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A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO PELOS DANOS PATRIMONIAIS E NÃO

PATRIMONIAIS SOFRIDOS PELA POPULAÇÃO VÍTIMA DO TERRORISMO NA


PROVÍNCIA DE CABO DELGADO

Rui Lágrima Inácio Ezequiel Chichango1


Código de estudante: 706230189

Resumo

O presente artigo constitui uma avaliação no módulo de Responsabilidade Civil, cujo objectivo
de estudo é analisar se há ou não responsabilidade civil do Estado pelo danos patrimoniais e não
patrimoniais sofridos pela população vítima do terrorismo na província de Cabo Delgado. Nestes
termos, abordar-se-á sobre o papel do Estado Moçambicano na protecção, garantia de segurança e
bem-estar dos seus cidadãos, conforme os objectivos constitucionalmente previstos nas alíneas c),
d), e) e g) do artigo 11 da Constituição da República de Moçambique, tendo em conta que
província de Cabo Delgado, vem sendo alvo de ataques terroristas desde Outubro de 2017 que
resultaram em mortes de civis, destruição e interrupção de actividades económicas e circuitos
comerciais, e no aumento da pobreza e insegurança alimentar, o que afectou cerca de 1.000.000
pessoas dos distritos de Mocímboa da Praia, Palma, Muidumbe, Nangade, Macomia, Quissanga,
Ibo, Meluco e Mueda, dos quais cerca de 786.520 são deslocados. Analisar-se-á igualmente o
conceito e os pressupostos da responsabilidade civil na sua vertente extracontratual e sobre a
caracterização dos danos patrimoniais e não patrimoniais que a população vítima do terrorismo
sofreu devido ao impacto negativo deste fenómento resultante da acção humana, concluindo-se
estarem reunidos pressupostos para que possa haver responsabilidade civil do Estado em
consequência dos resultados das acções terroristas.

Palavras-chave: Direitos Humanos em Cabo Delgado. Responsabilidade civil. Pressupostos da


responsabilidade civil. Danos patrimoniais e não patrimoniais.

Abstract

This article constitutes an assessment in the Civil Liability module, whose study objective is to
analyze whether or not there is civil liability of the State for property and non-property damage
suffered by the population victim of terrorism in the province of Cabo Delgado. In these terms,
the role of the Mozambican State in protecting, guaranteeing the security and well-being of its
citizens will be discussed, in accordance with the objectives constitutionally set out in paragraphs
c), d), e) and g) of article 11 of the Constitution of the Republic of Mozambique, taking into
account that the province of Cabo Delgado has been the target of terrorist attacks since October

1
Mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Gestão, Turismo e Informática da Universidade Católica de
Moçambique - Pemba. Este trabalho é orientado pela Prof.ª Doutora Cátia Paulo na Cadeira de Responsabilidade
Civil. E-mail: chichangoruilagriamas@yahoo.com.br
1
2017 that resulted in civilian deaths, destruction and interruption of economic activities and
commercial circuits, and an increase in poverty and food insecurity, which affected around
1,000,000 people in the districts of Mocímboa da Praia, Palma, Muidumbe, Nangade, Macomia,
Quissanga, Ibo, Meluco and Mueda, of which around 786,520 are displaced. The concept and
assumptions of civil liability in its extra-contractual aspect and the characterization of property
and non-property damage that the population victim of terrorism suffered due to the negative
impact of this phenomenon resulting from human action will also be analyzed, concluding that
they are prerequisites are met so that there may be civil liability of the State as a result of the
results of terrorist actions.

Keywords: Human Rights in Cabo Delgado. Civil responsability. Assumptions of civil liability.
Property and non-property damage.

