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A Revista do Expresso

EDIÇÃO 2658
6/OUTUBRO/2023

Puigdemont
A vitória
da fuga
Ou como um foragido à justiça se tornou essencial
para a formação do novo Governo de Espanha.
Um Estado do qual o líder independentista da
Catalunha não quer fazer parte. Por Pedro Cordeiro
SUMÁRIO
EDIÇÃO 2658
6/OUTUBRO/2023

GETTY IMAGES
fisga +E Culturas Vícios

32
O português guardião
7 | Onde se fazem
os filmes que vemos
No top dos 10 filmes mais
vistos em Portugal, as
produções são em grande
parte norte-americanas.
18 | Carles Puigdemont
Sem ele não há Governo.
Por ele não havia Espanha.
O foragido ex-presidente
do Governo da Catalunha
teve nas legislativas
45 | Tom Waits
Cinco álbuns ganham nova
vida a partir das master
tapes analógicas originais
48 | Mário Cesariny
65 | Smartphones
O termo iPhone chegou
a ser usado para definir
telemóvel com ecrã tátil,
mas o mercado fez dele
apenas um smartphone.
da bomba atómica
A pandemia e a greve de espanholas de julho um O homem, as cumplicidades Agora voltou a brilhar:
Peer de Silva trabalhou guionistas nos EUA feriu a bálsamo regenerador e as aventuras poéticas no o iPhone 15 chegou para
com Oppenheimer e indústria, mas basta olhar para centenário do nascimento destronar a concorrência
subiu a pulso de simples a presença deste país em 26 | Berlim reinventada
festivais e para o box office de Vastas extensões de zonas 50 | Livros A aventura de 68 | Receita
soldado até figura de verdes e parques, um serviço quem ousou atravessar a Por João Rodrigues
países como Portugal para se
relevo na CIA, sendo perceber que não perderam de transportes públicos com Antártida a pé pelo Polo Sul
testemunha e ator em a hegemonia do cinema mais de 1500 autocarros 70 | Restaurantes
elétricos, quilométricas vias 54 | Cinema O primeiro Por Fortunato da Câmara
alguns dos episódios filme do filósofo e ativista
10 | O Que Eu Andei cicláveis, o combate ao
mais negros da história Para Aqui Chegar desperdício, a utilização transgénero Paul B. Preciado 72 | Vinhos
do século XX Um currículo visual de energias renováveis Por João Paulo Martins
56 | Televisão Se “The Boys”
de Robert Fico e a reutilização de edifícios não existisse, “Gen V” podia 74 | Recomendações
transformaram a cidade muito bem ser um falhanço De “Boa Cama Boa Mesa”
12 | Planetário
FICHA “Éramos minados 38 | Ken Follett 58 | Música Salvador Sobral 76 | Design
TÉCNICA pelo som do candomblé” Grande entrevista ao autor, mostra o seu “Timbre” Por Guta Moura Guedes
Por João Pacheco que já vendeu mais de 188
Diretor
João Vieira Pereira milhões de exemplares dos 60 | Teatro & Dança 78 | Moda
16 | Ideias seus 37 livros, tem as suas Moçambique e Portugal Por Gabriela Pinheiro
Diretor-Adjunto O que é que a Rússia ganhou
Miguel Cadete histórias publicadas em encontram-se na dança de
mcadete@impresa.pt ao assustar Elon Musk: o 80 países e traduzidas em Victor Hugo Pontes 79 | Tecnologia
Diretor de Arte
multimilionário não foi o único 40 línguas: “Não entendo a Por Hugo Séneca
Marco Grieco a ficar tão assustado que preocupação em deixar um 62 | Exposições Um novo
deixou de ajudar a Ucrânia legado para a posteridade” olhar sobre o mestre 81 | Passatempos
Editor Por Marcos Cruz
Ricardo Marques Por Anne Applebaum neoclássico italiano Canova
rmarques@expresso.impresa.pt
Editor de Fotografia
João Carlos Santos
Coordenadores
João Miguel Salvador
jmsalvador@expresso.impresa.pt
CRÓNICAS
Luís Guerra 3 Pluma Caprichosa por Clara Ferreira Alves | 14 O Mito Lógico por Luís Pedro Nunes
lguerra@blitz.impresa.pt
44 Os Cadernos e os Dias por Gonçalo M. Tavares | 53 O Outro Lado dos Livros por Manuel Alberto Valente
Coordenadores Gerais de Arte
Jaime Figueiredo (Infografia) 64 Fraco Consolo por Pedro Mexia | 80 Diário de Um Psiquiatra por José Gameiro
Mário Henriques (Desenho) 82 Estranho Ofício por Ricardo Araújo Pereira
FOTOGRAFIA DA CAPA: EMMANUEL DUNAND/AFP VIA GETTY IMAGES

E 4
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O destino
da informação

A 9 de outubro, mais do que


um canal de televisão
fisga
“QUEM SABE TUDO É PORQUE ANDA MUITO MAL INFORMADO”

O sonho “N
ão passa mais nada em Portugal senão
filmes americanos.” O realizador João
Botelho, em todo o seu esplendor, vaticinou

americano ainda a sina do cinema português durante uma épica


entrevista no programa “Os Culturistas”, do
Canal Q, em 2011. Visivelmente irritado com,

é real nas nossas segundo dizia, um constante escárnio e mal dizer


de “um certo tipo de pessoas que estão sempre
a denegrir” o nosso cinema e que só morriam de

salas de cinema amores pelo que vinha do outro lado do Atlântico.


Discussão eterna, fruto de um sector que parece
nunca se ter encontrado, entre o dito cinema de
autor e comercial. Nos anos 80, a predominância
da cinematografia norte-americana em Portugal,
NO TOP DOS DEZ FILMES MAIS VISTOS EM PORTUGAL, TODAS AS PRODUÇÕES ao nível das estreias comerciais, foi aumentando
SÃO MAIORITARIAMENTE NORTE-AMERICANAS. A PANDEMIA E A GREVE DE cada vez mais. Francis Ford Coppola, George Lucas
ou Martin Scorsese começavam a sua enorme
GUIONISTAS NOS EUA FERIU A INDÚSTRIA, MAS BASTA OLHAR PARA A PRESENÇA trajetória rumo a uma hegemonia mundial que
DESTE PAÍS EM FESTIVAIS E PARA O BOX OFFICE DE PAÍSES COMO PORTUGAL colocava — e ainda coloca — a indústria norte-
PARA SE PERCEBER QUE ESTÃO LONGE DE PERDER A HEGEMONIA DO CINEMA americana num dos primeiros lugares, quer de
produção cinematográfica quer de venda de
TEXTO JOSÉ PAIVA CAPUCHO INFOGRAFIA CARLOS ESTEVES bilhetes, isto apesar da pandemia de covid-19 e de
ILUSTRAÇÃO CRISTIANO SALGADO uma prolongada greve de guionistas.

E 7
fisga
Em plena rentrée e depois de Cannes, Veneza e Miyazaki. Há, claro, “Não Sou Nada”, de Edgar
FILMES MAIS VISTOS EM PORTUGAL Pêra, ou “Pátria”, de Bruno Gascon, que terão
Locarno começam as apostas para os filmes que
De 1 de janeiro de 2023 a 20 de setembro de 2023 a missão difícil de chegar ao box office do filme
podem chegar à linha da frente dos Óscares.
Tudo produções maioritariamente norte-americanas de Manuel Pureza ou de almejar o pódio que “2
E se no passado as plataformas de streaming
não conseguiam entrar nesse circuito, agora “Barbie” Duros de Roer”, de Victor Santos, conseguiu em
vieram para ficar. Filmes como “Killers of the 882.706 2022, com 49.830 espectadores.
Flower Moon” (Apple TV), de Scorsese, “The “Velocidade Furiosa X” O ano ainda não acabou e avaliações mais
Killer” (Netflix), de David Fincher, no meio do 689.661 definitivas do mercado de produção mundial só
caos da greve e com críticas diretas de atores “Oppenheimer” poderão ser feitas em 2024 mas, olhando para
durante os festivais, foram ilustres figuras nesses 532.398 os dados mais recentes do OEA, percebe-se
recintos. Só Wes Anderson sozinho, este ano, “Avatar: O Caminho da Água” que o número de espectadores, no caso dos 28
lançou um filme (“Asteroid City”), estreado em 466.534 países da União Europeia, já está a recuperar
Cannes, e quatro curtas-metragens, um pacote “Super Mario Bros. — O Filme” da pandemia de covid-19, mas ainda longe dos
comprado pela Netflix, em que “The Wonderful 459.926 números de 2019 ou 2018. A predominância
Story of Henry Sugar” teve honras de estreia em “Elemental” continua a ser de filmes norte-americanos (64%)
Veneza. Ou mesmo “The Idol” (HBO), entretanto 373.259 contra filmes europeus (28.4%) em 2022 na
cancelada, foi passear à Riviera francesa. Este “A Pequena Sereia” UE, ainda que não exista um número fechado,
verão fica marcado também por um fenómeno 366.753 até agora, do número de produções dos EUA.
que as mentes mais brilhantes teimam em tentar “Missão: Impossível — Ajuste de Contas Parte 1” Quanto à China, outro dos grandes players deste
replicar: “Barbie” e “Oppenheimer”, estreados 353.300 mercado, apesar do embate do novo coronavírus,
no mesmo dia, que conseguiram gerar milhões “Indiana Jones e o Marcador do Destino” mantém-se num dos lugares cimeiros. Basta
e milhões de dólares no mundo inteiro. Só o 293.684 olhar para os números do ano anterior:
primeiro já ultrapassou os mil milhões em “Guardiões da Galáxia: Volume 3” 740 filmes produzidos na China, 943 filmes
receitas. Portugal não foge à regra e está, mais do 233.872 produzidos nos EUA. O único país que consegue
que nunca, a viver um sonho americano nas salas Em Portugal estrearam-se este ano 39 filmes portugueses até agora. ultrapassar esses números é a Índia, em 2022,
de cinema. Só um entrou no top dos 40 filmes mais vistos de 1 de janeiro a 20 de setembro com 1367 filmes produzidos, número inferior
de 2023: “Pôr do Sol — O Mistério do Colar de São Cajó”. Teve 115.063
Analisando os dados mais atualizados do registado no ano anterior: 1818.
espectadores. Em 2022 foram produzidos e estreados 53 filmes nacionais.
Instituto do Cinema e Audiovisual, com a ajuda Ainda sobre produções cinematográficas
do Observatório Europeu do Audiovisual (OEA), NÚMERO DE FILMES PRODUZIDOS EM 2022 próprias, Portugal não se aproxima de nenhum
cujo livro do Marché du Film contém uma base dos grandes países como Itália (357), França
de dados valiosa para o mercado, a resposta Índia (287) ou Alemanha (198), nas várias categorias,
1367
é seguramente sim. Começando a olhar para EUA* de ficção nacional ou documentário. Consegue
943
o top dos 10 filmes mais vistos em Portugal China* fazer números semelhantes ou até superiores aos
740
entre 1 de janeiro deste ano e 20 de setembro, o Coreia do Sul 703
da Finlândia (40 produções), mas está longe dos
resultado não deixa margem para engano: todos Japão 634
países de leste, por exemplo, como Polónia (85)
são produções norte-americanas ou, se quiser, ou Chéquia (96). A Ásia, que tem despertado o
Itália 375
autênticos blockbusters. Disney, Lucasfilm ou 313
recente interesse do mainstream ocidental com
Espanha
Universal Studios a fazer render o seu peixe, Tom filmes como “Parasitas” (de Bong Joon-ho)
França 287
Cruise, em toda a sua arte e loucura a “tentar ou “Drive My Car” (de Ryusuke Hamaguchi),
Reino Unido 220
salvar o cinema”. “Barbie”, “Indiana Jones e o 220 apresenta níveis fortes de produção: Japão com
Alemanha
Marcador do Destino”, “Elemental” ou “Super 634 produções no ano passado e Coreia do Sul
* Dados de 2021
Mario Bros”, não é preciso dizer mais nada. O FONTE: MARCHÉ DU FILM — EUROPEAN AUDIOVISUAL OBSERVATORY
com 653. Só não encontra é tanto espaço, do
filme de Greta Gerwig, da Warner Bros, continua lado comercial, em sala, apesar de constar na
a bater recordes. Nenhum filme português figura programação de sítios como o Cinema Batalha
LONGAS-METRAGENS ESTREADAS EM PORTUGAL
nesta tabela, num ano em que já se estrearam ou o Cinema Ideal, bem como em festivais
Em 2022
39 filmes portugueses — registo próximo da portugueses e internacionais: entre 2004 e 2023,
produção nacional de 2022 que chegou às 53 224 nenhum filme asiático figurou nos mais vistos
obras, o que se traduz em boas perspetivas para em Portugal.
os criadores e não em resultados de bilheteira. O que o OEA mostra é que as produções
Mais significativo é ver a diferença entre a quota 101 europeias foram pouco afetadas, ainda que os
nacional e a quota de longas-metragens dos norte-americanos continuem a espalhar o seu
53
EUA estreadas no país, ressalvando, claro, o sonho americano nas salas de cinema, havendo
peso de cada uma das indústrias que é, por si só, uma maior concentração no top dos 10 filmes,
praticamente incomparáveis: 5,6% contra 74,5%. EUROPEIAS AMERICANAS NACIONAIS onde os blockbusters do outro lado do oceano
A América ainda está em todo o lado. continuam a reinar, como se verifica no caso
QUOTA DE MERCADO
O único filme português que consegue entrar português. Com o iminente fim da greve nos
Em %, 2022
num ranking é “Pôr do Sol — O Mistério do Colar EUA, há um número elevado de produções que
de São Cajó”, dentro deste período de tempo, 75 vai encher os ecrãs em 2024. Não foi possível
que conseguiu ultrapassar a marca dos 100 mil apurar o número de produções feitas pelas
espectadores (115.063), a reboque do sucesso principais plataformas de streaming porque, tal
de duas temporadas da série na RTP1. Mais como confirmado pelo Expresso, essa não é ainda
nenhum filme nacional conseguiu chegar a essa uma prática regular destas empresas. Que estão
marca este ano. Neste último semestre, espera- presentes, quer na nossa televisão, nas salas de
13
se a estreia de filmes como “Golpe de Sorte”, 6 cinema e nos grandes de festivais, apesar da
de Woody Allen, que esteve recentemente em mudança da política de contas e do aumento
Portugal, “The Marvels”, de Nia DaCosta, ou “O AMERICANAS EUROPEIAS NACIONAIS de preços, isso é inegável. Basta um clique para
Rapaz e a Garça”, o derradeiro filme de Hayao FONTE: ICA
confirmar. b

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O QUE EU ANDEI PARA AQUI CHEGAR
UM CURRÍCULO VISUAL

Robert Fico
Em criança, queria ser jornalista desportivo, arqueólogo ou político. Escolheu a terceira via — expressão que
utilizaria para se referir ao SMER, o partido social-democrata que fundou em 1999. Três vezes primeiro-ministro,
conduziu a Eslováquia à zona euro, mas a sua atitude recente afastou-o da UE, com posições contra os migrantes e
pró-Rússia. Foi novamente eleito e depende de uma coligação para formar Governo. / MARIA JOÃO BOURBON

1964
Político, jornalista
ou arqueólogo
Nasce em Topoľčany, na ainda
Checoslováquia, no seio de uma
família da classe operária. Em criança, 2023
dizia que queria ser político, jornalista Novo Governo à vista?
desportivo ou arqueólogo. Tem um irmão
e uma irmã, 14 anos mais nova. Mais uma vez, o SMER vence
1986 as eleições. Com quase 24%
Lei e ordem dos votos, depende de uma
coligação para formar Governo.
Forma-se em Direito pela
A sua campanha ficou marcada
Universidade Comenius, em
por uma postura nacionalista
Bratislava, especializando-
e, agora, pró-Rússia — em
se em Direito Criminal. É
contraste com o rumo do país
desde cedo politicamente
até então. Entre as posições
ativo: nesse ano, filia-se no
controversas dos últimos anos,
Partido Comunista. Depois
estão a oposição à vacinação
completou o doutoramento
para a covid e à política de
com uma tese sobre a pena
migração e asilo da UE.
de morte na Checoslováquia
e estudou na Escola de
Estudos Eslavos e do Leste
Europeu, em Londres.

2016
1989 Reeleição
e demissão
LEON NEAL-POOL/GETTY IMAGES

No Parlamento
Após a Revolução de Veludo e As suas posições firmes contra
a queda do regime comunista os migrantes, ajudam-no a ser
na Checoslováquia, trabalhou reeleito. Sem maioria, o SMER
como advogado do Governo e forma uma coligação com mais
ganhou um lugar no Parlamento três partidos. Mas Fico acabaria
através do Partido da Esquerda por se demitir dois anos depois,
Democrática (SDL), sucessor na sequência do assassínio do
do Partido Comunista. jornalista Ján Kuciak e da sua
Representou ainda a Eslováquia namorada, que desencadeou
no Tribunal Europeu dos Direitos uma crise política no Governo.
do Homem, mas perdeu os 14
processos dos quais tratou.
2006
Primeiro-ministro
O SMER ganha as eleições,
coligando-se com o Partido
1999 Popular, de Vladimír
Uma terceira via
Mečiar, e o extremista 2012
Partido Nacional Eslovaco,
Um ano após ter sido eleito vice- o que gera críticas dos Maioria absoluta
-presidente do SDL, sai, parceiros europeus. Mas o Na sequência da dissolução de outro
desapontado com a forma de primeiro mandato de Fico Governo de centro-direita, é reconduzido
trabalhar do Governo. É também como primeiro-ministro como primeiro-ministro, após ter levado
nessa altura que cria o social- fica marcado pela entrada o SMER à vitória nas eleições. Pela
democrata SMER, inicialmente da Eslováquia na zona euro. primeira vez desde 1989, um Governo
denominado “partido da terceira via”, obtém maioria absoluta no Parlamento.
para se opor ao Governo de centro- Um ano depois, anuncia que é candidato
-direita. Três anos depois, torna-se às presidenciais de 2014, mas perde para
o principal partido da oposição. Andrej Kiska na segunda volta.

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PLANETÁRIO
NO CAMINHO DAS ESTRELAS

POR
JOÃO
PACHECO

MADRID — RIO DE JANEIRO — AIMORÉS

Antes da subida
ao Pico da Neblina
VINICIUS XAVIER

Antes da subida ao Pico da Neblina, o ritual deste xamã SÃO PAULO — ÓBIDOS — LISBOA — COIMBRA

“Éramos minados pelo


yanomami foi assim documentado em 2014 na Amazónia
brasileira, pelo fotógrafo Sebastião Salgado. Em 1983,
Salgado fotografou a Amazónia pela primeira vez, no

som do candomblé”
contexto de um trabalho sobre desflorestação. Passaram
décadas e o tema continua atual e preocupante. Entre 1985
e 2022, a área destruída na Amazónia equivale praticamente
à área de toda a França. Tempo para pensarmos no poder
da agroindústria e na produção de soja e de carne de vaca.
Agora e até 14 de janeiro, a grande exposição de fotografia
“Amazônia” está em Espanha, no centro cultural Fernán Três homens olham-nos com aumentar, só que dois anos depois Os
Gómez, em Madrid. E é um dos resultados visíveis de sete confiança, a partir de um disco de Tincoãs viajaram até Angola para dar
anos de viagens do fotógrafo pela Amazónia, de barco, de 1977 do grupo Os Tincoãs. São negros, concertos, por indicação de Martinho
avião, de helicóptero e a pé. Ao longo desse tempo, Salgado estão em tronco nu e chamam-se da Vila. Era suposto ficarem apenas
chegou a viver com 12 tribos da Amazónia, trazendo agora a Mateus Aleluia, Dadinho e Badu. Na uns dias, mas o que aconteceu? “É
todo o mundo um conjunto de imagens que serve de alerta música brasileira são Os Tincoãs e difícil ficar só uns dias”, diz Mateus
contra a destruição dos habitats e o extermínio dos povos é agora Mateus Aleluia quem conta Aleluia entre risos. “Quem vai para
indígenas. Entre os vários livros já publicados a partir deste esta história ao Expresso. Um ano Angola... Só se não tiver jeito de
trabalho sobre a Amazónia, há até um livro de fotografia para antes, a banda sonora da telenovela ficar mais um pouquinho.” Apenas
cegos. E há agora esta exposição transumante, com banda “Escrava Isaura” tivera as vozes do Badu regressou ao Brasil, Dadinho
sonora de Philip Glass. Por falar em música, a exposição trio de Cachoeira, no estado da Baía. e Mateus foram ficando e passaram
também terá vida em Madrid sob a forma de um concerto Já a canção mais famosa do grupo a viver em Angola. O grupo acabou,
de música amazónica criada por Heitor Villa-Lobos e Philip chama-se ‘Cordeiro de Nanã’, está Dadinho trabalhou em hotelaria e
Glass, com projeção de fotografias de Sebastião Salgado nesse álbum de 1977 e tem um refrão Mateus Aleluia abriu uma empresa
em tamanho gigante. A 14 de outubro às 19h30 no Auditorio saído do candomblé, entre outros de publicidade. Durante 19 anos e
Nacional de versos de resistência. No Brasil vivia- oito meses, Aleluia viveu em Angola.
Música, em se sob ditadura militar. E cantar sobre Só voltou para o Brasil no final de
Madrid, com a escravatura e candomblé era desviar- 2002, pouco antes do fim da guerra
soprano Camila se do discurso dominante. Além da civil angolana. Regressado ao Brasil,
Provenzale e coragem, o trio contava com vozes voltou à música e criou vários álbuns
a Orquestra variadas, que tanto soavam a canto a solo, com destaque para “Afrocanto
Nacional de de embalar como a insurreição. Num das Nações”, que foi nomeado
SEBASTIÃO SALGADO

España, dirigida artigo recente e extenso do jornal há dois anos para os Grammy
por Simone “The New York Times”, os anos mais latinos. Também protagonizou o
Menezes. Já no marcantes do grupo merecem esta documentário de Tenille Bezerra
Brasil, o grande descrição: “harmonias vocais bonitas “Aleluia, o Canto Infinito do Tincoã”
trabalho de (pense-se nos Beach Boys na Baía) (2020), que merece mesmo ser visto.
Salgado sobre e uma mistura de samba, cantos Logo à chegada ao Brasil, em 2002,
refugiados está até 28 de outubro na Aliança Francesa do de capoeira e música sacra, escrita o antigo produtor de Os Tincoãs,
Rio de Janeiro, numa versão resumida de “Êxodos”. Além em português e em ioruba, o que Adelzon Alves, entregou a Aleluia
de criar e divulgar imagens poderosas, o casal Sebastião evocava a religião afro-brasileira do uma gravação preciosa. Tratava-se do
Salgado e Lélia Wanick Salgado é também uma dupla de candomblé”. Já em 1981, ‘Cordeiro de último álbum do trio de Cachoeira,
ativistas ambientais. Há 25 anos, fundaram uma fundação Nanã’ foi cantada a quatro vozes por gravado em 1983 e nunca editado.
dedicada à reflorestação, partindo dos 600 hectares da João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto O álbum chama-se “Canto Coral
Fazenda Bulcão, herdada da família do fotógrafo. Fica em Gil e Maria Bethânia. E talvez o Afro-Brasileiro” e foi lançado por fim
Aimorés, em Minas Gerais. E pede para ser visitada. sucesso do grupo estivesse em vias de este ano, quatro décadas depois de

E 12
ter sido gravado. Além da beleza e FLASHES LONDRES — AMESTERDÃO
da força das músicas, das letras e das
vozes do trio, este álbum também
inclui as vozes do Coral dos Correios e
Livre como uma coruja
Telégrafos do Rio de Janeiro. E sim, é
um acontecimento.
Agora, Mateus Aleluia tem 80 anos e Fosse ou não causado por uma
continua a fazer música. Hoje, sábado bebedeira, o sorriso desta mulher
e domingo terá concerto no Sesc chegou assim até nós graças à
Vila Mariana, em São Paulo. Já em liberdade com que Frans Hals pintava.
Portugal, a 14 e 15 de outubro estará no O pintor nasceu por volta de 1581 e
festival literário Folio em Óbidos, onde morreu em 1666, tendo vivido quase
será lançado o livro “Cadernos de toda a vida em Haarlem, nos Países

MUSEEN ZU BERLIN, GEMÄLDEGALERIE


Música — Mateus Aleluia”. Este novo MADRID Baixos. Teve tempo para criar uma obra
livro terá também lançamento em Esta cena erótica criada em 1933 que o distingue da maioria dos pintores
Lisboa, a 17 de outubro na Fundação por Pablo Picasso está em Madrid contemporâneos e o põe a par do génio
José Saramago. Em Coimbra, Aleluia até 14 de janeiro, no Museo de Velázquez, pela forma como cada
participará a 21 de outubro no festival Nacional Thyssen-Bornemisza. Na pincelada transmite espontaneidade e
Mate Europe. E de volta a Lisboa, exposição “Picasso, lo sagrado y lo vivacidade. Esta pintura de uma mulher
dará um concerto a 2 de novembro na profano” (O sagrado e o profano), com caneca e coruja terá sido criada
Igreja de São Jorge, perto do Jardim da esta mulher e este Minotauro por Hals por volta de 1640. E tudo
Estrela. Ao Expresso, Mateus Aleluia acompanham outras 21 obras indica que remeta para um ambiente
diz agora que “a presença africana no do autor e também criações de de taberna, como acontece noutras
Brasil é uma presença de resistência”. artistas como El Greco, Rubens,
pinturas do autor, como por exemplo retratado por Hals, que faz parte da
Delacroix e Goya. Para a mulher,
E conta o início da sua história com o num retrato brilhante de um homem a coleção do Louvre e é uma das pinturas
será sono ou sonho?
canto. “Para falar da minha meninice, fumar que faz parte da coleção do Met, mais famosas do autor. Agora, a
tenho que falar da minha cidade. Em em Nova Iorque. Aproveite-se para genialidade de Frans Hals estará até 21
Cachoeira todos tiveram uma mesma dizer que há uma expressão idiomática de janeiro numa grande exposição na
formação, até uma certa época. em neerlandês que é qualquer coisa National Gallery, em Londres. A seguir,
Tivemos os mesmos entrelaçamentos como “bêbado como uma coruja”. E poisará de 16 de fevereiro a 9 de junho
de religiões e Cachoeira é o se neste caso a coruja parece pouco no Rijksmuseum, em Amesterdão. Está
afrobarroco bem resumido, tendo contente, o sorriso da mulher lembra na altura de fazermos justiça a este
como base a cultura do dono da terra, a cara alegre de um tocador de alaúde grande pintor?
que é o índio. Na mesma proporção
que temos a igreja católica dentro
de nós, a gente também era minada
pelo candomblé, que era proibido.
A partir das seis da tarde não tinha LONDRES PHOTO
muita vigília por parte das autoridades No ano em que o ser humano MATON
que proibiam o candomblé. No chegou à Lua, esta beleza com
vale do Paraguaçú, de um lado fica rodas foi criada. Agora, este
Cachoeira, do outro lado fica São Félix skate Makaha Kicktail será
e no meio há um rio, que capta toda a uma das atrações da exposição
sonoridade. E aquilo ecoava em todo “Skateboard”, que estará de 20
o vale. Então, todos os cachoeiranos de outubro até 2 de junho no
da minha época éramos minados Design Museum, em Londres. Já
esta história de skates começa
pelo som do candomblé. Fosse ou não
na década de 1950 e chega até
fosse do candomblé, aquilo entrava
agora, sendo contada tanto através
pelos canais de contorno, em todos desta exposição como num livro
nós. Pela manhã, acordávamos com homónimo, escrito pelo designer
o sino da igreja católica. Como que Jonathan Olivares e editado pela A atriz Cate
a dizer: ‘Você dormiu numa coisa, Phaidon. Quem nunca? Blanchett foi assim
mas no seu despertar existe isto que retratada em 2004,
você não pode pôr de lado.’ E depois pelo fotógrafo
do sino havia o órgão da igreja. Um NOVA IORQUE Platon. Agora e
órgão antigo, bonito, sonoro, cheio Os corpos negros são objetos até 22 de outubro,
de harmonia. Aquilo invadia os lares que servem para ser exóticos e esta imagem
de todo o vale do Paraguaçú. E nossa eróticos? É possível desconstruir acompanha retratos
influência é essa. Da mesma forma preconceitos, também através de pessoas como
que eu cantava no coro da igreja da dança. Como se pode ver Michelle Obama,
matriz e de outras igrejas de lá, nós no espetáculo “O Samba do Vladimir Putin e
ouvíamos o candomblé o tempo todo. Crioulo Doido”, um solo criado há Muammar Kadhafi.
quase 20 anos pelo coreógrafo
Essa composição nos tornou um tipo Na Austrália,
Luiz de Abreu. E interpretado
de assimilados urbanos, em termos na exposição
agora por Calixto Neto em Nova
de cultura e em termos de culto. Nós Iorque. A 13 de outubro às 18h30, “People Power —
somos os assimilados urbanos lá do no Jack Crystal Theater, na Tisch Platon” da Ballarat
Recôncavo, do vale do Paraguaçú.” School of the Arts. Sim, este International
Esse vale será então uma das origens samba é para maiores de 18 anos. Foto Biennale.
PLATON

desta magia. Agora, o que faz falta é E contém nudez, saltos altos Em Ballarat, perto
ouvir Os Tincoãs. b e bandeiras do Brasil. de Melbourne.

E 13
O MITO LÓGICO

DUZENTOS COMPRIMIDOS

Q
OU ZONA AZUL?
ESTAMOS CADA VEZ MAIS PERTO DA IMORTALIDADE. OU DE VIVER ATÉ AOS 100

uanto custa ser imortal? Quanto custa “Descobri-las” tem sido o trabalho de duas décadas do jornalista da
ter a vida prolongada saudavelmente uns National Geographic, Dan Beuttener, netflixado em “Como Viver
20 anos? Ou talvez, quanto custa estar até os 100: Os Segredos das Zonas Azuis” (já existia um livro dele em
convencido de que se vai viver mais do português, da Bertrand, desde 2016). Nesta versão de 2023, novas zonas
que os outros por mérito próprio e não azuis são “descobertas”. Além das já conhecidas em Okinawa (no Japão),
devido à lotaria genética? Para Brian Icária (na Grécia), Nicoya (na Costa Rica) e uma aldeia na Sardenha — em
Johnson, o preço anual é de dois milhões todas elas, o estilo de vida ainda é de comunidade pouco tocada pelo
de dólares. E quem é Brian Johnson? O século XX e muito menos pelo XXI —, introduziram também uma cidade
próprio apresenta-se como o “homem perto de Los Angeles, Loma Linda, de adventistas, e Singapura. O que vai
mais mesurado do mundo”, dado que contra a perceção das zonas azuis, onde muitos vivem até aos 100 anos,
tudo em si já foi analisado (e continua a resultado de um cruzamento entre os genes certos e particularidades
ser), aferido, medido, ponderado, testado de um estilo de vida específico, como ingerir os alimentos certos, de
e disponibilizado publicamente. E porque sentido de entreajuda, de um propósito, onde os velhos fazem parte da
alguém estaria interessado em saber o que se comunidade e continuam ativos. Aliás, nestas zonas azuis, a comida
passa no corpo de Brian Johnson? Ele não só é de “camponês”: feijão (muito feijão) e pouca carne. Mas Singapura,
está determinado em parar de envelhecer como em reverter o processo. onde o número de centenários duplicou em dez anos, é o caso que mais
Adivinha-se o seu passado. Brian Johnson enriqueceu antes dos 40 anos interessa. Não é uma aldeia parada no tempo, mas uma cidade-estado.
com uma empresa tecnológica que vendeu por centenas de milhões. Em vez de cultura e tradição, Singapura introduziu o modelo através de
Após uns anos de borga, redirecionou toda a sua energia, tempo e engenharia social. Ao criar uma megaurbe em que as famílias podem
dinheiro para a ideia de não envelhecer. Aos 47, garante que tem uns viver perto, que convida a caminhar, em que se promove e incentiva a
pulmões de 18 anos, um nível de inflamação 66% mais baixo do que comida saudável, combate a solidão, disponibiliza cuidados de saúde
um miúdo de 10 anos, um coração de 37, e que reduziu a velocidade de e promove encontros intrageracionais, o resultado foi que as pessoas
envelhecimento o equivalente a 31 anos. Os dados estão disponíveis para começaram a envelhecer com saúde. Há, contudo, que ter em conta
serem comprovados, desafia. que Singapura é um modelo em muita coisa menos em certos direitos e
Não querer morrer é uma tendência dos tech bros bilionários que estão a liberdades que nos são queridos.
criar “cidades de longevidade”, ou tipos como Jeff Bezos, que investiu em Portugal não é uma zona azul. Tinha ingredientes para ser. Mas
programação de rejuvenescimento celular. Já aqui foi escrito. Querem ser aquilo é um “todo”. Sem querer chegar a um moralzinha bacoca, a
imortais ou pelo menos viver umas boas décadas a mais do que os mais nossa transição para a “modernidade” — somos um dos países mais
saudáveis dos humanos. O que talvez também justifique porque alguns envelhecidos do mundo — fez-se à custa dos que se viram velhos:
deles se estão a voltar para salvar o planeta. Esperam ainda cá estar aceitamos que estejam abandonados, doentes, isolados, e agora
dentro de um século. sem direito à saúde. Podia não ter sido tanto assim. Não era uma
Mas gostava de continuar a explorar o tema Brian Johnson. A imagem inevitabilidade. E caso haja vontade, com o que se sabe (é ir à Netflix e
dele é andrógena. Parece um boneco de cera. Tem uma idade indefinida assimilar a “Verdade”), pode mudar-se. Não estou a brincar.
de entre os 18 e os 50. Sim, há qualquer coisa de corpo embalsamado nas
fotos que publica seminu. Há meses, fez algum buzz porque começou P.S. Um investigador de Oxford veio esta semana colocar em causa
a utilizar em si o plasma do filho de 18 anos — a quem obrigava a ter o a teoria das “zonas azuis”. Garante que parte do número desses
mesmo cuidado alimentar — afinal, era o seu banco de sangue privado. centenários se deve à inexistência de certidões de nascimento e até de
Abandonou este procedimento por não ter produzido resultados fraudes para obtenção de reformas. Há sempre alguém a querer estragar
significativos. uma boa história. b
A vida de Johnson é um horror. Toma duas centenas de comprimidos lpnunesxxx@gmail.com
por dia, acorda às 4h30 da manhã e a última refeição que come é antes
do meio-dia. As duas/três refeições que faz, em restrição calórica,
são exatamente iguais: “superalimentos” vegetarianos. O ar da sua
casa minimalista é purificado. A qualidade e duração das suas ereções
noturnas são um dos dados que coloca online. Faz um incontável número
de procedimentos, que podem ser vistos no seu canal de YouTube, e uma
quantidade de exercício físico muito limitada — o batalhão de médicos
que o seguem diariamente não o permite, pois acelera o envelhecimento e
o objetivo é “não morrer”. Dirão: “É um maluquinho.” Respondo: é uma
tendência. Mas não é este o caminho para todos.
/ LUÍS
Hoje, a “Verdade” está formatada em seis episódios de 58 minutos da PEDRO
Netflix. Nem livros, nem documentários de uma hora. A “Verdade” tem
de caber em seis episódios da Netflix. E como toda gente sabe, isto da
NUNES
longevidade não é bem assim. Basta ter visto a minissérie sobre as zonas
azuis que está na Netflix há umas semanas.
As zonas azuis são pontos espalhados pelo mundo onde se descobriu
existir uma quantidade estatística anormal de centenários.

