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DECRETO-LEI - INCONSTITUCIONALIDADE - PODER REGULA-

MENTAR

- Decreto-lei nl? 822 - Deferimento ao Executivo de compe-


tência para dispor sobre "o processo administrativo de determinação
e exigência de créditos tributários federais, penalidades, empréstimos
compulsórios e o de consulta".
- Poder regulamentar - Extensão.
- Submissão do regulamento à lei e impossibilidade de, por
essa via, restringir direitos.
- Decreto-lei - Limites.
- Mesmo editado quando em recesso o Congresso Nacional, por
força do Ato Institucional nl? 5 e Ato Complementar ni? 38, sendo
as funções legislativa e constituinte exercidas pelo Presidente da
República, não poderia o decreto-lei modificar a Constituição.
- Dentro da própria técnica de exceção, modificações de na-
tureza constitucional faziam-se por meio dos chamados atos insti-
tucionais.
- Inconstitucionalidade do Decreto-lei ni? 822, que, entretanto,
não pode ser declarada, por força do art. 39 da Emenda Constitu-
cional ni? 11. Inadmissibilidade, porém, de que continue vigendo,
ensejando permanente ampliação do campo constitucionalmente re-
servado ao regulamento. Seu exaurimento com a edição do De-
creto nl? 70.235/72.
- Pedido de reconsideração - Natureza recursal, uma vez
tendo prazo certo de interposição e expressamente dotado de efeito
suspensivo. Juízo de retratação que não desfigura a natureza do
pedido.
- Inaplicabilidade do contido no art. 81, V, da Constituição.
O regulamento fundado neste dispositivo pode estabelecer quem
é competente para julgar determinado recurso administrativo, mas
não abolir o existente.

TRIBUNAL FEDERAL DE RECURSOS


Apelação em Mandado de Segurança n9 105.744
Apelante: União Federal
Apelado: Banco do Estado do Paraná SA.
Relator: Sr. Ministro EDUARDO RIBEIRO

ACÓRDÃO Turma do Tribunal Federal de Recursos,


por unanimidade, negar provimento ao ape-
Vistos e relatados estes autos em que são lo e à remessa oficial, na forma do relató-
partes as· acima indicadas, decide a Sexta rio e notas taquigráficas constantes dos au-

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tos, que ficam fazendo parte integrante do n9 70.235, de 6. 3. 72, razão por que o mal-
presente julgado. sinado Decreto n9 75.445/75 que se lhe
Brasília, 29 de outubro de 1986. - Car- seguiu é desvalioso para compor o universo
los Velloso, Presidente. Eduardo Ribeiro, das normas que regulam o processo admi-
Relator. nistrativo fiscal.
Com requerimento de liminar deferido,
RELATÓRIO pediu fosse a segurança concedida 'para o
fim de compelir a autoridade coatora a re-
O Sr. Ministro Eduardo Ribeiro: Adoto ceber e submeter à apreciação daquele co-
o relatório da sentença, in verbis: legiado o pedido de reconsideração inter-
posto pelo Impetrante'.
"Banco do Estado do Paraná S/ A, pes-
soa jurídica qualificada na inicial, ajuizou Inicial instruída (fls. 15-43).
o presente mandado de segurança contra Em suas informações (fls. 49-52) limitou-
despacho do Presidente do 29 Conselho de se o impetrado a sustentar a opinião de
Contribuintes do Ministério da Fazenda que, como órgão administrativo, é-lhe ve-
que inadrnitiu pedido de reconsideração dado recusar o cumprimento de lei ou de-
manifestado pelo impetrante contra acórdão creto sob alegação de inconstitucionalidade.
do mencionado órgão, sob o fundamento razão por que, diante do disposto no art.
de que o dispositivo legal em que se em- 29 do Decreto n9 75.445/75, foi desacolhi-
basou o apelo teria sido revogado pelo arti- do o pedido de reconsideração interposto
go 29 do Decreto n9 75 .445, de 1975 e que, pelo impetrante.
destarte, estariam esgotadas as vias recur- O órgão do Ministério Público (fls. 62)
sais ao próprio Conselho, restando tão-so- opinou pela denegação da ordem.
mente ao impetrante a possibilidade de re-
correr à Câmara Superior de Recursos Fis- ~ o relatório."
cais, desde que fundamentado em divergên- Acrescento que a segurança foi conce-
cia (Decreto n9 83 .304/79). dida.
Sustentou que tal entendimento não pode Apelou a União. Alegou que o Decreto
prevalecer, de vez que o pedido de recon- n9 75.445 não padece de qualquer eiva de
sideração foi instituído pelo Decreto-lei n9 inconstitucionalidade.
5. 844/43, com efeito de suspender a exigi-
Parecer do Ministério Público, pela de-
bilidade do crédito fiscal, não podendo ser
negação do writ.
suprimido senão por força de lei, dado ter
sido reservada ao legislador ordinário, pelo ~ o relatório.
art. 97 do CTN - diploma legal erigido à
VOTO
categoria de lei complementar pela EC n9
1/69 - a competência de estabelecer e su- O Sr. Ministro Eduardo Ribeiro: O tema
primir hipóteses de suspensão do crédito jurídico, a cujo propósito se . controverte
tributário. nos autos, já foi objeto de apreciação, pelo
Disse, mais, que a delegação legislativa egrégio Supremo Tribunal Federal, em pelo
contida no Decreto-lei n9 822, de 5. 9. 69. menos duas oportunidades . As decisões não
editado sob a égide dos atos institucionais coincidiram, assim como os próprios fun-
n.os 5 e 12 foi revogada pela EC n9 1/69, damentos dos votos, não havendo, pois, en-
por incompatível com esta. E que, inclu- tendimento jurisprudencial firmado. Refi-
sive, a aludida emenda, em seu art. 69, pa- ro-me aos julgados nos Recursos Extraordi-
rágrafo único, veda expressamente 'a qual- nários n.08 93.685 e 10.995. Nesta corte
quer dos Poderes delegar atribuições', ha- registram-se várias decisões, a maioria no
vendo, além do mais, a delegação em foco sentido de ter-se como ilegítima a supressão
sido exaurida com a expedição do Decreto do pedido de reconsideração pelo Decreto