Introdução

O tema deste artigo é “A Responsabilidade Civil do Estado pelos Danos


Patrimoniais e Não Patrimoniais Sofridos pela População Vítima do Terrorismo na
Província de Cabo Delgado”, com enfoque para a responsabilidade do Estado Moçambicano
pelas de mortes por decapitação ou por baleamentos, destruição de bens privados e traumas,
desalojamento forçado das populações das suas zonas de orígem, perda dos seus meios de
subsistência, como machambas e seus negócios, doenças contraídas e os medos vividos
resultantes da acção terrorista na província de Cabo Delgado, e que se estima em cerca de
786.520 são deslocados, procurando responder à seguinte questão: há responsabilidade civil do
Estado moçambicano pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela população vítima
do terrorismo na província de Cabo Delgado?
Este artigo tem como objectivo geral analisar a responsabilidade civil do Estado pelos
danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela população vítima do terrorismo na província
de Cabo Delgado, que por sua vez, subdivide-se em três objectivos específicos os seguintes,
nomeadamente: (1) Analisar o papel do Estado Moçambicano sobre a protecção e defesa dos seus
cidadãos face às acções terroristas; (2) Analisar juridicamente os pressupostos da
responsabilidade civil por factos ilícitos; (3) Analisar os pressupostos da responsabilidade civil
pelo risco; (4) Analisar os danos patrimoniais e não patrimoniais susceptíveis de ressarcimento, e
(5) Analisar a existência ou não da responsabilidade civil do Estado Moçambicano pelos danos
sofridos pela população vítima do terrorismo nos distritos da zona norte da província de Cabo
Delgado.
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De salientar ainda que tem duas hipóteses, uma principal e a outra contraposta, sendo
a primeira: há responsabilidade civil do Estado pelos danos patrimoniais e não patrimoniais
sofridos pela população vítima do terrorismo na província de Cabo Delgado, e a segunda: não há
responsabilidade civil do Estado pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela
população vítima do terrorismo na província de Cabo Delgado.
O interesse pelo tema surgiu devido à sua relevância e actualidade na Província de
Cabo Delgado, onde em 5 distritos da referida província, nomeadamente: Mocimboa da Praia,
Quissanga, Macomia, Muidumbe e Palma, as infraestruturas públicas e privadas foram parcial e
totalmente destruídas pela acção dos terroristas, incluindo as Conservatórias do Registo Civil e
seus acervos registrais, tendo sido constatada situação de perda total de documentos de
identificação civil, incluindo o registo de nascimento e colocando todos os cidadãos que
detinham os seus registos de nascimento lavrados nas Conservatórias dos referidos destritos, no
sistema analógico, ou seja, nos livros, sem a possibilidade de poder recuperá-los, resultando na
vulnerabilidade das vítimas face à limitação da liberdade de circulação de um ponto para o outro
pelo facto das autoridades exigirem documentos de identificação civil, não poderem exercer os
demais direitos fundamentais devido à falta de documentos e coabitação de numerosas famílias
em tendas de pequena dimensão nos centros de reassentamento, com desafios atinentes ao
saneamento do meio decorrentes do referido contexto social, o que suscita debate sobre a
responsabilidade civil do Estado Moçambicano pelos danos patrimoniais e não patrimoniais
sofridos pela população vítima do terrorismo.
Metodologicamente, o trabalho utiliza dois tipos de pesquisa jurídica: teórica, pois
recorre à consulta da Constituição da República de Moçambique (CRM), revista pela Lei n.º
1/2018 de 12 de Junho, ao Código Civil vigente em Moçambique, ao Plano de Reconstrução de
Cabo Delgado das Zonas Afectadas pelo Terrorismo (2021-2024) e obras bibliográficas de
diversas autores e na internet sobre matérias de responsabilidade civil e direitos humanos no
contexto dos conflitos, conforme se faz menção nas referências bibliográficas mencionadas na
parte final deste artigo e também a pesquisa qualitativa, pois descreve as situações ou fenómenos
sobre o seu objecto de estudo, bem como interpretações e análise sobre o mesmo.

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1. O papel do Estado Moçambicano sobre a protecção e defesa dos seus cidadãos face às
acções terroristas

Nos termos dos artigos 1 e 2 da Constituição da República de Moçambique, o Estado


Moçambicano é um Estado independente, soberano, democrático e de justiça social, em que a
soberania reside no povo e que se subordina à Constituição e fundando-se em respeito ao
princípio da legalidade.
Portanto, a Constituição da República afigura-se como o expoente da lei; a lei mãe, ou
seja a lei em que se deve fundar a demais legislação e toda a acção dos órgãos do Estado. No
âmbito dos objectivos do Estado, encontramos algumas responsabilidades nas alíneas c), d), e),
f) e g) do artigo 11 da CRM, que constituem o papel do Estado: a edificação de uma sociedade de
justiça social e a criação do bem-estar material, espiritual e de qualidade de vida dos cidadãos; a
promoção do desenvolvimento equilibrado, económico, social e regional do país; a defesa e a
promoção dos direitos humanos e da igualdade dos cidadãos perante a lei; o reforço da
democracia, da liberdade, da estabilidade social e da harmonia social e individual; e a promoção
de uma sociedade de pluralismo, tolerância e cultura de paz. No entanto, com o início dos
ataques terroristas em 2017, na província de Cabo Delgado, em que:

O marco simbólico deste período pode ser situado no ataque armado a uma esquadra da
polícia em Mocímboa da Praia, em Outubro, aumentando gradualmente a sua escalada
para outros distritos do norte da província. É assim que, ainda no mês de Outubro de
2017, foram atacados pontos onde se realizava comércio e um assalto armado à
delegação do Millenium BIM em Mocímboa da Praia, entre outros lugares. Em
Dezembro há também registos de ataques armados. No entanto, são os anos seguintes
que se mostram mais sangrentos. O ano de 2018 mostra-nos que depois de Mocímboa da
Praia os ataques se estenderam a outros distritos como Palma, Nangade, Quissanga e
Macomia, para além de Muidumbe. Em 2019 os ataques armados passaram a assumir
características diferentes, particularmente durante o segundo semestre, onde há
indicações de um maior profissionalismo, disciplina e uso de mais armamento pelo lado
dos atacantes (...) “os últimos seis meses de 2019 e os primeiros de 2020 foram infernais
para as populações e para as FADM” (...) os inúmeros ataques que ocorreram durante
este período e o alargamento das acções armadas a outros distritos do norte de Cabo
Delgado, os massacres realizados contra civis, o número incontável de habitações e bens
móveis e imóveis, unidades 44 hospitalares, escolas, lojas e outras infra-estruturas
públicas e privadas destruídas, sendo que o seu maior impacto é visualizado pelo número
de deslocados que chegaram a Pemba, Nampula, Niassa e ao norte do arquipélago das
Quirimbas e a outras ilhas, por terra e por mar, em busca de segurança e um pouco de
paz, (...) é possível verificar que Mocímboa da Praia, Macomia e Palma foram os
distritos mais atingidos por estes ataques armados ao longo destes cerca de dois anos,
apesar dos registos de ataques a outros distritos costeiros e do interior (...), (OSÓRIO,
SILVA. 2021, p. 43-45).

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Diante do acima exposto, pode-se perceber que os objectivos do Estado não foram
alcançados, ou seja, o Estado Moçambicano não desempenhou o seu papel na província de Cabo
Delgado, durante o período em que docorreram os ataques terroristas, como sendo: de edificar
uma sociedade de justiça social e criar bem-estar material, espiritual e de qualidade de vida dos
cidadãos; de promover um desenvolvimento equilibrado, económico, social e regional do país; de
defender e promover os direitos humanos e igualdade dos cidadãos perante a lei; de reforçar a
democracia, a liberdade, a estabilidade social e a harmonia social e individual; e de promover
uma sociedade de pluralismo, tolerância e cultura de paz, conforme se reporta no Relatório dos
Direitos Humanos em Moçambique (2020, p. 2):

Durante o ano, os ataques violentos contra as forças governamentais e as populações


civis que começaram em 2017 aumentaram dramaticamente em frequência, intensidade e
complexidade nos distritos do nordeste da Província de Cabo Delgado, onde o ISIS-
Moçambique fez avanços significativos. De Janeiro a Novembro, calculou-se ter havido
1.484 mortes na Província de Cabo Delgado, das quais 602 resultaram de violência
extremista dirigida contra civis e 109 resultaram de violência das forças de segurança
contra civis, de acordo com o Projecto de Localização de Conflitos Armados e Dados de
Eventos. Organizações de direitos humanos e o governo declararam que extremistas
violentos cometeram abusos de direitos humanos contra civis, incluindo decapitações,
sequestros e o uso de crianças-soldados. Os sequestros e deslocamentos forçados de
civis por parte de extremistas aumentaram, por vezes incluindo o incêndio de
comunidades inteiras.