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IDEIAS

O QUE É QUE A RÚSSIA GANHOU


AO ASSUSTAR ELON MUSK
O MULTIMILIONÁRIO NÃO FOI O ÚNICO A FICAR TÃO ASSUSTADO QUE DEIXOU DE AJUDAR A UCRÂNIA

U
TEXTO ANNE APPLEBAUM/“THE ATLANTIC”
JORNALISTA, ESCRITORA, AUTORA DE “O CREPÚSCULO DA DEMOCRACIA”

a várias outras pessoas (embora mais tarde o tenha pequenos, pretos, difíceis de ver na água e chegam a
negado) que, na altura, também estava em conver- distâncias muito longas, mais de 1050 km, segundo
sações com o Presidente Vladimir Putin. os engenheiros. Os drones são constantemente rein-
Estes são detalhes que talvez já conheçam. Muitos ventados e redesenhados. Alguns dos que vi são des-
foram relatados pela primeira vez em maio, por Oli- critos como a “quinta geração”. Foi-me dado o con-
ver Carroll no “The Economist”. Desde então, a “New trolo remoto de um num corpo de água distante e
Yorker” também escreveu como soldados ucrania- controlá-lo foi como jogar um jogo de computador.
nos perderam abruptamente o acesso ao Starlink no Tal como os drones aéreos mais famosos, os dro-
campo de batalha durante várias operações terrestres nes marítimos são uma parte importante da forma
diferentes. A versão de Isaacson dessa história suge- idiossincrática como a Ucrânia está a travar a guer-
re que todos os drones envolvidos naquela operação ra. Incapaz de competir de avião ou de navio contra
deram à costa naquela noite. Mas recentemente, na o exército russo, que é muito maior, a Ucrânia está
Ucrânia, conheci alguns dos engenheiros que ajuda- a usar dispositivos minúsculos, de alta tecnologia,
ram a projetar os veículos marítimos não tripulados, personalizados e relativamente baratos que podem
incluindo um que esteve envolvido na primeira ten- tirar de cena artilharia, tanques e navios grandes e
tativa de ataque a navios russos em Sebastopol. Dis- caros. Muitos desses dispositivos são construídos
seram-me que nem todos os drones envolvidos se ti- por grupos que não são bem militares, mas também
nham perdido. Alguns voltaram à base, sem danos. não são propriamente privados. Esta resposta assi-
Esta é a parte que poderá não ter ouvido ou nem métrica, local e em rede faz parte da forma como os
ma noite, em setembro de 2022, um grupo de dro- sequer estar registada: a mesma equipa lançou um ucranianos esperam ganhar a guerra. “Isto é a Ucrâ-
nes marítimos ucranianos entrou pelo Mar Negro, ataque semelhante algumas semanas depois. A 29 nia. Somos híbridos”, disse-me um dos engenheiros.
em direção à Crimeia, ocupada pela Rússia. Os seus de outubro, uma frota de drones marítimos teleco- Também me disse que, embora os seus drones não
criadores, engenheiros que faziam outras coisas até mandados, cheios de explosivos, chegou ao porto de destruíssem toda a frota do Mar Negro, tiveram um
ao início da atual guerra, escolheram cuidadosa- Sebastopol, usando um sistema de comunicação di- impacto na guerra. Os navios militares russos torna-
mente estas embarcações rápidas, controladas re- ferente. Estes atingiram os seus alvos. Conseguiram ram-se mais cautelosos. Em vez de bloquear fisica-
motamente e cheias de explosivos para atingir na- inutilizar uma fragata russa, a “Almirante Makarov”. mente o transporte de cereais ucranianos, como al-
vios ancorados em Sebastopol, local que alberga a A equipa acredita que danificaram pelo menos um guns observadores achavam que fariam, ficaram no
Frota russa no Mar Negro. Mas os drones enfrenta- submarino e outros dois barcos. porto. “Conseguimos assustá-los”, disse-me. Con-
ram um problema: o Starlink, o sistema de comu- E o que aconteceu? Não houve uma guerra nu- firmaram de bom grado que, se um navio de guerra
nicações por satélite que a Ucrânia usava desde a clear. Apesar dos medos de Musk, ou seja, os medos russo tentar bloquear um navio de carga com cereais
invasão da Rússia no início do ano passado, ines- que lhe foram incutidos pelo embaixador russo ou ucranianos, irão atacá-lo.
peradamente, não estava a funcionar. Isto foi uma talvez pelo próprio Putin, a III Guerra Mundial não Por outras palavras, Musk estava errado. Em vez
surpresa para os engenheiros. Várias pessoas, na eclodiu como resultado deste ataque bem-sucedido de inspirar a III Guerra Mundial, o ataque com dro-
Ucrânia e um pouco por todo o lado, começaram a um porto da Crimeia. Em vez disso, os comandantes nes marítimos ajudou a reduzir a violência, protegeu
freneticamente a ligar e a enviar mensagens a Elon navais russos ficaram assustados com o ataque, de tal o comércio, impulsionou os agricultores ucranianos
Musk, o proprietário do Starlink, para o convencer forma que se mantiveram perto do porto de Sebasto- e talvez tenha conseguido que algumas pessoas fora
a viabilizar o sistema. pol durante as semanas seguintes. da Ucrânia não passassem fome. Se não fosse a arro-
O empresário, por sua vez, ligou a Walter Isaac- Para sua própria segurança, escolho não publi- gância de Musk, esses efeitos poderiam ter sido sen-
son, o seu biógrafo, e disse-lhe que havia uma “forte car os nomes dos engenheiros. Conheci-os através tidos mais cedo. Talvez o primeiro ataque pudesse
possibilidade” de o ataque por drones marítimos le- de um empresário da área da tecnologia que conheci ter eliminado mais navios cujos mísseis têm matado
var a uma guerra nuclear. De acordo com Isaacson, numa outra viagem à Ucrânia, que fiz quando estava civis nas cidades ucranianas. Talvez menos pessoas
Musk tinha falado recentemente com o embaixa- a escrever sobre operações de drones numa perspe- tivessem morrido. E talvez a guerra, que irá terminar
dor da Rússia em Washington, que o avisou expli- tiva mais abrangente. Esta equipa já apresentou os quando a Ucrânia retomar o seu próprio território e
citamente de que qualquer ataque à Crimeia leva- seus barcos não tripulados antes, por isso não estou acabar com o tormento dos seus próprios cidadãos
ria a conflitos nucleares. O multimilionário sugeriu a revelar nenhum segredo quando escrevo que são nesse território, estaria mais perto do seu fim.

E 16
MUDANÇA “O Homem Desesperado
Pelo Medo” (1844), óleo sobre tela de
Gustave Courbet (1819-1877), na Galeria
Nacional da Noruega, em Oslo

sistema de mísseis balísticos de longo alcance co-


nhecido como ATACMS. Agora os tanques estão no
terreno, a formação de pilotos de F-16 começou e
a Administração Biden pode estar a planear dar
ATACMS à Ucrânia.
Cada um desses atrasos foi uma perda de tempo.
E esse tempo custou vidas, talvez dezenas de milha-
res de vidas. Eu estava na Ucrânia há exatamente
um ano, no fim de semana em que as tropas ucra-
nianas recuperaram as cidades do norte de Izyum e
Kupiansk. Algumas semanas depois, os ucranianos
recuperaram a cidade de Kherson. Na altura, esta-
vam entusiasmados. Um ano depois, a euforia desa-
pareceu e não admira: esse entusiasmo perdeu-se.
Depois de tomar Kherson, as forças ucranianas não
tinham o armamento para avançar mais. Não volta-
ram a tentar um avanço em junho deste ano. Nessa
altura, os russos tinham criado centenas de quiló-
metros de campos minados, alguns dos campos mi-
nados mais extensos que qualquer exército já tentou
atravessar, bem como um sistema de armadilhas de
tanques e trincheiras que retardou a contraofensiva
da Ucrânia e, mais uma vez, levou à morte de sol-
dados e civis ucranianos.
Pensem como seria o mundo se as ameaças nu-
cleares de Putin não tivessem influenciado tão pro-
fundamente a nossa imaginação. Se Musk não se ti-
vesse assustado com a propaganda russa, se calhar
parte da frota russa podia ter sido desativada um mês
antes. Se Washington, Londres, Paris e Berlim não ti-
vessem sido enganados pela propaganda russa, então
os ucranianos poderiam ter expulsado os russos mais
cedo e a guerra podia já ter acabado. Sempre que os
estrangeiros hesitaram em ajudar a Ucrânia o resul-
tado foi a morte, o horror e o terror.
Há sempre uma “forte possibilidade”, para usar
Esta é uma história de alerta sobre a arrogân- a invasão do leste da Ucrânia. Apenas pararam o termo de Musk, de os russos usarem armas nu-
cia de um multimilionário que veio a desempenhar quando os ucranianos ripostaram. cleares; havia também uma possibilidade de o teste
um papel fundamental na política externa dos EUA. De 2014 a 2022, os Estados Unidos e as nações da bomba nuclear de Robert Oppenheimer rebentar
Mas é também uma história sobre o medo, semeado europeias, com medo de provocar um ataque russo, com o planeta. Mas se quisermos impedir os russos
e promovido pelos russos, deliberadamente conce- limitaram ou proibiram a venda de armas à Ucrânia. de usar as suas armas nucleares, temos outras for-
bido para moldar as perceções ocidentais mais am- Isto também provou ser um erro terrível e importan- mas de o fazer. As nossas próprias armas nucleares
plas desta guerra. Elon Musk não está sozinho: mui- te: se os russos tivessem realmente medo do exército e as nossas próprias forças convencionais superiores
tas pessoas em Washington, e em Berlim, Bruxelas ucraniano, talvez nunca tivessem lançado a invasão são um poderoso dissuasor: a maioria dos analis-
e outras capitais europeias, incluindo pessoas que em larga escala. tas acha que isso explica por que razão a Rússia não
apoiam a soberania ucraniana e que querem que a Mesmo quando a invasão começou no ano pas- atingiu deliberadamente nenhum alvo em território
Ucrânia vença a guerra, também foram acossadas sado, o medo amorfo da reação russa convenceu da NATO. O facto de a China e de a Índia insinuarem
por conversas com embaixadores russos, por ame- novamente os americanos e os europeus a não for- que a escalada nuclear seria um erro terrível, bem
aças emitidas por líderes russos e pelas imagens de necerem armas de longo alcance à Ucrânia, em como declarações sobre a inaceitabilidade da guer-
explosões nucleares exibidas pela televisão estatal parte porque temíamos o que poderia acontecer se ra nuclear por parte do G20, das Nações Unidas e de
russa. Muito antes de chegar a falar com um russo, fossem usadas para atingir alvos russos. Mas depois outros também ajudam.
Musk provavelmente deparou-se com a mesma pro- os ucranianos usaram as suas próprias armas para Os ataques ucranianos, especialmente os ines-
paganda nas câmaras de ressonância de extrema- atingir alvos russos, primeiro na região fronteiri- perados e assimétricos, como os dos drones maríti-
-direita influenciada pela Rússia que frequenta. Em ça, depois em Moscovo, Pskov e outras cidades. A mos, são também uma forma de dissuasão. Tal como
2016, Donald Trump provavelmente teve a ideia de guerra nuclear também não rebentou. o nosso compromisso contínuo com a Ucrânia. Cada
acusar Hillary Clinton de querer iniciar a III Guerra Poderia dizer o mesmo sobre quase todos os ti- vez que anunciamos outra remessa de armas, ou a
Mundial nessa mesma rede social. pos de armas importantes. O medo da escalada de União Europeia faz outra promessa financeira, ou o
Os russos fazem isso por uma razão: o medo da violência significou que algumas nações, especial- Presidente Joe Biden faz outra declaração de apoio, os
escalada de violência é projetado para criar auto- mente a Alemanha e os Estados Unidos, não deram russos sabem que o preço da ocupação, e de qualquer
dissuasão — e funciona. Em 2014, os líderes oci- à Ucrânia os tanques de que precisava para pas- escalada, está a aumentar. A resistência não provoca
dentais, temendo essa escalada, aconselharam a sar à ofensiva e retomar o seu território. O medo Putin; a fraqueza sim. b
Ucrânia a não lutar quando a Rússia invadiu a Cri- da escalada também significou que os ucranianos
meia. Este conselho levou à miséria para os que não receberam F-16 a tempo de ajudar na contra- e@expresso.impresa.pt
foram perseguidos, presos e expulsos da penín- ofensiva deste verão. O medo da escalada signifi-
sula. Também convenceu os russos a continuar cava que nos recusámos a dar aos ucranianos um Tradução Joana Henriques

E 17
TEXTO
PEDRO CORDEIRO

E 18
Carles Puigdemont,
o foragido ex-presidente
do Governo da Catalunha,
teve nas legislativas
espanholas de julho um
bálsamo regenerador.
Depende dele a formação
do próximo Governo do
socialista Pedro Sánchez

Sem ele
não há
Governo.
Por ele
não havia
EMMANUEL DUNAND/AFP VIA GETTY IMAGES

Espanha
E 19
W
aterloo, a cidade belga onde mora Carles Puigde-
mont, é nome cuja ressonância histórica pede pia-
da a traçar paralelo entre a batalha que foi início
do fim para Napoleão e a gorada intentona sepa-
ratista que o político catalão protagonizou há seis
anos, num mês que abriu com o referendo de 1 de
outubro de 2017 e culminou a 27. Ficou para a his-
tória a sua declaração de independência, suspensa
segundos depois de proclamada. Foi para escapar
às consequências judiciais desse ato falhado que
Puigdemont preferiu o exílio belga, afastado pelo
Executivo espanhol da chefia do Governo autonó-
mico (que ocupou durante 21 meses) e desde então
em perda de relevância na política catalã.
Eis senão quando um resultado eleitoral deixa
nas mãos deste homem o futuro político imedia- Catalunha (JxC), que refundou há três anos, de- jornalista barcelonês Lluis Bassets, antigo diretor-
to de Espanha, país onde entrar lhe valeria voz de pois de o ter erguido sobre os escombros da antiga -adjunto do diário “El País” que chefiou a edição
prisão e país que deseja que deixe de ser o seu, mas Convergência Democrática da Catalunha, do ve- catalã do jornal e professor jubilado da Univer-
a cujas leis ainda está sujeito. A analogia piadéti- terano Jordi Pujol, que governou a região durante sidade Autónoma de Barcelona. “Acima de tudo,
ca poderá passar, portanto, do desaire oitocentista 23 anos. O autoexilado é eurodeputado desde 2019, não quer que lhe chamem traidor.”
de Waterloo para o ritmo animado da canção com ao lado dos companheiros de luta Toni Comín e
que os ABBA venceram o Festival da Eurovisão há Clara Ponsatí, outros dois procurados pela Justiça A FORÇA QUE TEM UM TWEET
49 anos. Imagine-se, então, um Carles dançarino espanhola e que fugiram para evitar o destino de Bassets recorda os acontecimentos de outubro
— ele prefere Beatles, Rolling Stones ou Pink Floyd nove correligionários que já cumpriram penas de de 2017. Puigdemont preparava-se para convo-
ao quarteto sueco — a festejar a aritmética parla- cadeia, antes de serem indultados por Sánchez, e car eleições regionais antecipadas, dias depois de
mentar saída das legislativas de 23 de julho, que lhe centenas de outros que arriscam igual sorte. Que um referendo à margem da legalidade espanhola,
dá hipótese de extrair ao socialista Pedro Sánchez move hoje o homem que foi, há oito anos, inespe- com forte repressão policial ordenada pelo então
cedências que favoreçam o sonho independentis- rado e molt honorable 130º presidente do Governo Governo central de Mariano Rajoy, do Partido Po-
ta ou, pelo menos, o livrem de uns anos na prisão. autonómico catalão? pular (PP, centro-direita). Com 92% dos votos a
Puigdemont não concorreu a essas elei- “Está farto de estar em Bruxelas e quererá vol- favor da secessão — em grande parte porque os
ções nem ocupa cargos no partido Juntos pela tar, mas de cabeça erguida”, afirma ao Expresso o que estavam contra não foram votar, para não

E 20
ALIANÇA Carles
Puigdemont (à dir.) e Pedro
Sánchez em 2016, quando
o primeiro governava
e o segundo não. Agora é
ao contrário, e o socialista
precisa do apoio do catalão
para se manter no poder

legitimarem a consulta ilegal —, os nacionalistas


mais aguerridos não queriam eleições mas uma
declaração unilateral de independência. “Eram
3h da madrugada quando um tweet de Gabriel
Rufián [da Esquerda Republicana da Catalunha
(ERC), força que rivaliza com o JxC pela hegemo-
nia do independentismo] mexeu com ele. Dizia:
‘155 moedas de prata’, insinuando que Puigde-
mont se vendera.” O número em causa é o do arti-
go da Constituição que permite ao Executivo cen-
tral suspender a autonomia de uma região, ou seja,
Rufián acusava Puigdemont de cobardia.
“Puigdemont ficou frenético!”, conta Bassets,
para quem o cúmulo foi “30 miúdos da juventu-
de da ERC, na rua, terem-lhe chamado botifler”.
Dificilmente podia haver insulto pior. Era como
os nacionalistas catalães designavam os apoian-
tes de Filipe V de Bourbon na Guerra da Suces-
são espanhola do século XVIII. O príncipe fran-
cês venceu esse conflito e a Catalunha, que apos-
tara no cavalo errado (Carlos de Habsburgo), foi
castigada com a perda das instituições próprias,
como voltaria a ser depois da declaração unila-
teral de Puigdemont, séculos mais tarde, de novo
JOSEP LAGO/AFP/GETTY IMAGES

com um Filipe no trono em Madrid, o VI do nome


e de apelido Borbón. O mesmo que nesse outu-
bro de 2017 faria discurso em inaudito tom crítico
contra o independentismo catalão. Picado pelas
acusações de cobardia, Puigdemont assumiu “o
mandato do povo para que a Catalunha se conver-
ta num Estado independente em forma de Repú-
blica”. O engraçado é que um ano antes, em en-
trevista ao Expresso, pintara o seu nacionalismo
como algo afastado dos Estados-nação do século

Os dois grandes partidos


XIX: “Mais do que uma declaração de indepen-
dência, gostaríamos de fazer uma declaração de
interdependência.”
nacionalistas catalães, com maior Afinal, fez mesmo uma declaração de indepen-
dência, gerando exultação no Parlamento Regio-
ou menor radicalismo, estão mais nal, que pouco antes votara a favor da secessão,
tendo-se ausentado os deputados pró-Constitui-
ligados à competição entre ambos ção. Segundos depois, da boca do mesmo Puigde-
mont, o balde de água fria: “Com a mesma soleni-
do que a convicções puras dade, o Governo e eu propomos que o Parlamento
suspenda os efeitos da declaração de indepen-
dência para nas próximas semanas empreenda-
mos um diálogo sem o qual não é possível chegar
a uma solução acordada.”
Se a história recente mostra hesitações e zigue-
zagues, Bassets não exclui que, ainda que pactue

E 21
MARCOS DEL MAZO/LIGHTROCKET VIA GETTY IMAGES
INCERTEZA Qualquer medida de graça em relação a Puigdemont é repudiada pela direita, cuja ala mais radical inclui neonazis, como estes do partido franquista Falange
(em cima), fotografados numa manifestação em Madrid; Carles Puigdemont e a sua mulher, a jornalista romena Marcela Topor, à entrada do Parlamento regional catalão em 2017;
Recusada pelo Parlamento a investidura do conservador Alberto Núñez Feijóo (em primeiro plano), será o socialista Pedro Sánchez o próximo a pedir a confiança dos deputados

EDUARDO PARRA/EUROPA PRESS VIA GETTY IMAGES


JOSEP LAGO/AFP VIA GETTY IMAGES

E 22
Reivindicar
conquistas
arrancadas
a Madrid
e não ser
com Sánchez a viabilização de um Executivo do
Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE, cen- considerado um leilão. Quem é mais independentista? E o ou-
tro que fique como traidor.”
tro-esquerda) e da frente esquerdista Somar (que
ocupou o lugar outrora do Podemos e cuja chefe, traidor Já nos tempos de Pujol, os governos catalães
usavam a carta nacionalista para obter benesses
Yolanda Díaz, visitou Puigdemont em Bruxelas em
setembro), o político catalão possa voltar atrás “se é fulcral do poder central espanhol, sobretudo quando este
dependia deles. Em 1996, a Convergência viabili-
alguém lhe disser algo inconveniente” que ponha
em causa a hombridade de que se crê possuidor. para Carles zou executivos de Felipe González, hoje um dos
socialistas mais contrários a negociações com o
A 29 de setembro último, enquanto o Congresso
dos Deputados espanhol chumbava a investidura
de Alberto Núñez Feijóo — chefe do PP e vence-
Puigdemont nacionalismo catalão, e de José María Aznar, figu-
ra de proa da direita mais radical e centralista do
PP. Era o “pactismo” catalão, que esticava a cor-
dor das eleições de julho —, a ERC e o JxC, que vo- da sem nunca a partir. Isso só sucedeu a partir de
taram com o PSOE para travar o PP, fomentavam 2012 e da rutura entre Artur Mas, presidente na-
no Parlamento autonómico catalão uma resolu- e na amnistia. E na firmeza em todos os âmbitos, cionalista do Governo catalão, e Mariano Rajoy,
ção que fazia depender o apoio a um Executivo de também na negociação, como via para torná-la primeiro-ministro conservador (PP) de Espanha.
Sánchez à criação de “condições para a celebração possível.” Outro observador atento da realidade cata-
de um referendo”, assim complicando putativas Há uma diferença de monta entre a amnistia lã, Guillem Martínez, acredita que Puigdemont
conversações. e o referendo de autodeterminação. Se eminen- abandonará o unilateralismo e as metas maxima-
O socialista precisa que a maioria de 178 depu- tes juristas espanhóis se têm dividido quando à listas mal veja resolvida a sua situação penal. “O
tados que barrou o caminho de Feijóo para o poder constitucionalidade da primeira — questão bicuda novo caminho do nacionalismo conservador será
se converta numa maioria a seu favor. Se o líder mas que eufemismos ou artefactos jurídicos pode- a língua catalã, e Puigdemont manter-se-á como
do PP contava apenas com o Vox (extrema-direi- rão ajudar a contornar —, é muito nítido que uma eurodeputado para lutar pela sua utilização na
ta) e duas pequenas formações regionais (União consulta popular de autodeterminação de uma Europa”, afirma ao Expresso. Internacionalizar a
do Povo Navarro e Coligação Canária), num to- parte do país não tem qualquer cabimento na Lei questão catalã foi sempre aposta do ex-presidente
tal de 172 deputados — daí o fracasso —, Sánchez Fundamental adotada em 1978 e referendada com foragido. Martínez, jornalista do digital “CTXT”,
tem assegurado o apoio do PSOE, Somar, Partido esmagador apoio, inclusive na Catalunha. lembra ainda que o apoio ao idioma congrega
Nacionalista Basco (PNV, centro-direita), Unir o “maiorias sociais que superam os blocos indepen-
País Basco (Euskal Herría Bildu, independentistas EU É QUE SOU O MAIS NACIONALISTA! dentista e constitucionalista”. Um dos primeiros
de esquerda outrora ligados ao terrorismo da ETA) Os dois principais partidos do independentismo sinais de entendimento entre Sánchez e as forças
e Bloco Nacionalista Galego. Falta-lhe seduzir os catalão entregam-se a um jogo do gato e do rato, nacionalistas cujo apoio procura, na Catalunha e
independentistas catalães. Sinal dos ziguezagues em que maior ou menor radicalismo estão mais não só, foi impulsionar o uso das línguas cooficiais
destes, no pós-eleições imediato, supunha-se que ligados à competição entre ambos do que a con- (catalão, basco, galego) no Parlamento espanhol e
a ERC seria mais fácil de conquistar do que o par- vicções puras. Se há seis anos a ERC era mais de- pedir à União Europeia a sua adoção nas institui-
tido de Puigdemont. Agora há dúvidas. fensora do que o JxC da via unilateral para a Repú- ções comunitárias. Foi o Governo de Sánchez que
Dois dias depois de Feijóo fracassar, a ERC per- blica Catalã, tudo mudou com Sánchez no poder pediu à Europol que reconsiderasse a classificação
sistia na tónica, através de figuras tão importantes em Madrid. O partido de Aragonès e Oriol Jun- do independentismo catalão como “terrorismo et-
como Pere Aragonès, atual chefe do Governo au- queras (um dos que estiveram atrás das grades) nonacionalista e separatista”.
tonómico da Catalunha. Já Puigdemont voltava a viabilizou o Executivo PSOE-Podemos e aceitou Para Bassets, o importante será Madrid “resol-
jogar com ambiguidade. Ao assinalar o aniversá- uma Mesa de Diálogo, o que terá ajudado ao indul- ver a situação de 100 ou 200 quadros destacados
rio do referendo ilegal, no domingo passado, num to e a reformas penais, como a abolição do delito da ERC e do JxC sujeitos a processos e multas, en-
ato do Conselho da República (órgão sem existên- de sedição (acusação que pendia sobre os princi- tre eles autarcas, governantes e dirigentes partidá-
cia legal que chefia a partir do exílio belga), o ex- pais dirigentes separatistas) e a revisão de desvio rios”. Fala-se de amnistia, porque o indulto, con-
-presidente catalão não falou de linhas vermelhas, de fundos (idem). Era da Bélgica que vinham as cedido por Sánchez aos condenados do processo, é
antes destacando “o trabalho que há por fazer, tiradas mais radicais e, pelo meio, Puigdemont mais lento e nunca poderia incluir Puigdemont: só
sem perder os pontos cardiais nem desperdiçá-los dava conferências onde podia, tendo sido detido abarca quem já foi julgado e condenado. O proble-
à procura de saídas pessoais em vez de dar pas- na Alemanha (2018) e na Itália (2021), sempre sem ma da amnistia, em termos de aceitabilidade polí-
sos em frente no avanço coletivo”. Discursando, consequências de extradição. Que extrairão uns e tica em Espanha, é que não perdoa delitos (como
em Fonollosa, perto de Barcelona, Aragonès era outros ao socialista para o manterem no poder? faz o indulto), antes os apaga do cadastro. “Seria
bem mais concreto e exigente: “Quero pôr ênfa- “A questão é sempre a mesma: quem fica com o uma validação do que fizeram em 2017.” Conti-
se na clareza de objetivos, na autodeterminação mérito do que se conseguir”, diz Bassets. “É como nua persuadido de que acontecerá, ainda que lhe

E 23
Poderá esse
bichinho que
precocemente
mordeu
Puigdemont
chamem outro nome. “É que se não houver go-
verno de esquerda, haverá eleições e pode haver dar-lhe pessoal. Comparava o lugar de presidente a uma
cadeira elétrica.
surpresas”, remata, aludindo a um Executivo PP-
-Vox bem menos simpático para os nacionalistas vontade de Destituído por Rajoy e convocadas novas elei-
ções, sucedeu-lhe Quim Torra, da mesma linha
catalães. Martínez corrobora: “Há um problema e
uma oportunidade para resolvê-lo por uns anos, fazer uma política, mas ainda menos experiente na política
do que Puigdemont e limitado pelo impacto en-
fazer reset.”
Martínez crê, como Bassets, que reivindicar reentrada tão recente da suspensão da autonomia. Viria a
ser inabilitado, dando azo a outro presidente im-
conquistas e “não ser considerado traidor” é ful-
cral para Puigdemont. Este fez parte, na juven- triunfal na previsto: Pere Aragonès, da ERC, até então mero
vice de Torra.
tude, de uma organização chamada Apelo à So-
lidariedade em Defesa da Língua, da Cultura e da Catalunha As últimas eleições catalãs realizaram-se a
14 de fevereiro de 2021. Os socialistas, liderados
Nação Catalãs (“Crida a la Solidaritat”), surgida
em 1981 para combater a discriminação contra e de voltar a pelo ex-ministro da Saúde Salvador Illa, foram os
mais votados, com 23% dos sufrágios, elegendo
o idioma catalão, brutalmente proibido durante
a ditadura de Franco. Jornalista de ofício, depois
de ter largado a licenciatura em Filologia Catalã,
governá-la? 33 deputados num total de 135. Com 21%, a ERC
teve o mesmo número de lugares e ficou pela pri-
meira vez à frente do JxC (20%, 32 assentos) na
Puigdemont fundou a revista “Espelt”, vendo na pugna entre forças nacionalistas. Ainda assim,
imprensa “fator de democratização e de criação de estes uniram esforços, e Aragonès, da ERC, tor-
uma consciência nacional”. Colaborou com títu- reentrada triunfal na Catalunha e de voltar a go- nou-se presidente num Executivo de coligação
los regionais antes de entrar para o independen- verná-la? “Pode haver uma minhoquita que o com o JxC, graças ao apoio parlamentar da CUP.
tista “El Punt”, onde chegou a redator-chefe. As leve a tentar algo mais, voltar tipo Josep Tarra- Há um ano, porém, o JxC abandonou a aliança,
suas iniciativas incluem a CAT Edicions, que ela- dellas”, admite Bassets, citando o presidente ca- após consulta interna em que Puigdemont defen-
borava boletins e discursos para autarcas, sobre- talão e militante da ERC que regressou à Catalu- deu a rutura, agastado com a boa relação entre
tudo da Convergência, e o jornal para estrangeiros nha em 1977, após 38 anos de exílio, para bradar Aragonès e Sánchez. Pior ficaram as coisas en-
“Catalonia Today”, que chegou a ter versão tele- da varanda da sede do Governo autonómico: “Ci- tre os independentistas quando a ERC negociou
visiva, apresentada pela mulher de Carles, a jor- dadãos da Catalunha, já cá estou!” É bom não es- a aprovação do orçamento da região para 2023
nalista romena Marcela Topor, com quem se ca- quecer que Puigdemont não rejeita que o tratem com o PSC e a ala catalã do Podemos, sem ne-
sou segundo o rito ortodoxo em 2000. São pais de por “presidente” (num sinal de que a suspensão cessitar do JxC.
duas adolescentes. da autonomia e destituição do Governo por Rajoy, Martínez e Bassets sublinham as divisões in-
em 2017, foi ilegítima) e mantém o seu Conselho ternas no partido de Puigdemont. “É um conglo-
A “MINHOQUITA” TENTADORA da República em paralelo ao legítimo Governo merado de antigos membros da Convergência,
A procura de credenciais catalanistas vem tam- da região. Mas o regresso “seria perigoso”, esti- mais moderados, e radicais, fabricados na última
bém por trauma familiar: o político teve um avô ma jornalista, para quem “metade da Catalunha década, chefiados pela personagem”, diz o ex-di-
carlista (linha tradicionalista derrotada em con- o repudiaria”. retor-adjunto de “El País”. O colunista do “CTXT”
flitos internos do século XIX), Francisco Puigde- Improvável futuro presidente? Também o era alerta para uma deriva “de direita radical, essen-
mont, pasteleiro que chorava ao ver republicanos em 2016, quando complicadas negociações para cialista, racista e quase trumpista”, do JxC, com o
queimar igrejas na guerra civil e que fugiu do país formar Governo após eleições autonómicas se re- discurso a alvitrar diferenças biológicas entre os
quase 80 anos antes do neto, para evitar ser recru- solveram com o afastamento do então presidente catalães e os oriundos de outras regiões de Espa-
tado para lutar contra as tropas do general Fran- Artur Mas, da Convergência, exigido pela Candi- nha. Na entrevista ao Expresso que deu em 2016,
cisco Franco. Voltou quando este já tinha vencido datura de Unidade Popular (CUP), uma pequena citada acima, dizia Puigdemont, ao arrepio destes
a guerra. Outros parentes incluem o bisavô José força de extrema-esquerda separatista. O nome agora seus correligionários: “O nosso nacionalis-
Oliveras, alcaide preso pela Frente Popular, e um do governante surgira ligado a casos de corrupção. mo é muito pouco étnico, baseado numa popula-
primo dirigente da Falange (partido do caudilho). Ato contínuo, o partido foi buscar um pouco no- ção com muitos contributos de fora, que queremos
Distante de tal legado genealógico, o pequeno tório autarca de Girona, que fora só o nº 3 da lista que continuem a vir.” Também dizia que seria pre-
Carles escrevia na bata da escola, aos 12 anos, ain- de candidatos por aquela província. Puigdemont sidente ano e meio, para depois se dedicar a ou-
da durante o franquismo: “Queremos o Estatuto” confessou em entrevista ao Expresso, durante o tras coisas. Feitas as contas, já não é presidente há
(de autonomia da Catalunha). ano em que chefiou o Executivo regional, ter so- meia dúzia deles. b
Poderá esse bichinho que precocemente mor- frido um “choque emocional”, sobretudo devi-
deu Puigdemont dar-lhe vontade de fazer uma do ao impacto da ascensão política na sua vida pcordeiro@expresso.impresa.pt

