Professor de Direito Civil da UERJ. Procurador do Estado/RJ
1. Introdução vantagens para os proprietários, para os
O direito de vizinhança é o ramo do prédios dominantes. A servidão, portan- direito civil que se ocupa dos conflitos de to, se distingue do direito de vizinhança, interesses causados pelas recíprocas in- seja pela fonte, seja pela finalidade. Pela terferências entre propriedades imóveis fonte, porque as servidões têm sempre próximas. Não há necessidade, como se fonte convencional ou contratual; e pela sabe, de serem as propriedades imóveis finalidade, porque as servidões visam à contíguas; basta serem próximas para que criação de vantagem para a propriedade possa ter lugar a interferência, que será, dominante, enquanto que a vizinhança então, coibida pelas normas protetoras dos surge sempre da lei, por meio de normas direitos de vizinhança. imperativas que visam a evitar prejuízos. Portanto, trata-se de normas que Mais uma característica do direito tendem a compor, a satisfazer os confli- de vizinhança: procura-se, mediante as tos entre propriedades opostas com o ob- normas que compõem as relações de vi- jetivo de tentar definir regras básicas zinhança, coibir as interferências da situação de vizinhança. Busca-se, indevidas nos imóveis vizinhos. Hoje em como disse, a satisfação de interesses dia é adotado pela doutrina o termo in- de proprietários opostos. terferência, que substituiu o termo ante- rior - imissão - por se entender que este 2. Características do direito de vi- último possui um significado algo mate- zinhança rial, concreto, palpável. Por isso, com a São características dos direitos de evolução do direito de vizinhança, o ter- vizinhança, em primeiro lugar, regular mo técnico que significa o incômodo, o situações entre proprietários, estabele- distúrbio indesejado passou a ser inter- cendo, nesse sentido, limitações, res- ferência, para se ampliar a possibilidade trições ao uso da propriedade, ou seja, de defesa do proprietário diante das in- trata-se aqui de deveres criados pela lei. gerências não corpóreas, não palpáveis. Uma outra característica do direi- Por outro lado, essas interferênci- to de vizinhança é que nesse tema não as devem ser sempre indiretas ou se busca criar vantagens para os propri- mediatas, decorrentes, portanto, da pró- etários, para qualquer prédio, ao contrá- pria utilização do imóvel vizinho, das pro- rio, visa-se tão-somente a evitar prejuí- ximidades. Nunca deverá ser uma in- zos. Daí essas restrições serem deno- terferência direta ou com esse fim; caso minadas pela doutrina restrições defen- contrário, não se está em sede de direi- sivas. As restrições, no direito civil, po- to de vizinhança, mas sim de ato ilícito. dem decorrer também da autonomia pri- Se, por exemplo, o particular atira uma vada. Como exemplo de restrição pedra em imóvel vizinho, esta situação negocial, nós temos as servidões que, independe das regras de vizinhança para ao contrário do direito de vizinhança, vi- a sua composição, pois se trata mesmo sam a conferir justamente maiores de ato ilícito e será sancionado como tal. Por outro lado, noutro exemplo, se em Texto elaborado a partir da transcrição fonográfica de exploração de uma pedreira, voam frag- palestra proferida na EMERJ em 11 de outubro de 2002. mentos para a propriedade próxima, aí
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sim, inserem-se as normas do direito de grandes proporções, o que vem sendo vizinhança. desenvolvido pela jurisprudência e tam- O tema liga-se diretamente à fun- bém a tese do Prof. San Tiago Dantas, ção social da propriedade, de índole que é a origem e o melhor trabalho de constitucional, que permeia toda a es- vizinhança em nosso território, em nos- trutura do direito de propriedade. sa literatura jurídica e que ganhou lar- Hoje em dia, já é quase pacífico que ga aplicação, pacificando verdadeira- a propriedade tem ao lado do seu as- mente os tribunais. pecto estrutural, formado por seus ele- Costuma-se dizer que interferên- mentos econômico e jurídico (elemento cias sempre haverá; o simples fato do econômico, ou interno, é a senhoria, a convívio entre propriedades próximas já possibilidade de usar, fruir e dispor e o é, por si só, um motivo de acirramento elemento jurídico, ou externo, é a pos- de ânimos e, portanto, costuma-se até sibilidade de repelir as ingerências definir a relação de vizinhança como