E os dados apresentados no Plano de Reconstrução de Cabo Delgado das Zonas Afectadas pelo
Terrorismo (2021, p. 6), que dão conta que até ao mês de Agosto de 2021, cerca de 165.741
famílias, o equivalente a 786.520 pessoas eram deslocadas por causa das acções terroristas, tendo
buscado refugio em zonas mais seguras no sul da província de Cabo Delgado (cidades e distritos)
e em outras províncias como Nampula e Niassa, gerando o estado de emergência humanitário
devido ao agravamento de famílias em situação de vulnerabilidades.

2. Análise jurídica dos pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos

Em função do acima exposto, há necessidade de analisar de forma sucinta os


pressupostos da responsabilidade civil para aferir a possibilidade dos lesados serem ressarcidos
por todos os prejuízos sofridos através do recurso aos meios legais e apropriados para o efeito.
Nesta perspectiva, recorre-se ao artigo 483 e seguintes do Código Civil para se abordar sobre o

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instituto da responsabilidade civil extra-obrigacional (extra-contratual, delitual ou aquiliana), que
integra tanto a responsabilidade, quando ela depende da existência de culpa do agente, de culpa
do autor da lesão; e a responsabilidade objectiva, quando o agente se constitui na obrigação de
indemnizar independentemente de culpa, resultando a escolha desta modalidade de
responsabilidade civil pelo entendimento que se tem de que a possibilidade do Estado ressarcir a
população vítima do terrorismo em Cabo Delgado, não resulta do incumprimento de obrigações
contratuais.
Nos termos do n.º 1 do artigo 483 do Código Civil, os pressupostos da obrigação de
indemnizar por parte do lesante pela responsabilidade civil por factos ilícitos são:

a) Facto, que deve ser controlável pela vontade do homem, consistindo numa acção,
ou seja, num facto positivo, que importa a violação de um dever geral de abstenção, do dever de
não ingerência na esfera de acção do titular do direito absoluto. Mas pode consistir também num
facto negativo, ou seja, numa abstenção ou numa omissão, conforme o artigo 486º Código Civil,
onde podem ser enquadrados os actos de terrorismo praticados na província de Cabo Delgado e a
omissão do dever ou da responsabilidade do Estado em cumprir os seus objectivos, tendo em
conta as alíneas c), d), e), f) e g) do artigo 11 da CRM).

b) Ilicitude, deve consistir numa violação de um direito de outrem, que inclui os


direitos subjectivos, principalmente, os direitos absolutos, como os direitos sobre as coisas ou
direitos reais, os direitos de personalidade, os direitos familiares e a propriedade intelectual, ou
consistir na violação da lei que protege interesses alheios, ou seja, infracção das leis que protejam
um direito subjectivo e de leis que têm em vista a protecção dos interesses colectivos, não deixam
de atender também aos interesses particulares subjacentes, bastando para o efeito que se
verifiquem três requisitos fundamentais: (i) que a lesão dos interesses do particular corresponda a
violação de uma norma legal; (ii) que a tutela dos interesses dos particulares figure, de facto,
entre os fins da norma violada, e (iii) que o dano se tenha registado no círculo de interesses
privados que a lei visa tutelar. Aqui importa referir as diversas normas e direitos fundamentais
violados pelos terroristas e pelo Estado, bem como suspensão do exercício dos direitos
fundamentais das pessoas vítimas do terrorismo na província Cabo Delgado, sem observância das
regras estabelecidas no artigo 72 da Constituição da República de Moçambique.
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c) Imputação do facto ao lesante, que se traduz na necessidade de que do facto
ilícito o autor tenha agido com culpa, ou seja, a violação ilícita tenha sido praticada com dolo ou
mera culpa. Agir com culpa, significa actuar em termos de conduta do agente merecer a
reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável, quando, pela sua
capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia
agir de outro modo, no sentido de que o facto ilícito é imputado ao agente.
A culpa é o nexo de imputação subjectiva de um facto ilícito a uma pessoa e que pode
comportar duas vertentes: a imputabilidade, que avalia os graus de discernimento e de liberdade
de determinação de cada agente, considerando-se inimputável aquele que não possua suficiente
capacidade de discernimento ou liberdade de determinação, conforme se retira do disposto no n.º
1 do artigo 488 do Código Civil, e segunda vertente que se prende com o apuramento da
existência de culpa por parte do agente em face da sua actuação, isto é, do apuramento da
reprovabilidade da sua actuação.
A culpa pode revestir duas formas distintas: o dolo (a que os autores e as leis dão
algumas vezes o nome de má fé) e a negligência ou mera culpa (culpa em sentido estrito).
O dolo pode ser directo, necessário e eventual. No dolo directo, o autor do facto age
com a intenção de atingir o resultado ilícito da sua conduta, que de antemão representou e quis.
No dolo necessário, o agente não tem intenção de causar o resultado ilícito, mas bem sabe que
este constituirá uma consequência necessária e inevitável do efeito imediato que a sua conduta
resulta. No dolo eventual, o autor representa o resultado ilícito, mas o dano surge apenas como
consequência meramente possível – e não necessária – da sua conduta, actuando ele sem confiar
que o mesmo não se produza.
A mera culpa ou negligência consiste no desleixo, imprudência ou inaptidão. O
resultado ilícito deve-se somente a falta de cuidado, imprevidência ou imperícia.
Segundo a percepção do presente artigo, o que se pode inferir dos factos ocorridos na
província de Cabo Delgado em 2017 e sua continuidade nos anos subsequentes, tanto por acção,
por exemplo - os ataques armados, demonstra a intenção dos seus agentes de atingir o resultado e
o impacto negativo que causou nas comunidades, desde as mortes por decapitação, destruição de
bens ou de infraestruturas e desalojamento forçado das populações das suas zonas de orígem; ou
por omissão, por exemplo – a intervenção tardia do Estado para defender as populações,
combater e controlar o alastramento dos ataques nos distritos da zona norte da província de Cabo
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Delgado, demonstrando certa negligência sobre ocorrência dos factos, bem como a assunção
tardia do fenómeno como actos de terrorismo, o que pode ser provado nos termos do artigo 487
do Código Civil.