E 24
A reinvenção
de

A capital da Alemanha assume-se como uma das


cidades mais sustentáveis do mundo. Vastas
extensões de zonas verdes e parques, um eficaz
serviço de transportes públicos com mais de 1500
autocarros elétricos, quilométricas vias cicláveis,
o combate ao desperdício, a utilização consistente
de energias renováveis e a reutilização de edifícios
transformaram a cidade. Mas é um mar onde não há só rosas

E 26
RENOVAÇÃO
Tempelhof, o antigo
aeroporto de Berlim, está
hoje transformado no maior
parque urbano do mundo,
com 380 hectares de área

MICHELE TANTUSSI/GETTY IMAGES

TEXTO
VALDEMAR CRUZ
(JORNALISTA)
EM BERLIM

E 27
A
lgures durante o ano de 1928, o aeroporto de Tem-
pelhof, em Berlim, inaugurado em 1923 e desde 1926
base de operações para a companhia de aviação então
denominada Luft Hansa, acolhe um daqueles aconte-
cimentos capazes de arrastar multidões. Pelo espanto
contido na novidade. Pela ousadia de quem se dispõe
a desafiar as leis da gravidade. As viagens aéreas não
constituíam uma absoluta originalidade, e para o pro-
var aí está, já em 1709, o padre Bartolomeu de Gus-
mão, uma das raras personagens reais de “Memorial
em quatro zonas controladas pelas potências vence-
doras da Guerra (URSS, EUA, Inglaterra e França),
Tempelhof fica sob controlo dos EUA a partir de ju-
lho de 1945. Em 1948 protagoniza um dos primeiros
e mais marcantes episódios da chamada Guerra Fria.
A pretexto de que as outras potências ocupantes es-
tariam a violar resoluções da conferência de paz de
Ialta sobre o modo de administração da Alemanha, a
URSS decide cortar em junho as ligações terrestres,
ferroviárias e fluviais com a cidade de Berlim, um en-
FRANK HERRMANN/GETTY IMAGES
bicicleta, de skate, de patins, kitesurf, e o mais conce-
bido pela imaginação. Há zonas mais relaxadas, orga-
nizam-se grandes caminhadas e há, até, espaço para
eventos musicais ou outros.
O sucedido em Tempelhof corresponde ao padrão
durante muitos anos seguido em Berlim de reciclar
espaços urbanos de alguma forma votados ao aban-
dono, e dar-lhes uma nova vida, uma nova utilidade,
uma nova presença no dia a dia da cidade. Como nos
dizia Michael Lafond, urbanista, muito envolvido em
do Convento”, de José Saramago. Acolitado por Bal- clave na zona soviética, também dividido em quatro projetos comunitários e em tempos diferentes con-
tasar e Blimunda, constrói a sua Passarola, com de- zonas. Arranca então a denominada “Ponte Aérea”, sultor dos governos de cidades como Seattle (EUA),
sastrosas consequências inquisitoriais para o padre e com a realização de 1400 voos diários para transpor- Taipé (Formosa ou Taiwan), Bratislava (Eslováquia),
para Baltasar. Naquele final dos anos de 1920, numa tar alimentos e outro tipo de equipamentos para a ci- Joanesburgo (África do Sul), Amesterdão (Países Bai-
Berlim frenética onde tudo parecia acontecer, o alvo- dade, concluída apenas em setembro de 1949 quando xos) ou Berlim, se algo caracterizou a cidade “foi a
roço em Tempelhof é provocado pela aterragem, após a URSS termina o bloqueio. capacidade demonstrada para, em vez de construir
sobrevoo da cidade, do gigantesco LZ 127, nascido Num soalheiro domingo dos últimos dias de ju- novo, reutilizar o antigo com novas funções”. Esse é,
na fábrica criada pelo conde Ferdinand von Zeppe- nho chegámos a Tempelhof após umas horas a ex- acentua, o grande tema para o futuro das cidades, em
llin (1838-1917). Antes, no dia 20 de maio de 1927, o plorar a cidade de bicicleta na companhia de Jannik particular com a construção, tal como aconteceu du-
aviador Charles Lindbergh (EUA) realizara o primeiro Dreher, um bom conhecedor das mutações ocorridas rante séculos, de novos edifícios a partir de materiais
voo transatlântico da história, solitário e sem escalas, naquele parque imenso, desde as lutas, as polémicas, usados ou com origem local.
entre Nova Iorque e Paris. Porém, o “Graf Zeppellin”, os referendos, até o empenhamento cívico dos berli- É um detalhe numa cidade hoje vista, a par de
como se tornaria conhecido o mais famoso dos zepe- nenses para que os terrenos do aeroporto não ficas- Oslo, Copenhaga, Tóquio, Vancouver ou Estocolmo,
lins, vai oferecer o primeiro serviço transatlântico de sem cativos da especulação imobiliária e pudessem como uma das mais sustentáveis do mundo, desde
passageiros, no dia 18 de setembro de 1928, quando ser usufruídos pela população. logo pela proliferação de zonas verdes e parques no
liga Frankfurt a Nova Iorque em 112 horas. A primeira imagem é um retrato fiel dos fins de espaço urbano, responsáveis por um crucial papel
Noventa e cinco anos depois, o aeroporto está semana. Numerosas famílias de múltiplas naciona- no modo como são assegurados excelentes níveis de
transformado no maior parque urbano do mundo, lidades e etnias, acompanhadas ou não de crianças, biodiversidade. Um exemplar serviço de transpor-
com 380 hectares de área. Desativado em 2008, guar- aproveitam para organizar grandes piqueniques, ou- tes públicos com mais de 1500 autocarros elétricos, é
da apenas episódicas memórias de um passado car- tros optam por ali mesmo fazerem os seus churras- complementado pelas vias cicláveis, pelo combate ao
regado de momentos marcantes para a grande histó- cos. Há uma estranha sensação de pertença a um es- desperdício, pela utilização de materiais de constru-
ria de difíceis e conturbados tempos da Europa. Che- paço cuja existência muito se deve ao empenhamento ção amigos do ambiente, pela utilização consistente
gou a ser um dos aeroportos mais movimentados do coletivo de toda uma comunidade. As antigas pistas, de energias renováveis, o que permite admitir como
mundo. Pouco utilizado pela Luftwaffe durante a II onde pousavam, ou de onde partiam aviões à procura exequível o ensejo de tornar Berlim uma cidade neu-
Guerra Mundial, acaba por ter grande protagonismo de mundo, impõem-se como um escancarado con- tra do ponto de vista climático até 2050. Quando em
após o final do conflito. Com a divisão da Alemanha vite a usufruir da natureza. Há quem as percorra de todo o planeta soam as campainhas de alarme face à

E 28
MUDANÇA Berlim, como qualquer
cidade onde a primazia é dada
ao automóvel, pode ser agressiva
para os ciclistas e há queixas;
os barcos-táxi elétricos espalhados
pelo rio Spree ajudam a rede
de transportes públicos; a cultura
encontra-se espalhada pela cidade

JOHN MACDOUGALL/GETTY IMAGES

STEFANIE LOOS/GETTY IMAGES


evidente crise climática, agravada ano após ano, Ber- Para lá dos 300 km2 de áreas verdes, Lina subli- também uma espécie de montra do Ocidente face à
lim apresenta-se como uma das principais comuni- nha “a possibilidade de circular de bicicleta por todo RDA — República Democrática Alemã. Porém, des-
dades urbanas a dar contributos fundamentais para o lado”, e também o facto de ter sido “possível manter de os anos de 90, prossegue LaFond, a cidade “foi to-
evitar a tragédia ambiental. Esqueça-se o urso, icóni- as ruas largas da era comunista, o que facilita muito mada pelo capitalismo liberal, o que antes tinha sido
ca figura do pavilhão berlinense. Estas são as novas o andar de bicicleta, passear a pé, fazer uma vida de evitado”. Mais recentemente, com a mudança de go-
bandeiras da capital alemã. rua, com muitos cafés a abrirem. A cidade tem sido verno da cidade, “Berlim passou a estar à venda, e já
A utopia faz sempre parte do quotidiano de qual- muito forte a manter os espaços, e isso é algo que foi não se trabalha tanto para o bem comum”.
quer urbe. Não espanta, assim, o ar desassombrado muito bem feito nos últimos 20 ou 30 anos”. Aqui está uma questão central para compreender
de LaFond ao assegurar, do alto da sua experiência, Mais crítico, Michael LaFond recua um pouco a dinâmica berlinense e a sua situação rara no con-
que, “na verdade, não há nenhuma cidade sustentá- no tempo. Sem ignorar a derrota histórica do SPD texto das cidades europeias, e não só. Segundo dados
vel no mundo”. Berlim, a mais populosa das cidades nas eleições de fevereiro deste ano para o governo de fornecidos por LaFond, 85% da população vive em
da União Europeia, com 3,6 milhões de habitantes, Berlim após um domínio de mais de duas décadas, o casas arrendadas. Lina Lahiri acrescenta outro dado
tem, admite o urbanista, “alguns aspetos de susten- especialista em habitação colaborativa assegura que, relevante. Sempre que é construído um novo comple-
tabilidade, e é uma cidade e uma sociedade com um sobretudo a partir dos primeiros anos da década de xo habitacional, “30% da área tem de ser destinada
ativismo cívico forte, ativo e crítico”, como se viu 2000, a cidade “foi descoberta pelo grande capital. a habitação social. Mesmo quando se trata de edifí-
com Tempelhof. A forte pressão da opinião pública Houve muito investimento na propriedade”. Antes cios de custos elevados, têm de ser reservados 30%
é essencial. Visto “as coisas não dependerem apenas de 2010, exemplifica, “era possível comprar um ter- para habitação social”. Poderá colocar-se a questão
do governo ou dos investidores, foi possível conseguir reno na baixa, junto ao rio Spree, que percorre a ci- de saber se essas casas “sociais” são construídas com
na cidade alguns aspetos inovadores no que respeita dade de este para oeste, por menos de €500 o metro os mesmos padrões de eficiência energética. O essen-
à sustentabilidade”. quadrado”, o que permitiu a compra do terreno onde cial, porém, é assegurar a possibilidade de todos po-
Lina Lahiri, arquiteta, sócia do gabinete de arqui- decorre a nossa conversa, nas instalações da Coope- derem usufruir do espaço público, diz Lina. Um dos
tetura Sauerbruch Hutton, que integra desde 2005, e rativa Spreefeld. Ora, num curto espaço de tempo exemplos é a área junto ao Parlamento, onde se fazem
onde foi responsável por um vasto conjunto de con- tudo mudou. “Houve um crescimento exponencial, manifestações, convívios e muito desporto. São áreas,
cursos internacionais de arquitetura, bem como pelo a maior parte da construção nos últimos anos foi de defende, “que permitem às pessoas sentirem-se par-
planeamento e desenvolvimento de vários projetos investimento privado. Ficou tudo muito caro e isso te da cidade”.
na Europa, dá especial ênfase a todas estas questões. explica os processos de gentrificação”, diz. Por outro lado, menos de 30% dos habitantes têm
Componente de um escritório fundado em Londres, Nesse sentido, acrescenta, “a sustentabilidade viatura automóvel própria. Para alimentar esta reali-
no qual trabalham 100 pessoas, e sempre empenha- é uma batalha cultural, mas, tal como está, a cida- dade há o contributo decisivo dado pela eficiente rede
do nos temas da sustentabilidade, defende ser “algo de não é sustentável. É preciso compreender Berlim de transportes públicos (autocarros, metro, elétricos,
de extraordinário o que foi conseguido em Berlim nos nos seus aspetos históricos”. E é preciso perceber, e os comboios S-Bahn e U-Bahn). Lina Lahiri dá o
últimos 20 anos, e não aconteceu noutra cidade euro- recorda, que durante décadas Berlim “esteve prote- seu escritório como exemplo: “Trabalham aqui umas
peia”. Após a queda do muro, em novembro de 1989, gida da cultura de competição, o que proporcionou 100 pessoas e não creio que mais de 20 tenham carro.
havia, prossegue Lina, “uma enorme área de espaço uma cultura mais alternativa, muito subsidiada pelo Não temos um parque de estacionamento, desde logo
vazio que foi lentamente construída, embora perma- Ocidente”. porque os transportes públicos são muito frequentes
neça uma espécie de collage de diferentes épocas na Dir-se-ia ter havido um longo período com Ber- e muito fiáveis.” Isso leva a uma grande utilização da
cidade, e isso é muito visível”. lim a ser vista como uma cidade de oportunidades, e bicicleta. A própria Lina, não obstante ter uma família

E 29
com dois filhos, não possui automóvel. De forma in-
voluntária, testemunhámos essa eficácia. No período O uso de a comunidade urbana de Berlim, que passava a en-
globar mais de três milhões de habitantes. No final da
de realização desta reportagem decorria em Berlim
uma exposição de obras de Álvaro Siza focada em tor- materiais década de 1920 verifica-se a unificação das diferentes
empresas de transportes, com a criação de uma tarifa
res construídas pelo arquiteto. Um engano no nome
da rua levou-nos para o outro extremo da cidade. provenientes única. Com um governo local então constituído por
comunistas e sociais-democratas, há uma noção de
Desfeito o equívoco, não deixou de ser surpreende a
facilidade com que logo se encontrou um outro meio de outras planificação que se vai estender ao gás, eletricidade
e água. A cidade faz uma grande aposta na melhoria
de transporte público e a rapidez com que foi possível
chegar ao Fórum de Arquitetura Aedes, no lado opos- demolições na das infraestruturas, compra muitos terrenos e con-
voca grandes nomes da arquitetura, como Walter
to da cidade em relação ao local de partida. Tudo em
pouco menos de 30 minutos. (re)construção Gropius ou Mies van der Rohe e Bruno Taut, que vão
criar unidades de habitação tidas como exemplares.
Natural de Lisboa e a residir em Berlim, Catarina
Medroa, integrada na equipa de arquitetos do escri- de novos Não obstante todo o florescimento cultural asso-
ciado aos anos berlinenses da década de 1920, mui-
tório Sauerbruch Hutton desde 2020, no departamen-
to de sustentabilidade, recorda a surpresa dos pais edifícios tem to devedor dos efeitos da República de Weimar, com
grandes nomes das artes, do cinema, da música, a
quando a visitaram, por não detetarem uma hora de
ponta. “Não sentiram que a partir das cinco ou seis da uma expressão convergirem para a cidade com trabalhos marcantes
(Fritz Lang, Kurt Will, Bertolt Brecht, Ernst Lubitsch,
tarde havia muita gente a sair de Berlim, como acon-
tece na linha de Sintra ou para a margem Sul.” Resul- prática em Marléne Dietrich, Josef von Sternberg), aquele, se é o
tempo dos grandes cabarés, é também um tempo de
ta daí uma grande diferença, “por ser possível viver
na cidade, e isso torna mais fácil usar os transportes múltiplos grave crise económica e social.
A I Guerra Mundial terminara não há muito tem-
públicos, ou as bicicletas”.
A este propósito, vale a pena recordar um fim de sectores po, e sucedem-se as greves, aumenta o desemprego, a
inflação atinge valores astronómicos, o dinheiro dei-
tarde na Karl Marx Allee, a mítica avenida berlinen-
se da antiga RDA. O busto do filósofo alemão ainda lá da vida xa de ter qualquer valor, uma sombra negra começa
a germinar, como se verá nos anos de 1930 e depois
está, embora lhe tenham arrancado as letras com o com a ascensão do nazismo e o deflagrar da II Guer-
nome. Como numa sinfonia de movimentos fortes al- ra Mundial.
ternados com pianíssimos, a Avenida é regularmente Naqueles anos de 1920, a construção praticamente
varrida por uma espécie de furacão. Simpático e be- pára. Dá-se nessa altura uma mudança com conse-
nigno. Dezenas e dezenas de homens e mulheres pas- quências ainda hoje visíveis e importantes para a de-
sam em grupo e a grande velocidade nas suas bicicle- finição de Berlim como cidade sustentável. Começam
tas. Em cima delas percorrem a cidade. Atravessam a ser criadas inúmeras cooperativas de habitação. Um
parques. Deslocam-se de casa para o emprego, para a dos factos mais notáveis dessa transformação é ser
universidade, para os muitos destinos de uma cidade possível afirmar hoje que a capital beneficia de uma
mergulhada no desejo de construir pontes para uma novas vias. Catarina Erceg, diretora de relações pú- das maiores diversidades de projetos comunitários e
vida diferente. Mais verde. Mais sustentável. blicas em Berlim, durante uma conversa no belíssi- de auto-organização. O papel das cooperativas e dos
Há algo de aparente regresso a um passado indus- mo Café Wintergarten, na Potsdamer Strasse, para seus membros na resposta às diferentes crises, refere
trial naquela imagem dos ciclistas a atravessarem as lá de reafirmar a excelência do transporte público, a Michael Lafond, contribuiu para desenvolver projetos
ruas. Nesse passado, eram operários. Agora, com uma que junta os inúmeros barcos-táxi elétricos espalha- sustentáveis assentes numa visão de futuro. De resto,
classe operária muito difusa e dispersa, as bicicletas dos pelo rio Spree, bem como ferries também elétri- revela, “10% da habitação em Berlim está no regime
são conduzidas por estudantes, executivos, trabalha- cos para outro tipo de viagens, reconhece o peso da cooperativo”.
dores de serviços, informáticos, arquitetos, médicos, indústria automóvel na Alemanha, mas aponta Ber- A antiga Casa das Estatísticas (Haus der Statis-
e tudo quanto é gente. lim como um espaço diferente. As bicicletas, de que tik), da ex-RDA, na zona de Alexanderplatz, é uma
Desse ponto de vista, e se regressarmos ao início a própria Catarina é utilizadora frequente, “benefi- das obras muito acarinhadas por LaFond, pelo va-
da viagem terminada em Tempelhof, a experiência ciam aqui de ser uma cidade plana” e de ser, apesar lor simbólico de como se pode reutilizar um edifício
de Berlim verde é um mergulho profundo na nature- de tudo, “bastante seguro circular” em cima de um abandonado desde 2008. Trata-se de um projeto-pi-
za, na qual a urbe se acolhe, se abriga. Se espreguiça veículo de duas rodas. loto iniciado em 2015, enquadrado num programa
para dela usufruir e dela tirar partido. São infinitos Numa abordagem curiosa, Catarina diz ser a sus- mais vasto de reconstrução de alguns grandes e va-
quilómetros de zonas verdes frequentados por uma tentabilidade, não apenas uma questão resultante de zios edifícios públicos situados no centro de Berlim.
população para quem seria já difícil vivenciar outra um terço de Berlim ser constituído por parques, flo- A iniciativa Haus der Statistik propõe-se renovar
realidade. restas ou água, mas, antes de mais, “uma questão das estas estruturas para providenciar espaços destina-
Uma boa imagem da grandiosidade dos espaços pessoas”. Quando se chega a esse tema, vem de novo dos a habitação económica, com espaços dedicados
verdes com árvores frondosas pode ser proporciona- à colação o problema da gentrificação, a que Berlim à arte, à educação e à cultura, tudo acompanhado da
da por uma económica viagem no autocarro nº 100, não está a conseguir escapar. Porventura, o proble- inclusão de pessoas refugiadas e outras sem essa ex-
do Jardim Zoológico a Alexanderplatz. O viajante é ma não assume ainda a gravidade vivida em cidades periência. Em 2016, a iniciativa Haus der Statistik foi
presenteado com uma verdadeira sinfonia verde- como Lisboa ou Porto. Catarina Medroa assegura se- premiada como projeto modelo de estratégias aces-
jante, com passagem por alguns dos lugares mais rem as rendas em Berlim “muito mais acessíveis do síveis e inclusivas.
simbólicos de Berlim, como a Kaiser Whilhelm Ge- que em Lisboa”. Admite estar a pagar por um T2 o O uso de materiais provenientes de outras demo-
dächniskirche, a igreja semidestruída pela guerra, o mesmo que amigos seus pagam nos subúrbios lis- lições na (re)construção de novos edifícios tem uma
Tiergarten, com vistas para a Casa das Culturas do boetas, por já não terem capacidade para aguentar expressão prática em múltiplos sectores da vida quo-
Mundo, o Reichstag, as Portas de Brandemburgo, a os valores pedidos na capital portuguesa. “É possível tidiana de uma cidade muito focada no combate ao
avenida Unter den Linden, com a Ópera de Berlim, viver na cidade”, insiste Catarina, com a consciência desperdício. A esse propósito, Catarina Erceg refere o
a Ilha dos Museus, a famosa Torre da TV e, por fim, a de estar a verbalizar uma espécie de quimera para os problema detetado com muitos hotéis a declararem-
inevitável Alexanderplatz. jovens portugueses da sua geração. -se apostados na sustentabilidade. Quando se desce
Dado não serem os mares feitos de rosas, fora des- Nunca estes fenómenos surgem do acaso ou nas- ao pormenor, especifica, “constata-se que em muitas
tes espaços, a cidade, como qualquer cidade onde a cem de geração espontânea. Catarina Erceg convoca situações isso se resume a ter anúncios nos quartos a
primazia seja dada ao automóvel, pode ser agressi- um momento crucial da história de Berlim. No dia 1 sugerir que as toalhas podem ficar mais uns dias sem
va para os ciclistas. Há disso queixas, embora exista de outubro de 1920, sete vilas, 59 comunidades rurais serem lavadas, ou que são reutilizadas. Isso é interes-
a perceção do significativo investimento anual em e 27 distritos decidem assinar um Ato para constituir sante, mas não chega”.

E 30
Tem sido fundamental o contributo dado pela da cidade, em particular quando deixam muito lixo uma área abandonada e muito apetecível para a es-
construção de edifícios com eficiência energética, a nos parques ou junto ao rio. Na opinião da arquiteta, peculação imobiliária. De novo, impôs-se a dinâmica
aposta num planeamento sustentável e a realização “a coligação dos partidos conservadores e social-de- cidadã. Por volta do ano 2 000, chegaram os artistas,
de eventos amigos do ambiente. É decisivo, prossegue mocratas que governam Berlim criou divergências os artesãos, os grafiteiros, surgiram os bares, os res-
Catarina, “combater o desperdício”. Por outro lado, relativas à expansão das ciclovias. O seu planeamen- taurantes alternativos, discotecas como só em Ber-
há uma pressão muito grande, sublinha, para a en- to foi interrompido temporariamente”, mas face aos lim se encontram, e toda uma nova vida cultural ali
trada da reciclagem nos hábitos regulares, bem como muitos protestos gerados, o projeto acabou por ser emergiu, com múltiplas leituras sociológicas.
a adoção de boas práticas de gestão dos resíduos, de retomado. Trata-se de uma medida importante, pois, Quando hoje Berlim reclama o estatuto de uma
modo a reduzir ao mínimo o desperdício em aterros acrescenta, “as ciclovias são elementos essenciais das cidades mais sustentáveis do mundo, assume,
e “promover o consumo responsável”. para tornar uma cidade habitável”. nas suas múltiplas estruturas, a importância da di-
Para Michael LaFond, a questão dos edifícios com A reinvenção de Berlim passa, também, por uma versidade e inclusão como um importante caminho
eficiência energética tem suscitado várias polémicas, rebeldia e intervenção cívica continuada, com vis- para manter a capacidade de acolher múltiplos esti-
até por colocar a nu uma das contradições da vivên- ta à participação popular nas decisões. Como dizia los de vida, novas formas de habitar, outros padrões
cia capitalista. Por um lado, o próprio governo apoia Catarina Erceg, “Berlim tornou-se uma fantasia para de trabalho e mobilidade. Nem só por aqui passa a
este tipo de construções. Por outro lado, pela sua na- jovens. Vieram para cá artistas, arquitetos, designers, sustentabilidade, mas não haverá sustentabilidade se
tureza e pelo grau de tecnologia envolvida, tornam- chefes de cozinha” que estimularam a agricultura ur- ficarem os olhos fechados à crise desencadeada pela
-se edifícios muito caros, só acessíveis a famílias com bana, hoje um ponto relevante de uma certa vivên- explosão do valor dos terrenos, da habitação e das
elevados rendimentos. cia da cidade, tal como a enorme quantidade de res- rendas, responsáveis por uma incontrolável gentrifi-
Ciente das fragilidades ainda latentes, o urbanista taurantes vegan espalhados pelo perímetro citadino, cação das cidades.
aponta como uma das principais questões colocadas com especial incidência na antes desprezada e degra- O grande combate de Berlim para vencer a bata-
à capital alemã, “mas também a toda a Europa, pen- dada zona de Kreutzberg, muito próxima do que hoje lha da sustentabilidade passará sempre, como conclui
sar em eficiência, energia, carros elétricos, mas pen- resta do antigo Muro de Berlim, e onde Álvaro Siza o urbanista Michael LaFond, por assumi-la “como
sar sobretudo no conceito de suficiência. Pensar no construiu o seu icónico edifício “Bonjour Tristesse”. uma questão cultural”, capaz de explorar o modo
modo como consumimos nos países capitalistas, in- É essa irreverência, esse desejo de construir vidas como a comunidade se integra, em vez de se sentir
tegrados num sistema que se alimenta do incentivo ao alternativas que Tobi, um alemão que quase se diria expulsa. Berlim a reinventar-se, exprime-se tam-
consumo”. Trata-se de uma constatação geradora de doutorado em arte de rua, nos revela num passeio bém na diversidade de modos de vida ou na inclusão
elevadas preocupações, desde logo porque, conclui, pela arte do graffiti, cujas grandes manifestações es- como espelho dos grandes desafios colocados a qual-
“se não conseguirmos consumir menos, não daremos tão longe de se esgotar no local de peregrinação em quer cidade com a ambição de se tornar exemplo de
passos para a sustentabilidade. Essa é a grande con- que se transformaram os 1,3 km do Muro. Um dos sustentabilidade. b
tradição do capitalismo”. exemplos é o espaço onde durante mais de um século
Para Lina, uma sueca habituada à limpeza de Es- funcionou uma fábrica de reparação de comboios, o e@expresso.impresa.pt
tocolmo, é preocupante constatar a falta de cuidado espaço RAW, em Kreutzberg. Após as muitas convul-
de muitos berlinenses na utilização das áreas verdes sões e voltas dadas pela vida da Alemanha, tornou-se O Expresso viajou a convite do Turismo da Alemanha
PEER DE SILVA
De guardião da
bomba atómica
a agente da CIA
Numa vida de aventuras que o levou a viajar
por meio mundo, Peer de Silva trabalhou com
Oppenheimer na bomba atómica e subiu a pulso
de simples soldado até figura de relevo na CIA,
sendo testemunha e ator em alguns dos episódios
mais negros da história do século XX

TEXTO
RICARDO SILVA
INVESTIGADOR DO INSTITUTO DE HISTÓRIA
CONTEMPORÂNEA DA UNIVERSIDADE
NOVA DE LISBOA

HISTÓRIA Robert Oppenheimer


(à esq.) e o lusodescendente Peer da SIlva,
chefe de segurança em Los Alamos,
fotografados em 1944 quando escolhiam o
local para o primeiro teste da bomba atómica

E 32
D.R.

E 33
O
cenário era inusitado. Dois homens caminhavam
através do deserto e olhavam atentamente em re-
dor, analisavam a topografia e tiravam apontamen-
tos, indiferentes aos outros que os observavam a
uma curta distância. Conhecido como Jornada del
Muerto, aquele lugar era inóspito e vazio de huma-
nidade, e era exatamente aquilo que procuravam.
Um dos dois era Oppenheimer, o chefe do Projeto
Manhattan que ficaria para a história como o “pai
da bomba atómica”, e ao seu lado estava um militar
de porte marcial com quem ia trocando impressões.
Era o temido chefe de informações que controlava a
segurança das instalações em Los Alamos, o capitão
Peer de Silva, um lusodescendente destinado a ter
um papel destacado na história da bomba atómica
e um futuro feito de aventuras ao serviço da CIA.
Mas a sua história começa muito antes, num Por-
tugal empobrecido de onde vagas de portugueses
partiam em busca de uma vida melhor.
Na segunda metade do século XIX, o Brasil ainda
era o destino mais comum da emigração portuguesa,
mas os avós de Peer de Silva atravessaram o Atlân-
tico numa latitude bem acima do Equador, ruman-
do até uma jovem nação onde as oportunidades e os
D.R.

riscos abundavam. Após desembarcarem nos Esta-


dos Unidos, partiram numa das longas caravanas de
carroças que atravessavam o Midwest e ligavam o
“mundo civilizado” ao mítico faroeste. O seu destino Enquanto São Francisco recuperava da tragédia, no conflito que devastou toda uma geração de ho-
era a Califórnia, que vivia o rescaldo da era da Corri- do outro lado do mundo prosseguia a história fami- mens nos campos de batalha da Flandres. Termi-
da ao Ouro, um passado tumultuoso que dava lugar liar de Peter de Silva. Andrea Abrahamson nasceu nado o conflito, o país viveu uma nova “corrida ao
a um povoamento mais ordeiro e começava a atrair em Sarpsborg, uma pequena cidade norueguesa ouro”, desta vez nos mercados bolsistas, onde a
imigrantes de todo o mundo, incluindo portugueses com uma pobreza endémica que empurrou muitos especulação desenfreada terminou com o reben-
que se iam instalando nas herdades onde grandes dos seus habitantes para a emigração. Quando ti- tar da bolha que levou à Grande Depressão. Corria
manadas de gado eram criadas, ou em portos como nha 23 anos, Andrea deixou a Noruega para tentar o ano de 1929, e Peer de Silva tinha apenas 12 anos
São Diego, onde os pescadores açorianos se dedica- a sua sorte no Novo Mundo, partindo da Escandi- quando a pobreza e a miséria tornaram-se o para-
vam à pesca do atum nas águas do oceano Pacífico. návia em 1906 para atravessar o Mar do Norte em digma do seu tempo.
Os avós de Peer de Silva acabaram por seguir direção ao Reino Unido. Ali viveu uns meses até en- Foi nesse meio que cresceu até se tornar um jo-
um destino diferente, estabelecendo-se numa ci- cetar nova viagem, despedindo-se da Europa nas vem adulto e decidiu enveredar por uma carreira
dade que até há bem pouco tempo era conhecida docas de Liverpool ao embarcar no “SS Haverford”, militar. O exército norte-americano era uma fração
como Yerba Buena, mas recentemente tinha mu- que durante duas semanas atravessou o oceano até do seu tamanho anterior e tinha poucas perspeti-
dado de nome para São Francisco. A 18 de junho alcançar o porto de Filadélfia, a 4 de março de 1907. vas de futuro, mas no verão de 1936 foi incorporado
de 1883, nasceu o seu filho John Augusto de Silva, Depois veio uma longa viagem através dos Estados no Forte Winfield Scott para servir como soldado
a quem conseguiram dar uma educação que lhe ga- Unidos que terminaria em São Francisco, a cidade numa bateria de artilharia costeira. O forte ficava
rantiu um futuro estável a trabalhar como escritu- em plena reconstrução onde haveria de conhecer a apenas 6,5 quilómetros da O’Farrell Street, onde
rário numa cidade em pleno crescimento. A vida de o seu futuro marido. viviam os seus pais, e tinha uma vista privilegiada
John seguia um percurso tranquilo, até ao dia em John e Andrea casaram em 1909 e foram viver sobre a baía e o mar. Ao longe podia ver a ilha de
que um terramoto avassalador arrasou grande par- para a Victoria Street. No ano seguinte nasceu o seu Alcatraz que surgia por entre a neblina matinal —
te de São Francisco e causou a morte a cerca de três primeiro filho, a quem chamaram Paul, passando era a mais temida prisão dos Estados Unidos e nela
mil pessoas. Corria o ano de 1906, e John de Silva foi outros sete anos até nascer o segundo, Peer de Silva, estavam encerrados os criminosos mais perigosos
um dos sobreviventes que começaram a reconstruir que nasceu a 26 de junho de 1917, dois meses após do país, incluindo o famoso Al Capone, que sofria
a sua vida sem imaginar como seria o seu futuro. os Estados Unidos tornarem-se aliados de Portugal com o isolamento e a sífilis. Do forte também era

E 34
RETRATOS Peer de Silva,
o lusodescendente que deixou
a CIA em 1971 (à esq.), e o
cientista Robert Oppenheimer,
que liderou o Projeto Manhattan

sua classe, mas tinha particular aptidão para te-


mas relacionados com segurança e investigação, o
que lhe reservou uma vaga na Escola Avançada de
Contrainformação Militar. Ao concluir a sua forma-
ção, em 1942, a II Guerra Mundial era global e eram
várias as possibilidades que tinha pela frente: po-
deria ser destacado para um estado-maior algures
no Pacífico ou ser integrado num dos exércitos que
estavam a ser preparados para intervir na Europa.
Em qualquer dos casos, estaria destinado a uma
carreira similar à da maioria dos seus camaradas,
não fosse o destino ter-lhe reservado algo diferente
que mudaria o rumo da sua vida.