alheias) um aspecto funcional, por força uma relação de confronto e não de coo- de ditame constitucional, que deve peração, onde a satisfação do interesse permear os aspectos econômicos e jurí- de um proprietário implica restrições ao dicos do instituto. interesse do proprietário vizinho. Então, O fenômeno da urbanização, do de- se interferências sempre haverá, o que senvolvimento das cidades, torna também resta é distinguir quais são as conside- mais e mais vasto o campo de incidência radas lícitas e que poderão ser pratica- dos conflitos de vizinhança, sobretudo em das, daquelas que, ao contrário, não têm edifícios de apartamentos, os condomí- esse caráter e devem ser sancionadas, nios regulamentados pela Lei 4.591/64 e reprimidas pelo ordenamento jurídico. pelo novo Código Civil. A esse propósito, San Tiago Dantas já afirmava, na aliás, o Código de 2002, em passagem que sua tese de cátedra, que o direito de ainda não mereceu maior atenção da dou- vizinhança não tolera soluções unilate- trina, erigiu como dever do condômino dar rais, sob pena de se aniquilar o direito às suas partes a mesma destinação que de uma das partes - ou se tolhe a ativi- tem a edificação, e não as utilizar de ma- dade e se priva o titular da propriedade neira prejudicial ao sossego, salubridade de seu uso, da sua utilização, que con- e segurança dos possuidores, ou aos bons siste em elemento integrante da senho- costumes (artigo 1.336, IV). ria, do conteúdo econômico da proprie- dade, ou, por outro lado, caso se permi- 3. Parte geral do direito de vizinhança ta esse uso, pode-se estar afetando di- Vamos abordar aqui, em primeiro retamente a propriedade próxima, que lugar, o que se denomina de parte geral terá, já por sua vez, a sua utilização com- dos direitos de vizinhança, que são as prometida pela interferência do vizinho. normas que vão definir a possibilidade Logo, em tema de direito de vizinhança, de uso da propriedade, os limites a esse a solução deve ser, preferencialmente, uso e quais as interferências que serão uma solução bilateral. coibidas. Voltando à questão central: quais Nesse primeiro momento, vamos interferências devem ser coibidas? Esse procurar definir quais sejam essas in- aspecto da parte geral do direito de vizi- terferências que devem ser tolhidas, re- nhança estava previsto no art. 554 do primidas, dentro desse aspecto geral, de- Código Civil de 1916, dispositivo que se marcando a diferença para com as ativi- constitui em uma das poucas cláusulas dades que são toleradas, admitidas, para gerais do antigo Código Civil. Esse arti- depois, em um segundo momento, in- go, de fato, fixa verdadeira cláusula ge- gressarmos nas regras especiais dos di- ral cujo conteúdo, como se sabe, amol- reitos de vizinhança, destacando, desde da-se a permitir a evolução do direito e já, que o novo Código consagrou, em a construção de critérios seguros em
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cada etapa da evolução sócio-econômica necessário perquirir os aspectos ativo e que se apresenta em nosso país. Dita passivo do uso da propriedade. cláusula geral, de certa forma, é pre- Sob o aspecto ativo, é necessário servada na sua essência, no novo Códi- saber se a utilização da propriedade está go Civil, mas ela é desdobrada em três dentro dos parâmetros já consagrados dispositivos: vale dizer, o artigo 554 do em determinada região. Por outro lado, Código de 1916 desdobra-se, portanto, sob o aspecto passivo, cabe avaliar a nos artigos 1277, 1278 e 1279 do Código receptividade abstrata do homem nor- de 2002 e, nesse sentido, na busca de mal, do homem médio, o que Ihering se distinguir quais são as interferênci- denominou de grau médio de as que devam ser coibidas daquelas que tolerabilidade, naquela determinada épo- devem ser permitidas e toleradas, é que ca e localidade, no sentido de que esses foram historicamente surgindo as teori- standards são sempre relativos, flexíveis. as do direito de vizinhança. Vejamos as Tal teoria, consagrada pelo Código principais delas. Civil Alemão (BGB), tem maior relevo entre nós, porque aplicada em nosso 3.1 Principais teorias do direito de ordenamento desde o Código de 1916 vizinhança (que, no particular, se inspirou no BGB), A primeira teoria que se propôs a sendo mantida pelo Código de 2002. Ali- cuidar da questão foi a teoria de ás, importa salientar que o novo Código, Spangenberg, romanista alemão que em