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n<? 75.445/75. Apontam-se, entretanto, vo- Um primeiro elenco de assuntos não é
tos vencidos, de maneira a que também difícil indicar, posto que resultante da pró-
aqui não se pode dizer que consolidada a pria Constituição ou de leis complementa-
jurisprudênci~.. res, a deixar expresso que lei a disporá
sobre determinados assuntos. Quando isso
Questiona-se sobre se seria lícito ao Exe-
ocorrer, estará evidentemente restringida a
cutivo, pela via do decreto, suprimir o pe-
possibilidade de o Executivo utilizar-se do
dido de reconsideração previsto em regula-
regulamento. Entretanto, ao lado desses,
mento anteriormente editado. Por certo
outros existem, de caráter mais geral que,
que, em tese, inexistiria óbice, já que am-
em virtude do sistema constitucional e no-
bos os atos são, em princípio, de mesma tadamente das disposições pertinentes aos
hierarquia. A hipótese, entretanto, reveste- direitos e garantias individuais, reputam-se
se de peculiaridade. O pedido de recC'nsi- também compreendidos na reserva legal.
óeração era previsto em lei. Em setemoro
de 1969, editou-se o Decreto-lei n<? 822, es- Tem-se como valiosa, ainda, nos dias que
tabelecendo que o Executivo regularia "o correm, a opinião, freqüentemente invoca-
da, de Pimenta Bueno. Assevera o grande
processo administrativo de determinação e
exigência de créditos tributários federais, publicista do Império que, no uso do po-
penalidades, empréstimos compulsórios e o der regulamentar, incidiria o Executivo em
de consulta". Dispôs-se, ainda, que, uma grave abuso se criasse direitos ou obriga-
vez publicado o ato, contendo tal regula- ções novas, não estabelecidos em lei, bem
como se ampliasse, restringisse ou modifi-
mentação, ter-se-ia por revogada a legisla-
casse direitos ou obrigações. Do mesmo
ção pertinente a essa matéria. O decreto
que veio a ser expedido tinha, pois, um modo, se ordenasse ou proibisse o que a lei
não ordena ou não proíbe ou ainda facul-
caráter especial, pois a ele deu-se força de
tasse ou proibisse de modo diverso da lei .
revogar a lei. Foi colocado no plano desta
Finalmente, abuso também haveria quando
e a particularidade conduz a que se impo-
nham mais amplas indagações para um extinguisse ou anulasse direitos ou obriga-
exato equacionamento da matéria. ções (Direito Público Brasileiro e Análise
da Constituição do Império - Publicação
Parece-me adequado perquirir, de IniCIO, do Ministério da Justiça - 1958 - p. 233).
quanto à constitucionalidade do próprio De-
Da aparente redundância na enumeração
creto-lei n<? 822. E o exame será útil, ainda
resulta clara a intenção de mostrar, de um
que defeso o reconhecimento do vício, por
lado, a subordinação do regulamento à lei;
força do art. 181 da Constituição.
de outro, a impossibilidade de, por esta via,
A questão relativa à extensão do poder restringir direitos.
regulamentar é bastante árdua e os pró-
prios critérios distintivos, entre lei e regu- Na hipótese concreta em exame, o De-
lamento, não são fáceis de precisar. Escre· creto-lei n<? 822 atribuiu à função regula-
vendo sobre a diferença entre essas duas mentar, própria do Executivo, a incumbên-
classes de atos normativos, tive ocasião de cia de dispor sobre matéria que estava re-
afirmar que se distinguiam apenas formal· gulada em lei, estabelecendo que esta ter-
mente, o primeiro limitado pela Constitui· se-ia por revogada, uma vez editado o re·
ção e o segundo pela lei (Sobre o conceito gulamento.
de jurisdição - RF CCLX-105/106). Cum- Tenho como certo que isto é repudiado
pre reconhecer, entretanto, que alguns te- pelos princípios geralmente aceitos e não
mas são reservados à lei, não podendo ser se acomoda ao texto constitucional. Se a
objeto de regulamento. Esta é matéria so- matéria era própria de lei e esta efetivamen-
bre a qual há acordo, embora dissenções se te a regulava, não poderia ser tratada em
apresentem quando se trata de defini-los. regulamento.