O PROJETO MANHATTAN
Durante o curso de contrainformação, o talento do
lusodescendente chamou a atenção dos seus supe-
riores e quando o general Leslie R. Groves assumiu
a direção de um projeto secreto que precisava de
oficiais de informação sagazes, o capitão De Sil-
va estava entre os nomes de uma lista escolhida a
dedo. O Projeto Manhattan era vasto e contava com
a participação de dezenas de empresas e institui-
ções científicas, mas o ponto nevrálgico estava num
lugar ermo situado no Novo México, o Laboratório
em Los Alamos onde o físico Oppenheimer liderava
um grupo de cientistas no desenvolvimento duma
arma revolucionária.
BETTMANN ARCHIVE/GETTY IMAGES

Apesar da sua juventude e inexperiência, Peer


de Silva foi escolhido para um cargo que se reve-
laria desafiante, servir como o oficial responsável
pela segurança das instalações e o controlo do pes-
soal que nelas trabalhava, e a sua presença fez-se
notar desde o primeiro momento. Todos os recém-
-chegados eram encaminhados para uma sala onde
lhes lia as regras a seguir e os informava sobre a ne-
cessidade de obedecer a um protocolo rigoroso. A
maioria daqueles homens tinha sido enviado para
cumprir uma função específica e não tinha noção

O jovem perfeitamente visível a colmeia de homens que tra-


balhavam sem cessar junto ao rio, enchendo pilares
do que realmente estava a acontecer em Los Ala-
mos, mas era notório que se tratava de uma arma de

Peer não se de betão e elevando as vigas de aço que iam dando


forma a uma enorme ponte que crescia de dia para
potência elevada e era grande o receio de que entre
eles se encontrassem espiões.

destacou em dia, era a icónica Golden Bridge, que se tornaria o


ex-líbris de São Francisco.
Cabia a Peer de Silva detetar eventuais agentes
inimigos, ou até de aliados de circunstância, como

nenhuma das Durante um ano o seu dia a dia de guarnição


seguiu a rotina dos exercícios e das guardas, até
a União Soviética, o que levou o oficial a suspeitar
sobre qual seria a lealdade de Oppenheimer logo

armas mais testemunhar um dos eventos mais importantes da


cidade. Em maio de 1937, a famosa ponte de tom
em 1942. Na ficha do cientista nova-iorquino cons-
tavam informações sobre um círculo de amigos

convencionais, vermelho foi inaugurada e iniciou-se uma nova era


em São Francisco; no mês seguinte foi a vez de Peer
com militância no partido comunista norte-ame-
ricano, e o capitão sabia que todo o projeto poderia

mas tinha de Silva entrar numa nova fase da sua vida, com a
chegada da ordem de transferência para Nova Ior-
estar em causa se Oppenheimer fosse um agente a
soldo dos comunistas.

aptidão que, que lhe garantiria uma carreira no exército.


O soldado Silva passava a ser cadete, tinha sido
Além de contar com o apoio da informação mi-
litar, também manteve uma ligação estreita com o

para temas aceite em West Point, a reputada Academia Militar


por onde passaram generais como Robert E. Lee e
FBI, o que lhe granjeou uma importante rede de
contactos e uma experiência que se revelaria útil

relacionados Ulysess S. Grant, que lutaram entre si na guerra ci-


vil, e George S. Patton e Dwight D. Eisenhower, que
no futuro. Com a confiança que ia adquirindo junto
do seu superior, veio também um aumento do seu

com segurança alcançariam a fama durante a II Guerra Mundial.


Apesar de promissor, o jovem lusodescenden-
poder. Face ao risco de fuga de informação atra-
vés da correspondência, em dezembro de 1943,

e investigação te não se destacou em nenhuma das armas mais


convencionais, aliás, terminou no 321º lugar da
um gabinete militar foi estabelecido em Santa Fé
para controlar todo o correio que entrava e saía

E 35
de Los Alamos, com a direção a ser-lhe atribuída.
Noutras situações cabia-lhe ser o mensageiro das
piores notícias. Quatro dias após a alegria da pas-
sagem de ano para 1944, Jean Tatlock suicidou-se
no seu apartamento em São Francisco, não muito
longe de onde Peer de Silva passara a infância e ju-
ventude, cabendo-lhe a ele informar Oppenheimer
sobre a morte da sua amante. Foi um momento de
dor alheia que lhe ficou na memória: “Ele falou lon-
gamente sobre a profundidade da sua emoção por
Jean, dizendo que não havia realmente mais nin-
guém com quem ele pudesse falar.”
Três meses mais tarde foi promovido a major e
recebeu o comando administrativo dos vários des-
tacamentos militares presentes em Los Alamos,
desde os engenheiros que se dedicavam à cons-
trução das infraestruturas até aos polícias milita-
res que fiscalizavam os acessos; o seu controlo era
agora total e ninguém ignorava a sua obstinação
em vedar Los Alamos a qualquer intrusão externa.
Seguiram-se meses de progressos rápidos com a
equipa de cientistas liderada por Oppenheimer a
conseguir ultrapassar as últimas barreiras técnicas,
e foi assim que um dia Oppenheimer e Peer de Sil-
va foram caminhar pelo deserto à procura do lugar
onde iriam testar a primeira arma atómica.
A 16 de julho de 1945, estava tudo pronto para

D.R.
a Operação Trinity. Oppenheimer, Peer de Silva
e vários observadores estavam em abrigos a mais
SERVIÇO Antes de partir para Saigão,
de nove quilómetros de distância do ponto onde a
para assumir o controlo da estação da
bomba iria ser detonada, usavam óculos especiais Soviética, levando à sua transferência para a Ale-
CIA, Peer de Silva reuniu-se com
para os proteger dos raios ultravioleta e o nervo- Lyndon Johnson, Presidente dos EUA manha Ocidental, onde se tornou vice-chefe da
sismo era notório. Então, começou a contagem base que a CIA tinha montado em Pullach, próxi-
decrescente que terminou com um flash, uma bola mo de Munique.
de fogo e a formação de um gigantesco cogumelo Após a rendição incondicional do Japão, Peer de Em 1951, estava de volta a Washington e foi no-
que se elevou pelos céus. O espetáculo que tinham Silva e um grupo de cientistas deslocaram-se até meado chefe de operações de uma secção especial,
diante dos olhos era avassalador e ultrapassava Hiroxima e Nagasáqui, onde viram em primeira planeando missões que tanto envolviam a largada
todas as expectativas. Oppenheimer apercebeu- mão os efeitos devastadores sobre o ser humano. de agentes de paraquedas em regiões remotas da
-se que se “alguns riam, alguns choravam, mas a Também ele era um senhor da morte, e aquela era Rússia como a extração de agentes soviéticos que
maioria estava em silêncio”. Ficava claro o poten- a destruição que ajudara a causar. procuravam desertar. Foi também nessa altura que
cial da arma atómica que ajudara a criar e o cien- os seus relatórios foram utilizados na audiência de
tista recordou a citação de um texto sagrado hin- UM AGENTE DA GUERRA FRIA segurança de Oppenheimer, um eufemismo para
du que não lhe saía da mente: “Agora tornei-me a Em outubro estava em Washington à disposição do um julgamento destinado a acabar com a sua car-
morte, o Destruidor de Mundos”. Kenneth Bainbri- Departamento de Guerra, tinha sido condecorado reira durante a época em que o macarthismo esta-
dge, que estava ao seu lado, recordou a angústia no com uma Legion of Merit e não tardou muito para va no apogeu.
olhar de Oppenheimer e o desabafo que lhe esca- ser integrado na OSS, a agência responsável por A sua permanência nos Estados Unidos prolon-
pou naquele momento de tensão: “Agora somos to- operações secretas no exterior. Era o início de uma gou-se até 1956, altura em que foi destacado para
dos filhos da puta.” longa carreira no mundo da espionagem e a sua pri- servir em Viena como chefe de estação — o res-
Estava concluída a parte científica do proje- meira missão revelou-se extremamente delicada: ponsável máximo da CIA na Áustria, justamente
to, agora era a vez dos militares darem uso à nova examinar ex-agentes do OSS para detetar casos de quando rebentou uma revolução na vizinha Hun-
arma. Peer de Silva foi incumbido de garantir que agentes duplos, especialmente entre os refugiados gria contra o governo comunista. Foi com frustra-
as duas bombas construídas em Los Alamos che- europeus com antecedentes obscuros. ção que viu o exército soviético esmagar os revol-
gariam até ao seu destino final, o que o levou a via- Ao longo dos meses seguintes a Guerra Fria tosos e acabar com qualquer esperança democrá-
jar de Los Alamos até Tinian, uma pequena ilha no começou a instalar-se e Peer de Silva preparou- tica, o que só reforçou o seu anticomunismo. Após
arquipélago as Marianas onde se encontrava o es- -se para a nova realidade. Em 1946, ingressou na quase uma década na Europa a lidar com a KGB,
quadrão de bombardeiros B-29 encarregado de as Universidade de Columbia para estudar russo e Peer de Silva estava pronto para um novo desafio
lançar sobres os alvos. Na noite de 5 para 6 de agos- no ano seguinte foi transferido para a Alemanha, na Ásia. Em 1959, estava em Seul para chefiar a es-
to, ouviu o rugido dos quatro motores do B-29 com onde prosseguiu os estudos numa escola onde le- tação da CIA e não hesitou em entrar em contacto
a alcunha de “Enola Gay” a levantar voo, a bordo cionavam imigrantes russos. Pouco tempo depois com Chang Myon, o líder da oposição ao ditador
seguia a “Little Boy”, uma bomba atómica à base de foi criada a CIA e Peer de Silva estava entre os seus Syngman Rhee. Foi decisivo o papel do lusodes-
urânio que seria largada sobre Hiroxima às 8h15 da primeiros operacionais, contactando com agen- cendente na transição democrática que se seguiu,
manhã, momentos mais tarde, milhares de pessoas tes da CIA na Europa Central e de Leste, e trans- ao usar a influência que os Estados Unidos tinham
eram transformadas em cinzas. A aterragem do portando correio diplomático entre Helsínquia e sobre o país para convencer os militares coreanos a
“Enola Gay” confirmou os efeitos da bomba, mas Moscovo. Seria na capital soviética que começa- abandonar o apoio a Rhee, contudo, a democracia
o imperador continuava em silêncio e por isso foi riam os jogos perigosos, com o lusodescenden- foi sol de pouca dura. Em 1961, os militares realiza-
montada a “Fat Man”, uma bomba atómica à base te a andar pelas ruas e pelo metro a interagir com ram um golpe com sucesso e o general Park Chung
de plutónio que levantaria voo no B-29 Bockscar. moscovitas anónimos, estando plenamente cons- Hee assumiu o poder. A Peer de Silva só restava
No dia 9, a “Fat Man” foi largada sobre Nagasáqui e ciente que era seguido por agentes soviéticos. A aceitar a realidade no terreno e aconselhar Chung
a morte voltou a cobrar a vida de dezenas de milha- sua proatividade não passou despercebida e ao fim Hee a entrar num entendimento mútuo com os Es-
res, mas desta vez, o imperador falou ao seu povo. de seis meses foi-lhe negada a reentrada na União tados Unidos.

E 36
A missão seguinte levou-o a Hong Kong, a co- levado de noite até à Casa Branca para se encontrar quando se apercebeu que havia algo errado a acon-
lónia britânica incrustada na República Popular com o Presidente. Lyndon Johnson queria ter a cer- tecer no exterior, ao olhar pela janela viu um polícia
da China que acabava de sair da Grande Fome, teza que o seu homem sabia o que se esperava dele, junto a um carro, e foi nesse instante que mais de
que matara milhões. O seu trabalho não era fácil, instruindo-o a não esquecer que estavam a entrar 150 quilos de C-4 explodiram e espalharam a des-
Hong Kong dependia da China para obter boa par- num ano eleitoral. truição nas instalações da CIA. O lusodescendente
te da água potável de que necessitava e o regime de Em dezembro de 1963, o lusodescendente deixou foi atingido por fragmentos de vidro que o feriram
Mao era bem resiliente às tentativas de infiltração Washington rumo a Saigão para assumir o seu posto, na face, garganta, peito e mãos, e só conseguia ver
da CIA, porém, a sua carreira estava prestes a so- pela frente tinha que enfrentar tanto os seus inimi- um “ecrã vermelho”. Foi hospitalizado durante
frer nova reviravolta. A 22 de novembro de 1963, o gos declarados como os adversários internos. A re- um mês, e quando regressou ainda não estava to-
Presidente John F. Kennedy foi abatido a tiro quan- lação entre o embaixador no país e o antigo chefe de talmente recuperado, o que motivou o seu regres-
do seguia num descapotável pelas ruas de Dallas, e estação tinha sido problemática ao ponto de ter sido so aos Estados Unidos para receber tratamento of-
foi sob o luto que os Estados Unidos viram o vice- tema de notícia na imprensa, e Lyndon Johnson es- talmológico. Já não voltaria a Saigão, ficando em
-presidente Lyndon Johnson assumir a presidên- tava decidido a acabar com a publicidade negativa, Washington como principal conselheiro do diretor
cia. Entretanto, a situação no Vietname não cessa- decidindo enviar um telegrama esclarecedor ao em- da CIA sobre assuntos relativos ao Vietname.
va de piorar. O vietcongue infiltrava-se pelo meio baixador Henry Cabot Lodge: “É da maior impor- Após recuperar o suficiente seguiu como chefe
rural e a sua presença já era sentida no delta do tância que haja o mais completo entendimento e co- de estação para a Austrália, cumprindo uma comis-
Mekong, além disso, o governo do Presidente Ngo operação entre você e ele (...) estou preocupado não são tranquila que terminou em 1971. A sua carreira
Dinh Diem, um católico cuja família ancestral ti- apenas em que seja mantida uma cooperação eficaz, na CIA chegava ao fim, mas uma nova começava a
nha sido convertida por missionários portugueses, mas em evitar quaisquer murmúrios na imprensa.” despontar. Começou a escrever a sua autobiografia
vivia uma impopularidade a que não eram alheios Como seria de se esperar, o Vietname seria o de- no que deveria ser uma trilogia sobre as suas expe-
o nepotismo e a corrupção que praticava. Em no- safio mais complexo e difícil da sua carreira na CIA, e riências no mundo da espionagem e o primeiro dos
vembro de 1963, Ngo Dinh Diem foi deposto e exe- Peer de Silva revelou a sua usual firmeza e dedicação. três livros foi publicado sob o título “Sub Rosa: The
cutado juntamente com o seu irmão, num episó- Planeou uma série de programas de contrainsurrei- CIA and the Uses of Intelligence”. Seria o primeiro,
dio violento que contou com a assistência da CIA. ção de sucesso relativo, não tardando a perceber que e também o último. O antigo agente sofria de arte-
A instabilidade que se seguiu não agradou ao para alcançar a vitória não bastava uma estratégia riosclerose na artéria coronária que ocasionou um
Presidente Lyndon Johnson e aumentou a sua insa- militar convencional. Enquanto o Pentágono apos- ataque cardíaco no dia 12 de agosto de 1978. Peer
tisfação com o chefe de estação no país, ao ponto de tava numa guerra de grande escala, ele defendia que de Silva não sobreviveu, chegando ao fim a incrí-
pressionar John McCone — o diretor da agência, a a solução dependeria em grande parte de medidas vel história de um lusodescendente com um papel
proceder à sua substituição por um agente “top no- políticas e sociais que garantissem o apoio do povo e destacado num dos episódios mais dramáticos da II
tch”. McCone indicou Peer de Silva ao Presidente, garantissem uma estabilidade a longo prazo. Guerra Mundial, e uma longa carreira como agente
que ficou convencido ao ler a sua extensa folha de Tinha razão na sua tese, e o seu trabalho não da CIA na linha da frente da Guerra Fria. b
serviços. Após ser chamado a Washington para ser passou despercebido aos seus inimigos. No dia 30
informado sobre a sua nova missão, Peer de Silva foi de março de 1965, Peer de Silva estava ao telefone e@expresso.impresa.pt
Entrevista
Ken Follett

Não entendo
a preocupação
em deixar um
legado para
a posteridade”
O autor que levantou os pilares
das catedrais e olhou pelo
buraco da agulha completa
com o novo livro um ciclo de
mil anos de crónicas da história
ocidental. Procura a eficácia,
não a eternidade, e faz
literatura de grandes números
com a história da vida comum

POR CHRISTIANA MARTINS


EM MANCHESTER

E 38
E 39
FOTOGRAFIAS JAKE CURTIS
A
para conversas de quebra-gelo. Antes não mudou nada, a não ser que agora tem de se perguntar o que vai acontecer
do Expresso fora a vez de o colega ita- é dada a estas pessoas a oportunidade a seguir. E, no fim, as tensões devem es-
liano do “Corriere della Sera” o entre- de serem felizes, o que não acontecia tar resolvidas. O que não quer dizer que
vistar, e, enquanto o autor conversava antes. Portanto, eu, como autor, con- tudo tem de acabar bem ou que todos
com o único representante da impren- sigo ver o drama desta situação. Neste têm de estar felizes. Mas é preciso que
sa portuguesa, do lado de fora espera- último livro, os casais têm de se pro- haja uma solução — nem todos podem
vam os jornalistas franceses. Quando teger e têm de encontrar uma forma morrer. Já num romance literário, o au-
os ponteiros cravaram na meia hora de não levantar suspeitas. E tenho a tor pode fazer o que quiser.
exata de diálogo, o assessor de Ken certeza de que ao longo dos tempos
Follett bateu à porta da sala reservada milhões de pessoas tiveram de fazer O seu campeonato é outro, é o dos
num hotel para pressionar o fim da en- o mesmo. Sempre houve casais ho- best-sellers. Não gostaria de ganhar
trevista. Afinal, é assim que funcionam mossexuais. No caso das mulheres, um Prémio Nobel? Não lhe interessa
as máquinas, e qualquer grão de areia décadas após décadas, dizia-se que pertencer à comunidade dos escrito-
pode paralisar a engrenagem. Mas ain- eram muito boas amigas e ninguém res de literatura, como os classificou?
da houve tempo para uma surpresa e se preocupava com o sofrimento de- Não, certamente que não. Escrevo his-
“máquina Follett” está profundamen- uma amigável troca de sorrisos. las nem se falava sobre isso. As pes- tórias de que gosto. Ocasionalmente,
te oleada. Não há parafusos soltos nem Galês, filho de um inspetor de im- soas realmente acreditavam que eram leio romances literários. Por exemplo,
arestas por limar. Por trás do suces- postos profundamente crente, Follett apenas amigas. estou interessado nas novelas do autor
so de vendas há uma estrutura que é simpático, muito profissional e des- malaio Tan Twan Eng, que já foi no-
mantém o nome do autor no topo dos dobrou-se para explicar a um grupo Mas porque deu tanta relevância a es- meado para o Booker Prize. O terceiro
rankings. Afinal, não é à toa que Ken selecionado de jornalistas europeus ta questão no seu último livro? livro dele acabou de sair [“The House
Follett já vendeu mais de 188 milhões do que falava quando se referia à Re- Quando começo a escrever, não te- of Doors”], e ele tem sempre boas his-
de exemplares dos seus 37 livros, des- volução Industrial. Curioso, procura o nho essa preocupação. Os meus li- tórias, o drama está lá. Não se deve es-
de o já celebre “O Buraco da Agulha”, drama que move as relações humanas vros apenas têm de refletir o mundo crever sobre o que não se gosta. Seria
lançado em 1978. As suas histórias es- como um alquimista tenta a síntese em que vivo. Mas, por exemplo, não horrível, seria uma mentira. Acredi-
tão publicadas em 80 países e tradu- de um elixir. Sabe que é ali que está o tenho muitas pessoas negras nas mi- to que, se você é uma pessoa criativa,
zidas em 40 línguas. Os números do segredo do sucesso. Assume que não nhas histórias. Até que, um dia, eu tem de adorar o seu trabalho, tem de
percurso do autor são sempre altos, perde tempo com estados de alma ou estava a autografar livros na livraria pensar que é muito bom e que as ou-
medindo o sucesso pela adesão dos com devaneios psicológicos, pois o Doubleday, na Quinta Avenida, em tras pessoas também o vão adorar. Se
leitores mais do que pelo prestígio dos que interessa é agarrar o leitor pela Nova Iorque, e duas mulheres negras me sentasse para escrever um roman-
prémios. curiosidade. Considera-se um cronis- vieram ter comigo. Estavam muito ce difícil, nunca o terminaria.
Nestes quase 50 anos de carrei- ta da sociedade ocidental no último bem vestidas e percebia-se que eram
ra literária, Follett passeou-se entre milénio e quanto a legados e home- nova-iorquinas influentes. Estavam Escreve sobre as pessoas normais,
êxitos de época, como a sequência de nagens futuras, Ken não tem tempo muito bem-dispostas, mesmo diver- sobre o mundo concreto. Não procura
“Os Pilares da Terra”, aos livros sobre para se preocupar com isso. Há novos tidas. Disseram: “Nós amamos os seus abstrações?
a geopolítica contemporânea, como livros a escrever. livros”, mas comentaram que eu não Eu escrevo, na verdade, sobre as pes-
o recente “Nunca”. O seu mais novo tinha negros nas minhas histórias — soas nas suas relações sociais. O drama
lançamento, intitulado “A Armadu- Na sua obra mais recente, a última “Você devia ter mais negros nas suas surge das relações entre as pessoas. Os
ra de Luz”, editado em Portugal pela cena é dedicada à conversa de um ca- histórias.” Disseram aquilo de forma autores literários muitas vezes estão
Presença, recupera a saga dos habi- sal homossexual sobre a História. Há positiva, e eu fiquei a pensar no co- mais interessados nos aspetos psico-
tantes de Kingsbridge, localidade cen- ainda um casal de lésbicas. No próxi- mentário. E não tinha resposta. Desde lógicos dos indivíduos, no que se pas-
tral na história das catedrais que se mo romance vai dedicar se à revolu- então tornei-me mais consciente de sa na cabeça das pessoas. Um exem-
iniciou no século XII. Chegou às pra- ção sexual? que não posso apenas escrever sobre plo clássico é “Hamlet”. É a história
teleiras das livrarias portuguesas esta Não creio. A revolução sexual ocorreu heterossexuais brancos, caso contrário de um assassínio. Se eu tivesse escrito
semana e quer transportar os leitores no século XX. Já escrevi uma trilogia não estarei a refletir o mundo em que esta história, Hamlet teria de ter en-
para o coração da Revolução Indus- sobre o século passado. É claro que o vivo. Não estou a fazer uma pregação frentado alguns problemas, teria de
trial, acompanhar a ascensão ao poder tema é interessante, mas neste mo- ou um retrato deste grupo. ter tentado entrar no castelo, teria de
de Napoleão Bonaparte, tendo como mento não vejo outra história neste ter armas. Mas ele não tem de resol-
pano de fundo a tensão que rasgou as âmbito. A narrativa decorre do fac- Você recorre ao humor na última ce- ver estes problemas. Não é o meu tipo
nações europeias. to de algumas pessoas terem tenta- na do seu livro. Vai buscar a homos- de histórias. Todos os problemas estão
Para apresentar este novo livro, do mudar as regras relativas ao sexo sexualidade na Grécia Antiga para dentro da cabeça dele. Eu gosto mui-
Ken Follett colocou a “máquina” em quando não lhes era permitido. Essa é dizer que esta realidade sempre exis- to mais de histórias como “Macbeth”,
funcionamento, porque o que real- a verdadeira história, a luta pela liber- tiu, debaixo da vista da sociedade. Foi em que a personagem tem de enfren-
mente interessa é o que não está à vis- dade. Na maioria dos países, por muito uma mensagem que quis transmitir? tar os seus inimigos, comete erros. Ele
ta, os dispositivos que fazem a História tempo, foi considerado um crime ter Não se tratava de uma mensagem. não resolve os problemas, a mulher
marchar e que, com a Revolução In- relações homossexuais. Era absoluta- Apenas quis mostrar que aquele casal dele morre.
dustrial, chegaram à dimensão da pro- mente proibido. Algo que causava ver- faz parte da História. Eles inventaram
dução em massa. É aos historiadores gonha. E, quando olhamos para trás, máquinas que fizeram parte da Revo- Tem de se divertir enquanto escreve?
que Follett dedica essa armadura ilu- perguntamo-nos porque foi assim. O lução Industrial e, por acaso, também Divertir não é a palavra correta. Gos-
minada, e para a apresentar aos jorna- sexo é livre e não possui um proprie- eram homossexuais. Não quis trans- to muito do meu trabalho, porque me
listas montou uma operação em Quar- tário. Então, porque é que as pessoas mitir nenhuma mensagem, apenas dedico completamente a ele, fico to-
ry Mill, um museu-fábrica de 1784 ficam tão irritadas a tentar perceber o quis mostrar um casal feliz. talmente absorvido. É difícil, desa-
nos arredores de Manchester, onde o que move os homossexuais, sobretu- fiante entrar em outras vidas, mas
mecanismo de produção em série foi do do sexo masculino? Qual é o pe- Gosta de ter finais felizes nos seus li- acredito que as pessoas como eu, que
explicado detalhadamente, sem nada rigo para a sociedade? Não, não há vros? É importante para os leitores? trabalham de forma árdua, são mais
esconder, nem mesmo o trabalho in- nenhum perigo! E agora é absoluta- Sim! Adoro finais felizes. Num roman- felizes do que as pessoas que não fa-
fantil ou a insalubridade, sinalizando mente normal; os homossexuais po- ce temos de agarrar a atenção do leitor, zem nada.
as preocupações sociais do autor. dem casar-se e a sociedade mudou e se há um relaxamento é preciso reto-
Neste tipo de encontros não há profundamente. Mas, se pensarmos má-la. Num romance popular tem de Quando olho para si esqueço-me de
tempo para grandes introduções nem bem na sociedade, percebemos que se ter sempre em conta a tensão, o leitor que já tem 74 anos. Já está a pensar

E 40
na Bíblia era verdade. Em todas as pala-
vras. Eram muito puritanos. Na minha
infância não me era permitido ir ao ci-
nema, o que foi mau para mim. Quan-
do fiz 14 anos comecei a questionar os
meus pais. Queria saber como eles po-
diam ter tanta certeza de que aquilo em
que acreditavam era realmente verda-
de. E eles não me deram respostas. É
emocionalmente forte este momento
em que nos rebelamos contra as cren-
ças mais arraigadas dos nossos pais. É
duro. Tive de ir na direção oposta deles
e passei a odiar tudo o que se relacio-
nava com religião. Mas agora, que estou
mais velho, vejo que algumas vezes as
pessoas religiosas fazem coisas mara-
vilhosas. Tenho um grande amigo que
é profundamente católico e que vai à
missa todos os dias, é um banqueiro
de sucesso e dá muito dinheiro à cari-
dade. À noite, ele vai distribuir comida
aos sem-abrigo, no frio. Ele é genero-
so e preocupa-se com as outras pes-
soas por causa da religião. Como jovem
revoltei-me, mas passado um tempo
percebi que este assunto é bem mais
complicado. Embora ainda não consiga
entender, por exemplo, o que se passa
nos Estados Unidos, onde, por razões
religiosas, se quer obrigar as mulheres
a terem filhos que elas não querem e se
inviabiliza a lei do aborto. Esse é o meu
problema com a religião. Como con-
ciliar as situações? É bem mais com-
plicado do que eu pensava na minha
adolescência.

Dedicou o seu último livro aos his-


toriadores. É uma afirmação de
princípio numa época muito volátil?
Numa época em que os ídolos das
novas gerações são pessoas como
Elon Musk?
O que me preocupa atualmente é o
crescimento da extrema-direita em
todo o mundo, sobretudo o cresci-
mento dos partidos de extrema-direi-
ta na Europa. É algo que me desanima.
Porque eu sei, e você também sabe,
mas parece haver muita gente que não
sabe, o que foi realmente o fascismo. O
fascismo de todos os tipos, seja na Es-
panha ou no Japão, foi sempre terrível.
E essas pessoas votam nestes partidos
como se não soubessem o que aconte-
no seu último livro? O que gostaria de Wilkie Collins, amigo de Charles Di- preocupar, se vou estar morto? Te- ceu. Eu suspeito que essas pessoas não
deixar aos seus leitores? ckens e que chegou a ter bastante su- nho de aproveitar o que acontece. Se conheçam a História, não leiam ro-
Não, eu não penso nisso! Como pos- cesso mas que quase já não é lido. eu acreditasse no Paraíso, talvez, mas mances históricos. E que pensem que
so saber qual será o meu último li- não acredito. é excitante ter um líder que diz. “Nós
vro? Não acredito em legados, porque É importante ser lembrado? somos grandes.” Mas é muito perigo-
é realmente impossível saber o que Não. Eu não me importo, porque não Não é um homem religioso? so. Os fascistas não começaram com
se vai passar daqui a 50 anos. Prova- estarei aqui. Os meus netos vão re- De todo. a construção dos campos de extermí-
velmente, ninguém mais estará a ler cordar-se de mim, porque estou na nio, mas começaram com a tentativa
um livro de Ken Follett. É muito difí- vida deles desde que nasceram. Eu Mas reflete o fenómeno religioso nos de controlar a imprensa, os tribunais
cil para um autor continuar a ser lido não penso se as pessoas estarão preo- seus livros. É central na sua obra. e os parlamentos. Se eles conseguem
ao longo dos tempos. Poucos o conse- cupadas com os meus livros daqui a 50 Fui educado numa família muito re- estes três objetivos, podem fazer o que
guiram. Estou a pensar nos novelis- anos. Não entendo a questão de deixar ligiosa. Os meus pais eram fiéis pro- quiserem, mas esses têm de ser os seus
tas vitorianos, de que gosto bastante. um legado para a posteridade. Porque testantes, muito crentes. Acreditavam primeiros passos. Mas as pessoas não
Em nomes como Elisabeth Gaskell ou se fala tanto nisso? Porque me deveria realmente que tudo o que estava escrito percebem a conexão, e isso é terrível.