ainda sob a influência da teoria em co- 1826, com base na experiência do Direi- mento, alterou a denominação da seção to Romano, sustentava a vedação das destinada aos direitos de vizinhança, chamadas imissões corpóreas, as que abandonando a expressão uso nocivo da eram palpáveis, portanto. Permitia-se ao propriedade para adotar a expressão uso proprietário vizinho qualquer atividade, anormal da propriedade. contanto que o incômodo não fosse cau- Como desdobramento dessa teoria sado por algo de material, e nessa teo- de Ihering, surge a subteoria do ria, como proibição à imissão corpórea, desequilíbrio, de Ripert, em 1902, que se se inseriam a água, a fumaça e a poei- assemelhava, por seu turno, à subteoria ra, consideradas interferências da pré-ocupação, de Demolombe. Para corpóreas e nocivas à propriedade. Ripert, o conflito de vizinhança estaria A essa teoria opôs-se a crítica de baseado em uma ruptura do equilíbrio que, por apenas alcançar as imissões que vigorasse em uma dada região. Esse corpóreas, excluía os rumores, os baru- rompimento seria causado pelo proprie- lhos e os maus cheiros, que freqüente- tário ou possuidor que iniciasse uma ati- mente interferem na propriedade vizi- vidade não ajustada aos parâmetros das nha. Essa tese da imissão material aca- atividades normalmente desenvolvidas bou sendo completamente refutada, já naquela localidade. Sobre ele, então, que no século XIX, pela falta de um critério rompia aquele equilíbrio, pesava a cor- seguro para se estabelecer a distinção respondente responsabilidade e, para se entre as imissões corpóreas e as incor- saber quando isto acontecia, Georges póreas. Ripert lançava mão do standard do uso A segunda teoria que se propôs a normal, e a pré-ocupação é que definia solucionar a questão foi a teoria do uso o grau de normalidade. O que era nor- normal, de Ihering, em 1862. Ihering pro- mal? Normal era a utilização que se fa- curava diferenciar os casos em que a zia naquela região, naquela localidade, interferência devesse ser suportada, naquela vizinhança. Essa teoria se cons- daqueles nos quais ela devesse ser tituiu em verdadeira arma da proprie- repelida. Para isso propôs, então, um dade doméstica contra o surto de indus- standard do uso normal da propriedade, trialização daquele momento, na medi- e para se aferir esse uso normal era da em que as fábricas, naquelas circuns-
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tâncias, possuíam um alto grau de in- em primeiro lugar, perquirir se o uso da- terferência nas propriedades vizinhas. quela propriedade que está em jogo é A terceira teoria que surge é a teo- normal ou não. Se o uso for normal, a ria da necessidade, de Bonfante. Ela surge partir dos standards de Ihering, dos as- justamente em contraposição à teoria do pectos passivo e ativo do uso normal, ele uso normal. O romanista italiano afirma- produz interferências lícitas e o ato é va não ser correto concluir que o uso considerado lícito e, como tal, deve con- anormal deveria ser sempre coibido, pois tinuar. Se o uso, no entanto, é conside- há interesse social no desenvolvimento rado anormal dentro daqueles standards das indústrias, no progresso crescente. a gerar, então, incômodos por demais ex- Daí essa teoria, que nasce em cessivos, deve-se pesquisar para se sa- contraposição à do uso normal, ter sido ber se tal atividade é necessária social- considerada a defesa da propriedade in- mente ou se é, ao contrário, desneces- dustrial, numa época de industrializa- sária. Se a supremacia do interesse pú- ção crescente. Uma fábrica, mesmo que blico legitimar esse uso excepcional, o causasse, com sua enorme quantidade juiz manterá os incômodos inevitáveis, de fumaça, interferência indevida nas ordenando, no entanto, que se faça ca- propriedades vizinhas, poderia ter a ma- bal indenização ao prejudicado, corres- nutenção da sua atividade garantida por pondente, aqui, a uma espécie de ex- força do que Bonfante denominava ne- propriação de direito privado. cessidade geral do povo, e com base nes- O juiz deve também, já dizia San sa necessidade, o juiz deveria manter Tiago, na medida do possível, buscar essas atividades. Diferente do que ocor- compatibilizar os interesses, ou seja, reria, por exemplo, com uma lareira, pois sempre que possível, o magistrado deve- se essa provocasse uma fumaça anor- ria (com base nas técnicas que vão se mal, como ali só se estaria