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CASO
Cada cliente é diferente. Ainda que você receba pessoas com a mesma idade, sexo,
orientação sexual, escolaridade, classe social, diagnóstico e objetivos, suas histórias de
vida, a existência ou não de redes de suporte social, as habilidades pessoais e várias outras
características farão com que o modo de ver o mundo e lidar com as situações de cada um
seja único. E, todos esses aspectos, se somarão às características pessoais do profissional
para fazer com que a forma de trabalhar com cada cliente também seja única.
Mas há um método a ser seguido para a definir como trabalhar cientificamente
nessa relação singular que é a clínica psicológica. É através da conceitualização dos casos
que o terapeuta que atua sob um enfoque cognitivo-comportamental conseguirá perceber
o quadro geral e planejar como atuar. É assim que ele poderá identificar se o cliente se
percebe de forma realista ou distorcida, quais os pontos que mais demandam sua atenção,
com que apoios pode contar para ajudá-lo na intervenção, que técnicas terão mais chance
de sucesso e quais precisarão ser adaptadas (ou deixadas de lado). Uma boa
conceitualização direciona sobre hipóteses diagnósticas, fatores que podem dificultar a
adesão e permite um acompanhamento mais objetivo e realista do caso.
A conceitualização é a base de tudo, e, sem base, nenhuma construção é segura,
ou permanece de pé. Sua importância é tamanha, que Bieling e Kuyken (2008, p. 53)
indicam que a formulação de caso é o “coração da prática com base em evidências”. Mas,
sabemos, fazer uma boa conceitualização pode ser trabalhoso, e isso faz com que alguns
profissionais ignorem essa etapa ao iniciar um atendimento ou a façam “pro forma”. Esse
é um dos piores erros que um terapeuta pode cometer.
Ao escolher ignorar a conceitualização, o profissional não será capaz de definir
um plano integrado de atendimento e passará a viver dependente de como foi a semana
do cliente e dos assuntos que ele, cliente, resolver falar em terapia. Qual é o problema
disso? O cliente provavelmente evitará os assuntos que geram desconforto, exceto aqueles
que alimentem seus sintomas depressivos e ansiosos.
E, para piorar, esse erro costuma ser seguido por um segundo, que é ignorar a
conceitualização depois que os atendimentos já avançaram um pouco, por se esquecerem
que essa é uma técnica dinâmica e deve ser ajustada sempre que uma nova informação
pertinente surgir (Beck, 2022). Bem como se esquecerem que ela representa o
planejamento do caso, não uma formalidade sem função, que pode ser esquecida após
terminada. Ignorar a conceitualização faz com que a efetividade da terapia seja colocada
em xeque e aumenta exponencialmente a chance que o profissional se veja “perdido”, ou
“estagnado”, sem saber como prosseguir com um caso. E, pior, sem conseguir identificar
onde errou.
Adotar um protocolo não vai eliminar a importância da conceitualização do caso.
Ao contrário, ter um protocolo base apenas evitará que o profissional navegue perdido se
a escolha de tal protocolo se baseou no que ele notou ao construir a conceitualização e se
escolheu corretamente.
Ambos – conceitualização e uso de protocolos validados – são pressupostos da
atuação profissional tecnicamente embasada em Psicologia e podem ser lidos como
formas de mostrar respeito a um cliente, buscando oferecer a ele o melhor trabalho que
somos capazes. Assim, visando colaborar com os profissionais que entendem a
importância desse passo inicial – e contínuo -, esse capítulo apresentará uma proposta de
como fazer a conceitualização dos casos.
Construção de conhecimento não começa com respostas, ele começa com boas
perguntas sobre o que não sabemos. O mesmo ocorre com a conceitualização de novos
casos. O profissional terá algumas informações de seus clientes, mas há áreas gerais a
serem cobertas e pontos-cegos que precisam ser percebidos, em especial depois das três
primeiras sessões de atendimento clínico. Então, uma boa forma de começar uma
conceitualização é se fazer algumas perguntas no final de suas três primeiras sessões:
Conceitualização de Caso
Identificação do cliente Deve incluir todas as informações sociodemográficas
básicas e qualquer outra que o profissional julgar ter impacto
sobre possíveis crenças de interesse do cliente. E. g.: Nome,
nome social (se houver), gênero, idade, estado civil,
escolaridade, raça/cor, filho adotivo ou não, etc.
Genograma Representação gráfica da estrutura familiar/relacional do
cliente.
Cliente 1: Mulher, 25 anos, branca, solteira. Trabalha como vendedora em uma loja de
roupas e cursa Letras, em faculdade particular.