E 41
Os seus livros parecem ser clarivi-
dentes em relação aos nossos tempos.
Embora falem do passado, retratam
a guerra, a fome e as pragas. O que
pensa de ver hoje aquilo que retratou

Escrevo sobre as pessoas nas suas


nos seus livros? Como o regresso dos
imperialismos. Tem medo pelo futuro
dos seus netos?
Sim, e esta questão dos partidos da
extrema-direita não é a única razão
das minhas preocupações. Na verda-
relações sociais. Os autores literários
de, a minha maior preocupação são
as alterações climáticas, como estão
estão mais interessados nos aspetos
a destruir o planeta e a ameaçar o
nosso futuro. Não estamos a reagir de
forma suficientemente rápida, ape-
psicológicos dos indivíduos”
nas tomamos medidas de pequeno
porte. Pelo contrário, há mesmo uma
atitude política contrária às mudan- ‘Brexit’. Os jovens de hoje não gostam o Presidente chinês está a observar o seu próximo romance será à volta do
ças que visam combater as alterações de fronteiras, veem-se como europeus que acontece e a pensar nos seus pla- tema das alterações climáticas, a sua
climáticas. Como acontece em Lon- e votaram pela permanência na União nos para invadir Taiwan. maior preocupação atualmente?
dres, onde temos a estratégia do ar Europeia. Mas é verdade que não sa- Não, qual é a história que está por trás
limpo, que reduz a circulação de au- bem muito de História. A China também tem uma vocação desta questão? Eu tenho de encontrar
tomóveis dentro da cidade. Mas ainda imperialista? o conflito humano [para começar a
há quem resista. As pessoas que têm Acredita que o ‘Brexit’ possa ser Certamente que sim. Mas Xi Jinping escrever um novo romance]. Vejo pro-
automóveis a combustão não querem revertido? está a pensar nas consequências pos- blemas e vejo muitas pessoas a toma-
pagar para circular dentro da cidade. A maioria das pessoas que votou a fa- síveis caso concretize esta invasão a rem decisões tolas à volta das ques-
O presidente da Câmara de Londres é vor do ‘Brexit’ já reconhece que foi Taiwan. É verdade que a invasão da tões climáticas, mas não vejo ainda o
[do partido] trabalhista, mas os polí- um erro. Mas nós [os britânicos] so- Ucrânia causou uma guerra terrível, drama humano concreto.
ticos conservadores dizem que Sadiq mos criadores de problemas, e os eu- que ainda não sabemos aonde nos vai
Khan é adversário dos motoristas. Isso ropeus não nos vão receber de volta a levar, mas por outro lado reforçou a E os migrantes que morrem no
é mentira. Mas qualquer coisa que curto prazo. Sempre fomos criadores ligação entre os países europeus. Tem Mediterrâneo?
se queira fazer contra a poluição vai de casos. Vai demorar muito tempo um lado positivo. Já escrevi um pouco sobre esse tema
sempre atingir um grupo de interes- até que os europeus queiram os bri- em “Nunca”. A grande questão é por-
ses, que vai reagir contra as mudan- tânicos de volta ao clube. Mas há coi- Está mais preocupado com a China que eles saem das suas casas. Não é
ças e vai protestar. Mas, sabe, é pre- sas que nós podemos fazer, entretan- do que com a Rússia? uma preferência, é uma necessida-
ciso colocarmos as coisas em perspe- to. Não podemos voltar, mas podemos Não, estou preocupado com ambos, de. Como acontece no Chade. Eles
tiva, e essa comparação com a Idade fazer acordos que tornem mais fácil porque os dois têm líderes autocrá- sabem o terrível perigo que correm,
Média não é exata. Na Idade Média, fazer negócios. Na verdade, temos de ticos, que se consideram todo-po- as dificuldades da travessia do Me-
a questão das pragas e da pandemia, seguir algumas regras europeias, e os derosos. E sempre surgem problemas diterrâneo. As pessoas que os trazem
por exemplo, estava associada à reli- britânicos vão aceitar isso, porque as quando os líderes são todo-pode- são criminosos, mas eles estão tão
gião, porque para ser médico era pre- pessoas perceberam que terão mais rosos. Quando os líderes são eleitos, desesperados que correm esse risco.
ciso ser padre. E a ligação entre a me- benefícios se seguirem as regras que como os Presidentes dos Estados Uni- Esse é o problema. Para começar, te-
dicina praticada pela Igreja era terrí- tornam a vida mais fácil. dos ou do Canadá, eles não podem fa- mos de perceber o que está por trás
vel. Atualmente, temos a ciência. E se zer apenas o que querem. Não acredi- da decisão de partir. E para resolver
houve algo de positivo na peste negra Quando a guerra da Ucrânia come- to que alguma vez lançassem um ata- esta questão temos de os ajudar a fi-
é que provou que a medicina pratica- çou, a Inglaterra não demorou a to- que nuclear generalizado, porque as car, temos de agir sobre a agricultura,
da pela Igreja estava errada. Foi o iní- mar uma posição. Estamos mais pró- pessoas à volta deles dirão que estão sobre a indústria, caso contrário será
cio da medicina moderna. Portanto, ximos de uma guerra nuclear do que loucos, mas o mesmo não se passa na um inferno.
vivemos ecos da Idade Média, mas há dois anos, quando lançou o seu Rússia ou na China.
não é o mesmo. livro “Nunca”, em que aborda uma Trago-lhe uma surpresa: esta repro-
crise global que ameaça dar início a No seu último livro recorre à figura dução de uma pintura do século XV,
As suas personagens são pessoas que uma Terceira Guerra Mundial? de Napoleão. Também nós estamos de fundamental na História de Portugal,
descobrem algo novo, que criam coi- Há um grande perigo de as armas nu- regresso aos líderes militarizados? conhecida como “Painéis de São Vi-
sas. A nova geração entretém-se a cleares serem usadas neste contex- Napoleão foi importante, porque foi cente”. Deveria escrever sobre estas
ver o TikTok. Terão de ser persuadi- to. Mas, por outro lado, o conflito na um general fora de série. Durante 23 figuras misteriosas.
dos a agir ou ficarão a assistir à vida Ucrânia mostrou que os grandes paí- anos colocou os demais países eu- Não conheço. Está numa igreja?
pelos ecrãs? ses já não podem invadir os territó- ropeus a tentarem derrotar a França Onde está? Qual é a dimensão des-
Tenho esperança de que não seja as- rios dos mais pequenos como acon- após a Revolução. E, embora tenha ta pintura?
sim. Tenho seis netos, e é verdade que tecia no passado. Duvido que Putin restaurado a monarquia em França,
eles se interessam por coisas sobre as tivesse antecipado que a invasão da esta não durou. Na maior parte dos Está no Museu Nacional de Arte An-
quais eu nada percebo. Provavelmen- Ucrânia ia unir tanto as nações oci- países europeus, mesmo quando têm tiga, em Lisboa. É grande, são seis tá-
te, o TikTok já é obsoleto neste mo- dentais. E os países europeus perce- monarquias, os reis não são muito po- buas e têm a altura desta parede. Fica
mento, e eles já estão atentos a uma beram quão perigosa é a ameaça rus- derosos. O rei espanhol não é forte. A o desafio...
nova forma de redes sociais. E não faz sa. Atualmente, está a gastar-se mais exceção é o rei inglês, que é muito po- Obrigado! b
mal, é assim que se passa. Não vejo orçamento destes países em defesa. deroso, é uma figura forte. Ou seja, a
nada de errado com as novas gera- De forma paradoxal, há muito tempo Revolução Francesa funcionou. camartins@expresso.impresa.pt
ções, e em alguns momentos eles es- que a Europa e os Estados Unidos não
tão do lado correto, como no caso das estavam tão próximos e a União Euro- Então, para fim de conversa e de re- O Expresso viajou a convite
alterações climáticas. Ou no caso do peia tão reforçada. E sem dúvida que gresso ao início, posso deduzir que o da Editorial Presença

E 42
Exposição

A VIDA IMÓVEL
O MUSEU FORA DE SI

13.OUTUBRO 2023 A 14.JANEIRO 2024


Quinta da Ribafria | Sintra

ACESSO GRATUITO
Saiba mais em cm-sintra.pt
OS CADERNOS E OS DIAS

A BRUTAL OCUPAÇÃO
DA LINHA DO HORIZONTE

N
OS PAÍSES E AS PESSOAS PASSAM POR FASES: NEM TUDO É CONSTANTE DEBAIXO DO SOL

— os países desesperados, como as pessoas — por vezes, pessoas e países baixam a cabeça para
desesperadas, só conseguem tratar das horas ver se é seguro o metro quadrado que pisam; outras
seguintes. A vida fica respiração, comida e urgência vezes, confiantes na consistência do solo debaixo dos
pés, levantam a cabeça e dizem: quero ir para o sítio
— o futuro desaparece do horizonte, e neste que vejo daqui
começam a surgir terrivelmente coisas bem
práticas e materiais — o território concreto da Ucrânia foi invadido pelos
russos, o território concreto da Suécia foi invadido
— o desespero, o medo e a pobreza fazem isto: pelos gangues
colocam, no horizonte ótico, a comida do dia, a
casa urgente e decente que ainda não se tem, o — a linha do horizonte é uma linha imaginária,
bem-estar dos filhos, a segurança física sim, claro, não pode ser traçada em nenhum mapa,
individual ou coletivo — porém, também pode ser
— e subitamente desaparece aquilo que fez invadida como é invadido um espaço ou um país
das sociedades e dos humanos a base do seu
progresso: uma linha do horizonte desocupada, — e talvez essa linha imaginária seja por vezes mais
a Suécia, os gangues multiplicam-se, e a droga, as disponível para lá serem colocadas utopias e novos importante do que alguns quilómetros quadrados
bombas e as balas circulam como antes apenas se projetos; ou apenas uma simples casa, um T1 concretos de um território
via nos mais abandonados países do Sul modesto
— a linha do horizonte na Ucrânia foi invadida pelos
— quando o peso do crime está no sítio onde — mais terrível do que a cegueira física é essa russos e está agora ocupada pela urgente resistência;
menos se espera, os ideais e a Constituição exibem cegueira coletiva que nos impede de ver o na Suécia foi invadida pelo tráfico de drogas e de
uma turbulência inesperada. Na Suécia, já se fala que pode aparecer lá ao fundo — nos anos ou armas
de os militares serem chamados para as ruas, e o décadas seguintes — e faz com que as pessoas e
inferno aí está nos arredores e no centro do que as sociedades se virem para o presente como um — saiam de cima do mapa do meu território, saiam
parecia ser um dos países mais perto da humana animal coletivo com fome ou com medo da frente da linha do horizonte
perfeição
— na Suécia, a linha do horizonte está agora, — dizem os países e as pessoas
— em setembro, 11 pessoas assassinadas, e a polícia por estes dias, invadida por gangues que matam
diz: “Tem havido bombas e tiros quase todos os adolescentes e dinamitam casas de famílias perto — em muitos pontos do mundo
dias” do centro
— em 2023. b
— traficantes de armas e de droga assassinam — a linha do horizonte é uma linha que não existe
inclusive jovens adolescentes fisicamente e que depende, claro, da posição de
cada indivíduo
— o primeiro-ministro da Suécia diz: “Esta é uma
tragédia profunda” — é uma linha que cada um tem
falsamente nos olhos e na cabeça e que
— uns falam de barrar violentamente os permite perceber que os nossos pés e as
migrantes, outros falam de uma revisão geral do nossas ideias têm ainda muito espaço à sua
sistema educativo e do sistema de reintegração frente
de estrangeiros; outros, apesar de tudo, ainda
falam das nuvens e desse clima, cada vez mais — se o humano não tivesse essa alucinação
/ GONÇALO
imprevisto e perigoso benigna, que é a linha do horizonte, e em M. TAVARES
vez dela só tivesse olhos para o que já existe,
— a discussão entre o que fazer no dia de hoje ainda hoje estaria na véspera de inventar o
para resolver os problemas do dia de hoje e entre fogo
o que fazer hoje para resolver os problemas do
futuro muitas vezes fica suspensa e, diante do que — como bem se sabe, os países e
é urgente, coloca-se o futuro no armazém ou no as pessoas passam por fases: nem
congelador para cuidar dele mais tarde tudo é constante debaixo do sol

E 44
A espera acabou.
No último mês, os cinco
álbuns que Tom Waits
gravou para a Island
Records ganharam nova
vida a partir das master
tapes analógicas
originais. A reedição
é feita em vinil e em CD
TEXTO JOÃO LISBOA

Escultura
de escombros
KEVIN MAZUR/GETTY IMAGES

E 45
E
ra o início de outubro de 1990 e,
junto à janela do primeiro andar de
um pequeno café da Rue du Bac, em
Paris, com os pés descontraidamente
pousados sobre a cadeira da frente,
Tom Waits discursava acerca do
motivo que o conduzira à capital
francesa: a apresentação, no
Théâtre du Châtelet, da ópera
“The Black Rider”, que escrevera
com William Burroughs e Robert
Wilson. De súbito, lá em baixo, na
rua, a figura de Kathleen Brennan
— cocompositora, companheira
e força da ordem no mundo de
Waits —, saída do hotel em frente,
surge gesticulando para ele. Como
quem faz apenas uma pausa para
logo a seguir continuar o que ficara
suspenso, qual ditador benévolo,
Tom Waits diz-me: “Faça-me a
próxima pergunta, deixe o gravador
aqui e, por favor, vá até à rua para
saber o que ela quer.” Qual pombo-
correio, cumpri a missão em cinco
minutos. Mais tarde, verificaria que
ele fora também fiel ao compromisso,
falando ininterruptamente durante
todo o tempo. Apenas mais uma
prova de que, pelo menos tão
fascinante como a sua obra musical,
Tom Waits em discurso direto é
invariavelmente muito melhor
do que qualquer tentativa de o
caracterizar.
E ele terá também tanta consciência
disso que, em 2008, enviaria
para a Anti Records um texto Na verdade, um autêntico relações com o patronato nunca donos do nosso próprio trabalho.”
promocional constituído por uma escuteiro e um grande homem. seriam, aliás, fáceis, e ele não o O primeiro volume da era Island,
entrevista que fizera a si mesmo. Acompanhem-me agora numa disfarçaria: “As grandes editoras “Swordfishtrombones” (1983), tinha
A introdução era esclarecedora: olhadela ao coração de Tom Waits. assemelham-se mais a países do entretanto inaugurado um novo
“Tenho de reconhecer que, antes Descalcem os sapatos, e é proibido que a empresas. Ou a alforrecas. capítulo no universo de Tom Waits.
de me encontrar com o Tom, tinha fumar.” Não possuem anatomia própria. Se, entre “Closing Time” (1973)
ouvido tantos boatos e rumores que “The Black Rider” (1993) seria Mas ferram. Perderam o interesse e “Blue Valentine” (1978), ele se
estava com algum medo. As dívidas o último dos cinco álbuns que em apoiar o crescimento de um imaginava como a encarnação
de jogo, o magnetismo animal, o gravaria para a Island após o artista. Querem que comeces a de uma personagem da ficção
desprezo pelos sentimentos dos abandono da Asylum Records. As dar leite a partir do momento em de Kerouac, Damon Runyon ou
outros... a requintada coleção que assinas com elas. Mas, assim
de armas, a fúria consumista, as que a teta seca, mandam-te para o
operações plásticas, as estâncias churrasco. Devemos lutar a todo o
de esqui, as rusgas por posse de custo pela nossa independência e
drogas, as centenas de quartos liberdade. Continuamos a viver no
da sua mansão... Estava nervoso regime das plantações de algodão.
por ir encontrá-lo. Mas acabei Uma editora discográfica é apenas
por achá-lo amável, inteligente, um banco que te empresta uns
aberto, brilhante, disponível, SWORDFISHTROMBONES dinheiritos para fazer um disco RAIN DOGS
bem-humorado, bravo, audacioso, Tom Waits e que fica proprietária de ti para Tom Waits
loquaz, asseado e reverente. Island Records toda a vida. Nem sequer somos Island Records

E 46
Tom Waits fotografado Sinto necessidade de qualquer
em 2013 durante um coisa rudimentar, fundamental.
concerto no Anfiteatro Atualmente, prefiro escrever sem
Shoreline, em nenhum instrumento, só com a
Mountain View, minha voz. E estalando os dedos.
Califórnia
Isso liberta-me da tirania do teclado
ou da escala da guitarra. Repare
na pop: hoje, parece o Exército
de Salvação, uma troca de trapos
velhos. O que faz falta são canções.
como insubstituível braço-direito, O que é superficial desaparecerá. No
tudo se transformaria: “Escrever hip-hop, uma bateria e um órgão
canções com a minha mulher é podem chegar. São simétricos,
assim: um segura no prego e o satisfatórios. E quais são as raízes
outro bate-lhe com o martelo. do hip-hop? Os blues.” De resto,
Colaboramos em tudo. Ela escreve a personagem Tom Waits manter-
mais inspirada por sonhos e eu se-ia em inalterável mutação (“A
pelo próprio mundo. Quando personagem Tom Waits? Rouba-se
escrevemos, navegamos pelo um bocadinho daqui, outro dali.
meio da escuridão e não sabemos Umas coisas velhas, outras novas,
a direção certa. Cinco minutos a um farrapo de pano azul, o chapéu
mais e pode dar-se cabo de uma do pai, a roupa interior da mãe, a
canção. Por isso, o tempo também moto do irmão, os tacos de bilhar
participa do processo. Temos o da mana, e aí vamos nós. Quer
nosso negociozinho familiar. Eu dizer, sou o Frank Sinatra ou o Jimi
sou o prospetor e ela cozinha. Eu Hendrix? Ou o Jimi Sinatra? Claro
trago o flamingo para casa e ela que sou ventríloquo como todos os
corta-lhe a cabeça. Eu meto-o outros. Ninguém se rala se estamos
na água e ela depena-o. Depois, a dizer ou não a verdade. No nosso
ninguém lhe apetece comê-lo. ramo de atividade, não me parece
Agora, o meu ponto mais forte é que isso seja muito importante”),
pegar numa coisa, combiná-la com com um pé na realidade (“O mundo
outra com que não tenha nada a ver está a arder, e eu às vezes penso
e conseguir que isso faça sentido. que raio de vida é a minha a fazer
Digamos que procuro formas joalharia para os ouvidos. Quando
diversas de usar um guarda-chuva. foi a última vez que numa sala toda
A maior parte dos instrumentos são a gente cantou a mesma canção? Há
quadrados, mas a música é sempre muitas coisas que têm de acontecer
STEVE JENNINGS/WIREIMAGES

redonda, e a verdade é que não antes de se ligar um gira-discos.


gosto de linhas retas.” E, reforçando Roupa e alimentos. Não duvido do
o louvor público: “Eu sou a Ingrid poder da música, mas parece-me
Bergman e a Kathleen é o Bogart. que uma ideia exagerada de nós
Ela tem um brevet de piloto de mesmos e do valor daquilo que
aviação e, antes de nos casarmos, fazemos pode fazer-nos acreditar
estava para ser freira. Pus um que escrever uma canção é capaz de
ponto final nisso. Ela sabe de tudo mudar o mundo”) e outro nunca se
desde reparação de motos até à alta saberá bem onde: “Em Hermosillo,
Raymond Chandler cambaleando que aparecem logo completamente finança e é uma excelente pianista. uma prostituta anã subiu para o
por entre coreografias de jazz formadas, como um ovo. Comigo Uma das maiores autoridades meu banco no bar, sentou-se-me
desmoronado (“Para a maioria dos não aconteceu assim. Fui juntando mundiais acerca da violeta africana. ao colo, pediu um Double Suicide
músicos, há o onstage e o backstage. as peças pelo caminho. Uma persona É feita de material muito rijo. É para beber e contou-me como
Eu cresci mais ou menos em público. de palco é muito diferente daquilo como a Super-Mulher, com a capa tinha assassinado o chulo dela, a
Tinha 22 anos quando gravei o que somos. De facto, uma persona é a flutuar ao vento. Funciona. Já sangue-frio, no Bali-Hai de Tijuana.
primeiro disco. Ainda andava a algo que não acreditamos ser mas andamos nisto há muito tempo.” Isso tinha-se passado há 30 anos,
tropeçar pelas escadas abaixo. Não que tentamos desesperadamente Ao longo de “Raindogs” (1985), desde então tornara-se cristã born
fazia ideia do que estava a fazer, mas convencer os outros que somos”), a “Franks Wild Years” (1987), “Bone again e queria que eu a ajudasse a
sabia que iria ser músico. Há pessoas partir daí, contando com Kathleen Machine” (1992) e “The Black juntar dinheiro para ir a Fátima.” b
Rider” (1993), Waits montaria, peça
a peça, uma improvável escultura
sonora feita dos escombros de
Kurt Weill, Harry Partch, Captain
Beefheart, aromas de New Orleans,
folk irlandesa, blues, tango e
rascunhos de Tin Pan Alley, em
busca do essencial: “É verdade que
FRANKS WILD YEARS BONE MACHINE a minha música se tem tornado THE BLACK RIDER
Tom Waits Tom Waits cada vez mais despojada. Até se Tom Waits
Island Records Island Records reduzir quase só a uma frase. Island Records

E 47
M
Mário Cesariny
fotografado por
Eduardo Tomé

ário Cesariny “ó meu deus” de Vas-


concelos, o poeta de “De Profundis
Amamus”, o pintor com as mãos na
água e a cabeça no mar, o homem
insurrecto que, como uma “máquina
de passar vidro colorido”, afron-
tou uma ditadura puritana, teria
completado 100 anos no passado
9 de agosto. Dizemos 100 anos e
vem-nos imediatamente à retina o
mesmo Cesariny rindo, octogenário,
enquanto faz esvoaçar uma excên-
trica cabeleira postiça numa praia da
sua infância, no documentário “Ama
Como a Estrada Começa”, de Diogo
Collares Pereira (2002). Se há nomes
que nos caem mal, há idades pro-
fundamente mentirosas, sobretudo
se falamos de alguém que perseguiu
sempre a infância plena. Bem mais
velho que ele, o país que agora o co-
memora não parece saber exatamen-
te o que fazer com ele. Não o dá a ler
nas escolas, não o edita inteiro, não o
leva nem que contrariado ao teatro.
Este ano, porém, corre o centenário,
palavra que rima com homenagem,
e por esse mesmo país multiplicam-
-se as iniciativas (por exemplo, na
Fundação Cupertino de Miranda, em
Famalicão; ou na Casa da Liberdade,
em Lisboa) que o lembram tanto

EDUARDO TOMÉ
como artista como poeta.
Que descobríssemos o pintor ori-
ginalíssimo, até então menorizado
em favor do quase incontestado

Planeta
Cesariny “poeta”, foi precisamente a
empresa central de João Pinharanda
quando em 2004/05, no Pavilhão
Preto, a propósito do Prémio EDP,
organizou a mais compreensiva reu-
nião da sua obra. Uma nova geração

Cesariny
encontrava então os seus aqua-
motos, as soprofiguras, as linhas
de água, os pictopoemas e outras
composições cometidas com os
materiais mais improváveis ou nas
fronteiras e margens de quase tudo
(palavra, objeto, imagens), algumas
anteriores às aventuras informalistas
do pós-guerra ou à poesia experi-
mental dos anos 60. A exposição que
agora abre no MAAT prolongar-se-á O MAAT mostra a obra da figura central do surrealismo
até 2024, ano em que comemo-
raremos também o centenário do português e o circuito das suas cumplicidades e aventuras
primeiro manifesto do surrealismo
escrito por André Breton, o que nos
poéticas no centenário do seu nascimento
lembra duas coisas paradoxais mas TEXTO CELSO MARTINS

E 48
combinadas: por um lado, o quão
o surrealismo português foi tardio;
por outro, o quão redutor é cingir a
influência de Cesariny à afirmação
daquele movimento.
A opção curatorial, novamente
entregue a João Pinharanda, desta
vez na companhia de Afonso Dias
Ramos e Marlene Oliveira (Funda-
ção Cupertino de Miranda), assume
esta dupla condição. Pensou, até
cenograficamente, esta exposição
como uma casa, populosa e vária de
onde se descortina a orla do mar e
se sonham marinheiros, mas onde
D.R.

estão também os espectros irrequie-


tos do passado ou de outras latitudes
e os cúmplices que vieram depois. Visível” como ator de uma liber-
Chamaram-lhe “O Castelo Surrea- tação total que coloca o corpo na
lista”, em referência direta ao livro linha mais avançada, é a inclusão de
escrito entre Lisboa, Paris e Londres alguns artistas portugueses contem-
que Cesariny, em 1984, dedicou porâneos. Referimo-nos ao traba-
à obra de Vieira da Silva e Arpad lho gráfico queer de Vasco Araújo
Szenes mas também ao lugar a que (associado à obra com que venceu
Breton alude no manifesto como um o Prémio EDP Novos Artistas em
“castelo onde metade não está obri- 2002) e a uma sexuada versão das
gatoriamente em ruína” e de onde “Linhas de Água” feitas com cuecas,
entram e saem amigos como Éluard, da dupla João Pedro Vale e Nuno
Desnos, Artaud ou Duchamp. Alexandre Ferreira, de assinalável
O castelo que se avista em Belém é eficácia política e estética.
afinal um abrigo para obras (per- E é porque essa liberdade plena
tencentes à Fundação Cupertino coincide plenamente com a sua bio-
de Miranda, à Coleção EDP e por grafia que a mostra contém também
outros emprestadas) que traçam a um lado mais iconográfico e íntimo,
teia peculiaríssima de relações e a recuperando imagens fotográficas na
cartografia eletiva do poeta. casa do poeta, captadas por Duarte
É um modo de mostrar com obras Belo, reunidas em livro em 2014,
suas e de outros, a que se juntam bem como outras de Eduardo Tomé
documentos vários, a omnipresença e Nuno Félix da Costa que imortali-
de Cesariny em todos os momen- zam a sua figura civil e iconoclasta.
tos decisivos do(s) movimento(s) Mas esta é também uma exposição
surrealistas em Portugal; afirmando feita de peças de muito variados
a transgeracionalidade da atração Pormenor da contextos: alguns evidentemente
DUARTE BELO

que exerceu sobre outros contextos casa de Cesariny artísticos (pequenas esculturas de
artísticos ou os diálogos e relações por Duarte Belo Jorge Vieira, Isabel Meyreles, Manuel
que engendrou além-fronteiras. Rosa), imaginária sacra; escultura
Fá-lo com obras icónicas como “O popular e especímenes etnográficos
Operário” (1947), “Naniôra — Uma Pereira ou Alessandro Magnasco, ou Nadir Afonso); ou aqueles em (uma escultura indígena angolana);
e Duas” (1960), ou o guache sem entre outros) que sustentam a tese que se descobrem afinidades entre um sem-número de assemblages
título que ilustra a capa da primei- bretoniana, corroborada por Cesari- imaginários africanos e as premissas do próprio artista; ou simplesmente
ra edição da “Pena Capital” e uma ny, de que o surrealismo não é ape- surrealistas como Malangatana, Iná- curiosidades encontradas cuja deto-
multiplicidade de outras obras nas um movimento historicamente cio Matsinhe e Reinata Sadimba. nação poética ele valorizou.
(muitas delas sem título) em que localizado, mas que configuraria Outras presenças ajudam a mapear Tudo isto compõe um labirinto no
a definição de paisagem, figura, uma potência mágica ancestral, de ou sugerem relações internacionais, qual a autoria, a origem e o con-
corpo, gesto, signo, realidade, sonho libertação do inconsciente e das desde logo com nomes ligados ao texto primeiro se desvanecem para
se obscurecem para ressuscitarem suas pulsões e fantasmagorias. surrealismo internacional, como revelar — entre a obra própria e a
numa liquidez ora luminosa ora Apresentam-se obras individuais e André Breton (aqui com uma escul- vizinhança de propósitos e discursos
sombria, que permanentemente coletivas de surrealistas portugue- tura de aparência totémica), Victor — a abrangência de uma das mais
escangalha tipologias. ses da primeira hora, quer do grupo Brauner, uma esculturinha tardia do transgressoras almas que este país
Mas esta não é tanto uma exposição surrealista de Lisboa (Azevedo, Ves- surrealista espanhol Eugenio Gra- viu passar. b
da obra plástica de Cesariny, mas peira) quer também do dissidente Os nell, uma colagem do holandês Her
sobre o “Planeta” Cesariny, que Surrealistas (António Maria Lisboa, de Vries, ou de artistas envolvidos
inclui uma constelação de conexões Cruzeiro Seixas, Mário-Henrique em movimentos contaminados pelo
mais diretas ou mais opacas a uma Leiria, Pedro Oom, Henrique Risques surrealismo, como Karel Appel (Co-
primeira impressão. Entre estas Pereira); de geração posterior (Antó- bra) ou Jean Dubuffet (Arte Bruta). O CASTELO SURREALISTA
últimas estão aqui algumas obras nio Areal, Paula Rego, Ana Hatherly, Uma das opções mais acertadas, DE MÁRIO CESARINY
vindas do Museu Nacional de Arte Gonçalo Duarte); ligados a explora- porque assinala vivamente o lugar Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia,
Antiga (de Joos de Momper, Diogo ções mais abstratas (Vieira da Silva de referência do autor de “Corpo Lisboa, até 19 de fevereiro

E 49
Li
vros
Coordenação Luciana Leiderfarb
lleiderfarb@expresso.impresa.pt

Descrevendo as condições
“obliteradoras” a que se
sujeitam os exploradores
polares, David Grann oferece
um retrato da Antártida ao
mesmo tempo belo e terrível

Coração N
o início do século XX, burro vivo é melhor do que um leão
coexistiram no Reino Unido morto, não é?” Mais tarde, em 1914,
dois paradigmas de explorador já com ambos os polos conquistados,
polar. De um lado Robert Falcon apostou no que considerava ser o
Scott, que competiu diretamente com único grande feito que restava: uma

tão
Roald Amundsen na corrida para travessia da Antártida, em toda a sua
chegar primeiro ao Polo Sul. E perdeu. extensão, com passagem pelo Polo
Quando atingiu finalmente o objetivo, Sul. As coisas voltaram a correr mal
em janeiro de 1912, com um atraso de e a odisseia do navio “Endurance”,
33 dias, ao encontrar a tenda do rival, que ficou preso num banco de gelo
e uma bandeira norueguesa, terá no mar de Weddell, durante meses,

branco
afirmado: “Deus do Céu! Este lugar até se afundar (o que obrigou os
é tenebroso.” No regresso, Scott e os 22 homens da tripulação a terem
seus quatro homens ficaram isolados de sobreviver mais de um ano em
na neve, sem mantimentos. No condições extremas, literalmente
diário, escreveu: “Morreremos como no fim do mundo), tornou-se um
cavalheiros.” E morreram mesmo. episódio lendário. Apesar de todas
Atitude muito diferente tinha Ernest as contrariedades imagináveis,
Shackleton, que fazia questão de Shackleton conseguiu ir à procura
pôr o bem-estar e a sobrevivência de socorro e resgatou todos os seus
dos seus homens acima de tudo, até subalternos com vida.
de um eventual lugar na História. Durante a Primeira Guerra Mundial,
Repórter da “New Yorker”, David Em 1907, na sua primeira grande foi Scott, o mártir, que se impôs como
Grann relata a aventura extrema expedição, a Nimrod, avançou com
três companheiros pelos glaciares e
símbolo de estoicismo e perseverança,
coragem e sacrifício. Shackleton
de um explorador polar na tentativa grandes extensões geladas, chegando era apenas alguém que ficou a meio
muito perto do Polo Sul, a meros 150 caminho e nunca teve audácia para
de fazer o nunca feito: atravessar sozinho quilómetros, mas desistiu por saber ir até ao limite. Ao longo do século,
a Antártida a pé, passando pelo Polo Sul que não haveria comida suficiente
para chegar até lá e voltar. Regressado
porém, as posições inverteram-se.
Scott passou a ser criticado pela sua
TEXTO JOSÉ MÁRIO SILVA a Inglaterra, terá dito à mulher: “Um inflexibilidade, dureza e distância em

E 50
relação aos seus homens, enquanto Patagónia, no século XVIII, e o
Shackleton foi sendo cada vez mais motim que se seguiu.
visto como um exemplo de liderança e O principal mérito de Grann está
respeito pelo coletivo, de inteligência na forma como reúne factos e os
prática sob tremenda pressão, organiza numa estrutura narrativa
inspirando inclusive uma extensa de grande eficácia. A escrita não
bibliografia sobre as suas ‘lições’, é particularmente brilhante, mas
enquadrável naquilo a que se costuma tudo nela se conjuga para que o
chamar literatura de autoajuda. leitor se sinta a um palmo do que
Henry Worsley (1960-2016) sentia vai sendo contado. Depois de quase
um enorme fascínio e admiração por cheirarmos o suor de Worsley
Shackleton, desde que requisitara enquanto se preparava para a
na biblioteca da escola um exemplar expedição (arrastando, por exemplo,
de “O Coração da Antártida”, o livro pneus de trator para simular o trenó
que o comandante escrevera sobre de 150 quilos que seria preciso
a expedição a Nimrod. O interesse puxar sobre o gelo, preso à cintura),
aprofundou-se quando descobriu entramos no dia a dia monótono
que um parente afastado, Frank e extenuante dos exploradores: o
Worsley, fizera parte da aventura. avanço sob tempestades inclementes,
Com o tempo, o interesse tornou-se o frio extremo, os danos físicos e o
uma obsessão. Shackleton era o seu emagrecimento abrupto, o perigo das
herói, o seu mentor — e recorreu fendas no gelo, o “resplendor branco”
ao seu exemplo quando comandou que cega, os mandamentos essenciais
homens, enquanto oficial do exército (“se te molhares, morres”), os
britânico, em missões na Bósnia ou desânimos, a perseverança e o triunfo
no Afeganistão. Não só sabia tudo arrancado a ferros.
sobre o homem, como escreveu livros Depois da difícil chegada ao Polo
sobre ele, licitou em leilões obras Sul, com uma vénia a Shackleton,
autografadas, fotografias e objetos que Worsley não se contentou e decidiu
lhe haviam pertencido. Num desses regressar à Antártida para completar
leilões, na Christie’s de Londres, o outro desafio falhado do mestre:
conheceu Alexandra Shackleton, a a travessia do continente a pé, de
neta do explorador. E foi Alexandra um lado ao outro, passando pelo
GETTY IMAGES

que juntou Worsley a outros dois polo. Cerca de 1600 quilómetros no


descendentes de participantes nas “cenário mais brutal do mundo”, só
expedições do avô. Objetivo: refazer, que desta vez sozinho e sem apoio
cem anos depois, o percurso até ao (apenas um telefone-satélite para
local exato onde os antepassados pedir socorro em última instância; o
haviam desistido, e chegar depois que acabou por fazer, tarde demais).
ao Polo Sul, cumprindo de alguma Este desafio insano é descrito por
maneira o que ficara incompleto. Grann com uma minúcia quase
A história desta expedição é o foco dolorosa, culminando no paroxismo
principal de “A Escuridão Branca”, de exaustão física de quem foi muito
de David Grann, jornalista da “New para lá dos seus limites. Porquê?
Yorker” que decidiu ampliar e Essa é a grande pergunta, a que não é
aprofundar um artigo longo sobre fácil responder e o autor nem sequer
o tema publicado na revista. Autor tenta. Mas deixa algumas pistas, ao
de “Assassinos da Lua das Flores”, citar o norueguês Fridtjof Nansen
um magnífico livro de investigação (a busca da “vitória do espírito e da
sobre o massacre de índios osage força humanos sobre o domínio e os
que enriqueceram com a descoberta poderes da Natureza”) e o próprio
de petróleo nas suas terras (obra Shackleton, que afirmou terem
adaptada recentemente ao cinema ele e os seus homens “trespassado
por Martin Scorsese), Grann a camada superficial das coisas
sempre gostou de narrativas sobre exteriores” e “atingido a alma nua e
a exploração geográfica, povoadas crua do homem”. b
de personagens carismáticas. O seu
primeiro livro, “A Cidade Perdida
de Z” (Dom Quixote), debruça-se
sobre Percy Fawcett, um arqueólogo QQQQ
inglês que na década de 1920 A ESCURIDÃO
procurou uma civilização perdida na BRANCA
floresta amazónica, desaparecendo David Grann
nessa busca com o seu filho, para Quetzal, 2023,
nunca mais ser visto. Já o seu opus trad. de Vasco
mais recente, “The Wager”, relata Teles de Menezes,
o naufrágio de um navio de guerra 148 págs., €13,30
britânico numa ilha ao largo da Não-ficção
O fazer da filosofia

E ainda...

GETTY IMAGES
QQQ CARO IDIOTA
ZUCKERMAN LIBERTADO Virginie Despentes
Philip Roth Elsinore, 2023, 304 págs., €20,95
D. Quixote, 2023, trad. de Francisco Agarez, Escritora e cineasta, e uma das mais
240 págs., €17,90 fulgurantes figuras atuais da litera-
António de Castro
Romance tura francesa, Despentes já publicou
Caeiro (Lisboa,
1966) é doutorado livros em Portugal (na Elsinore e na
em Filosofia Antiga De que é que Zuckerman se libertou? Orfeu Negro) mas passou desper-
e professor na Neste segundo de nove ‘romances cebida. Esta é, por isso, uma opor-
NOVA FCSH Zuckerman’, publicado em 1981, o alter tunidade para a conhecer, por meio
ego de Roth começa por não conse- de um livro epistolar e “luminoso”, no
guir libertar-se do sucesso. Ficcionista dizer do “Le Monde”.