diante de desenvolvendo para contornar os distúr- uma situação de interesses particula- bios causados por uma dada atividade) res, a atividade deveria cessar. coibir aquela interferência mediante o Finalmente, entre nós, quem me- emprego de filtros, de vedações acústi- lhor sistematizou o assunto foi o Profes- cas, de equipamentos cada vez mais sor San Tiago Dantas. A sua tese de cá- modernos que a impeçam. Esse deve ser tedra, apresentada à Faculdade Nacio- o caminho prioritário a ser tomado. Se nal de Direito em 1939, denominada O tal não for possível, todavia, passa-se à Conflito de Vizinhança e Sua Composi- permissão da atividade com a indeniza- ção, é uma obra clássica, do conheci- ção cabal; ou, se o interesse público não mento de todos. Este grande civilista, legitimar o uso excepcional da proprie- em sua teoria que depois denominou de dade naquela região, é de mau uso que teoria mista, propôs uma espécie de ali- se trata e o juiz, então, irá mandar ces- ança, de combinação entre os principais sar a atividade. subsídios das teorias de Ihering e de Bonfante. 3.2- A disciplina no Código de 2002: ino- A teoria mista de San Tiago, portan- vações e o conteúdo da cláusula geral to, se baseia em dois princípios funda- Essa teoria foi amplamente consa- mentais. O primeiro é o da coexistência grada, seja em doutrina, seja pela ju- dos direitos, e se destina à situação onde risprudência de maneira geral, e agora vigore o interesse particular, ou seja, a foi incorporada expressamente no novo orientar a vizinhança comum. O outro Código Civil, ganhando esse reconheci- princípio é o da supremacia do interesse mento na redação do eminente mestre público. Esse segundo princípio governa- Prof. Ebert Chamoun, que foi o relator rá a vizinhança industrial. Na hipótese do anteprojeto nesse tema de direitos de conflito, como deve atuar o magistra- reais e vizinhança. do na investigação de uso nocivo? Deve, A leitura dos artigos 1.277 e 1.278
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revela a adoção dos ensinamentos do for possível, pelo desenvolvimento Mestre San Tiago Dantas: tecnológico, o emprego dessas técnicas, Art. 1.277. O proprietário ou o pos- aí sim, não obstante aquela determina- suidor de um prédio tem o direito de ção judicial, o proprietário, ou possui- fazer cessar as interferências prejudi- dor, terá direito à aplicação desses me- ciais à segurança, ao sossego e à saú- canismos de redução. de dos que o habitam, provocadas pela Cumpre destacar, outrossim, um utilização de propriedade vizinha. outro aspecto que me parece fundamen- Parágrafo único: Proíbem-se as inter- tal: o conteúdo da cláusula geral de vi- ferências considerando-se a natureza zinhança, à luz do texto do artigo 1.277 da utilização, a localização do prédio, do novo Código. Como bem destacado pelo atendidas as normas que distribuem Professor Gustavo Tepedino, o preenchi- as edificações em zonas, e os limites mento desse conteúdo há de ser feito ordinários de tolerância dos morado- sob os ditames da carga axiológica cons- res da vizinhança. titucional. De fato, o magistrado deverá Art. 1.278. O direito a que se refere o perquirir a função social, o atendimento artigo antecedente não prevalece quan- ao meio ambiente, a dignidade da pes- do as interferência forem justificadas soa humana, enfim todos os valores que por interesse público, caso em que o são carreados pela Constituição, para proprietário ou o possuidor, causador que verifique se, naquele determinado delas, pagará ao vizinho indenização caso, o exercício é nocivo, se provoca in- cabal. terferências, melhor dizendo, que devam ser coibidas. Já o parágrafo único con- A leitura atenta desses dois dispo- tém em seu teor diretrizes para dar al- sitivos parece revelar que o artigo 1.277 gum conteúdo à cláusula geral, como vis- regula aquilo que San Tiago denominou to. Louvável a orientação. Porém, a de interesse privado, interesse particu- integração somente se completa medi- lar, ou seja, de estatuto da vizinhança co- ante o recurso à fonte constitucional. mum, estando nitidamente presente em Para finalizar a abordagem acerca seu teor a teoria do uso normal, de Ihering. da parte geral da vizinhança, ponham- Por seu turno, o artigo 1.278 cuida da se em destaque as inovações desse con- vizinhança industrial, em que prevalece junto de artigos, quando comparados o interesse público, com base na teoria