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Dir-se-á que o decreto-lei tem a mesma prendem à hierarquia entre as normas no
força da lei e o regulamento nele encontra- ordenamento jurídico.
va base para sua validade e eficácia. O
Não tenho dúvida, pois, em afirmar que
argumento não procede. Admita-se que o o Decreto-lei n9 822 é incompatível com a
decreto-lei pudesse dispor sobre o tema. Constituição e o era ainda nas circunstân-
Isto não é a mesma coisa que aceitar pu- cias em que foi editado.
desse transferir a competência. Para isso
seria necessário fosse modificada a Consti- Ocorre, entretanto, que revogados os Atos
tuição, o que o decreto-lei não podia fazer Institucionais e Complementares, foram
seus efeitos ressalvados e mantida a impos-
Quando editado o ato em exame. achava- sibilidade de apreciação pelo Judiciário
se o país sob ordem jurídica excepcional, (art. 39 da Emenda Constitucional n9 11).
posto que, por força do Ato Institucional Em face disso, remanesce vedada a decla-
n9 5 e Ato Complementar n9 38, o Congres- ração de inconstitucionalidade.
so Nacional encontrava-se em recesso e a
Malgrado não se possa negar aplicação
função legislativa era exercida pelo Presi-
do Decreto-lei n9 822, a fundamento de que
dente da República. E os ministros militares
inconstitucional, o fato de apresentar o
assumiram as atribuições do Presidente, com
vício não é irrelevante. Constituiria dema-
base no Ato Institucional n9 12. Em verda-
sia admitir-se, com efeito, que permaneces-
de, detinham não apenas o poder de legis-
se vigendo, enquanto expressamente não
lar mas também se atribuíram o constituin-
fosse revogado, o que importaria em acei-
te, exercido por meio dos atos institucio- tar::Se que, ao lado das competências cons-
nais. Dentro da própria técnica de exceção, titucionais, para edição de regulamento, ou-
modificações de natureza constitucional fa-
tra existisse conferida pelo malsinado de-
ziam-se por estes atos os decretos-leis re-
creto-lei. Teríamos o absurdo de aceitar a
servavam-se para a legislação ordinária. convivência das restrições, ínsitas na Cons-
Ainda no contexto dito revolucionário, não tituição, ao campo reservado ao regula-
poderia o decreto-lei alterar norma da hie- mento, com a permanência da ampliação
rarquia constitucional. deste por via que se choca com a lei maior.
Não se argumente, por outro lado, com Para não se dar como presente tal despro-
o fato de que, concentrando as mesmas au- pósito, ter-se-á de acolher o entendimento
toridades o poder constituinte assim como de que o Decreto-lei n9 822 exauriu-se com
o de legislar e expedir regulamentos, não o edição do Decreto n9 70. 235/72. A pos-
teria relevo distinguir entre matér1as pró- sibilidade de valer-se do regulamento, para
prias de um ou outro desses in~trument')s matéria própria de lei, esgotou-se, uma vez
jurídicos. O tema já foi objeto d~ exame tendo o E'<:ecutivo se utilizado daquela fa-
na doutrina brasileira. Assim, Victor Nu- culdade. A partir daí, há que se voltar à
nes Leal, no regime de 37, mostro.t que trilha constitucional.
subsistia a hierarquia entre lei e regulamen- Concluo, pois, ainda que com base em
to, malgrado pudesse o Presidente de am- argumentos nem sempre coincidentes, ade-
bos utilizar-se indistintamente (Lei e Regu- rindo ao que, nesta corte, foi sustentado,
lamento, in Problemas de Direito Público a propósito, em diversos votos. Afastada a
- Forense - 1960 - p. 71-72). No mes- possibilidade de buscar amparo no Decreto-
mo sentido Pontes de Miranda (Comentá- lei n9 822, para justificar a edição do De-
rios à Constituição de 1967 - tomo 111 - creto n9 75.445/75, cumpre verificar, re-
2~ edição- Rev. Trib. - 1970- p. 317- lativamente ao ponto que importa - su-
319). Efetivamente, se dentre as diversas pressão do pedido de reconsideração - se
classes de atos de que se poderia valer, um outra base existe para tomá-lo legítimo.
foi eleito, daí advirão as conseqüências pró- Devo salientar, de logo, que, para equa-
prias da escolha. Entre elas, as que se cionamento da matéria não se me afigura