U
ma pergunta pode ser, sua leitura, o modo como vemos jamesiano “arrancado à obscuridade”
ela própria, a resposta. A o mundo”. Somos introduzidos quando escreveu um livro-choque,
pergunta pela filosofia é um na génese tardia da palavra “Carnovsky” (como quem diz: “Port- ARISTÓTELES
assunto arriscado, e mais ainda se ‘metafísica’ — que um bibliotecário noy”), Nathan Zuckerman descobriu Tassos Apostolidis
e Alecos Papadatos
dirigida — seguindo o rasto do seu inventou para indicar os textos que que ser célebre tem desvantagens.
Gradiva, 2023, 216
pensamento, como seguimos um ladeavam os de física. “É o destino Por mais que queira continuar a viver
págs., €26,50
trilho oculto entre a folhagem — a da filosofia vir a ser o seu próprio como um desconhecido, é impossí-
filósofos como Platão, Aristóteles, objeto”, diz Caeiro, questionando: vel: pessoalmente, por carta, ou por Pelo desenhador de
Sto. Agostinho, Kant, Wittgenstein “Aonde vamos quando começamos telefone, contacta com fãs insistentes, “Logicomix”, a história daquele que nos
e Heidegger. Compreender como a pensar? De onde regressamos à judeus que acham que ele ofendeu os ensinou a pensar, cujas teorias conti-
cada um deles a responderia realidade para cair nela?” judeus, leitores que lhe pedem que não nuamos a dissecar, 2300 anos depois.
pode ser, em si, fazer filosofia, Da metamorfose que o significado lave a roupa suja em público, senhoras
refazer esse caminho, sentir, na de filosofar opera em Wittgenstein que juntam fotos marotas, pessoas
verdade, que ele tem uma ligação ao que aquele representa para que lhe agradecem e que o ameaçam.
Top Livros Semana 38
De 18/9 a 24/9
(umbilical, constitutiva, até Heidegger — passando pelo Sto. Todos discutem “Carnovsky”: críticos Ficção
quotidiana) connosco. António Agostinho das “Confissões” e por literários, rabinos, talk shows, colunas Semana
anterior
de Castro Caeiro é filósofo, mas Kant —, não se trata aqui de um de mexericos. Mas serão Carnovsky e
1 1 O Segredo da Criada
é também um professor (quem formular teórico, mas da remissão Zuckerman (e Roth) a mesma pessoa? Freida McFadden
aqui escreve teve a sorte de ser sua ao instante limite que desencadeia O protagonista lamenta que ninguém A Criada
aluna) capaz de nos levar lá, onde a necessidade filosófica. Não é distinga “entre o ilusionista e a ilusão”, 2 2
Freida McFadden
o pensamento é gerado e ativado. só — como diz o senso comum e lembra a lição de Aristóteles, para A Cirurgiã
3 3
A filosofia é uma atividade, diz — o espanto. É a curiosidade, a quem uma “acção representada”, Leslie Wolfe
ele, desde logo. Não se tem: faz-se. ignorância consciente, o amor, embora seja catártica, não pode ser O Cavaleiro da Dinamarca
4 -
Podemos estudá-la na escola, a angústia, o tédio. “Nesses levada a sério. Mas o romance é “a Sophia de Mello Breyner Andresen
cursá-la na universidade, e momentos, faz-se a experiência da arte da descrição”, e todos, incluindo a A Viúva e o Papagaio
5 - Virginia Woolf
ficarmos na mesma quanto ao que vida no estrangulamento do seu família e as ex-mulheres, levam a sério
é filosofar. Ou podemos pegar na sentido. É também aí que nasce a as descrições de Zuckerman, o Dickens As categorias consideradas para a elaboração deste top
foram: Literatura; Infantil e Juvenil; BD e Literatura Importada
disposição para filosofar que nos possibilidade de ser quem se é.” de Newark, o Proust dos masturbado-
é inerente e detoná-la, perguntar Ler este livro é duro, luminoso e res. E entre ajustes de contas à clef, Não ficção
sobre a pergunta. obrigatório. E não serve a escusa somos apresentados a um desgraçado Semana
anterior
Em “O Que É a Filosofia?”, o de ‘não perceber nada’ de filosofia. que decora factóides para concursos
autor evoca seis aulas magistrais / LUCIANA LEIDERFARB televisivos, a uma actriz planturosa divi- 1 1 Ganhar Dinheiro
Pedro Andersson
proferidas por si no CCB. dida entre Kierkegaard e Fidel Castro,
O Primeiro-Ministro e a Arte de...
Primeiro, aborda a detonação da e a outros admiradores neuróticos, 2 2
Aníbal Cavaco Silva
Filosofia em Platão, recorrendo vingativos ou ridículos. No último terço
Hábitos Atómicos
ao significado grego da palavra, da narrativa, a comédia exasperada 3 3
James Clear
philia e sophia, obsessão e dará lugar ao ‘lirismo sentimental’ e Constituição da República
transparência. A filosofia à amargura, com a morte do pai de 4 - Portuguesa — Edição Académica
surge como uma “obsessão Nathan e o regresso fugaz a Newark. Isabel Rocha
compulsiva pela transparência” O pai, mesmo antes de morrer, já não 5 -
Código Civil — Edição Académica
V.A.
que é o reverso de uma “fuga à está lá, entubado, assustado, mas capaz
opacidade”: não queremos ficar ainda de amaldiçoar o filho. E a casa e As categorias consideradas para a elaboração deste top
foram: Ciências; História e Política; Arte; Direito,
sem saber. Sobre Aristóteles, lemos QQQQ o bairro onde Nathan viveu na infância Economia e Informática; Turismo, Lazer e Autoajuda

de novo que “não basta ler os O QUE É A FILOSOFIA? e adolescência são agora uma “réplica Estes tops foram elaborados pela GfK Portugal, através
do estudo de um grupo estável de pontos de venda
textos filosóficos”, pois “a nossa António de Castro Caeiro liliputiana” do passado. É então isso, a pertencentes a dois canais de distribuição: hipermercados/
supermercados e livrarias/outros. Esta monitorização
aproximação a um texto filosófico Tinta-da-china, 2023, 376 págs., €17,90 finitude, que o liberta e entristece. é feita semanalmente, após a recolha da informação
eletrónica (EPOS) do sell-out dos pontos de venda.
tem de transformar, através da Ensaio / PEDRO MEXIA A cobertura estimada do painel GfK de livros é de 85%.

E 52
O outro lado
dos livros
POR MANUEL
ALBERTO VALENTE

A vida soviética
Todos temos direito às ilusões de juventude

A
lguns dos meus ‘inimigos de estimação’, quando me querem atacar,
puxam por aquilo que, pensam eles, é a bomba atómica: o facto de
eu ter sido, há quase 50 anos, diretor de uma revista intitulada “Vida
Soviética”, de que os mais novos certamente não se lembram. Publicada pela
agência noticiosa Novosti a partir de 1975, a “Vida Soviética” tinha como
objetivo competir com as “Selecções do Reader’s Digest” norte-americanas,
então muito populares em Portugal. Daí que a esmagadora maioria das suas
páginas fosse preenchida com artigos sobre as diferentes Repúblicas da
União, as suas tradições culturais e folclóricas, as suas fábricas e kolkhoses, os
seus artistas e a vida do seu povo. Tudo isto acompanhado de muita fotografia,
que naturalmente enfatizava o ‘lado solar’ do país.
Para que conste, a primeira pessoa a ser convidada para diretor da
revista foi José Saramago — que, pura e simplesmente, recusou o convite.
Convidaram depois o escritor Orlando da Costa, que pôs uma condição
que não foi aceite: visitar previamente a URSS, uma vez que não fazia
sentido ser diretor de uma revista que falava de um país onde nunca tinha
estado. Nunca soube por que razão o terceiro convidado fui eu — que
aceitei porque precisava de emprego, mas também porque nos impunham
não militar no PCP, o que era ótimo para quem como eu se filiara sem
grande convicção.
Os materiais chegavam todos mensalmente de Moscovo: a maquete da
revista, os textos já traduzidos em (mau) português e as fotos que ilustrariam
cada artigo. O nosso trabalho consistia pois, basicamente, em corrigir e
editar os textos, adaptar a maquete original e selecionar as fotos definitivas.
Claro que, lá pelo meio, havia um ou outro artigo sobre a vida política da
União Soviética. Mas, com a cumplicidade de Alguis Tchekuolis, primeiro
diretor da agência e mais tarde deputado numa Lituânia já independente,
arranjávamos sempre uma desculpa para os cortar. Lembro-me de uma
longa fita de telex com um discurso de Brejnev que acabou reduzido a meia
dúzia de linhas. Em 1977,
premiaram-me com uma
viagem à URSS. Tudo o
que vi — e vi muita coisa,
dos países bálticos à
longínqua Sibéria — fez-
me perceber que estava
no caminho errado. Dois
anos depois, a invasão do
Afeganistão foi a minha
“Primavera de Praga”.
Abandonei a revista e
mudei de caminho. Hoje,
tantos anos depois, não
me arrependo dessas
ilusões de juventude e
acho graça a quem, à
falta de melhor, as usa
como arma de arremesso.
Esquecendo que, como
disse Camões, “todo o
mundo é composto de
O primeiro número da “Vida Soviética” (maio de 1975) mudança”… b
trans. E há uma inegável nobreza
nesta atitude, o filme é feito de gente

Ci
dos 8 aos 70 anos que nos fala de
transição mas ‘não há idade’ nestes
corpos, todos estão envolvidos numa

ne
simultaneidade de relatos e num
mesmo presente.
Quem aparece no ecrã faz eco de

ma
si próprio, da biografia de Preciado
construída por fragmentos e também
do livro de Woolf, que o cineasta
transforma em manifesto. A teoria
de Preciado — e há aqui toda uma
proposta política — é que, quase 100
Coordenação João Miguel Salvador anos após a publicação do livro, o
jmsalvador@expresso.impresa.pt mundo pode finalmente aceitar ser
‘orlandesco’, como se a ficção tivesse
estado todo este tempo à espera
que a realidade a materializasse.
“Arriscávamos a vida a cada vez”,
Kori Ceballos é um dos conta também Preciado no prólogo.
nomes que interpreta E agora “estamos em vias de mudar o
Orlando no documentário curso da história.”
de Paul B. Preciado Inventou Preciado a pólvora com
“Orlando — A Minha Biografia

Orlando, nome
Política”? Não é caso para ir tão longe,
nem se pode dizer que seja novo no
cinema este tipo de correspondência
epistolar feita de mil pedaços com um
livro, ou com uma ideia. Preferimos

de combate
contudo frisar o deleite com que cada
cena de valor desigual foi feita, de
um princípio de prazer evidente e de
uma vertente lúdica que o filme vai
desenvolver ao longo dos seus 90 e
poucos minutos.
“Orlando — A Minha Biografia
Política” vai dividir-se em relato

A
O primeiro filme lguém lhe perguntou um dia — vão evocar, encarnar, diria até, a frontal para a câmara dos seus
conta Paul B. Preciado em off personagem de Woolf que mudava de intervenientes, dissertações
do filósofo e ativista no início do filme — “porque sexo a meio da história. em off, momentos ficcionados,
transgénero espanhol é que não escreves a tua biografia?”
Antes de vermos Preciado, com a
Não é a primeira vez que o cinema
pega no livro, Sally Potter levou
numa multitude de décors, de
cores, de sotaques e de formatos
Paul B. Preciado ‘mão na massa’, a colar cartazes, já esta história ao cinema mainstream cinematográficos, numa exposição de
o genérico indicou que esta é uma no início dos anos 90, quem não se emoções e de choques bruscos que
é um manifesto adaptação livre de “Orlando” de lembra de Tilda Swinton no papel? também recorrem a arquivos. Por
Virginia Woolf. Mas o que é isto de Mas “Orlando — A Minha Biografia vezes sente-se que há uma saturação
político à procura ‘adaptações livres’, o que significa, se Política” traz em 2023 os ventos de nesta proliferação de signos. Mas cada
de uma mudança de esta, por uma série de circunstâncias
muito particulares, não tem paralelo
mudança do seu tempo. É essa a sua
força, a sua bravura e também, de
cena tem sempre um momento de
frescura particular, uma característica
mentalidades com 25 com qualquer outra? alguma forma, o seu limite, pois sente- qualquer que a torna genuína.
Preciado não distingue a biografia do se a urgência na atitude, quem ‘grita’ É verdade que Preciado tem há
intervenientes unidos livro. Defende, num arrebatamento aqui já esperou demasiado e não pode muito uma relação direta com a
pela mesma voz poético, que foi Woolf quem escreveu
a dele naquele romance de 1928, 42
esperar mais.
Paul B. Preciado não é um cineasta
arte, colaborou ou acompanhou
antes artistas como Shu Lea Cheang,
TEXTO FRANCISCO FERREIRA anos antes do seu nascimento na mas sim um filósofo, um comissário Dominique Gonzalez-Foester, Banu
cidade espanhola de Burgos. Há um artístico, um ativista político a atuar Cenetoglou, Roee Rosen, PostOp,
gesto de liberdade nesta atitude e, só em nome de uma causa, não é sequer Annie Sprinkle, Beth Stephens ou
por esta ideia, vale a pena ver-se o possível prever se esta aventura no Virginie Despentes, que interpreta no
resultado. Nos cartazes que ele fixa cinema trará continuidade. O seu final um momento de grande impacto
pela calada da noite, na França em pensamento converteu-se numa arma no papel da juíza. E, contudo, aquilo
QQQ que ele reside há muito e num filme de guerra sobre a sua condição trans que “Orlando — A Minha Biografia
ORLANDO — A MINHA que toma o francês como a sua língua e ele próprio num mito da cultura não Política” nos mostra não deixa de ser
BIOGRAFIA POLÍTICA (também por questões de produção), binária. absolutamente surpreendente para
De Paul B. Preciado Preciado procura Orlando. Todos os O plano de ação, como o próprio alguém que nunca antes tinha pegado
Com Jenny Bel’Air, Virginie Despentes, Orlandos do mundo. Fez um casting e o diz em entrevista, não é pois um numa câmara. É um filme disposto a
Clara Deshayes (França) encontrou 100 pessoas, das entrevistas caso individual mas sim uma voz de derrubar muros e que nos estende a
Documentário M/14 selecionou 25 intérpretes. Todos eles representação de todas as pessoas mão, com vontade de partilha. b

E 54
E ainda...
QQQ Q
GOLPE DE SORTE GOLDA AVENTURA A BELA AMÉRICA
De Woody Allen De Guy Nattiv ESPACIAL De António Ferreira
Com Lou de Laâge, Melvil Poupaud, Niels Com Helen Mirren, Liev Schreiber, Camille De Paul Meyer e Gerhard Painter
São José Correia e Estêvão Antu-
Schneider (EUA/França) Cottin (Reino Unido/EUA) Novo filme de animação conta nes nos papéis principais de uma
Comédia/Drama/Romance M/12 Biografia/Drama M/12 a história de Gus, Sophie e Max, comédia sobre uma estrela de
três alienígenas que — após televisão e candidata a Presiden-
ESTREIA As últimas décadas ensinaram- É difícil sustentar que “Golda” cumpra um inexplicável acidente — se te e um cozinheiro que a seduz
-nos a encarar como manifestamente sequer os mínimos olímpicos que lhe instalam no cérebro de um com refeições de exceção. Não
exageradas as recorrentes notícias da permitam qualificar-se como um biopic adolescente de 14 anos. A mis- será fácil para América conseguir
morte cinematográfica de Woody Allen. sobre a personagem histórica do título. são é salvar a Terra de um vilão resistir a Lucas.
De facto, sempre que o cineasta pareceu Fala-se de Golda Meir, a “dama de ferro” intergaláctico.
ter atingido o limite da sua capacidade que exerceu funções como primeira-mi-
de reinvenção, houve um filme que lhe nistra de Israel entre 1969 e 1974, e que
serviu para fazer prova de vida. “Golpe de liderou o país durante os 20 dias da Guer-
Sorte” é — como “Match Point” e “Blue ra do Yom Kippur (1973). O complexo
Jasmine” — um desses ‘filmes-fénix’, que, contexto político desse conflito (iniciado
no caso, vem pôr termo a uma desins- pelas invasões egípcia e síria de territórios
pirada série de trabalhos. Rodado numa que Israel considerava como seus) é um
Paris teimosamente outonal e falado em tópico que Guy Nattiv despacha logo
francês, o filme gira à volta de um triângu- na primeira sequência, através de uma
lo amoroso, em cujo vértice superior está apressada e aparatosa montagem de
Fanny. Quem é ela? Uma mulher de 30 sons e imagens de arquivo — como quem O EXORCISTA:
anos que, no seu círculo social da classe diz que não é isso o que mais lhe interessa.
CRENTE NO RASTO
média-alta parisiense, é definida como a O que mobiliza o filme é, antes, o desejo De David Gordon Green DO ASSASSINO
De Damián Szifron
trophy wife de Jean: um homem 20 anos de retraçar o sentido dos passos dados Passaram 12 anos desde o terra-
mais velho que, para justificar a sua fortu- por uma então septuagenária Golda, moto do Haiti, onde Victor Fielding Shailene Woodley junta-se a Ben
na, se limitará a dizer que “torna os muito mostrando como ela agiu enquanto mu- perdeu a mulher grávida mas con- Mendelsohn (na imagem) para
ricos ainda mais ricos”. Do seu casamento lher de Estado e sofreu enquanto figura seguiu salvar a filha. Angela, agora um thriller criminal de ação pas-
com Jean, Fanny extrai uma sensação de privada ao longo da guerra. Eis a base de na adolescência, desapareceu sado em Baltimore. Há um crime
conforto que parece ser inversamente um filme de bastidores (a ação decorre subitamente com uma amiga, Ka- brutal para resolver e um assassi-
proporcional ao grau de entusiasmo que sobretudo em corredores e gabinetes, therine, e regressou sem quaisquer no em série para encontrar.
aquele matrimónio lhe provoca: veja-se sempre pintados em cores pardacentas) memórias dos três dias de ausência. O quebra-cabeças é demasiado
como ela se sente como um corpo estra- que tem o inconveniente de nos oferecer O que lhe terá acontecido? complexo.
nho, no quadro daqueles “fins de semana uma incógnita em vez de uma perso-
de caça no campo”. O discreto tédio da nagem. De facto, porque o argumento
burguesia torna-se ainda mais evidente nos instala num presente sem passado
por meio da relação que Fanny restabe- (à exceção de uma breve referência à ESTRELAS DA SEMANA
lece com Alain: um antigo colega de liceu infância da protagonista, nada nos é dito Jorge Vasco
Francisco
que reencontra por acaso na primeira sobre a sua vida antes da guerra), a Golda Ferreira
Leitão Baptista
Ramos Marques
sequência, e cujo ‘perfil boémio’ (ele é do filme surge-nos inevitavelmente
escritor) claramente a atrai — a ponto de como uma cifra. Isto é: como um corpo A Bela América QQ
cedo embarcar com ele num affair. Não sem espessura psicológica, humana ou A Coisa QQQ QQQQ
será preciso esperar muito até que Jean política, que se limita a articular uma
O Criador QQ
se aperceba das diferenças no compor- série de sentenças funcionais (“avan-
tamento de Fanny, que serão aliás corro- çar”, “recuar”), por trás das quais nenhum O Crime é Meu QQQ
boradas pelo detetive privado que põe ponto de vista se deteta. A esta ‘anula- Golda Q Q
no seu encalço. O que se segue é uma ção biográfica’ corresponde a ‘anulação Golpe de Sorte QQQQ QQQ
narrativa muitíssimo económica (quase figurativa’ da protagonista, encarnada por
não há cenas supérfluas), que reveste a uma Helen Mirren que parece sufocar Lá em Cima QQQ QQQ
forma de uma parábola metafísico-moral sob o fumo dos cigarros que vai com- Orlando — A Minha Biografia Política QQQ
sobre o acaso e sobre a inutilidade dos pulsivamente fumando (a recorrente O Primeiro Dia do Resto da Minha Vida Q
esforços que fazemos para tentar con- auscultação visual deste vício é o mais
A Romancista e o Seu Filme QQQQ QQQQ
trolá-lo. E, se o tema não é novo na obra perto que aqui se chega da interioridade
de Woody, o modo como o cineasta se de Golda) e, sobretudo, sob o peso das Rua dos Anjos QQQ
diverte a fulminar uma figura (a de Jean) inúmeras próteses que carrega consigo. O Sol do Futuro QQQQ QQQQQ QQQ
que acredita na omnipotência da sua Que haja alguém por debaixo daquelas
Sujo Difícil Perigoso QQQ
razão, esse, faz prova de genialidade. sucessivas camadas de látex, eis aquilo
/ VASCO BAPTISTA MARQUES de que se duvida. / V. B.M. DE b MÍNIMO A QQQQQ MÁXIMO EXPRESSO

E 55
F
az mais de sete anos desde diferente, para pior: guerra, um de “The Boys”, sobre a Universidade
que Donald Trump, na altura conturbado pós-pandemia e latas de Godolkin, escola que forma a próxima
candidato à Presidência dos tinta contra ministros, dizem-nos geração de super-heróis que poderá
Estados Unidos da América, que que é cada vez mais difícil a realidade ocupar o próximo lugar nos Sete ou,
acabou por vencer, disse que “podia não imitar a ficção. O ódio está nos no mínimo, no mundo do espetáculo.
dar um tiro a alguém e que não píncaros, a raiva serve-se a escaldar. A violência explícita e o humor
perdia votos”. Faz mais de um ano Uma geração inteira com medo de não pervertido não saíram do guião, mas
que Homelander — da série “The ter planeta que grita com a geração a adolescência das novas personagens
Boys”, o super-herói que se tornou anterior. Ainda não é sabida a data de trouxe demasiado sentimentalismo.
um dos melhores vilões alguma vez estreia da 4ª temporada desta sátira Como se os “Morangos com Açúcar”
criados em televisão, matou, em praça aos franchises de super-heróis que se fossem escritos pelo Charles Bukowski,
pública, um protestante que atirou tornou uma série de culto, baseada com marionetas e pénis a rebentar à
uma lata contra o seu filho, no último nos comics com o mesmo título, da mistura. O idealismo dos jovens, que
episódio da terceira temporada. Tanto Amazon Prime. A sátira tornou-se ainda não sabem de que lado querem
Coordenação João Miguel Salvador Trump como Homelander acabaram norma, como mandam as práticas da estar, é estranho para quem ficou fã da
jmsalvador@expresso.impresa.pt ovacionados pelos seus fãs. Marvel e da DC, e, por isso, esta sexta- brutalidade da série original. No fundo,
Estamos em 2023 e o mundo está feira estreou-se “Gen V”, spin-off se “The Boys” não existisse, “Gen V”
podia muito bem ser um falhanço.
Afinal, já todos sabíamos que estes
humanos com poder extraordinário

Geração
eram “criados em laboratório”
através da injeção do “Composto
V” e é esse o segredo que o grupo
principal procura: Marie Moreau
(Jaz Sinclair), órfã que matou os pais
com a sua potente manipulação de
sangue, Jordan Li (London Thor e

à rasca
Derek Luh), homem que muda para
mulher e vice-versa de uma força
de 30 planetas, Andre Anderson
(Chance Perdomo), que manipula
matéria e é manipulado pelo pai,
ex-super-herói, ou Cate Dunlap
(Maddie Philips), com mãos que

A grotesca e divertida sátira London Thor no papel


de Jordan Li — homem
aos super-heróis da Prime Video que muda para mulher
e vice-versa —,
ganhou um spin-off antes da que partilha com o
ator Derek Luh
chegada da quarta temporada
de “The Boys”. Os ingredientes
do sucesso continuam todos lá,
mas o sentimentalismo da
adolescência faz desta cópia
um original muito barato
TEXTO JOSÉ PAIVA CAPUCHO
BROOKE PALMER/PRIME VIDEO

GEN V
De Evan Goldberg, Eric Kripke,
Craig Rosenberg
Com Patrick Schwarzenegger,
Jaz Sinclair, Lizze Broadway,
Chance Perdomo
Prime Video, em streaming
(Temporada 1)

E 56
23/24

O idealismo dos outra história. A frenética colega

jovens é estranho de quarto Marie consegue mudar OUTUBRO /OCTOBER


de tamanho, fruto de um aparente
para quem ficou fã distúrbio alimentar. Quanto mais
vomita, mais pequena fica, poder
da brutalidade da que usa para se tornar viral ou ser
série original. Se
FIMP
usada por homens com problemas de
tamanho de pénis. O bullying que sofre
“The Boys” não só é ultrapassado quando descobre

existisse, “Gen V” que pode ficar gigante, tornando-se


na alma da festa. Sátira no ponto sobre Festival Internacional de
podia muito bem um problema que afeta milhares de
jovens pelo mundo inteiro. Confessa- Marionetas do Porto
ser um falhanço se “louca”, razão para se apaixonar
por Sam, o irmão em cativeiro de
Golden Boy, virgem, que ouve e vê
mudam mentes — literalmente. Os marionetas e parte braços como quem
alunos desta universidade podem quebra uma bolacha ao meio. O par é
tirar um curso de crime ou de artes, doce e cómico, deixando o espectador
ouvir palestras de outras glórias sempre à espera, como “The Boys”
ou fazer pistas de gelo no meio do nos ensinou, que algo de terrivelmente
corredor — “somos super-heróis, gráfico e violento aconteça.
podemos tudo” —, mas este grupo só Ainda que a diretora Indira seja
quer a verdade e toda a verdade. A a vilã de serviço, nunca chega
corrupção e a maldade ainda não os aos calcanhares de outros. Nem
atingiu, que pena. A pressão de entrar Cate, apanhada a manipular o
para o ranking dos melhores, qual namorado morto e os amigos, é
quadro de honra baseado sobretudo verdadeiramente má. Nem Rufus
nas redes sociais, até atrapalha, mas (Alexander Calvert), um pervertido
o que se passa nas catacumbas da telepata, duas condições para criar
universidade (A Floresta) interessa pânico e ódio, mete medo ao susto.
muito mais. Tudo porque o Golden O assustadoramente divertido é ver
Boy (Patrick Schwarzenegger), atleta o seu pénis inchado a rebentar. Não
topo de gama envolto em chamas, é a adolescência o lugar primário
o próximo escolhido dos Sete e o da violência? Sim, ficou na gaveta.
mais promissor aluno de Godolkin, “Gen V” acaba por falhar também aí,
resolveu suicidar-se nos céus. Sem segura-se ao tentar copiar o original.
antes anunciar que o seu irmão, Sam, Basta olhar para Tek Knight (Derek
ainda mais poderoso e um psicopata Wilson) que entra a meio para filmar
fofinho em construção, que teria tido um episódio do seu programa de
o mesmo destino, estava afinal bem crime, “The Whole Truth”. Ex-aluno,
vivo e preso na Floresta. convencido, arrogante, detetor de
Se em “The Boys” os humanos mentiras sobre-humano, personagem
chefiados por Billy Butcher (Karl impecável para todos os que veem na
Urban) querem acabar com a exploração da desgraça alheia uma
multimilionária empresa e criadora forma de viver nas notícias. Dura
de super-heróis Vought, em “Gen pouco mais de um episódio, acaba
V”, a humana Indira Shetty (Shelley
Conn), diretora da universidade, quer
acabar com a Vought e os seus pupilos
desmascarado por Indira, com um
vídeo do apresentador a penetrar
vários objetos e produtos, de donuts a Make Trouble
todo-poderosos. A invencibilidade
encontrou finalmente um antídoto:
crânios de cadáveres. Poucochinho.
No fim, “Gen V” termina a dar
silentparty
um vírus que os infeta em exclusivo. força a uma das personagens vitais Ana Renata Polónia
A vingança fria depois de Homelander
matar o marido e a filha, ao deixar um
da 4ª temporada de “The Boys”:
senadora Victoria Neuman (Claudia
Magda Szpecht /ÆFEKT
avião à pinha de pessoas cair. Doumit), agora candidata à vice-
Como a narrativa já é praticamente presidência dos EUA. Sabe-se que tem
conhecida, dando pistas para o que o “composto V” nas veias e partilha
será a 4ª temporada de “The Boys”, a mesma história de Marie: matou
o spin-off perde também tempo a os pais e consegue rebentar cabeças. Cyber Elf é apoiado por / is supported by

brincar com os estereótipos de jovens E que além de um lugar na Casa


de agora. Jordan Li, por exemplo, Branca quase no papo, pode fazer
poderá representar as pessoas não o que quiser com o vírus que mata
binárias, mas nada mais do que isso já os da sua espécie. Um spin-off para
que a secura que a sua personalidade encher a barriga de misérias, mas o Mecenas da programação de dança / Dance programme sponsor
provoca faz abrir a boca de sede. Tem que queremos mesmo é o Homelander
pouca ou nenhuma profundidade. de volta. Não há geração V que valha
Emma Meyer (Lizze Broadway) é tanto como a dele. b
Coordenação Luís Guerra
lguerra@blitz.impresa.pt

Aos 33 anos, Salvador


Sobral acaba de lançar
“Timbre”, o seu quarto
álbum, no qual assina a
maioria das canções

A sorte de
ADOLFO BUENO E CORINA CLAMENS
sentir paixão
Ao quarto álbum, Salvador Sobral, uma das vozes mais singulares da
sua geração, continua a aperfeiçoar a veia de compositor, e a prestar
homenagem aos artistas e continentes que o inspiram
TEXTO LIA PEREIRA

“U
m disco mais luminoso e nas lojas e no streaming. O resultado À exceção de ‘Se Quando Tu Vieres’,
solar, alegre e celebratório. continua a ‘denunciar’ as suas escrita pela sua irmã, Luísa Sobral,
Quem sabe até tropical” — as influências, mais próximas do jazz e de ‘Les Eaux qui me Gardent’, da
palavras são de Salvador Sobral, e e da world music do que da pop sua mulher, Jenna Thiam, todas as
referem-se aos planos que, depois que diz ter aprendido a apreciar, canções têm a assinatura de Aldrey
do álbum “bpm”, desenhou para o mas contempla vários momentos & Sobral. A dupla conheceu-se em
novo “Timbre”. Descontente com de uma maior leveza, que poderão 2010, quando o português estudava
o que lhe pareceu ser a densidade levar à concretização de um dos na Escola de Jazz de Barcelona, e
excessiva do trabalho de 2021, sonhos do autor: “Sinto que o disco desde então tem aperfeiçoado uma
voltou a reunir-se com Leo Aldrey, é menos denso, e quem sabe se não parceria de composição nem sempre
seu amigo e companheiro de tem canções que as pessoas possam pacífica. “Conhecemo-nos numa
composição, e escreveu a maioria bailar. Eu gostava muito que as jam session de jazz e pouco depois
das canções que acabam de pousar pessoas dançassem.” começámos a compor juntos”,

E 58
explica Salvador Sobral numa e a mexicana Silvana Estrada, numa

E ainda...
videochamada a partir de Paris, homenagem à catalã Silvia Pérez
onde reside. “Ao mesmo tempo, Cruz, a quem chama “a mãe de
fomos criando uma amizade que todas as vozes” (‘De La Mano De
hoje é uma irmandade. Eu costumo Tu Voz’). “Mal cheguei a Barcelona,
dizer que o Leo é o meu irmão de foi muito mais rápida a minha
Caracas.” Como na maioria das relação com os latino-americanos
relações fraternais, porém, as do que com os catalães. Sendo um
QQQQQ
‘turras’ são frequentes. “Ao início, pouco esotérico, talvez noutra vida CLOSE TO YOU
chocávamos muito. Nós somos tenha sido chileno ou paraguaio, Maria João & Carlos Bica Quartet THE NATIONAL
[como] um casal”, ilustra. “Tenho porque gosto de tudo na cultura JACC Records Campo Pequeno, Lisboa,
mais disputas com ele do que com hispano-americana e sinto-me hoje e amanhã, 20h30
a Jenna. Mas fomos aprendendo a muito próximo deles, tanto na A escuta de música nas plataformas A semanas do regresso a Portugal
respeitar mais o espaço de cada um, música como na gastronomia.” de streaming quase tornou obsoleto o com a digressão de “First Two Pages
e com isso a admiração [mútua] A francesa Barbara Pravi, que ato de ir acompanhando essa escuta of Frankenstein”, álbum editado
também cresce”, diz, dando um em 2021 representou a França na com a leitura das fichas técnicas dos em abril, os norte-americanos The
exemplo do seu método de escrita Eurovisão, completa o elenco de discos. E a verdade é que a informa- National surpreenderam tudo e
com o venezuelano. “Às vezes ele vozes convidadas de “Timbre”. ção que se descobre impressa nas todos com “Laugh Track”, uma nova
propõe uma ideia que eu tenho “Senti que ela era um alien no meio edições físicas pode ser tremenda- coleção de canções. O que isto
a certeza que não vai funcionar. daquilo”, conta. “Canta de forma mente reveladora. Tome-se o caso do significa é que, para lá de clássicos
Respiro fundo, mas ele diz: ‘Não muito visceral e a canção era muito novíssimo álbum que volta a cruzar, como ‘Fake Empire’ ou ‘Mr. Novem-
podemos abortar nenhuma ideia breliana, então [conquistou-me]. volvidas três décadas, os caminhos de ber’, o coletivo traz consigo muito
até termos experimentado.’ Então Senti que a entrega dela era muito dois símbolos maiores do jazz nacional material novo para estrear.
experimentamos, e efetivamente honesta, e pensei: ‘Uau, é o meu — os da cantora Maria João e do con-
às vezes digo: ‘Ah, tem razão, o par na Eurovisão!’” Depois de trabaixista Carlos Bica. Pode dessa
sacana!’ E o contrário também algumas mensagens, a colaboração forma descobrir-se que o material aí
acontece: na ‘Traição Agradecida’ em ‘Les Eaux qui me Gardent’ foi reunido se gravou em vários pal-
[do novo álbum], no final da precipitada pelo acaso: “Ela é minha cos — dos festivais de jazz de Sintra,
canção eu quis dar uma ideia de vizinha aqui em Paris, mas nem Badajoz, Canárias e Sevilha e ainda no
liberação total, de se abrir uma sabíamos. Encontrou a minha sogra Pátio do Palácio da Galeria, em Tavira.
janela. Então pensei subir meio no cabeleireiro, e disse-lhe: ‘Sou Música registada em palco por pes-
tom, o que é forçado. E o Leo disse: superfã do português que ganhou soas em sintonia absoluta. Música cri-
‘Isso vai soar estranhíssimo.’ Mas em 2017, o Salvador!’ E a minha ada em intensa partilha com aplausos
experimentámos e ficou bem, tem sogra disse-lhe: ‘Ele é meu genro!’” a recompensarem a entrega coletiva.
essa sensação de liberdade.” Numa das canções mais curiosas Música viva, portanto. Maria João
Apesar desse e de outros belos de “Timbre”, porém, encontramos explica: “Este reencontro começou
momentos de “Timbre”, Salvador apenas a voz de Salvador Sobral, e depois de o Carlos ir ver um concerto
RICARDO TOSCANO TRIO
Sobral continua a mostrar alguma a da sua consciência. Em ‘Porque Culturgest, Lisboa, quinta, 21h
meu no Hot Clube. Numa conver-
insegurança em relação às suas Canto’ deixa o manifesto: “Tenho sa de amigos, tentámos chegar ao “Chasing Contradictions” foi um dos
capacidades enquanto escritor no canto a vida/ E na morte a que pensamos ser aquilo que seria álbuns nacionais mais elogiados de
de canções. “Estou longe de ser inspiração/ Tenho a vida no canto/ a música que faríamos juntos, neste 2022 e o trio de Ricardo Toscano
um compositor equivalente ao E a sorte de sentir paixão.” A letra momento.” E como o adágio garante leva-o agora ao auditório da Cultur-
cantor que sou”, confessa. “Ainda é uma espécie de lembrete, diz: que dar dois passos atrás é sempre gest. No dia anterior, o saxofonista
falta muito. Mas é um músculo “Tenho colegas que invejam este boa estratégia para chamar o futuro, junta-se às celebrações dos 30
que se vai exercitando, e sinto meu lado de ainda guardar uma a dupla decidiu ir buscar repertório à anos do centro cultural lisboeta
que estas canções são melhores. paixão genuína pela música, que é história. Escutam-se espíritos pre- debruçando-se sobre o projeto
Também escrevi mais canções fácil perder quando trabalhas nesta sentes e ausentes de Joni Mitchell, da “Charlie Parker with Strings”.
autobiográficas, sobre a minha vida indústria. Talvez o ‘Porque Canto’ dupla Lennon & McCartney, de Burt
e os meus sentimentos. O [“bpm”] seja escrito para não me esquecer. Bacharach e Hal David, de John Len-
tinha mais canções em que eu me Porque é que eu canto? Não é pelos non e Yoko Ono, de Louis Armstrong.
refugiava em personagens, porque prémios ou pelas visualizações, E ainda peças de Bica e Maria João.
MARCO BORGGREVE

não sabia falar sobre mim mesmo.” canto por isto. É a verdadeira “Close to You” é também feliz en-
Autora de ‘Se Quando Vieres’, a essência.” b contro de gerações, já que os líderes
irmã Luísa Sobral, voz convidada, lipereira@blitz.impresa.pt chamaram para a sua beira o pianista
também, de ‘A Distância Não É João Farinha e os guitarristas Gonçalo
Lugar’, traz uma mestria na escrita Neto e André Santos. Juntos, os cinco
que Salvador venera. “Tenho de artistas criaram música de delicada
ter sempre uma canção dela, pelo sofisticação, de funda força espiritual, ELISABETH LEONSKAJA
menos, para me sentir confortável. capaz de transformar um standard Gulbenkian, Lisboa, segunda, 20h
Mas também é a primeira vez que como ‘Norwegian Wood’ em mágica Elisabeth Leonskaja é uma das pia-
ela canta uma canção minha, e isso matéria diáfana que nos envolve e faz nistas mais celebradas da atualidade
é tudo menos confortável. Quando sonhar com filmes que não existem e regressa agora a Portugal para
me apercebi disso, em estúdio, ainda. E depois reduzir ao essencial apresentar as três sonatas para pia-
comecei logo com autossabotagem: a maravilhosa ‘What a Wonderful no de Johannes Brahms, compositor
‘A canção é péssima, desculpa!’” QQQQ World’, com as cordas de Bica e Maria alemão com cuja obra desenvolveu
Cantado em três línguas, “Timbre” TIMBRE João em diálogo tão delicado que uma grande proximidade desde que
inclui também duetos com o Salvador Sobral comove. fixou residência em Viena no final da
uruguaio Jorge Drexler (‘Al Llegar’) Warner / RUI MIGUEL ABREU década de 1970.

