em consequência funcionais completas, chamadas néfron. O
da expansão do rúmen na cavidade néfron representa a menor unidade do órgão,
abdominal, desloca-se parcialmente para o sendo composto pelo glomérulo, cápsula de
antímero direito (SISSON, 1986). Bowman, túbulo contorcido proximal (TCP),
Os rins são cobertos por uma cápsula alça de Henle, túbulo contorcido distal (TCD),
adiposa perirrenal, que os protegem de lesões túbulo coletor cortical e ducto coletor, e seu
por pressão dos órgãos vizinhos. Na margem número varia de acordo com a espécie
medial do rim, encontra-se o hilo renal, que dá (VERLANDER, 2004; REECE, 2006). O
acesso ao seio renal. Este limita o início glomérulo tem a função de filtrar o sangue
dilatado do ureter, a pelve renal, alojando o enquanto o sistema de túbulos coletores
tecido adiposo, assim como os vasos absorve parte do líquido filtrado nos

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glomérulos. Os túbulos também podem diferentes segmentos do néfron. Na cápsula de


secretar diversas substâncias, conforme as Bowman o ultrafiltrado é idêntico ao plasma:
necessidades do organismo (VERLANDER, rico em sódio, glicose e aminoácidos
2004). (AMARO et al., 1997; VERLANDER, 2004 ).
Existem dois tipos principais de néfron,
identificados pela localização dos seus 2.4 Reabsorção de sódio
glomérulos e profundidade de penetração das Três mecanismos são reconhecidos para
alças de Henle na medular. Néfrons corticais a reabsorção de sódio no túbulo proximal,
ou corticomedulares associados com alça de local responsável por cerca de 65% de seu
Henle curta e néfrons justamedulares retorno para o plasma. A necessidade de
associados com alça de Henle longa que se energia essencial para cada um dos
entendem mais profundamente dentro da mecanismos é derivada da reação Na+ - K +
medular, alguns se estendem tão ATPase, localizadas nas membranas das
profundamente quanto a crista renal dos rins células epiteliais do túbulo proximal. Para
unipiramidais como ocorre nos pequenos manter a neutralidade elétrica, a reabsorção de
ruminantes (REECE, 2006). sódio tem de ser acompanhada pela
reabsorção de ânions (ARAÚJO et al., 1991).
2.2 Filtrado glomerular O primeiro mecanismo é o uniporte ou
A primeira parte da formação da urina transporte unidirecional de sódio, por meio de
consiste numa filtragem sanguínea que visa à uma difusão facilitada. O segundo mecanismo
obtenção de uma urina também designada de é o antiporte ou contratransporte onde ocorre
"primária". A filtração realiza-se no o transporte de um íon hidrogênio em direção
glomérulo, para este efeito o sangue atravessa oposta, por meio de uma proteína carreadora
os capilares porosos cuja estrutura está como parte dos mecanismos de regulação
especialmente destinada a reter no sistema renal do equilíbrio ácido-básico. Quando há
vascular alguns componentes celulares e necessidade de eliminar íon hidrogênio, os
proteínas de peso molecular de médio a alto, túbulos secretam ativamente o hidrogênio
resultando na formação de um líquido que é para a luz, dentro do filtrado e, em troca, para
aproximadamente igual ao plasma, o filtrado manter o equilíbrio iônico absorvem o íon
glomerular, posteriormente depositado no sódio (ARAÚJO et al., 1991; VERLANDER,
espaço de Bowman até ser conduzido ao 2004).
primeiro segmento do túbulo coletor. O terceiro mecanismo de reabsorção de
(VERLANDER, 2004; REECE, 2006; sódio é o simporte, no qual o transporte de
NUNES, 2007). sódio é controlado por cloreto, ou seja, o
sódio é transportado juntamente com o
2.3 Reabsorção tubular cloreto, quando há necessidade de se eliminar
O produto da filtração glomerular passa ácidos orgânicos pelo mecanismo de secreção
por um processo de reabsorção, que ocorre tubular. Cerca de 25% da carga tubular de
nos túbulos contorcidos, fundamentalmente sódio é reabsorvida nos segmentos
no túbulo contorcido proximal. Ocorre o ascendentes delgado e espesso da alça de
refluxo na circulação sanguínea de moléculas Henle. Os 10% restantes estão presentes no
e íons indispensáveis ao organismo. Estes néfron distal. O mecanismo de transporte é
transportes são frequentemente associados à semelhante ao mecanismo de uniporte
reabsorção de água; alguns requerem a encontrado no túbulo proximal. A reabsorção
utilização de energia celular enquanto que de sódio nos túbulos e ductos coletores é
outros decorrem de forma passiva. Os estimulada pelo hormônio aldosterona
processos de reabsorção e secreção ocorrerão (VERLANDER, 2004; KÖNIG e LIEBICH,
na medida em que o fluido tubular coletado 2004).
pela cápsula de Bowman percorre os