com o Código anterior. Os artigos 1.278 da necessidade, de Bonfante. e 1.279 do Código Civil de 2002, já vis- Também o artigo 1.279 (cujo teor, tos, não encontram correspondentes no no entanto, se deve muito mais ao tra- Código Civil de 1916, e quando do cotejo balho da jurisprudência) tem a sua ori- do artigo 1.277 com o artigo 554 do Có- gem na obra de San Tiago Dantas. O re- digo de 1916, seu correspondente no ferido dispositivo legal dispõe: Ainda que Direito anterior, merecem ser destaca- por decisão judicial devam ser tolera- das três alterações, além da novidade das as interferências, poderá o vizinho trazida no parágrafo único. exigir a sua redução, ou eliminação, Em primeiro lugar, a substituição quando estas se tornarem possíveis. de inquilino por possuidor. O Código Note-se que, em sendo possível, sempre anterior afirmava o proprietário ou inqui- devem ser tomadas as medidas neces- lino de um prédio tem direito de impedir sárias para reduzir ou mesmo eliminar que o mau uso da propriedade vizi- as interferências. Se, quando a questão nha(...). Em redação bastante melho- vier colocada, for possível ao magistrado rada, contempla-se agora, também como lançar mão desses artifícios, isso deve gênero, o possuidor, porque o que im- ser feito. Se não, sem embargo da de- porta é a posse, a relação direta com o terminação para que as interferências imóvel, seja proprietário, usufrutuário, prevaleçam, se, em um momento futuro locatário, comodatário, o que for. Esta
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novidade reflete a exegese que já vigo- Além disso, as duas regras clássi- rava em relação ao alcance do artigo 554 cas em termos de árvores limítrofes con- do Código de 1916. tinuam contempladas, tanto a de cortar A segunda alteração de destaque é os ramos e raízes que invadem a propri- a utilização do termo interferências. edade vizinha, como a relativa à O texto fala em fazer cessar as interfe- titularidade, a propriedade dos frutos rências prejudiciais à saúde, à seguran- daquelas árvores. Nesse sentido se afir- ça, ao sossego, o que reflete a orienta- ma nos artigos 1.283 e 1.284 que os ra- ção mais técnica da doutrina e da juris- mos pertencem ao dono, porém, o pro- prudência, como visto anteriormente. prietário ou possuidor do imóvel vizinho, O terceiro aspecto que merece onde se deitam ramos ou raízes, pode menção está contido na parte final do podar ou cortar a árvore. É claro que caput do artigo 1.277. É a afirmação de essa poda observará também, necessa- que tais interferências devem ser riamente, as normas ambientais e ad- provocadas pela utilização de proprie- ministrativas aplicáveis à espécie. dade vizinha. Quer dizer, trata-se da Em relação aos frutos, enquanto na interferência mediata, a qual, como já árvore estiverem, pertencerão ao propri- averbamos ao tratar das características etário onde ela deite raízes; porém, se do direito de vizinhança, não se confun- caírem naturalmente, pertencerão ao de com eventuais interferências diretas, proprietário do solo onde caírem. Se o dolosas, deliberadamente praticadas, proprietário ou possuidor do imóvel vizi- sem relação com a utilização da propri- nho de alguma forma interferir para que edade vizinha. Repita-se o exemplo da os frutos caiam, e essa queda se consu- pedra que é intencionalmente lançada mar de forma não natural, ele não tem no imóvel vizinho, quebrando uma vidra- direito a esses frutos. Aqui, não há qual- ça. Isto é um ato ilícito, e o dano dele quer observação de relevância a ser fei- resultante será tratado como tal. ta nesse tema. Assim terminamos essas conside- rações iniciais sobre a parte geral do di- 4.2. Passagem forçada reito de vizinhança. O segundo instituto que merece a nossa atenção é o da passagem forçada, 4. Parte especial do direito de vizinhança prevista no Código de 2002 em um único Vamos adentrar agora nas obser- artigo, o 1.285. O novo Código reproduz, vações acerca da parte especial do di- nesse tema, a regra que permite ao pro- reito de vizinhança, composto por regras prietário encravado pela propriedade vi- específicas que no Código Civil de 2002 zinha o acesso às vias públicas de ma- dizem respeito aos seguintes temas: ár- neira a preservar os contornos desse vores limítrofes, passagem forçada, pas- instituto. Essa passagem forçada cons- sagem de cabos e tubulações (que é uma titui, como assinalam Caio Mário da Sil- novidade