d) Dano, que é o prejuízo causado a alguém pelo facto ilícito culposo, é a condição
essencial da obrigação de indemnizar. O referido prejuízo pode recair sobre a pessoa do lesado ou
nos seus bens e podendo ser classificado em danos pessoais - aqueles que se repercutem nos
direitos da pessoa; danos materiais - os que respeitam às coisas; danos patrimoniais - aqueles que,
sendo materiais ou pessoais, consubstanciam a lesão de interesses susceptíveis de avaliação em
dinheiro (danos emergentes e lucros cessantes); danos não patrimoniais (ou morais) – aqueles que
se traduzem na lesão de direitos ou interesses insusceptíveis de avaliação pecuniária, cujo
princípio da sua aplicabilidade é limitado à responsabilidade civil extra-contratual. E não deve ser
ampliado à responsabilidade contratual, por não haver analogia entre os dois tipos de situações.
Podem ser encontrados igualmente os danos presentes ou futuros, em função de já se ter
verificado ou não no momento da apreciação do direito à indemnização pelo tribunal; danos reais
– aqueles que foram efectivamente verificados, ou seja, os prejuízos avaliados em si mesmo; e
danos de cálculo - que é a avaliação dos danos em dinheiro. Segundo Varela (s.d. p. 57):

A gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo, e não à luz de factores
subjectivos. Por um lado, a gravidade apreciar-se-á em função da tutela do direito: o
dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem
pecuniária ao lesado.
A reparação obedecerá a juízos de equidade tendo em conta as circunstâncias concretas
de cada caso (art. 496º/3 CC – 494º CC).
A indemnização, tendo especialmente em conta a situação económica do agente e do
lesado, é assim mais uma reparação do que uma compensação, mais uma satisfação do
que uma indemnização.

Os danos resultantes dos ataques terroristas e a intervenção tardia do Estado para


defender as populações, combater e controlar o alastramento dos ataques nos distritos da zona
norte da província de Cabo Delgado, que se traduziram nas mortes por decapitação ou por
baleamentos, destruição de bens ou de infraestruturas e desalojamento forçado das populações
das suas zonas de orígem, perda dos seus meios de subsistência, provocando dependência por
donativos, os traumas, doenças contraídas e os medos vividos, integram-se nas diversas
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categorias ou modalidades de danos sofridos pela população vítima do terrorismo em Cabo
Delgado, com destaque para os danos patrimoniais e não patrimoniais, aos quais a população
lesada tem direito de indemnização.