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2.5 Reabsorção de glicose e aminoácidos máximo nas partes internas da medula. A


De acordo com Verlander (2004) a osmolaridade alta existe por causa do
glicose e os aminoácidos são reabsorvidos por mecanismo de contracorrente. Este é
simporte ou co-transporte. Eles são acoplados estabelecido pelas atividades das alças de
com carreadores específicos que requerem Henle e é mantido pelas características do
ligação com sódio e se difundem para o suprimento sanguíneo para a medula
interior da célula. (VERLANDER, 2004; REECE, 2006).

2.6 Transporte de água e reabsorção não 2.9 Transferência da urina para a vesícula
ativa de solutos urinária
Aproximadamente 65% da água é O líquido tubular flui através dos
reabsorvida pelo túbulo proximal. Desta túbulos em direção à pelve renal em função do
forma, a uréia e outros solutos, reabsorvidos gradiente de pressão que é menor neste último
não ativamente ficam concentradas no lúmen segmento, desta forma a urina é transportada
tubular, criando um gradiente de concentração através dos ureteres pelo peristaltismo. A
química, o que faz com que os mesmos sejam válvula ureterovesicular impede o refluxo da
reabsorvidos. A permeabilidade do epitélio urina (REECE, 2006).
tubular proximal para a uréia e muito menor
do que para a água, assim mais da metade da 3. Composição fisiológica da urina
uréia no filtrado glomerular permanece além Através da urina são eliminadas
do túbulo proximal (REECE, 2006). substâncias químicas que estejam em excesso
ou sejam tóxicas para o organismo. A
2.7 Secreção tubular principal função da urina é a eliminação da
A secreção tubular atua em direção amônia (NH3). Quando as células produzem
oposta à reabsorção, na qual diversas as proteínas, um pouco de amônia é formada
substâncias são transportadas do interior dos e, por ser tóxica, deve ser eliminada
capilares peritubulares para o fluído rapidamente. Para poupar a água do
intersticial e então para a luz dos túbulos organismo a maior parte desta é transformada
sendo eliminadas através da urina. Como numa substância menos solúvel em água e
exemplo tem-se antiporte de hidrogênio que também menos tóxica, a uréia, sendo o fígado
acompanha a reabsorção de sódio no túbulo responsável por esta atividade (CAMPOS et
proximal e distal e o potássio sendo secretado al., 2005).
no segmento retilíneo e no néfron distal. A composição da urina varia de acordo
Determinadas substâncias são eliminadas do com a hora do dia, estado físico, dieta e saúde
organismo pelos mecanismos de secreção do indivíduo. Os três maiores componentes da
tubular após metabolização no fígado. Os urina são: água, uréia e cloreto de sódio.
processos de reabsorção e de secreção ativa Quase todas as substâncias presentes na urina
dos túbulos distais são influenciados por estão presentes no sangue, mas em
hormônios como vasopressina, angitensina II quantidades diferentes. Algumas substâncias
e aldosterona, pela quantidade total de solutos, como a glicose, por exemplo, têm um alto
pela dieta, pelo equilíbrio ácido-base e pelo limiar renal, ou seja, esta substância tem que
fluxo do filtrado (VERLANDER, 2004). alcançar um alto nível (limiar) no sangue
antes que seja detectável na urina. Outras,
2.8 Concentração da Urina como as cetonas, têm um baixo limiar renal,
O mecanismo para concentrar o fluído sendo removidas do sangue com eficiência
tubular depende da existência de uma (CAMPOS et al., 2005; VERLANDER, 2004;
osmolaridade alta no fluído intersticial da REECE, 2006).
medula renal, sendo esta aumentada de acordo
com a distância do córtex, atingindo o 4. Coleta e exame da urina