do Código), águas comuns, li- va Pereira e o saudoso Darci Bessone, nha divisória e direito de tapagem, di- uma verdadeira desapropriação de direi- reito de construir e auxílio mútuo. to privado. Há vários aspectos dignos de nota, 4.1. Árvores limítrofes quanto à passagem forçada. Deste tema tratam os artigos 1.282 Em primeiro lugar, ela não se con- a 1.284 do Código de 2002. O novo Códi- funde com a servidão de passagem, que go em praticamente nada alterou a dis- como se sabe, é resultante de consenso ciplina anterior, ou seja, continua va- entre as partes portanto, tem sua fon- lendo a presunção relativa, iuris tantum, te em convenção e existe para melhorar de co-propriedade ou condomínio das ár- o acesso, para se criar uma vantagem, vores cujos troncos se encontrem nos um benefício para o imóvel, para o pré- limites de dois imóveis. dio dominante. Enquanto que a passa-
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gem forçada é matéria de direito de vi- mais natural e facilmente se prestar à zinhança, com fonte na lei e para evitar passagem. Como se vê, o novo Código es- prejuízo, como foi dito anteriormente, tabelece regra de importância prática com fundamento no princípio da solida- para a definição de qual será o imóvel riedade social. que suportará a passagem forçada. Mas O artigo 1.285, logo no caput, fixa vale lembrar que este já era o entendi- um requisito importantíssimo ao insti- mento consolidado da jurisprudência tuto da passagem forçada: O dono do nesse assunto. As inovações contidas prédio que não tiver acesso à via públi- nos demais parágrafos do art. 1.285 não ca, nascente ou porto.... Portanto, tra- oferecem qualquer dificuldade para o ta-se do imóvel encravado, sem saída. intérprete, razão pela qual nos abstere- Há um amplo debate nos tribunais mos de as analisar nesta sede. pátrios, a fim de se apurar qual a solu- Finalizando este tópico, para não ção correta em hipóteses muito próxi- extrapolar o tempo que me foi concedi- mas à do encravamento, quando há al- do, importa registrar que alguns dispo- guma passagem, mas essa é precária, sitivos que eram controversos no Código difícil, quase inacessível, se nessas hi- Civil de 1916 não encontraram paralelo póteses se considera ou não viável a uti- no Código Civil de 2002, como os antigos lização da passagem forçada. Majorita- artigos 561 e 562, que se dizia estarem riamente, doutrina e jurisprudência se erradamente posicionados, insertos en- inclinaram pela resposta negativa, con- tre as disposições referentes à passa- siderando que a passagem forçada im- gem forçada quando, na verdade, se tra- põe uma restrição à propriedade privada tava de servidão. do vizinho, somente na medida em que o prédio não encontre qualquer possibi- 4.3. Passagem de cabos e tubulações lidade de saída é que ele terá direito a Chegamos, então, ao terceiro ins- essa passagem. Só, portanto, quando li- tituto específico, que é a passagem de teralmente encravada é que terá direi- cabos e tubulações. Cuida-se, aqui, de to à passagem forçada, é o entendimen- uma novidade, uma inovação do Código to que prevalece. O juiz, então, diante de 2002. São dois artigos que procuram dessa hipótese, vai fixar o rumo da pas- estabelecer normas diante das novas ne- sagem, de maneira a tentar minimizar cessidades sociais da população, normas o sofrimento e o ônus do prédio que tem essas que se assemelham, na maioria de suportar a passagem do vizinho; e, dos seus contornos, ao instituto da pas- assim que cessar essa situação de sagem forçada, que acabamos de ver. Te- encravado, seja pela abertura de novas ceremos brevíssimas considerações vias, seja pela aquisição de novas ter- acerca de sua disciplina legal. ras, cessa para o vizinho o dever de fran- Em primeiro lugar, trata-se de di- quear a passagem. reito de vizinhança oneroso, também. O O artigo 1.285, além disso, prevê próprio caput do artigo 1.286 do Código uma indenização cabal, ou seja, trata- se inicia estabelecendo a onerosidade, se de direito de vizinhança oneroso. A pela fórmula mediante recebimento de onerosidade se faz presente na indeni- indenização que atenda também à des- zação cabal. valorização da área remanescente. Dentre as novidades trazidas no Em segundo, pode-se concluir que bojo do art. 1.285, destaca-se a do § 1º, terá lugar a passagem de cabos e tubu- que cuida da hipótese onde o imóvel lações somente quando indispensável. É encravado possa alcançar a via pública o que se depreende da parte final do por várias propriedades confinantes há caput desse mesmo artigo 1.286, que dis- várias possibilidades de acesso à via pú- põe o seguinte: Mediante recebimento blica. Então, a regra é que sofrerá o de indenização que atenda, também, à constrangimento o vizinho cujo imóvel desvalorização da área remanescente,