e) Nexo de casualidade entre o facto e o dano, significa que para o dano ser
susceptível de indemnização é necessário que ele seja consequência do facto, ilícito e culposo no
domínio da responsabilidade subjectiva extra-obrigacional, facto não culposo no domínio da
responsabilidade objectiva, onde o facto gerador do dano pode mesmo ser um facto lícito. No
entanto, em qualquer das modalidades da responsabilidade civil, tem sempre de haver uma
ligação causal entre o facto e o dano para que o actor do facto seja obrigado a indemnizar o
prejuízo causado, que se afigura nitidamente que os factos ilícitos ocorridos em Cabo Delgado
são os causadores dos prejuízos sofridos pela população vítima do terrorismo.

3. Análise jurídica dos pressupostos da responsabilidade civil pelo risco

A responsabilidade pelo risco ou objectiva, caracteriza-se por não depender de culpa


do agente, isto é, a obrigação de indemnizar surge do risco próprio de determinadas actividades e
integra-se nelas, independentemente de dolo ou culpa. Da interpretação ao artigo 499 do Código
Civil, infere-se que se deve aplicar à responsabilidade pelo risco o disposto no artigo 494 do
Código Civil, que estabelece que o facto de a responsabilidade objectiva não depender de culpa
do agente não impede que a indemnização seja fixada em montante inferior ao dano, quando a
situação económica do responsável pelo risco e do lesado e as demais circunstâncias o
justifiquem.
O n.º 1 do artigo 500 do Código Civil estabele o carácter objectivo da
responsabilidade do comitente, quando afirma que ele responde, independentemente da culpa e
no seu n.º 2, se estabelece que a sua responsabilidade não cessa pelo facto de o comissário ter
agido contra as instruções recebidas. Portanto, não se trata de uma simples presunção de culpa,
que ao comitente incumba elidir para se eximir à obrigação de indemnizar, trata-se de a
responsabilidade prescindir da existência de culpa, nada adiantando, por isso, a prova de que o
comitente agiu sem culpa ou de que os danos se teriam igualmente registado, ainda que não
houvesse actuação culposa da sua parte, o que não parece que seja o caso aplicável às populações

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vítimas de terrorismo em Cabo Delgado, pelo facto dos actos terroristas terem sido praticados
com o intuito de provocar o resultado catastrófico verificado e não actividades de outra índole,
que carregam consigo o risco nos moldes referidos nesta modalidade de responsabilidade civil.

4. Análise jurídica dos danos patrimoniais e não patrimoniais susceptíveis de


ressarcimento

Só existe responsabilidade civil e dever de indemnizar, se, da acção ilícita e culposa,


ocorrer um dano ou prejuízo (n.º 1 do artigo 483 do Código Civil), entendido como qualquer
lesão de um bem ou interesse alheio, merecedor de protecção ou tutela pela ordem jurídica. No
caso em concreto de Cabo Delgado, podem ser referidos como danos ou prejuízos, as mortes por
decapitação ou por baleamentos, destruição de bens ou de infraestruturas e desalojamento forçado
das populações das suas zonas de orígem, perda dos seus meios de subsistência, como
machambas e seus negócios, provocando dependência por donativos, os traumas, doenças
contraídas e os medos vividos, podem ser categorizados nestas duas modalidades de danos.
Os danos patrimoniais são aqueles que são susceptíveis de avaliação pecuniária ou em
dinheiro, por exemplo – a destruição de bens ou de infraestruturas e desalojamento forçado das
populações das suas zonas de orígem, perda dos seus meios de subsistência, como machambas e
seus negócios, provocando dependência por donativos; contrariamente aos danos não
patrimoniais que são os que não podem ser avaliados pecuniarmente - as mortes por decapitação
ou por baleamentos, os traumas, doenças contraídas e os medos vividos.
O n.º 1 do artigo 496 do Código Civil estabelece que na fixação da indemnização deve
atender-se aos danos não patrimoniais, que pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, pelo
que todas as situações acima descritas podem ser atendíveis nos termos da lei.