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Em ruminantes, na maioria das corpos cetônicos (ORTOLANI, 2003), bem


situações, a urina pode ser facilmente coletada como degradação de glicose e bilirrubina e
por micção espontânea, a não ser nos casos de alterações no pH resultante da degradação
oligúria ou anúria. Quando tal forma de coleta bacteriana de uréia em amônia (HENDRIX,
não é possível, o cateterismo, ou ainda a 2005). A exposição direta da amostra à luz
cistocentese surgem como alternativas, solar pode ainda diminuir a presença de
principalmente em situações nas quais se pigmentos biliares, caso estes estejam
deseja uma amostra estéril para exame presentes (GARCIA-NAVARRO, 1996).
microbiológico. Em pequenos ruminantes Dessa forma quando não for possível a
machos o cateterismo é de difícil execução realização imediata da análise recomenda-se
devido a algumas particularidades anatômicas que a amostra seja refrigerada numa
como a flexura sigmóide e o processo uretral. temperatura de 4°C, por um período de seis a
Assim, a forma mais simples de conseguir 12 horas (FINCON, 1997; HENDRIX, 2005).
amostras de urina em caprinos e ovinos sem o Amostras que precisarem ser transportadas
uso do cateterismo é através da oclusão da para análise por um tempo superior a 12 horas
respiração por cerca de 15 segundos, período podem ser conservadas através da adição de
após o qual geralmente ocorre a micção determinadas substâncias, como formalina,
(GARCIA-NAVARRO, 1996; ORTOLANI, tolueno ou timol (GARCIA-NAVARRO,
2003). 1996). A formalina constitui o melhor
Alguns autores recomendam o uso de conservante, entretanto pode interferir em
diuréticos como uma alternativa para coleta de alguns testes bioquímicos, e, por esse motivo,
urina em pequenos ruminantes (MEYER et tais testes devem ser realizados antes de sua
al., 1995; ORTOLANI, 2003), porém adição (HENDRIX, 2005).
alterações na composição e na densidade
urinária poderão ocorrer, mascarando os 5. Exame físico da urina
resultados, uma vez que estes fármacos O exame físico da urina é uma etapa
favorecem a perda renal de potássio (MEYER realizada a partir da observação da amostra
et al., 1995). A furosemida é o diurético mais em um recipiente de vidro transparente. Nesta
utilizado em animais domésticos, entretanto é parte do exame são avaliados o volume
necessária uma atenção especial quando é urinário, a coloração, o odor, o aspecto e a
realizada análise de amostras obtidas através densidade específica da urina (FINCON,
da administração deste fármaco, uma vez que 1997).
o mesmo pode causar diminuição do pH
urinário por diminuir a reabsorção de amônia. 5.1 Volume urinário
A dose de furosemida recomendada em O volume urinário eliminado
ruminantes varia entre 0,8 e 1,5 mg/kg, e a diariamente varia de acordo com a
micção ocorre, em média, 17 minutos após a temperatura, alimentação, clima, exercício,
administração endovenosa do medicamento idade, suplementação de sal, ingestão de
(ORTOLANI, 2003). líquidos pelo animal, doença sistêmica e
Após a coleta da urina é recomendado administração de medicamentos (CARLSON,
que o exame seja realizado em no máximo 30 1993). Pequenos ruminantes costumam
minutos (FINCON, 1997; ORTOLANI, 2003; excretar entre 10 e 40 mL de urina por kg de
HENDRIX, 2005). Em amostras que peso vivo (HENDRIX, 2005). Em ruminantes,
repousam por longos períodos à temperatura devido à absorção de água no rúmen, a
ambiente pode acorrer dissolução de cilindros diminuição do volume urinário só irá
devido ao pH alcalino observado na urina de acontecer após dois dias de jejum hídrico e,
herbívoros (GARCIA-NAVARRO, 1996), quanto maior for a ingestão de proteína ou
além de diminuição em até 40% da nitrogênio não-protéico maior será a ingestão
concentração de substâncias voláteis como os de água, com consequente aumento da