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o proprietário é obrigado a tolerar a pas- prédio inferior é obrigado a receber as sagem, através de seu imóvel, de cabos, águas que correm naturalmente para o tubulações e outros condutos subterrâ- seu imóvel. Noutras palavras, o proprie- neos de serviços de utilidade pública, em tário a jusante é obrigado a receber as proveito de proprietários vizinhos, quan- águas que correm do proprietário a mon- do de outro modo for impossível ou excessi- tante, de maneira natural. Acrescentou- vamente onerosa (grifou-se). se, ao final do artigo 1.288, que, assim Além disso, vai-se procurar esta- como a propriedade inferior é obrigada a belecer a passagem de forma menos receber as águas que naturalmente cor- gravosa à propriedade prejudicada, nos rem da superior, o proprietário, ou o pos- termos do parágrafo único do 1.286, que suidor como bem destaca o Código de guarda coerência com a linha traçada 2002 , do prédio superior, por seu tur- pelo Código em todas as passagens acer- no, não pode agravar, mediante a exe- ca da situação de vizinhança: o cução de obras, a condição natural e enfrentamento bilateral dos problemas, anterior do prédio inferior. a que nos referimos anteriormente. Por O artigo 1.289 garante o direito de fim, se houver riscos potenciais, ou seja, receber indenização pelas águas que cor- se a passagem dos cabos ou tubulações rerem do prédio a montante quando nele trouxer riscos (como é o caso das tubu- cheguem artificialmente, ou quando aí lações de gás e dos cabos de energia elé- forem colhidas. Aqui, a regra é diferen- trica), pode-se exigir, a teor do artigo te porque se trata de nascentes artifici- 1.287, que também é novidade, a reali- ais, então se fixa aqui a onerosidade, ou zação de obras de segurança. seja, aquele que é obrigado a suportar essas águas tem o direito à indeniza- 4.4. Águas comuns ção, sempre que o outro não puder O Código, em seqüência, passa a desviá-las. O parágrafo único afirma que, disciplinar o instituto das águas comuns, quanto à essa indenização, vai se aba- e o faz entre os artigos 1.288 e 1.296. ter o eventual benefício que aquela água São muitas regras que o novo Código venha por eventualidade a conceder ao enuncia. Vamos tentar simplificá-las. A prédio inferior. rigor, essas regras correspondem às con- tidas nos artigos 563 a 568 do Código 4.5. Linha divisória e direito de Civil de 1916, os quais, no entendimen- tapagem to que prevalecia, haviam sido revoga- O tema é extenso e controverso; va- dos pelo Código de Águas (Decreto nº mos tentar suscitar suas diretrizes bá- 24.643, de 1934), que fixava a disciplina sicas. das águas comuns sem maiores altera- Se há dúvida quanto ao delinea- ções em comparação com o texto do Có- mento da linha divisória, faz-se a busca digo de 1916. de títulos de propriedade para determi- Aqui, uma vez mais, a matéria não nar os lindes, os limites entre os pré- muda substancialmente o estado ante- dios. Se não for possível, com base nes- rior do direito. O que há são algumas ses títulos de propriedade, fixar-se a li- novidades, como ocorre sobretudo na re- nha divisória, demarcando-se as fron- gulamentação do aqueduto, nos artigos teiras entre os dois prédios, como prevê 1.293 a 1.296, e nas modificações o art. 1.297, lança-se mão dos critérios trazidas nas regras gerais dos artigos previstos no artigo 1.298. 1.288 e 1.289. O primeiro critério é o da compro- A parte final do artigo 1.288 traz vação da posse justa, que, de mais a uma novidade, seguindo a ratio de bus- mais, já era consagrada no sistema an- car um tratamento bilateral dos direi- terior. Não provada a posse de nenhum tos de vizinhança. Desde o regramento dos dois disputantes quanto aos limites anterior já se dispunha que o dono do ou, ao contrário, provada a composse, ou