E 59
encontro que marca também 20 anos subsariana como pode nomear uma
da sua carreira como coreógrafo. linguagem própria que sobreviveu à
No início, a peça não tinha nome. imposição das línguas europeias, um
O projeto resultou do convite feito a mecanismo identitário, um signo que
Victor Hugo Pontes pelos Estúdios permaneceu vedado ao colonizador.
Victor Córdon e o Instituto Camões, E é também símbolo de lugar de
em Maputo, para criar um espetáculo origem, no sentido de que muitas
com intérpretes moçambicanos e das danças tradicionais, como
portugueses e/ou europeus. O nome as conhecemos agora difundidas
de código era “Moçambique”. O que por todo o mundo, nasceram na
daí resultaria estava em aberto. cultura Bantu. Mas vamos sempre
Para iniciar a criação, com tudo parar à ideia de encontro. Para
ainda por descobrir, Victor quis ir Victor Hugo, “Bantu” significa o
a Maputo conhecer os intérpretes e encontro entre culturas, neste caso
Coordenação Cristina Margato fazer audição. Foi assim que escolheu a cultura portuguesa, europeia, com
cmargato@expresso.impresa.pt três bailarinos que agora constam a moçambicana, através daquelas
do elenco da peça, que acabou pessoas e corpos em particular —
por ficar com sete intérpretes. O Dinis Abudo Quilavei, Dinis Duarte,
princípio inspirador foi a ideia de João Costa, José Jalane, Maria Emília
encontro entre estas pessoas, que Ferreira, Marta Cardoso e Osvaldo
trazem culturas e corporalidades Passirivo.
distintas. Por isso, não sendo esta Ao longo da peça misturam-se
uma peça de celebração dos 20 os códigos, as imagens vindas
anos da carreira de coreógrafo de de vivências muito distintas e as
Victor Hugo Pontes, é uma obra que linguagens físicas. A inspiração parte
assinala a data e é coerente com uma da dança europeia, mas também de
tipologia de questões e pesquisas danças tradicionais africanas. Há
que o coreógrafo tem vindo a momentos em que essa partilha é
desenvolver, como disse ao Expresso: mostrada quase lado a lado, entre
“Sinto que tenho vindo a alargar corpos com culturas distintas
o meu mundo nos últimos anos, a dançar uma técnica que lhe é
nos encontros que tenho feito com estranha. Faz parte do diálogo. Fez
pessoas diferentes. Tenho trabalhado parte também do processo criativo,
com as margens, convocando para em que os bailarinos partilharam
o centro e dando lugar de fala a os seus ritmos, as suas danças, as
pessoas que normalmente não têm suas histórias. Aos poucos todos
esse lugar.” A nova peça dialoga com esses materiais e vivências se
esta fase do percurso do coreógrafo. foram misturando, ganhando uma
“Meio no Meio” (2021), criado em identidade própria, constituída por
parceria com a Artemrede e Partis elementos vindos de Moçambique
— Fundação Calouste Gulbenkian, ou de Portugal mas que já são outra
incluía intérpretes profissionais coisa, estão num lugar diferente. São
mas principalmente amadores uma nova comunidade, feita da fusão
TUNA/TNSJ

(alguns revelaram aqui o seu talento e mistura de todos esses elementos


para a dança) de várias gerações, que anteriormente os compunham
provenientes de Almada, Barreiro, como culturas diferenciadas.

Alargar mundos
Lisboa e Moita. Nessa peça, era forte Não há um tempo predefinido em
a presença de afrodescendentes. que tudo se passa. Não é certamente
Em “Corpo Clandestino” (2022) no presente. É algures num
trabalhou com corpos não passado ou num futuro. É algures
normativos. para aí que os bailarinos lançam
“De certa forma, acho que há um o olhar no horizonte. Victor Hugo
Moçambique e Portugal encontram-se ir para voltar”, diz Victor Hugo. questionou como ia tratar a História,
na dança de Victor Hugo Pontes “Há um alargar este meu universo
nesta viagem de encontro com
o colonialismo. Concluiu que não há
maneira de essa história da violência
TEXTO CLAUDIA GALHÓS outras pessoas, que agora passa não estar lá, mais não seja porque
por convocar bailarinos de outra está marcada na pele dos bailarinos
realidade e outra cultura para moçambicanos. Mas o coreógrafo

O
que seria, ou poderá ter sido partilharem uma mesma peça. Estou queria que este encontro falasse
num tempo muito antigo, neste processo de alargamento do da possibilidade de podermos ser
uma comunidade onde a mundo, ou do meu mundo, que diferentes enquanto sociedade,
diferença fosse a riqueza e a matéria cada vez é maior. Sinto que neste enquanto comunidade. Por isso, o
inspiradora da língua falada, da dança espetáculo o passo que dou é maior.” foco está na interrogação da riqueza
dos corpos, das brincadeiras e dos Na volta de Moçambique, traz o que a diversidade cria quando
BANTU jogos? Em “Bantu” esta utopia ganha nome do espetáculo. “Bantu” está partilha e troca entre si as suas
De Victor Hugo Pontes vida. Victor Hugo Pontes celebra na carregado de significados. Explica o histórias e as suas diferenças. Esse é o
Teatro Nacional São João, Porto, dança o encontro entre bailarinos coreógrafo que tanto designa uma mundo novo que se vive em “Bantu”.
até domingo moçambicanos e portugueses. Um família de línguas faladas na África Uma utopia concretizada em cena. b

E 60
E ainda...

A MINA / TRIBUNAL MINA


SOFIA BERBERAN

De Hotel Europa
Culturgest, Lisboa, até domingo
O Hotel Europa prossegue o
caminho de pesquisa teatral que
encontra, documenta e confronta o
FESTIVAL MATERIAIS DIVERSOS passado. Desta vez, apresenta dois 2 110 95 1998 1 1 B

Vários locais, Alcanena e Minde, até dia 15 espetáculos — “A Mina” e “Tribunal


Mina” — que abordam o caso da vila
“Práticas de companheirismo”; “crença mineira de São Pedro da Cova (cuja
nas comunidades de afeto, que se mina foi desativada em 1970).
formam lentas, que escasseiam e que
desejamos perenes”. É a um festival
de artes performativas que estas
citações se referem. As palavras são
de Elizabete Paiva, diretora artística
do Festival Materiais Diversos, iniciado
em 2009 por Tiago Guedes. Este ano
acontece na primeira quinzena de
outubro, fazendo conviver espetáculos
com seminários, visitas orientadas, FIMP’23 — FESTIVAL
ações ambientais e piqueniques,
INTERNACIONAL DE
MARIONETAS DO PORTO
entre outras propostas, ocupando um
Vários locais, Porto e Matosinhos,
território atravessado pelo Parque
até dia 15
Natural das Serras de Aire e Candeeiros
e tem em Alcanena e Minde os seus “Memória, imagem e manipulação”
polos urbanos. Nestes quase 15 anos, o é o tema da 34 edição do Fimp, Apartamentos, Arrendamento, M x
Festival Materiais Diversos tem vindo que arranca com a estreia absoluta
!"#$%"&$''(#)(!#*#+&#(,"-
a reformular a sua identidade a partir da icónica companhia Teatro
de um constante questionamento. de Marionetas do Porto, com
Este ano o foco está em fazer “emergir “Armazém 88” (na foto, hoje e
o trabalho muitas vezes invisível de amanhã, Teatro Rivoli), assinalando
relações, acompanhamento e apoio à o 35º aniversário da companhia
criação”. É deste pensamento e deste fundada por João Paulo Seara ENCONTRE RAPIDAMENTE
tempo mais dilatado que extravasa Cardoso.
além da duração do festival que agora TUDO O QUE LHE ENCHE AS MEDIDAS
se apresenta “KdeiraZ”, de Natália
Mendonça, espetáculo para crianças
(hoje e amanhã, Largo da Igreja,
Minde); a performance-instalação “Las
Lámparas”, de Leticia Scrycky (amanhã,
Cineteatro São Pedro, Alcanena),
JAIME MACHA

que desafia os sentidos a trocarem de


lugar, ou seja, interrogar se os ouvidos
veem ou se os olhos ouvem; propõem
também um seminário sob o título Faça a sua simulação
ENSAIO TÉCNICO
“Companheirismo e Colaboração.
De Mickaël de Oliveira
e conheça as soluções de Crédito Habitação BPI
Práticas Artísticas e Sustentabilidade”,
Espaço Oficina, Guimarães,
com Carolina Cifras, Clara Antunes
hoje e amanhã
e Simone Frangi (11 a 13, Centro

+ + + polígonos
de Ciência Viva do Alviela). Dos “Ensaio Técnico” é a mais recente Estime o valor Guarde a documentação Pesquisa por
espetáculos de dança contemporânea, criação do Teatro Oficina. Com do seu imóvel da sua casa e do recheio simultâneos
destaque para “Boca Fala Tropa”, texto e encenação de Mickaël de
de Gio Lourenço (na foto, dia 13, Oliveira, que conta a história de uma
Cineteatro São Pedro, Alcanena), “La experiência única vivida por um
Burla”, de Bibi Dória e Bruno Brandolino grupo de jovens portugueses num
(dia 14, Ginásio da EB2, Minde), ou “A curso de performance na Áustria e o
Besta, as Luas”, de Elizabete Francisca rescaldo do acontecimento depois
QUEM COMPRA E QUEM VENDE,
(dia 15, Polje Mira, Minde). / C.G. de regressados ao país.
NA MESMA PÁGINA.
A grande beleza
As obras do mestre neoclássico italiano Canova ganham
uma nova perspetiva no olhar do fotógrafo Mimmo Jodice
TEXTO ANA SOROMENHO

A
ntonio Canova foi, ainda é, por Canova, que o fotógrafo Mimmo Borghese, em Roma —, onde se
e@expresso.impresa.pt o mais consagrado artista Jodice quis captar. encontram as obras-primas do mestre
europeu neoclássico. Viveu Jodice, napolitano, hoje com 89 neoclássico, realizou um trabalho
entre 1757 e 1822 e foi bastante anos, também ele referência em fotográfico que tem por título “Jodice
prolífero na produção de uma vasta Itália no campo da fotografia — Canova” e pode ser visto na sala
obra que influenciou todos os artistas enquanto arte — trabalhou com de exposições temporárias do Museu
da sua geração. Trabalhou o desenho Andy Warhol, Rauschenberg e Joseph Nacional de Arte Antiga (MNAA).
e a arquitetura, mas foi na escultura Beuys, participando nalguns dos Ao longo de um percurso
que o veneziano Canova se consagrou. movimentos mais importantes da expositivo, formal, que percorre
Perseguia a ideia de conseguir segunda metade do século XX, como cronologicamente os principais
tocar através da arte na beleza a pop art, arte povera, ou no coletivo momentos criativos de Antonio
universal. Nesta matriz, a mesma internacional e libertário Fluxus —, Canova, as 51 imagens a preto e
que fora perseguida pelos artistas iniciou em meados da década de 90 branco de Jodice atraem o olhar como
da Antiguidade Clássica, lavrou a do século XX um minucioso trabalho se estivessem encerradas em caixas
pedra a partir dos cânones e dos de pesquisa sobre o mais clássico dos de luz. Partindo de 17 esculturas
temas da Grécia e da Roma antigas. artistas italianos. Nesta demanda, consideradas obras-primas de
Foi essa emanação, essa partícula que o levou aos principais museus Antonio Canova, entre elas o “Beijo
da beleza pura, intemporal, que não do mundo — o Louvre, em Paris, de Eros e Psique”, “Orfeu e Eurídice”
tem explicação traduzível senão pela o Hermitage, em São Petersburgo, ou “As Três Graças”, ex-líbris entre
emoção que exala na pedra esculpida o Museu do Vaticano, ou a Galeria todas, Mimmo Jodice uniformizou
o conjunto sobre um fundo escuro
“Eros e Psique”, de 1787, como se tivessem sido fotografadas
um dos ex-líbris de em estúdio, conduzindo assim o
Canova, eternizada como olhar do visitante. Servindo-se
“O Beijo”, cujo original se da iluminação como matéria de
encontra no Louvre modelação, o fotógrafo propõe-se
fazer um exercício de interpretação
da pedra esculpida por Canova,
focando e destacando detalhes
quase impossíveis de ver quando
as peças são olhadas dentro dos
espaços museológicos onde se
encontram. Cada escultura torna-se
então protagonista, precisamente
através deste magistral trabalho de
iluminação, onde a matéria inerte
parece ganhar vida. São os rostos,
os torsos, os detalhes das mãos, os
drapeados ou as texturas dos tecidos, a
união dos corpos num abraço ou num
beijo, que, isolados em imagens, nos
dão vislumbres e novas perspetivas
sobre as famosas esculturas. É nestes
detalhes, revelados para apontar a
perfeição com que Canova modelava
a pedra, que a ideia da beleza pura se
atravessa. E assim, ao apropriar-se da
criação de Canova, Jodice retoma um
caminho clássico, como se o passado
se entrelaçasse no presente, fundindo
MIMMO JODICE

JODICE — CANOVA na sua obra escultura e fotografia


Mimmo Jodice numa mesma matéria plástica,
Museu Nacional de Arte Antiga, intemporal. b
Lisboa, até dia 29 asoromenho@expresso.impresa.pt

E 62
FRACO CONSOLO

Michael Gambon
(1940-2023), actor
irlandês célebre em
todo o mundo por
interpretar Dumbledore
na saga “Harry Potter”

O MEU
MICHAEL

GETTY IMAGES
GAMBON

E
MUITOS ACTORES CONSEGUEM FACILMENTE VÁRIOS DESTES
REGISTOS, MAS OS RESPONSÁVEIS POR “O DETECTIVE CANTOR”
SÓ SE LEMBRARAM DE UM QUE FOSSE CAPAZ DE OS FAZER TODOS BEM
ra adolescente quando “O Detective tão arisco e frágil, Krapp, impressionante a maneira como reage às coisas
Cantor” passou na TV. E lá em casa entrou antigas ditas por uma voz antiga, que é a sua, e pergunta como é que
logo no cânone catódico, mesmo com ‘aquele’ é ele, é ‘eu’, um palerma já velho aos 39 anos recordado por um
aquele tom desagradável e aquele Job palerma ainda mais velho. Decide gravar uma fita nova para acrescentar
amarrado a uma cama de hospital com coisas, comentar, protestar, emendar, mas percebe que verdadeiramente
psoríase artropática. não há mais nada a dizer. Estava tudo dito aos 39.”
Desfigurado pela doença, internado, Gambon era extraordinário em “A Última Gravação de Krapp”. Como
imóvel, o protagonista, o chandleresco escreveu o crítico Michael Billington, ele podia ser bruto e astucioso, não
Philip Marlow, reescreve na cabeça as havia matizes e ambiguidades que lhe fossem inacessíveis, tinha “peso,
suas histórias policiais, interage com presença, autoridade”, “poder físico e delicadeza emocional”, e voz
quem o rodeia e tem alucinações com também. Fez várias vezes, entre os dramaturgos que mais me interessam,
canções populares, quase todas, por contraste, nostálgicas, inocentes ou Beckett e Pinter. E no cinema não me esqueço do seu mafioso plebeu,
sentimentais. Muitas características de Marlow são as do argumentista da pomposo e atroz em “O Cozinheiro, o Ladrão, a Sua Mulher e o Amante
série, Dennis Potter, das maleitas físicas à fixação na infância, do trauma Dela”, que esvaziou metade da sala numa sessão no Quarteto e deixou a
sexual à ambiguidade quanto à cultura de massas. Além de testar os outra metade rendida.
limites da autobiografia, Potter quis contrariar o sentido de “orientação” Numa crítica sobre o espectáculo londrino de 2010, encontro a descrição
que as pessoas procuram na ficção, deixando que o espectador ficasse das coisas tal qual me lembro delas: Gambon em palco “como o último
tão desorientado como a personagem principal. E para isso usou uma homem à face da terra”, “rosto triste de palhaço e mãos como garras”,
complexa estrutura narrativa, saltos no tempo, cenas imaginadas, gasto, sujo, empoeirado, “acabado ainda antes de ter começado”, dizendo
coreografias, cançonetas como madalenas de Proust. “bobiiiiina” como se fosse a mais divertida das palavras, interrompendo a
De certo modo, Marlow foi o antecessor dos “homens difíceis” que uns voz da juventude, corrigindo a voz da juventude, mostrando, diz a crítica,
anos depois dominaram a boa ficção televisiva, mas era ainda mais que até um lamento se degrada com o tempo. b
problemático, literalmente em carne viva, frustrado, cínico, zangado, pedromexia@gmail.com
desbragado, misantropo, pessimista, e poético, divertido, tocante. Muitos
actores conseguem facilmente vários destes registos, mas os responsáveis Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia
da série só se lembraram de um que fosse capaz de os fazer todos bem:
Michael Gambon (1940-2023). Naquele estado de inércia e escarificação,
em sofrimento constante, Marlow era um desesperado que gerava empatia,
ainda que não simpatia, com o seu escapismo, a capacidade de confundir
o vivido com o inventado, a música dos anos 1940 com o film noir e as
humilhações pessoais. Lembro-me, uns anos depois, de comprar o CD
com a banda sonora, que tinha ‘After You’ve Gone’, cantada por Al Jolson,
e outra, meio fantasmagórica, intitulada ‘Dry Bones’. Lembro-me, na
juventude, de chamar “singing” à minha gabardina cinzenta. Lembro-me
de que Marlow falava de “muitas pistas e nenhuma solução”. Lembro-me
que “revolvia tudo, isso tudo, na sua pobre cabeça”, como em Beckett.
E lembro-me de ver Michael Gambon em palco no meu Beckett favorito,
/ PEDRO
pouco antes de fazer 38 anos, quase tantos como o jovem Krapp numa das MEXIA
gravações. Escrevi na altura: “Comovi-me, é claro, com aquele homem
isolado, desleixado, destreinado, maniento, impaciente, aquele velho que
vive numa terra de ninguém rodeado de memórias gravadas em bobinas. É

E 64
vícios
“PESSOAS SEM VÍCIOS TÊM POUCAS VIRTUDES”

O fruto
do pecado
O termo iPhone chegou a ser usado para definir telemóvel
com ecrã tátil, mas o mercado evoluiu e fez dele apenas um
‘smartphone’ entre os demais. Agora voltou a brilhar: o
iPhone 15 chegou com a missão de destronar a concorrência
TEXTOS HUGO SÉNECA

E 65
Numa altura em que “a qualidade de fotos e vídeos
está no top 3 das funcionalidades mais valorizadas”,
como descreve Filipe Loureiro — responsável pela
Gestão de Produto da Samsung Portugal —, a Apple
também está em campo. Apresenta, na própria
campanha, imagens fotografadas pelo iPhone 15

À
entrada na segunda década do século co- específicas para a migração e tive de usar vários Os fãs da Apple sempre vestiram a camisola, e
meçaram a proliferar relatos de jornalistas truques”, admite. nem os iPhones defeituosos que exigiam capas para
que perderam mais de 3 mil contactos, fãs Diogo Gomes é investigador de telecomunica- se ligarem às redes, o preço mais elevado para apps
de jogos em lágrimas pelo desaparecimento do his- ções. O ofício facilitou o acesso a “truques” que iguais às dos Android, ou a impossibilidade de serem
tórico em vários títulos e utilizadores de qualquer a maioria dos trânsfugas não conhecia e justifica contactados diretamente pelos produtores dessas
hobby ou profissão que deixaram de aceder a certos uma certa queda para a mudança de ares: “Mu- apps abalou o sentimento de pertença. Mas há tan-
arquivos de fotos na internet — só porque muda- dei de iPhone para Android porque permitia de- tos desses fãs que é simplesmente irracional dizer
ram de iPhone para um telemóvel Android ou vi- senvolver várias apps facilmente e sem custos. Em que estão errados.
ce-versa. Diogo Gomes, professor da Universidade contrapartida, programar para iOS podia ter cus- “A Apple sempre esteve à frente no ecossiste-
de Aveiro, já o devia saber, e mesmo assim, tentou tos”, recorda. ma. Uma pessoa tira uma foto com o iPhone, e num
uma terceira vez. Despediu-se do OnePlus de todas Corria setembro de 2008 quando a Google inau- segundo fica disponível no iMac ou no iPad. O An-
as horas, e lá regressou a um iPhone. A ousadia não gura o Android. A iniciativa passou com alguma droid envolve muitas marcas e modelos e a expe-
tardou a produzir resultado. E tendo em conta que discrição, pois o mundo só queria saber do iPhone riência já não é tão refinada”, descreve Francisco
os iPhones já ameaçam a crónica liderança mundi- que descolou um ano antes das mãos de Steve Jobs,
al da Samsung seguramente que não é caso único. fundador e líder que estava de regresso à Apple de
“Já é muito fácil migrar tanto de Android para onde em tempos o escorraçaram, emprestando
iOS (sistema operativo do iPhone) como de iOS ares de profecia a um culto de marca sem parale- Os fãs da Apple
para Android. Há aplicações que facilitam essa mi-
gração. Nos primeiros dias ainda troquei os sítios e
lo no mundo.
Passados 15 anos, o Android tem 70% de quo-
sempre vestiram a
funcionalidades no iPhone, mas não houve nada ta de mercado — mas o iPhone 14 Pro Max chega camisola, apesar dos
que deixasse de fazer”, descreve. à segunda metade de 2023 como o telemóvel mais
Se fosse possível viajar no tempo, talvez até o vendido no mundo, revela a consultora IDC. No
problemas. Mas há
intrépido Diogo Gomes da atualidade tivesse di- segundo lugar há um Samsung (um A14, de média tantos desses fãs
ficuldade em convencer o mesmo Diogo Gomes gama), mas os restantes lugares do top 5 são da Ap-
que saltou de Android para iOS e de iOS para An- ple — com o principal destaque para o iPhone 13, de que é simplesmente
droid na década passada. A recordação pode ferir
os espíritos dos geeks mais sensíveis. “Na déca-
2021. O único concorrente direto à gama dos iPho-
nes surge já em oitavo lugar e dá pelo nome de S23
irracional dizer
da passada era complicado, não havia aplicações Ultra, da Samsung. que estão errados

E 66
Jerónimo, vice-presidente da IDC para o merca- TOPOS DE GAMA
do europeu.
O controlo férreo do ecossistema já se estende ao
processador e isso faz a diferença. “Os processadores IPHONE 15 com a Apple através de uma oferta que agrega
dos iPhones até podem operar com frequências mais Lançado em setembro com software e hardware, mas a gigante da internet
baixas, mas como estão divididos em vários núcle- destaque para uma porta USB-C, não deixou de desenvolver os seus processadores
os tendem a ser mais eficientes”, responde Diogo que foi imposta pela Comissão (Tensor G3). Entre as novidades que chegaram a
Gomes. Em contrapartida, o Android, que concorre Europeia. Mas este pode não tempo do fecho desta edição, destaque para o
com o iOS não pode ser apresentado como concor- ser o último braço de ferro na chip especializado em segurança, teleobjetiva de
rente por inteiro do iPhone, pois é apenas um siste- UE: Thierry Breton, comissário “cinco vezes”, filmes noturnos e até termómetro.
ma operativo. “O Android tem de correr em proces- europeu do Mercado Interno, O Pixel8 tem ecrã de 15,7 cm (6,2 polegadas); e o
sadores e ecrãs de várias marcas. É difícil que consiga já disse que pretende obrigar da Pixel8 Pro tem 17,1 cm (6,7 polegadas).
experiência tão uniforme como o iOS nos iPhones”, a Apple a abrir a loja de apps e Preço: a partir de €829.
acrescenta o investigador da Universidade de Aveiro. serviços digitais à concorrência. Francisco Jerónimo
Remetida ao passado está a expansão da “mar- recorda que 60% dos consumidores de iPhones 13T SERIES
ca da maçã” para segmentos mais baixos. Jerónimo têm dispositivos com mais de quatro anos, e a Ap- O 13T e o 13T
recorda que a Apple depressa desistiu dos iPhones ple, para fomentar a migração, terá apostado num Pro foram lança-
Mini e SE, e passou a apostar em recondicionados iPhone 15 que herda as características das versões dos com a mes-
e em segunda mão. Hoje, os iPhones já lideram nos Pro do iPhone 14. Os iPhone 15 surgem no mercado ma dimensão de
EUA, Reino Unido e mercados nórdicos, e Francisco com quatro modelos, divididos em dois tamanhos: ecrãs (17 cm ou
Jerónimo prevê que “a crescer assim, a Apple che- iPhone 15 e iPhone 15 Pro têm ecrãs de 15,4 cm (6,1 6,67 polegadas)
gue a líder mundial em um ou dois anos”, superan- polegadas); enquanto iPhone 15 Plus e iPhone 15 e a missão de
do “os quatro pontos percentuais” que a separam Pro Max têm ecrãs de 17,01 cm (6,7 polegadas). Os renovar a pre-
da Samsung. Pro têm estruturas de titânio, estreiam o processa- sença da Xiaomi na segunda metade do ano. Os
Em mercados como o português, que é muito dor A17 Pro, disponibilizam serviços de satélite de equipamentos revelam alterações de pormenor
sensível ao preço, a Apple destoa com um tercei- alta precisão e têm zoom ótico de cinco vezes. Na face à série 13, que é a referência da marca. Entre
ro lugar atrás de Xioami (2º) e Samsung (1º), mas retaguarda, o sensor principal das câmaras conta os atributos, é o preço que mais se destaca com
o responsável da IDC recorda que nos valores aci- com 48 MP. As versões Pro contam com câmara características diferenciadoras como o brilho
ma dos €750 os iPhones têm quotas que rondam os Lidar 3D. As versões standard têm o processador máximo de 2600 Nits e os 144 Hertz na atualiza-
70%, e deixam a concorrência fora de jogo acima A16 herdado do ano passado. ção de imagens. A parceria com a Leica traz be-
dos €1500. Preço: a partir €989 nefícios (a versão Pro filma a 10-bits e resoluções
Perante tamanho poderio, os concorrentes ten- 8K), mas é nas baterias de 5000 miliamperes
tam juntar o preço em conta a outros trunfos: “A GALAXY S23 hora (mAh) e nos carregadores de 67 watts ou
qualidade de fotos e vídeos está no top 3 das funci- Anunciada em feve- 120 watts (no Pro) que está o grande chamariz.
onalidades mais valorizadas”, descreve Filipe Lou- reiro, a família Galaxy Preço: a partir de €649,99,
reiro, responsável pela Gestão de Produto da Sam- S23, da Samsung, saiu sujeito a promoção inicial
sung Portugal, admitindo ainda que os consumido- para as lojas com uma
res querem desempenho mas não dispensam uma câmara que centra as MAGIC VS
bateria capaz de “durar obrigatoriamente um dia atenções ao gravar ví- E MAGIC5 PRO
inteiro”. deos noturnos (Nighto- O Magic5 Pro foi anun-
Foi precisamente devido à valorização das câma- grafy), com resoluções ciado em março com
ras que a Samsung refinou o sistema periscópico do que podem ir a 8K. O três memórias RAM
S23 Ultra, e enaltece as proteções de cibersegurança sensor principal vai de 50 MP na versão standard possíveis (8, 12 ou 16
e a certificação do Gabinete Nacional de Segurança. aos 200 MP da versão Ultra. S23, S23+ e S23 Ultra GB), mas apenas deverá
Na Xiaomi, o reforço da câmara evolui com a par- têm todos processadores de topo da Qualcomm, estar disponível em
ceria com a marca Leica, vídeos a 10-Bit e software mas distinguem-se pelos ecrãs de 15,5 cm (6,1 Portugal na versão de 12
de edição de imagens para topos de gama. No topo polegadas), 16,7 cm (6,6 polegadas) e 17,2 cm (6,8 GB. Conta com bateria de 5100 mAh e ecrã de
de tudo isso, há baterias de cinco miliamperes hora polegadas), respetivamente. Na versão Ultra é 17,2 cm (6,81 polegadas), além de um proces-
(mAh) com carregadores de 67 ou 120 Watts que possível ter 12 GB de RAM. A família S23 começa sador de topo da Qualcomm. As câmaras da reta-
prometem 100% de energia em 19 ou 40 minutos, nos €799,99. A Samsung também reserva um guarda têm sensor principal de 50 megapíxeis.
respetivamente.“Somos a marca que mais investe dispositivo para quem quer ser o maior do bairro: Preços a partir de: a partir de €870
no carregamento e nas baterias”, diz Tiago Flores, é dobrável e deve o nome Galaxy Z Fold5 a esse
diretor da Xiaomi Portugal. fator. Tanto dá para usar dobrado com um ecrã que RENO10
Na marca chinesa, o Android funciona como acede à maioria das apps, como faz de tablet ou PRO 5G
porta de entrada para o ecossistema tecnológico, PC quando se desdobra. O Reno10 Pro
que permite “falar para a TV e ativar um robô”. “O Preço: a partir de €1969,89 5G preten-
núcleo do sistema operativo dos nossos telemóveis é de manter a
Android, mas criamos a nossa própria experiência”, PIXEL8 Oppo no top
acrescenta o gestor. Em paralelo com o Android, 5 das marcas
O preço continua a ser uma “arma” quando se a Google marca presença mais vendidas
compara fichas técnicas que puxam por megapí- no mercado dos telemóveis em Portugal. A proteção não vai além do IP54,
xeis, megahertz ou gigabytes de RAM, mas deixam com a linha Pixel. Em 2023, que apenas protege contra o pó, mas distingue-
tamanho de sensores, arquitetura de processador ou é o duo Pixel8 e Pixel8 Pro -se pelas câmaras com quatro lentes da Sony
geração da memória RAM (LPDRR 5 é a mais avan- que se estreia — e com e sensor principal de 50 MP, e a memória RAM
çada) em plano discreto. Os fabricantes dizem que venda direta em Portugal, de 12 GB. Tem ecrã de 17,01 cm (6,7 polegadas)
“o que conta é a forma como tudo é integrado”, mas que dispensa a encomenda e bateria 4800 mAh, ainda a possibilidade de
fica sempre a ideia de que a decisão do consumidor a sites estrangeiros. Os especialistas duvidam carregar de forma acelerada a 80 watts.
ainda conta mais. b que a Google pretenda concorrer diretamente Preço: a partir de €649,99

E 67
R ECE I TA
POR JOÃO RODRIGUES
(PROJECTO MATÉRIA)

PRODUTOS
& PRODUTORES
Gamba
do Algarve
A gamba branca é um
crustáceo que apresenta
uma cor rosa pálida com tons
violeta na zona pélvica. É
capturada por arrasto a uma
profundidade entre 250 e
400 metros, maioritariamente
na costa algarvia e apenas
uma pequena parte na costa
vicentina. Por esta razão
é mais conhecida como
gamba do Algarve. É possível
consumi-la durante todo o
ano, exceto nos meses de
janeiro e outubro, uma vez
que é a altura do defeso desta
espécie e a pesca por arrasto
está proibida, de forma a
proteger a biodiversidade.
Tem um sabor a mar, doce,
com um toque de algas.
É muito versátil, podendo
consumir-se simplesmente
crua, cozida, frita ou até
grelhada. Pode adquirir
estas gambas através da
TIAGO MIRANDA

Nutrifresco, na sua loja online


— Peixe à Porta —, com
entregas ao domicílio em todo
o país.