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produção urinária (ORTOLANI, 2003). Já em (GARCIA-NAVARRO, 1996), uma vez que


casos de acidose lática ruminal o volume reflete a ação dos túbulos renais e ductos
urinário estará diminuído (OGILVIE, 2000). coletores sobre o filtrado glomerular.
A anúria, por sua vez, pode ser observada em Entretanto, para interpretação correta do
casos de urolitíase obstrutiva, afecção resultado é necessário avaliar o estado de
relativamente comum em pequenos balanço hídrico do animal no momento em
ruminantes machos cuja alimentação é rica em que a urina foi coletada (FINCON, 1997). A
grãos (DORIA et al., 2007). faixa normal para densidade específica
descrita para animais de grande porte é de
5.2 Coloração, odor e aspecto 1020 – 1050, entretanto em animais jovens é
A urina normalmente possui uma normal encontrar valores inferiores a 1010,
coloração amarelada, que é devida à presença devido à elevada ingestão de líquidos
de urocromos, um pigmento resultante da (CARLSON, 1993). Segundo Hendrix (2005)
combinação entre urobilina e urobilinogênio a densidade específica urinária de ovinos varia
com um peptídeo (FINCON, 1997). Podem entre 1020 e 1040. A mensuração da
existir variações na coloração urinária que vão densidade deve ser realizada através do
desde o amarelo claro, característica de urinas refratômetro, uma vez que as tiras reagentes
mais diluídas, que possuem baixa densidade, podem levar a resultados menos confiáveis.
até o amarelo escuro, comum em urina com Em casos de acidose lática ruminal, a
alta densidade (HENDRIX, 2005). Pode-se densidade específica da urina encontra-se
ainda observar a coloração esverdeada – diminuída (OGILVIE, 2000).
comum quando há aumento da concentração
de pigmentos biliares, avermelhada – quando 6. Exame químico da urina
há hematúria, marrom-avermelhada – quando Esta etapa é realizada a partir de testes
há hemoglobinúria, ou enegrecida – quando químicos da amostra, bastante simples, que
há mioglobinúria (HENDRIX, 2005). podem ser feitos a partir da utilização de fitas
Quanto ao odor, este é mais reagentes. Os parâmetro avaliados no exame
característico nos machos adultos, mas pode químico da amostra são o pH, a proteína, a
ser alterado devido à infecção por glicose e os corpos cetônicos (FINCON,
microrganismos que degradam uréia ou ainda 1997).
pela administração de certas drogas
(FINCON, 1997). 6.1 pH
O aspecto da urina, por sua vez, é O pH da urina é determinado pela
normalmente claro, de aparência translúcida; a presença do íon H+ na urina e reflete o
turbidez pode ocorrer como resultado da metabolismo corporal do paciente (GARCIA-
presença de mucos, bactérias, células, ou NAVARRO, 1996). Em ruminantes adultos, a
ainda devido à presença de cilindros faixa normal de pH tem um valor alcalino,
(HENDRIX, 2005). No que diz respeito a que pode oscilar entre 7 e 9 (CARLSON,
pequenos ruminantes, não foram encontrados 1993). Em ovinos, segundo Hendrix (2005) o
relatos na literatura de alterações na pH urinário está situado entre 6 e 8,5.
coloração, aspecto ou odor que sejam comuns O pH urinário pode variar em
ou inerentes a estas espécies. decorrência de diversos fatores. A
alimentação constitui um deles: quanto mais
5.3 Densidade específica urinária rica em fibras, mais alcalino será o pH
A densidade específica corresponde à urinário, e, quanto mais rica em grãos mais
mensuração direta do número de partículas na ácido será o pH. Assim a urina de animais
amostra de urina a ser analisada (MEYER et criados à pasto é mais alcalina que a urina de
al., 1995) e é útil quando se deseja avaliar a animais criados sob regime de confinamento,
capacidade dos rins de concentrar a urina alimentados com dietas ricas em