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seja, não sendo possível se definir a metro e meio no Código de 1916 e pas- questão com base na posse, lança-se mão sou a ser de três metros no Código de de um segundo critério que é a novida- 2002 (artigo 1.303). Portanto, hoje são de: a repartição em partes iguais. O Có- três metros até o limite do terreno para digo anterior falava em repartição pro- erguer a construção rural. porcional, o que suscitava os maiores A contrario sensu, como já se inter- problemas em encontrar-se o pretava, o proprietário pode construir no mensurador desta proporcionalidade. seu imóvel urbano até o limite da divi- Seria proporcional às respectivas áreas sória, mas a lei impede a abertura de dos imóveis? Proporcional ao número de janelas a menos de um metro e meio de vizinhos que estão interessados naque- terreno vizinho. Isso se mantém no novo le pedaço de terra? Então, diante dessa Código, expressamente (artigo 1.301); ampla controvérsia que vigorava nessa eis outra regra específica. matéria, vem o novo Código e simplifica, Os parágrafos do artigo 1.301, por ou tenta simplificar, estabelecendo a seu turno, veiculam grandes novidades. divisão em partes iguais, restaurando Dispõe o parágrafo primeiro: As enfim o que já constava do próprio Pro- janelas cuja visão não incida sobre a li- jeto de Clóvis Beviláqua, que deu ori- nha divisória, bem como as perpendicu- gem ao Código de 1916. lares, não poderão ser abertas a menos O terceiro critério, também já con- de setenta e cinco centímetros. Dimi- sagrado, é aplicado na hipótese de não nui-se pela metade a disposição do caput. ser viável essa divisão em partes iguais, Isso é uma novidade, contrariando até por não ser cômoda. Se assim for, o juiz um entendimento sumulado pelo Supre- irá determinar a adjudicação da propri- mo Tribunal Federal, que não distingue edade a um dos imóveis e é dada li- a vista oblíqua da direta, na abertura de berdade a ele para escolher, a lei não janelas ou afins, naquela proibição de define parâmetros a tal determinação, um metro e meio. indenizando assim o proprietário vizinho. O parágrafo segundo também apre- senta uma outra novidade de monta, que 4.6. Direito de construir é estabelecer-se para as aberturas me- O direito de construir fixa, no arti- nores, que não são tecnicamente consi- go 1.299, como regra geral, a possibili- deradas janelas (ou seja, medem me- dade de o proprietário levantar a cons- nos de dez por vinte centímetros), que a trução que lhe aprouver. Em princípio, permissão para a sua abertura está con- ele constrói como quiser, desde que res- dicionada a que estas aberturas este- peitadas as normas do direito de vizi- jam a mais de dois metros de altura, nhança e também os regulamentos ad- para se evitar que se devasse o prédio ministrativos, normalmente emitidos vizinho, que se rompa a privacidade. No pelo Poder Público Municipal no contro- le de zoneamento e de definição de uti- sistema anterior não havia esse requi- lização daquela propriedade imóvel. sito de altura, que, aliás, foi de inspira- Além dessa liberdade de construir, ção do Código Civil Italiano. tolhida por esses dois aspectos, seja pela Concluindo, o artigo 1.300 aduz vizinhança, seja pelo Direito Adminis- outra regra específica, no sentido de que trativo, pelas normas sobretudo munici- não se pode despejar águas diretamen- pais atinentes a gabaritos, a recuos etc, te sobre o vizinho. É uma fórmula mais há algumas regras específicas, também genérica, melhorando-se a redação da no Código Civil. A primeira delas é a das disposição legal em relação à anterior distâncias legais. O novo Código aumen- correspondente. A depender das circuns- tou a distância mínima para a constru- tâncias, poderá ser necessário o uso de ção de edificações em relação aos limi- calhas ou de qualquer mecanismo tes entre imóveis rurais - era de um congênere a fim de evitar tal transtorno.
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4.7. Auxílio mútuo Obviamente, se esse ingresso gerar dano Por fim, cabe breve referência ao ao vizinho, há que se fazer acompanhar instituto do auxílio mútuo ou direito de da devida reparação. Essas eram as con- ingresso na propriedade alheia que está siderações que pude fazer dentro do li- previsto no artigo 1.313 do novo Código, mite do tempo que me foi designado. apresentando os requisitos seguintes: Agradeço a atenção de todos e me colo- deve ser temporário; deve se dar medi- co à disposição para eventual debate. ante prévio aviso; e deve ser indispen- Muito obrigado. . sável o ingresso na propriedade vizinha.