5. Análise da existência ou não da responsabilidade civil do Estado Moçambicano pelos


danos sofridos pela população vítima do terrorismo nos distritos da zona norte da
província de Cabo Delgado

Nos termos das alíneas c), d), e), f) e g) do artigo 11 da Constituição da República de
Moçambique, impõe-se ao Estado os objectivos fundamentais de edificar uma sociedade de
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justiça social e criar bem-estar material, espiritual e de qualidade de vida dos cidadãos; de
promover um desenvolvimento equilibrado, económico, social e regional do país; de defender e
promover os direitos humanos e igualdade dos cidadãos perante a lei; de reforçar a democracia, a
liberdade, a estabilidade social e a harmonia social e individual; e de promover uma sociedade de
pluralismo, tolerância e cultura de paz. Ora; por um lado, o exercício pleno dos direitos
fundamentais nos termos constitucionalmente consagrados por parte dos cidadãos e das
populações na província de Cabo Delgado depende do desempenho eficaz do papel do Estado, ou
seja, os cidadãos só podem exercer os seus direitos fundamentais em pleno se o Estado cumprir
com eficácia o seu papel fundamental, tendo em vista as disposições do artigo supracitado; por
outro lado, a limitação do exercício dos direitos fundamentais só pode ser temporária em virtude
de declaração do estado de guerra, do estado de sítio ou do estado de emergência nos termos
estabelecidos na Constituição, o que não foi o caso apesar das populações vítimas do terrorismo
terem ficado privadas de exercer os seus direitos por período indeterminado.
O n.º 1 do artigo 483 do Código Civil estabelece que:

1. Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o disreito de outrem ou
qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a
indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.

Analisada a segunda parte do n.º 1 do artigo referido, assaca-se o entendimento de que as normas
das alíneas c), d), e), f) e g) do artigo 11 da Constituição da República de Moçambique visam
proteger os direitos e os interesses da colectividade no seu todo, mas também visam proteger os
direitos e interesses dos cidadãos ou indíviduos, embora o destinatário da norma seja o Estado e
não o indivíduo singularmente considerado ou pessoa física.
Portanto, a inércia do Estado em assumir os ataques no princípio ( Outubro de 2017)
como actos de terrorismo no distrito de Mocimboa da Praia, bem como a sua intervenção tardia
para defender as populações, combater e controlar o alastramento dos ataques terroristas nos
demais distritos da zona norte da província de Cabo Delgado, tendo em conta a gravidade dos
prejuízos ou danos patrimoniais e não patrimoniais que daí resultaram, nomeadamente: a
destruição de bens ou de infraestruturas, desalojamento forçado das populações das suas zonas de
orígem, perda dos seus meios de subsistência, como machambas e seus negócios, as mortes por
decapitação ou por baleamentos, os traumas, doenças contraídas e os medos vividos, conforme

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referem as Narrativas e Práticas Sobre Direitos Humanos no Contexto do(s) Conflito(s) em Cabo
Delgado: Uma Análise de Género, os Relatórios de Práticas dos Direitos Humanos em 2020, e o
Plano de Reconstrução de Cabo Delgado das Zonas Afectadas pelo Terrorismo (2021 - 2024), se
afigura como uma omissão de conduta do Estado relevante sob o ponto de vista jurídico para a
responsabilidade civil e em que o Estado possa configurar o respectivo polo passivo e ressarcir os
danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelas populações de Cabo Delgado, se
devidamente accionados os mecanismos legais, tendo como fim garantir o cumprimento das
alíneas c), d), e), f) e g) do artigo 11 da Constituição da República de Moçambique.

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Considerações finais

O tema trazido neste artigo é actual, social e juridicamente relevante, uma vez que tem
haver com a análise da existência ou não da responsabilidade civil do Estado pelos prejuízos
sofridos pelas populações vítimas do terrorismo na província de Cabo Delgado e que ainda se
ressentem dos seus efeitos nefastos nos dias que correm, apesar da relativa restauração da
segurança e retorno das populações às suas zonas de origem, conforme refere o Relatório Balanço
do I Semestre do Serviço Provincial de Justiça e Trabalho de Cabo Delgado.
É um tema que sugere debates e estudos mais aprofundados sobre o seu objecto,
socialmente e na academia, para buscar um entendimento que possa mitigar o sofrimento das
populações vítimas do terrorismo em resultados prejuízos sofridos, através da busca incesssante
pela justiça e reflectir sobre o papel do Estado e sua conduta face à protecção e defesa dos seus
cidadãos nos termos constitucionalmente previstos.

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