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concentrados. O jejum também pode alterar o observados após administração de algumas


valor do pH, tornando-o mais alcalino drogas, como cefalosporinas e penicilinas. Em
(ORTOLANI, 2003). ovinos não há presença de glicosúria
Em casos de acidose metabólica ou fisiológica (HENDRIX, 2005). Já nos casos
respiratória pode ocorrer diminuição do pH de enterotoxemia do tipo D (rim pulposo) a
urinário, bem como em casos de alcalose este glicosúria é um achado frequente nesta
pode encontrar-se mais elevado (GARCIA- espécie (CARLSON, 1993). Em ovinos a
NAVARRO, 1996; FINCON, 1997; glicosúria, acompanhada de decréscimo no
ORTOLANI, 2003; HENDRIX, 2005). Na volume urinário, aumento na densidade
acidose lática ruminal o pH estará diminuído específica e acidúria são frequentemente um
(OGILVIE, 2000). Assim a mensuração do indicador diagnóstico de acidose lática
pH urinário pode ser útil para estimativa do ruminal (OGILVIE, 2000).
défict de bicarbonato sanguíneo para correção
do pH do sangue nos casos de acidose 6.4 Hemácias, hemoglobina e mioglobina
metabólica em bovinos (ORTOLANI, 2003). Fisiologicamente são encontradas
Seifi et al. (2004) demonstraram que o pH hemácias (hematúria), hemoglobina
pode ser útil para avaliar, no pré-parto, o risco (hemoglobinúria) ou mioglobina
de febre do leite em fêmeas bovinas. (mioglobinúria) na urina. A presença de
hemácias é indicativo de trauma do trato
6.2 Proteína urinário, enquanto hemoglobinúria
Proteínas normalmente estão ausentes normalmente ocorre quando há hemólise
na urina, entretanto podem ser encontradas em intravascular (GARCIA-NAVARRO, 1996).
pequenas quantidades em decorrência de Já a mioglobina é encontrada na urina quando
exercício físico e estresse. A proteinúria pode existem danos musculares graves (HENDRIX,
ser de origem pré-renal, renal ou pós-renal. A 2005).
proteinúria pré-renal pode ser devida a um
aumento temporário da permeabilidade 6.5 Corpos cetônicos
glomerular por congestão dos capilares locais, Os corpos cetônicos são resultado do
como ocorre nos casos de atividade muscular metabolismo dos ácidos graxos e
intensa, estresse ou febre (GARCIA- correspondem ao ácido acetoacético, o ácido
NAVARRO, 1996). A proteinúria renal é bethidroxibutírico e à acetona (GARCIA-
decorrente de lesão tubular, como nos casos NAVARRO, 1996). Afecções que alterem o
de amiloidose renal ou glomerulonefrite metabolismo nos carboidratos, como a
(HENDRIX, 2005). A proteinúria de origem toxemia da prenhez nos pequenos ruminantes,
pós-renal normalmente é devida a inflamações podem levar à mobilização das gorduras
do trato urinário ou genital (GARCIA- corporais para produção de energia, com
NAVARRO, 1996; HENDRIX, 2005) ou consequente aumento dos corpos cetônicos no
ainda a traumatismos causados por sangue (HENDRIX, 2005). Quando as
cateterização (GARCIA-NAVARRO, 1996). concentrações sanguíneas destas substâncias
Em urinas com pH superior a 8,5 pode estão muito elevadas, as mesmas passam a ser
ocorrer um falso-positivo para presença de excretadas na urina, em quantidades também
proteína (MEYER et al., 1995). Segundo muito elevadas (ORTOLANI, 2003). Assim a
Hendrix (2005) em ovinos não há presença de análise da urina quanto à presença de corpos
proteína na urina normal, ou quando há, é de cetônicos pode ser utilizada como indicativo
forma vestigial. de risco de toxemia da prenhez em ovelhas
(RUIZ-MORENO et al.,1997). Os corpos
6.3 Glicose cetônicos ainda podem ser encontrados na
A glicose não está presente na urina urina de cabras e ovelhas prenhes com bom
normal, entretanto falso-positivos podem ser escore corporal, quando estas são submetidas

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a um jejum superior a 24 horas, o que não tipos celulares também podem ser
deve ser considerado como cetose encontrados de acordo com a forma de coleta
(ORTOLANI, 2003). da amostra de urina (HENDRIX, 2005).