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decisivo invocar o disposto no art. 97, VI Examino, por fim, argumento tirado do
do Código Tributário. Alega-se que aí se que se contém no art. 81, V da Constitui-
adotou o princípio da reserva legal para as ção. Aí se estabelece, e a norma constitui
hipóteses de suspensão do crédito tributá- inovação da Emenda I, que compete priva-
rio. E como uma das causas de suspensão tivamente ao Presidente da República "dis-
é o recurso (art. 151, 111), só por lei pode- por sobre a estruturação, atribuições e fun-
ria este ser instituído ou suprimido. Não cionamento dos órgãos da administração
me parece que a conclusão seja exata. Em federal".
verdade, o que está dito é que se reserva O dispositivo tem indiscutível importân-
à lei dispor quanto às causas de suspensão cia. Subtraiu-se ao legislador competência
e uma delas é a interposição de recurso . para a hipótese, atribuindo-a ao Chefe do
Norma de inferior hierarquia não poderá Executivo (neste sentido, Manoel Gonçal-
alterar estas causas estabelecendo, por ves Ferreira Filho - Comentários à Cons-
exemplo, que determinado recurso não sus- tituição Brasileira - 5" edição - 1984 -
pende a exigibilidade do crédito. Daí não p. 373). Deste modo, quando se trata de
se segue esteja igualmente expresso que só dispor sobre o tema, competente será o Pre-
a lei possa dizer quais recursos são cabíveis. sidente e o regulamento poderá fazê-lo,
De qualquer sorte, entretanto, a conclu- ainda que de modo diverso da lei.
são será a mesma. Basta atentar-se aos Ocorre, entretanto, que instituir e abolir
princípios gerais já expostos. O uso do re- recursos, ainda que na esfera administrati-
curso constitui direito subjetivo do contri- va, não me parece compreendido no inciso
buinte e a supressão deste não se fará por em exame. O regulamento poderá indicar
regulamento. o órgão competente para o julgamento, na
Dir-se-á que o pedido de reconsideração medida em que lhe fixe as atribuições .
não é recurso. Considero que efetivamen- Isto não envolve a possibilidade de ábolir
te não o é quando se trate de matéria que um recurso.
possa ser revista a qualquer tempo pela Em virtude de todo o exposto, considero
autoridade, não carecendo de previsão legal ilegítimo o que se contém no art. 29 do
a possibilidade de pleiteá-lo. Coisa diversa Decreto n9 75.445/75, na medida em que
é quando devidamente regulado, com prazo inadmitiu o pedido de reconsideração.
de interposição certo e expressamente do- Confirmo a sentença.
tado de efeito suspensivo, como ocorre na
hipótese em exame (Decreto n9 70.235. EXTRATO DA ATA
art. 37, § 39). Enquanto não transcorrido
o prazo ali previsto, a decisão administrati- AMS n9 105. 744-DF (6151256) - Rela-
va ainda não se tem por definitiva. A na- tor: Ministro Eduardo Ribeiro. Remte.: Juí-
tureza de recurso parece-me clara. Não o zo Federal da 2" Vara. Apte.: União Fede-
desfigura o fato de dirigir-se ao mesmo ral. Apdo.: Banco do Estado do Paraná
órgão. O direito sabidamente prevê recur- S/A. Advs.: Drs. Augusto Prolik e outros.
sos em que se exerce apenas juízo de re- Decisão: a Turma, por unanimidade, ne-
tratação. gou provimento ao apelo e à remessa ofi-
cial (Sexta Turma - 29 de outubro de
Se pela razão exposta já se poderia
1986).
concluir pela impossibilidade de o regula-
mento suprimir o pedido de reconsidera- Participaram do julgamento os Srs. Mi-
ção, vale assinalar, ainda, que tal meio de nistros Carlos Velloso e Américo Luz. Au-
impugnação era previsto em lei e foi con- sente, justificadamente, o Sr. Ministro Mi-
templado em regulamento de natureza es- guel Ferrante.
pecial, como salientado, a que se emprestou Presidiu o julgamento o Exmo. Sr. Mi-
força de lei. nistro Carlos Velloso.

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