Segunda- Terça- Quarta- Quinta- Sexta- Sábado Domingo
feira feira feira feira feira
Manhã Acorda Acorda Acorda Acorda Acorda Acorda Acorda
(5h40) (5h40) (5h40) (5h40) (5h40) (5h40) (10h)
Trabalha Trabalha Trabalha Trabalha Trabalha Trabalha Arruma
(8h – 12h) (8h – 12h) (8h – 12h) (8h – 12h) (8h – 12h) (8h – 12h) casa
Lava roupa
Tarde Almoço Almoço Almoço Almoço Almoço Almoço Almoço
(12h -13h) (12h -13h) (12h -13h) (12h -13h) (12h -13h) (12h -13h) (14h)
Estuda/ Estuda/ Estuda/ Estuda/ Estuda/ Estuda/
Prepara Prepara Prepara Prepara Prepara Prepara
trabalhos trabalhos trabalhos trabalhos trabalhos trabalhos
Trabalha Trabalha Trabalha Trabalha Trabalha Terapia
(13h – 18h) (13h – 18h) (13h – 18h) (13h – 18h) (13h – 18h)
Noite Lanche Lanche Lanche Lanche Lanche Arruma Visita
(18h30) (18h30) (18h30) (18h30) (18h30) cabelo familiars
Faculdade Faculdade Faculdade Faculdade Faculdade Arruma Vê seriados
(19h – (19h – (19h – (19h – (19h –
unhas
22h30) 22h30) 22h30) 22h30) 22h30)
Dorme Dorme Dorme Dorme Dorme
(00h30) (00h30) (00h30) (00h30) (00h30)
Coletar a queixa inicial já é uma prática comum entre psicólogos, mas nem sempre
o profissional junta a tais queixas suas próprias impressões desde o começo dos
atendimentos. Essa união pode dar uma perspectiva do quanto o cliente se conhece e quão
realista é sobre o funcionamento e potencial da terapia. Já anotar exemplos típicos de
situações-problema ajuda a entender o padrão individual de ralações estabelecidas pelo
cliente. Situações que se repetem, ou em que ele não reage da melhor maneira para si
mesmo, palavras, expressões ou pensamentos característicos, formas de se sentir e de agir
ou de comportamentos evitativos. Isso ajuda a identificar esquemas ativados e pontos que
podem se tornar foco da terapia (E. g.: crenças disfuncionais, comportamentos que
reforçam padrões não-adaptativos). Esse é o mesmo motivo para registrar os pensamentos
disfuncionais mais presentes.
Registrar diagnósticos passados também colabora para entender o quadro geral.
Mas, como muitos diagnósticos são mal feitos ou podem estar equivocados/superados, é
sempre útil saber quem o forneceu e quando. Isso ajuda a pensar se é um item histórico,
que pode ou não ter moldado crenças, ou algo com influência ainda presente nos
problemas e demandas do Cliente.
Tomar nota da medicação também visa ajudar a explicar os sintomas. Alguns
remédios ou interações medicamentosas podem gerar sintomas relevantes, como insônia
ou hipersonia, falta de atenção, irritabilidade, alterações no humor, etc. Alguns são
potencialmente perigosos se utilizados em conjunto ou inúteis, se tomados de forma
incorreta. Para cada medicamento, o profissional deve checar indicações de uso, efeitos
e efeitos colaterais e, se puder, efeitos de interações medicamentosas e risco, se misturado
com outras substâncias.
A Terapia dos Esquemas trouxe um complemento muito interessante para a
Terapia Cognitivo-comportamental clássica, ao ordenar padrões ligados a crenças
centrais em esquemas. Por vezes, caracterizar e nomear esses esquemas pode ser útil para
o trabalho, em especial quando o cliente entende os aspectos cognitivos do problema, mas
não consegue modificar a forma como os sente.
E, como é bem sabido, vivemos sobre influências diversas, registrar as principais
influências ambientais e as formas como cultura geral, cultura familiar e relações mais
significativas (ou a falta delas) impactam o caso pode ajudar a construir relações
funcionais úteis para planejar os atendimentos. Conhecer o nível de independência
funcional do cliente também ajuda a pensar no que pode ser pedido para ele e em tarefas
terapêuticas que podem demandar o envolvimento de outras pessoas, assim, conhece-lo
é uma informação útil. Além disso, por vezes percebemos influências ou padrões que
ainda não entendemos, por isso, ter um campo “outros” para registrar e, no futuro,
recategorizar pode ser útil.
Todos temos nossos gatilhos e assuntos mais sensíveis. Em terapia esses assuntos
podem precisar ser trabalhados, mas o terapeuta deverá ter a sensibilidade para encontrar
como fazê-lo, quando fazê-lo e sempre deixar a opção final para o cliente, pois é da vida
dele que se está tratando. Então, fazer um lembrete que possa ser revisitado rapidamente
sobre esses temas pode ajudar o profissional a não desrespeitar seu cliente, forçando
temas sobre os quais ele não está pronto ou ainda não deseja conversar.