6.6 Outros exames complementares 7.2 Cilindros


6.6.1 Ácido metilmalônico, alantoína e ácido Os cilindros são acúmulos de proteína e
úrico urinário material celular formados nos túbulos renais
O ácido metilmalônico é excretado (CARLSON, 1993). Podem ser do tipo
através da urina quando as sua concentração hialino, epitelial, granuloso, hemático,
sanguínea está muito alta, devido à carência leucocitário ou céreo. Em urinas alcalinas os
de vitamina B12. Assim, tal presença do ácido cilindros se dissolvem rapidamente e, por isso,
metilmalônico pode ser usada para raramente são observados na urina de
diagnóstico de carência dessa vitamina. A herbívoros (HENDRIX, 2005).
presença desse ácido foi detectada na urina de Quando encontrados em qualquer
ovelhas submetidas a dietas carentes em espécie sugerem glomerulonefrite, febre
cobalto, que implica na diminuição dos teores acompanhada de congestão passiva ou ainda
de vitamina B12 (ORTOLANI, 2003). grave desidratação seguida de alteração no
A alantoína e o ácido úrico urinário são fluxo renal (CARLSON, 1993).
substâncias derivadas das purinas cuja
mensuração na urina pode ser útil para estimar 7.3 Cristais
a síntese de proteína microbiana no rúmen A formação de cristais em ruminantes
(FUJIHARA et al., 2003). na maioria das vezes está associada à urina
Ao contrário das demais provas do alcalina. Os mais comumente encontrados são
exame químico da urina, que são facilmente os de estruvita, carbonatos e silicatos, e
mensuráveis através de fitas reativas, a análise podem estar diretamente relacionados com a
de ácido metilmalônico, alantoína e ácido urolitíase (CARLSON, 1993).
úrico urinário requerem uma técnica mais
específica, como HPCL (High pressure liquid 7.4 Bactérias
chromatography), uso de kits diagnósticos ou As bactérias são ocasionalmente
método colorimétrico, respectivamente observadas no exame de urina, e aparecem
(ORTOLANI, 2003). como pequenos pontos ou traços. A sua
presença em números pequenos é considerada
7. Exame do sedimento urinário normal, indicando contaminações superficiais
O exame do sedimento urinário é em amostras obtidas a partir de micção natural
viabilizado a partir da centrifugação de (CARLSON, 1993). Nas infecções urinárias, a
aproximadamente 5 mL da amostra a 1500 quantidade de bactérias é maior, podendo, em
rpm durante cinco minutos. A partir daí o alguns casos, haver a formação de massas
sedimento é observado no microscópio óptico alongadas que lembram cilindros (GARCIA-
sob o aumento de 400x, investigando-o NAVARRO, 1996). Nestes casos é
quanto à presença de células, cilindros, recomendada a colheita de amostra estéril para
cristais, bactérias e outros elementos coloração de Gram, cultura e teste de
(CARLSON, 1993). sensibilidade (antibiograma). Em ruminantes
machos as infecções do trato urinário são raras
7.1 Células (CARLSON, 1993).
Na sedimentoscopia é normal encontrar
leucócitos e hemácias num número máximo Considerações finais
de cinco por campo de grande aumento A análise da urina constitui um
(CARLSON, 1993). Números superiores a instrumento útil para auxílio no diagnóstico de
esses indicam piúria ou hematúria. Outros diversas enfermidades, uma vez que o fluido,

Medicina Veterinária, Recife, v.3, n.2, p.30-38, abr-jun, 2009


Araújo et al. Urinálise como instrumento auxiliar no diagnóstico de enfermidades em pequenos ruminantes 38

na maioria das situações, é de fácil coleta, e o on the urinary excretion of purine derivatives in
procedimento laboratorial, rápido e de baixo goats. Journal of Agricultural Science, v.140,
custo. Entretanto, no que diz respeito a n.1, p.101-106, 2003.
pequenos ruminantes, existem poucos GARCIA-NAVARRO, C.E.K. Manual de
trabalhos que tratam sobre o assunto, bem Urinálise Veterinária. 1. ed. São Paulo: Livraria
como de achados mais importantes e seu Varela, 1996. 95p.
possível significado nos processos patológicos HENDRIX, C.M. Procedimentos laboratoriais
destas espécies. Assim, enfatiza-se a para técnicos veterinários. 4. ed. São Paulo:
necessidade de mais pesquisas, para que as Rocca, 2005. 556p.
informações obtidas a partir da urinálise
KÖNIG, H.E.; LIEBICH, H-G. Anatomia dos
possam esclarecer melhor a respeito das
animais domésticos. Porto Alegre: Artmed, 2004.
enfermidades, ou mesmo em situações Cap 9, p.103 – 118.
fisiológicas em pequenos ruminantes.
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