Da mesma forma, todos temos qualidades e potencialidades que podem ser
utilizadas para nos ajudar ou mostradas para que nossa autopercepção seja mais realista.
Um cliente é muito mais do que o somatório de seus problemas, e conhecer seus pontos
fortes torna essa percepção mais concreta.
Outro item útil para o planejamento do caso é conhecer a presença, o tipo e
qualidade do suporte social recebido pelo cliente. Por vezes quem o fornece poderá ser
acionado para colaborar com a terapia. Outras vezes, ampliar o suporte social será uma
meta terapêutica.
Por fim, chegamos a ordenação de nossas ações. É impossível abordar todos os
pontos importantes ao mesmo tempo e, algumas vezes, alterar um deles modifica vários
outros de forma colateral (tornando desnecessário trabalhar com alguns temas). Ordená-
los em uma sequência de aproximação sucessiva das metas, ou pela urgência de
intervenção ajuda a organizar como os atendimentos deverão ser conduzidos, os temas de
agenda daS próximaS sessõeS (com plural demarcado, já que fazem parte de um plano de
longo prazo) e a saber quando recuar, fortalecer um ponto que parecia resolvido ou fazer
desvios. Serve, ainda, como medida de efetividade terapêutica.
Mas as metas precisam ser específicas e realistas. Por exemplo, “melhorar a
autoestima do cliente” não é uma meta, porque a autoestima é um conceito relativo a
diversos aspectos e que pode ser interpretado de formas muito distintas. Mas “ampliar as
atividades prazerosas do cliente”, “ampliar o número, tempo e qualidade das atividades
de autocuidado” e “trabalhar crenças sobre valorização de atividades que não alcancem
100% de sucesso e/ou que não gerem ganho concreto observável” são possibilidades
específicas. E sempre que houver risco à vida, presença de comportamento suicida
(ideação, planejamento ou tentativa de suicídio) ou para-suicida (comportamento de risco
com potencial fatal. E. g.: Consumo de álcool e direção), algum tipo de decisão com
potenciais consequências catastróficas (E. g.: Furar o preservativo para engravidar e
manter o casamento, com um marido que indicou abertamente não desejar filhos e nem
manter a união) e/ou algum tipo de data limite que seja muito importante para o cliente
(E. g.: Precisa conseguir fazer viagens de avião em 3 meses, porque pode perder uma
promoção se não conseguir fazer isso), os temas envolvidos passam a ser prioridade no
atendimento.
Ideação suicida com planejamento e desesperança excessiva são situações
urgentes. Se identificadas, devem tomar precedência sobre qualquer outro objetivo. Caso
não esteja presente, o terapeuta tem mais liberdade para escolher por onde iniciar e seguir
seu trabalho. Por vezes os aspectos mais facilmente modificáveis podem ser boas opções,
por aumentar o senso de autoeficácia do cliente. Em outros casos será necessário começar
com os aspectos que geram maior sofrimento ou consequências negativas para o cliente.
Essa decisão só pode ser tomada considerando o todo do caso.
E, por fim, registrar técnicas e ideias que acredita poderem ser úteis em algum
ponto do atendimento, ou que o profissional (ou a literatura) já indicou como úteis em
casos semelhantes. Além de definir formas objetivas e mensuráveis (evidências) da
efetividade do tratamento. Nesse ponto é muito comum que escalas de autorrelato sobre
a sintomatologia sejam adotadas, aplicadas periodicamente, para fornecer uma medida
para a avaliação.
De posse de todo esse conjunto de informações definir o plano de trabalho é algo
bem mais simples. E, se o profissional lembrar da natureza dinâmica dessa
conceitualização, revisá-lo e analisar se o trabalho feito está funcionando, também poderá
ser algo mais fácil de realizar.
Bibliografia
Beck, J. (2022). Terapia Cognitivo Comportamental: teoria e prática. 3ª ed. Artmed.
Friedberg, R. D., & McClure, J. M. (2019). A Prática Clínica da Terapia Cognitiva com
Crianças e Adolescentes. Artmed.
Linehan, M. M. (2018). Treinamento de habilidades em DBT: manual de terapia
comportamental dialética para o terapeuta. 2ª ed. Artmed.
Neufeld, C. B., & Cavenage, C. C. (2010). Conceitualização cognitiva de caso: uma
proposta de sistematização a partir da prática clínica e da formação de terapeutas
cognitivo-comportamentais. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas, 6(2), 3-36.