Carpaccio de gambas PROJECTO MATÉRIA


É um projeto sem fins lucrativos,
desenvolvido pelo chefe
João Rodrigues, que pretende
Tempo de preparação 10 minutos | Tempo de confeção 5 minutos promover os produtores
nacionais com boas práticas
agrícolas e produção animal
em respeito pela natureza
INGREDIENTES Quando estiverem congeladas, retirar. VINAGRETE DE LIMÃO e meio ambiente, enquanto
200 g de gambas do Algarve / 1 dente de alho Com um cortante redondo grande Sumo de 1 limão / 1 colher de sopa de mostarda / elementos fundamentais
/ Cebolinho q.b. / Pimenta q.b. / Flor de sal q.b. cortar uma rodela de gambas e 1 gema de ovo / Azeite q.b. / Sal q.b. / Pimenta q.b. da cultura portuguesa.
/ Azeite q.b. reservar novamente no congelador até Numa tigela colocar a gema, a mostarda Ler mais em projectomateria.pt
Descascar as gambas, reservando as à hora de servir. e o sumo de limão. Temperar com sal e
cascas e as cabeças. Aquecer uma frigideira com azeite pimenta. Adicionar o azeite em fio até
Dispor as gambas entre duas camadas e adicionar um dente de alho, de que tenha uma consistência firme mas
de papel vegetal siliconizado, bem seguida as cascas e as cabeças das ainda líquida. Colocar o disco de gamba
alinhadas, de modo a formar um gambas, saltear bem e temperar com num prato e esperar que descongele,
quadrado. Com um batedor de bifes, sal e pimenta. Colocar num blender temperar com flor de sal e pimenta.
bater as gambas para que fiquem bem e triturar tudo, passar por uma Colocar o molho de gamba em redor e o
espalmadas numa camada fina. No rede muito fina e reservar o molho vinagrete em pequenos pontos.
fim, levar ao congelador. resultante. Finalizar com cebolinho picado. b

E 68
PUBLICIDADE

NEYA HOTELS

QUARTO SOLIDÁRIO
DA NEYA HOTELS JÁ
AJUDOU MAIS DE UMA
CENTENA DE FAMÍLIAS
CARENCIADAS
Desde 2012 que a NEYA Hotels abre as suas portas para receber famílias de crianças carenciadas
que se desloquem da sua zona de residência para consultas médicas ou tratamento
hospitalar. A iniciativa Quarto Solidário, que nasceu no NEYA Lisboa Hotel, fruto de uma
parceria com o Centro Hospitalar de Lisboa Central/Hospital de Dona Estefânia, chega agora
ao NEYA Porto Hotel, através de um protocolo com o Centro Materno-Infantil do Norte

Acolher quem cuida é o mote do Quarto toda a organização, de modo a tornar o


Solidário, uma iniciativa pioneira que leva a hotel num prolongamento das suas casas”, YASMIN BHUDARALLY, CEO da Neya Hotels
NEYA Hotels a disponibilizar alojamento e garante a responsável. Com o intuito de “fazer
pequeno-almoço, de forma gratuita, às famílias a diferença na vida destas famílias, os nossos
de crianças carenciadas que se desloquem da recursos humanos têm formação constante
sua zona de residência para consultas médicas, para os preparar para as receber da melhor Hotel e o Centro Hospitalar de Lisboa Central/
tratamento hospitalar ou internamento. forma”, acrescenta Yasmin Bhudarally. /Hospital de Dona Estefânia, num total de
Mais do que proporcionar alojamento, cerca de 600 noites de alojamento, o Quarto
o Quarto Solidário recebe as famílias de QUARTO SOLIDÁRIO Solidário chega agora também ao NEYA
“braços e coração abertos”, sublinha Yasmin
CHEGA AGORA AO Porto Hotel, através de um protocolo de apoio
Bhudarally, CEO da NEYA Hotels. “Com o firmado com o Centro Materno-Infantil do
Quarto Solidário, damos a quem mais precisa
NEYA PORTO HOTEL Norte. “Projetos de responsabilidade social
o que temos de melhor: não só as nossas Com mais de uma centena de famílias como estes são feitos de consistência, não
instalações mas o tempo, dedicação, empenho apoiadas desde que o projeto surgiu, em 2012, de atitudes isoladas e é por isso que estamos
e o carinho dos nossos colaboradores e de fruto de uma parceria entre o NEYA Lisboa empenhados em estender o Quarto Solidário
ao Norte do país”, justifica Yasmin Bhudarally. ´
Tanto em Lisboa como no Porto, apesar
da emoção com que estas famílias são
acolhidas, o rigor dos procedimentos está
sempre assegurado, frisa ainda a CEO
da NEYA Hotels: “As famílias são sempre
identificadas e encaminhadas até nós pelos
serviços de Ação Social das instituições
hospitalares com quem trabalhamos e é
a partir daí que nos esforçamos por dar
respaldo a estas famílias”, exemplifica.
Não é por acaso, de resto, que Yasmin
Bhudarally empresta o rosto e o coração
ao projeto do Quarto Solidário. “O NEYA
Lisboa Hotel nasce em frente ao Hospital
de Dona Estefânia, onde a minha filha,
então com três meses, esteve hospitalizada
e eu me vi numa situação idêntica às das
famílias que aqui acolhemos. É também
por isso que a NEYA Hotels assume este
compromisso de responsabilidade para
com a comunidade local”, conclui.
R ESTAU RAN T ES
POR FORTUNATO DA CÂMARA

Outra ‘Linha’! não deixar escapar os sucos nem se-


car o coral, e com um leve toque de
limão e manteiga. Belíssimas, as “La-
ACEPIPE
No Livramento, zona alta do Estoril, encontramos pas grelhadas dos Açores” (€19,50),
numa porção de 12 unids. (inflação
O poder
O Canhoto, um ambidestro a dominar os tachos ao rubro!) de calibre médio/gran- da comida
de, muito tenras, com um molho de As citações no universo da
manteiga e um toque muito discreto gastronomia são imensas.
(e bem!) de pimenta da terra, e ainda Em muitas perpassa o poder
assim a conseguirem exalarem notas transformador que a comida
do mar açoriano — é complexo defi- tem, seja em tom irónico ou
nir, eu sei, mas sente-se! As “Lulas à profundo. Aqui vão algumas
Canhoto” (€14,90) eram as corneti- em tradução livre:
nhas cefalópodes frescas, trinchadas
“Cozinhar é uma arte em mu-
e salteadas em anéis tenros, envolvi- dança e de triunfo momentâ-
das em camarão salteado al ajilo com neo. Sabes que de ti mesmo
coentros. Ao redor, um ninho de pa- deve depender o teu génio.
litinhos dourados e firmes de boa ba- Todos os livros de culinária,
tata frita, a fazerem de um prato sim- todas as ajudas da arte são
ples, algo mais que agradável. Gran- vãs, se não tiveres génio para
de ideia o “Arroz de Bineiros” (€20), cozinhar” Ateneus
NUNO BOTELHO

usando um calibre mais pequeno de


“Mostre-me outro prazer
camarão carabineiro, chegou um ar- como o jantar que aconteça
roz cremoso com oito crustáceos par- todos os dias e que dure
cialmente descascados. As cabeças, uma hora” Talleyrand
com o espigão característico (a cara-

S
er ‘da Linha’ impôs-se social- significa ascender à ‘linhagem’ na ver- bina!), foram pressionadas no prato e “Cuidarmos de nós próprios,
mente como uma espécie de são final, só por se ser da ‘Linha’. Estar os sucos iodados enriquecerem ain- bebendo excelentes vinhos
marca de classe ou casta, geran- à mesa rodeado de amigos a petiscar é da mais o caldo que envolvia os bagos e comendo excelentes pra-
tos — essa sim é a correta, a
do ligeira segregação para classificar um mantra nacional interclassista que carolino. Versão menos dispendiosa
verdadeira medicação”
pessoas como ‘betinhos da Linha’. A se pratica na ‘Linha’, em diferentes ní- e igualmente deliciosa, em compa- M. Châtillon du Plessis
‘Linha’ é a ferroviária que liga o Cais veis de exigência e estilo, claro. ração com os carabineiros de calibres em “La Vie à Table”
do Sodré a Cascais. Saindo de Lisboa, No Livramento, acima de São João gigantes. Os sucos da cabeça são tudo.
os de Algés, Cruz Quebrada e Dafun- do Estoril, surge O Canhoto, um espa- No serviço há atenção e disponibi- “Não se pode pensar bem,
do, são daí mesmo, ponto. Seguindo ço simples com esplanada ampla, onde lidade com eficiência, mesmo em dias amar bem, dormir bem, se
viagem adiante começa a aura linear, e a vistosa montra de petiscos e maris- de grande procura. Nos vinhos, a lista não se tiver jantado bem”
Virginia Woolf
todos passam a ser da ‘Linha’, sejam de cos indicia a apetência da casa. A co- abrange todas as bolsas e tem opções
Caxias, Oeiras, ou até do Linhó, que já zinha é também desenvolta em opções válidas. Provou-se um bom “Queijo “Mais do que um prisioneiro
faz parte de Sintra. A partir do largo da variáveis do dia, como bacalhau com de ovelha amanteigado” (€5,50) de de guerra evadido me falou
estação de Cascais acaba a linha física espinafres, massada de cherne, mão de pré-sobremesa, com meia cura e pas- na estranha tranquilidade
do caminho de ferro e começa outra, a vaca com grão, e outros. Escolhemos o ta firme de sabor herbáceo. Depois a que se apoderava de grupos
linhagem das famílias antigas, por ve- caminho petisqueiro para prolongar a “Tarte de amêndoas caseira” (€4,50) de homens nas conversas
zes separadas por uma linha ténue do estação de veraneio com o “Prego no de base fininha, com o caramelo de que tinham quando juntos
mundo real. pão” (€5,50) com um corte fino da amêndoa rico e saboroso, mas tão recordavam a boa comida”
M. K. Fisher em “An
A ‘Linha’ é, portanto, abrangente e alcatra, carne sumarenta e saborosa, duro (tipo torrão) que teve que se co-
Alphabet for Gourmets”
democrática, com os utentes das car- servido num pão de mistura de mas- mer à mão para não sair projetado
ruagens que se estratificam a partir da sa leve, ideal para iniciar ou terminar do prato. Agradável o “Quindim de “Toda a comida é uma
vista luxuosa da orla costeira, até que o uma refeição à base de marisco. Ainda coco” (€4), com metade enqueijada dádiva dos deuses e tem
Atlântico se dilua nas ruas e freguesias picámos o “Porco preto de coentra- e outra em bolo húmido. algo de milagroso, um ovo
que formam segundas e terceiras li- da” (€14), carne macia com tempero O Canhoto apresenta-se “Since não é menos que uma trufa”
nhas paralelas ao mar. A ‘Linha’ é beta. equilibrado e saborosa na gordura não 1991”, mas só está aqui “desde 2018”, Sybille Bedford
E tal como nas versões Beta da infor- enjoativa. Mas pareceu-me que ter tendo vindo nesse verão de Matarra-
“Os foodies são todos os
mática, a aparente sofisticação a de- duas ou três tiras de carne fragmen- que, onde tinha outro nome, mas isso
paladares com um vestígio
senvolver soluções de ascensão social tadas em menos de 30 nicos dispersos agora não interessa nada, como se diz de pessoa anexada”
pode ter versões melhoradas, mas não num prato uma relação custo-benefí- na ‘Linha’! A gerência tem compe- Ann Barr e Paul Levy
cio exagerada. tência antiga e destreza nas mãos a em “The Official Foodie
Vieram então uns petiscos marí- trabalhar excelentes produtos, com Handbook“
timos. As “Vieiras grelhadas” (€2,80 muita qualidade e simpatia. b
O CANHOTO unid.) são vendidas diretamente na
Rua Principal, 354, Livramento, Estoril concha, com o calibre de zamburi- Desde 1976, a crítica gastronómica
Telefone: 214 521 775 ou 962 061 113 nhas (6 cm), muito frescas e gordi- do Expresso é feita a partir de visitas
Encerra à segunda-feira nhas no miolo adocicado, abertas a anónimas, sendo pagas pelo jornal
preceito, com tempo contado para todas as refeições e deslocações

E 70
VI N H OS
POR JOÃO PAULO MARTINS

ANDREW HAGEN/GETTY IMAGES


Calores pós-vindima
Está tudo a lavar os cestos. Bom sinal

F
oi já no final da apanha das uvas que o num incêndio; depois entre os dois extremos, ter traduzido por “nobreza empobrecida” ou
tempo voltou a aquecer. Feitas as contas, uma paleta de cores muito atrativa. De facto, “aristocracia falida”, quem sabe. Não é nada
e pelo que tenho ouvido, a coisa correu cada casta tem a sua específica forma de fe- fácil de fazer, mas, tal como acontece com
bem. Alguns percalços a meio do proces- char o ciclo vegetativo: umas “fecham a loja” quase todos os outros vinhos, também neste
so (escaldão, granizo e muita chuva) fize- logo a seguir à vindima e outras fazem ques- tipo de vinho é possível muita intervenção,
ram soar o alarme, mas o tempo cooperou tão de durar mais um ou dois meses, ainda tentando fazer todos os anos aquilo que a
e tudo acabou em bem. É uma grande vin- com vivacidade. Esta é também a altura de Natureza só faz às vezes. É mais um caso em
dima? Vai ser um grande ano? Há umas vo- tentar fazer um Colheita Tardia. Estes calo- que o fator negócio fala mais alto e, mesmo
zes costumeiras para quem é sempre o “ano res de final de vindima fazem aumentar os na região de Sauternes, que deveria ser o fa-
do século”, tese que ajuda imenso a vender teores de açúcar nos bagos e pode ser que se rol deste tipo de vinhos, as maquininhas que
o vinho; há depois outra frase que muito se consiga fazer aquele tipo de vinho, sempre geram concentração de mostos lá estão para
ouve: “foi um ano desafiante”, o que, tradu- muito doce. E digo “pode ser” porque nada serem usadas quando a Natureza não colabo-
zido em linguagem descodificada, se pode- é certo: basta que chova em muita quantida- ra. Escusado será dizer que por norma avisam
ria enunciar assim: “Isto ia ficando uma m... de e as uvas apodrecem num fósforo. Se tudo os visitantes (e eu ouvi): “Temos a máquina
à conta da chuva, cheguei a pensar que es- correr bem, até poderá acontecer que alguns mas nunca usámos!”
tava tudo f... mas a coisa compôs-se. Livra! produtores consigam fazer um Colheita Tar- E quem diz concentradores diz pulveri-
Estamos safos.” dia com botrytis, o fungo mágico que origina zadores para espalharem esporos de botrytis
A imagem das vinhas é agora muito curio- a podridão nobre, ou seja, uvas podres mas pela vinha para gerar a tal podridão. Entre
sa e didática. Há uns dias quem passasse na sem podridão acética e que geram o vinho nós temos alguns vinhos deste tipo (muitos
zona de Arruda dos Vinhos deparava-se com muito especial, cujo modelo se encontra quer Colheita Tardia, mas poucos feitos com uvas
uma paisagem meio estranha: vinhas ainda em Sauternes quer em Tokay. Já houve um li- atacadas de botrytis), sendo que a referên-
com as parras bem verdes (é a altura certa vrito sobre vinhos editado entre nós que tra- cia é o Grandjó Colheita Tardia. E se o tempo
para pôr o rebanho de ovelhas a fazer a pré- duziu quase literalmente o termo inglês, noble correr de feição poderá também haver uvas
-poda), ao lado de outras parcelas que, de fo- rot, por “decomposição virtuosa”, o que não vindimadas apenas em dezembro, coisa rara
lhas tão escuras, pareciam ter sido queimadas deixa de ser divertido. Com jeito poderiam e “quase” nunca vista. b
(OS PREÇOS FORAM INDICADOS PELOS PRODUTORES)

Duas Quintas Conde d’Ervideira Escolha do Marquês de Borba


Reserva tinto 2021 Enólogo Pinot Noir tinto 2022 Colheita branco 2022
Região: Douro Região: Reg. Alentejano Região: Alentejo
Produtor: Ramos Pinto Produtor: Ervideira Produtor: J. Portugal Ramos
Castas: Touriga Nacional (80%), Casta: Pinot Noir Castas: Arinto, Antão Vaz e Viognier
Touriga Francesa (18%) e Tinta da Barca Enologia: Nelson Rolo Enologia: equipa de enologia de J.
Enologia: João Luís Baptista PVP: €16,50 Portugal Ramos
PVP: €39 Esta é uma casta especialmente desafiante PVP: €7,49
A marca nasceu com a edição de 90 e porque é inevitável a comparação com os tintos Esta marca tem também uma versão
deste então é uma das âncoras mais seguras da Borgonha, que são, também eles, feitos com de Vinhas velhas, num patamar acima
da região. O Reserva é sempre um vinho de esta variedade. Este tem muito pouca cor e (também em tinto) e o Reserva tinto,
muita vida em cave. Há que prová-lo agora. beneficia do facto de ser essa a tendência atual. o grande clássico deste produtor.
Dica: Mais aberto de cor do que em Dica: Muito bom desenho de conjunto, Dica: Muito fresco e com boas notas
anteriores edições, polido na fruta expressivo de Pinot, notas de cogumelos, vegetais verdes, grande limpidez
vermelha e na ligação perfeita com musgo e framboesas. Sirva mais fresco aromática, um vinho muito jovem
a barrica. Um prazer à mesa. do que o habitual. Difícil fugir dele... e irreverente. A beber novo.

E 72
as nossas recomendações Saiba mais sobre estas e outras sugestões em
boacamaboamesa.expresso.pt

Litoral Norte Alojamentos


Rio By Paulo André Oak Nature
Praça da República, 8, Vila Travessa do Trovesso, 198,
do Conde. Tel. 252 602 182 Ventosa. Tel. 253 056 762
As pescarias refletem-se numa
carta completa e nos dois
menus de degustação, um deles
totalmente dedicado ao mar. Na
sala confortável ou na esplanada,
encontra ainda uma transversal
seleção vínica e uma boa relação
qualidade-preço no menu de
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de ampla panorâmica sobre o Ge-
Restaurante Salitre rês, as aldeias e o Santuário de São
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o mar. É ele que dita as especiali- Sobranceiro ao rio Ave e à cidade, estabelece com ela uma relação próxima, acolhendo eventos culturais decoração de Nini Andrade Silva,
dades, célebre pelo peixe fresco, e tradições locais, das camisolas poveiras às rendas de bilros, e uma loja de produtos portugueses no piso ou numa das históricas suítes da
grelhado, simples ou à Bulhão térreo, onde também vive o restaurante. A maioria dos 43 quartos oferece varandas sobre a paisagem, Torre. Mergulhe na piscina interior
Pato. Pode ser garoupa, rodovalho, que pode explorar de bicicleta. Relaxe no spa com piscina interior, aberta 24 horas. Saiba mais sobre este do Camellia Spa, com tratamentos
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Os pratos estão comprometidos Do bom peixe na grelha, ao “Arroz Prove os “Cornetos de sapateira”, Além do menu de almoço, Encontro Internacional
com a sazonalidade, que a ementa de marisco”, passando pela “Sapa- o “Pica-pau de atum” ou o “Choco sobressaem sugestões sazonais. de Palhaços
varia a cada visita, consoante a teira recheada”, as “Navalheiras” frito com maionese de alho negro”. “Prego de rabo de boi”, “Farrapo Vila do Conde
disponibilidade da matéria-prima. ou os “Santiagos”, tanto se presta a Nos pratos enalteça-se o “Risoto velho do Avesso” ou “Caldeirada Entre os dias 9 e 15, em Vila do
Espaço e serviço muito acolhedo- uma tainada ao fim da tarde como de gambas com espumante e lima” de marisco” antecedem o “Ananás Conde, o Encontro Internacio-
res e sobremesas deliciosas. a almoços e jantares demorados. ou o “Arroz do mar”. Diversidade de dos Açores e eucalipto”. nal de Palhaços terá como tema
Preço médio €30. Preço médio €20. sangrias. Preço médio €30. Preço médio €25. o Palhaço Bufão, explorando a
PUB dimensão catártica e existencial
desta figura no contexto contem-
porâneo. Ao celebrar uma década
Restaurante O Lagar vinha de alhos, não faltam de existência, será feita uma
Estrada João Gonçalves Zarco, outros pratos típicos. O bolo do grande festa da arte e da cultura,
478, Câmara de Lobos. caco, também assado na brasa com mais dias de festival. Este ano
Tel. 291 941 865 e envolto em manteiga de alho, recebe artistas de Espanha, Bélgi-
Abriu portas em 1995, pela mão dá início às hostes. Segue-se o ca, México, Portugal, Brasil, França
de Quirino Figueira, num sítio filete de peixe-espada servido
e Senegal.
onde existia, precisamente, um com banana frita, as costeletas
velho lagar, tendo então capaci- de borrego, o bife de atum e o
dade para servir 200 refeições. bacalhau na brasa. Pode parecer Rally Fish
A diferença é que, atualmente, demasiado óbvio terminar com Matosinhos
recebe 1000 pessoas. Mais de um pudim de maracujá, mas é Os entusiastas da gastronomia são
80% dos clientes vêm pelas fresco, delicioso e lembra que convidados a embarcar até dia 22
espetadas. Pode escolher entre estamos numa região de sabo- numa jornada que celebra a rica
carne de lombo, lombo com osso res exóticos. Preço médio €30. tradição culinária do concelho de
ou lombo com gordura. Acompa- Matosinhos. Dos tradicionais res-
nha a batata frita e uns deliciosos Bem nosso é sugerir os melhores taurantes aos mais modernos, ve-
quadradinhos de milho frito. sabores da Madeira getarianos e de cozinha do mundo,
Apesar do sucesso das espetadas terá à sua disposição petiscos
que, mesmo na época natalícia, confecionados à base de peixe e
superam a tradicional carne em
marisco acompanhados por uma
bebida, pelo valor de €3,50.

E 74
D ESI GN
POR GUTA MOURA GUEDES

O Lux Frágil fez 25 anos


No Lux não era, e não é,
só o design do espaço, do equipamento,
da arquitectura que contavam e contam

F
alar do Lux Frágil é falar do Manuel Em quase todos os locais desenhados
Reis. E falar do Manuel é falar do de- para serem utilizados à noite, a luz do dia,
sign em Portugal, onde ele teve um quando entra, não costuma ser genero-
papel preponderante, quer como designer sa. Não era o que se passava ali, o design
ele próprio embora nunca se apresentasse do Lux provava ser belo à noite e de dia.
assim quer como aquele que criou espaço Depois da apresentação da experimenta-
e oportunidade para que toda uma geração design a primeira festa que o Lux fez no
O design do Lux Frágil “pedia a O edifício do Lux era um antigo
de designers no nosso país desenvolvesse terraço superior, até então não usado, foi
neutralidade suficiente no armazém portuário, um dos
projecto final que constituísse projectos, tivesse onde expor, tivesse visi- connosco — o lançamento do livro “Re- primeiros edifícios em estrutura
o espaço em local ideal para toda bilidade e fosse desafiada. Sob a sua mão flex#1”, em 2000. O design de luz desse de betão armado da zona
a espécie de intervenções segura e firme, sob o olhar único sobre o dia, feito também com o Manuel e que co- ribeirinha, obra de um
plásticas e artísticas, das mundo que o Manuel tinha, sob o seu sor- meçou às 18h, foi de forma a que a quanti- engenheiro, construído por volta
exposições à intervenção riso solar. dade de luz no terraço nunca diminuísse, de 1920. “O Lux abre à cidade a
cromática, das instalações às Embora tivesse ido ao Frágil no Bairro utilizando iluminação de cinema, como se possibilidade de novos cenários
sonoridades ambientes, da Alto algumas vezes, e muitas vezes à Loja a noite nunca chegasse. E assim foi, e foi de comunicação, de contacto
intervenção estritamente da Atalaia, foi no Lux que o conheci. Não mágico. No Lux não era, e não é, só o de- com o rio e com a paisagem
lumínica às projecções vídeo. fui à inauguração desta nova proposta de sign do espaço, do equipamento, da arqui- urbana de Lisboa”, escreveram os
Uma tela branca que por si só um espaço nocturno expandido, imagina- tectura que contavam e contam. É o design arquitectos FSSMGN sobre o
tivesse uma personalidade do pela sua cabeça e desenhado por Mar- de comunicação, o design gráfico, o sound projecto que criaram em 1998.
própria, mas que não entrasse em Quer no exterior quer no interior
garida Grácio Nunes e Fernando Sanchez design, o design de luz, é uma soma. E de-
conflito com a matéria das várias e nos seus materiais gráficos,
Salvador, seus cúmplices. Não estive lá na pois, ou antes, claro, a criação de toda uma
intervenções que está preparada a comunicação tem sido
para receber”, conforme nos grande festa de 29 de Setembro de 1998, cena musical com uma enorme identida- nota dominante.
dizem Fernando Sanchez pós-Expo’98, onde meio mundo, ao que de, ecléctica mas singular, experimental e
Salvador e Margarida Grácio se conta, esteve. Fui lá para o conhecer uns corajosamente proponente. E a sua abertu-
Nunes, seus autores. meses depois, já em 1999, porque quería- ra a tudo o que é cultura contemporânea,
mos apresentar a bienal experimentade- com uma curadoria muito determinada.
sign no Lux, com ele. E assim o fizemos e Falar do Lux é também falar de uma
o Manuel, e o Lux e a Bica nunca mais dei- grande equipa, que ao princípio ladeava o
xaram de ser nossos parceiros. A primeira Manuel e que desde a sua morte, em 2018,
vez que vi o espaço não foi de noite mas de lidera este espaço. Não é por acaso que se
dia, ao final da tarde, num momento ainda mantêm no topo da cena contemporânea
fechado ao público, em que o rio entrava criativa em Lisboa e no mundo, transver-
pelas janelas, azul e dourado, iluminando a sais na linguagem e nas gerações.
estrutura base do antigo edifício industrial Parabéns Lux Frágil! b
que o Manuel tinha redescoberto e toda a
nova pele nocturna que fez dele um ícone Guta Moura Guedes escreve de acordo
internacional. com a antiga ortografia

E 76
ESTREIA DOMINGO, DIA 8

VEJA MAIS

A COZINHA DAS ESTRELAS

@sicoficial @sic.tv sic.pt


M O DA
POR GABRIELA PINHEIRO

Dicas & Regras

Vem aí, o ‘arrastão’


Os casacos supercompridos e cheios de
personalidade tornam-se icónicos neste outono

T
odos os anos é o mesmo. O iní- tudo é possível, ainda que a tendên-
cio de outubro brinda-nos com cia pede excelências: no corte, com
dias soalheiros de verão e, de linhas de alfaiataria bem definidas, e
repente, sem pré-aviso, as tempera- nos materiais, com tecidos encorpa-
turas caem a pique. Um dia, acorda- dos, quentes e confortáveis.
mos a bater o dente e depressa vamos É o sobretudo clássico, para ho-
repescar malhas, casacos e botas. mem e para mulher, que serve de
O melhor é prevenir e rever as pe- inspiração máxima, na sua versão

FOTOGRAFIAS GETTY IMAGES


ças de que vai precisar para este ar- mais pura, em modelos mais estili-
ranque tardio de outono. O casaco, zados e descontraídos ou em linhas
por exemplo, é uma peça essencial, oversized arrojadas. Cores neutras e
tão mais do que um simples abrigo clássicas, como camel, azul-mari-
das intempéries. Tantas vezes é ele nho, preto e pérola, são permitidas,
próprio o protagonista de um look. assim como tons vivos e vibrantes,
Os casacos deste ano chegam entre eles o fúchsia, o amarelo-sol e
cheios de personalidade. Mais lon- o verde-kiwi. Os estampados conti-
gos do que o costume, têm um im- nuam em alta, mas agora menos es-
pacto decisivo no resultado final, já tridentes e anárquicos e mais geo-
que cobrem tudo o que está por baixo. métricos, discretos e com um toque
Assim, devem ser escolhidos a dedo, algo clássico.
para refletirem o mood of the day. Estará plenamente sintonizada
Porque veneramos a democracia, com a nova estação, se optar por um
celebramos o facto de haver mode- casaco que quase arrasta no chão e
los para todos os gostos e estilos. Do usar a cor, o tecido e a estampagem
navy ao militar, do confy ao roqueiro, de forma criativa e inteligente. b

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E 78
T ECN O LOGIA
POR HUGO SÉNECA

Jogo de
ventoinhas
O Nitro V 15 nasceu para jogar, mas
não está para brincadeiras quando se
trata da ficha técnica: o novo portátil
da Acer está equipado com um pro-
cessador Core i7 de 13ª geração da In-
tel, e dispõe de ventoinhas que operam
de forma sincronizada para garantir que
a refrigeração interna se mantém ativa
mesmo nos momentos mais quentes
de cada jogo. A Acer
recorda que o novo
portátil está apto a
receber um máximo
de 32 gigabytes
(GB) de memó-
ria RAM de
geração
DDR5. No
armaze-

A nova meta da Meta


namento há a
possibilidade de instalar uma unidade
SSD com capacidade máxima de 2 te-
rabytes, sendo que na unidade gráfica
A Meta Quest anunciou novos óculos que permitem apontada como escolha mais evoluída
surge a GeForce RTX 4050 Laptop,
realidade virtual e realidade mista da Nvidia. O ecrã de 39,6 centíme-
tros (15,6 polegadas) e formato 16:9

A
não deverá revelar-se especialmente
10 de outubro, os Meta Quest 3 estreiam uma nova apresentação, a Meta, que detém também o Facebook, tra-
deslumbrante pelas dimensões, mas
realidade com o início da fase comercial nos EUA tou de lembrar que os novos óculos tanto permitem a total garante alta resolução e uma taxa de
— mas ainda não há notícias da vinda para Por- submersão de realidade virtual, como deixam em aberto atualização de 165 hertz. O tempo
tugal. Na apresentação oficial, a marca de óculos realida- a captação de imagens a partir de câmaras que dão a ver de resposta das ações efetuadas
de mista informou que o novo modelo está equipado com o que está à volta e abrem caminho à justaposição de in- pelos utilizadores está fixado em três
a plataforma de computação Snapdragon XR2 Gen 2, da formação ou “objetos” digitais sobre a realidade. Tudo isto milissegundos. Tantos os jogos como os
Qualcomm, e por isso promete o dobro de desempenho no pode ser feito sem cabos que ligam a baterias ou computa- vídeos podem beneficiar de inteligên-
processamento gráfico face ao Meta Quest 2. Além disso, o dores e consolas. O reconhecimento automático de obje- cia artificial e das tecnologias DLSS
3 e Ray Tracing, informa a Acer. Nas
ecrã de 4K e 1218 píxeis por polegada (2,54 centímetros), tos promete fazer a diferença, mas parte da interação pode
videochamadas, é a tecnologia Purified
tem 30% mais resolução, enquanto o brilho beneficia de exigir dois controlos manuais. Apesar das dúvidas quanto Voice que promete fazer a diferença.
25% de incremento face ao modelo anterior. É possível que à capacidade de gerar produtos de massas, perfila-se uma Entre as portas disponíveis, destaque
haja consumidores que prefiram fazer comparações com batalha de titãs na realidade mista. Preço nos EUA: a par- para o Thunderbolt 4.
os Vision Pro da Apple que haverão de sair em 2024 — e na tir de 499,99 dólares (€473,47). b Preço: €1099.

A BATALHA RECOMEÇA ENGENHOCAS UNIDOS TRÊS VEZES SOM GOLOS PARA TODOS
“Counter-Strike 2” (“CS2”) acaba de A estreia foi anunciada para o final de ECM-W3, ECM-W3S e ECM-S1 O pontapé na bola digital iniciou nova
chegar à versão definitiva — e é grátis outubro, mas em sites especializados já são microfones, dispensam cabos e época com “FC 24”, da EA Sports. O novo
para toda a gente que o descarregar é possível encomendar a placa vão chegar às lojas pelas mãos da jogo está disponível para a PlayStations 4
a partir da plataforma Steam. Os fãs computacional Raspberry Pi 5. Além do Sony até novembro. O ECM-W3 e 5, Xbox Series X e S, PC, Xbox One e
da versão anterior, conhecida por processador Cortex-A76 composto dispõe de um recetor de dois canais Nintendo Switch. Nas principais
“Counter-Strike: Global Offensive” por quatro núcleos e velocidade de 2,4 e dois microfones, mas o ECM-W3S novidades destaca-se a possibilidade de
(“CS:GO”), vão poder migrar dados e gigahertz, a nova placa tem uma tem um recetor de um canal e um juntar diferentes plataformas em sessões
históricos para a nova versão. Além unidade gráfica VideoCore VII, que único microfone. Ambos prometem multijogador na internet. O jogo tem
de um novo “motor” que promete opera a 800 MHz. Opera com standard deixar satisfeitos influencers e elencadas 700 equipas e mais de 30
mudar a dinâmica de jogo, os PCI Express 2.0, dispõe de portas USB, vloggers. Em contrapartida, o ligas. Já 6,8 milhões tiveram acesso a
especialistas no tema destacam HDMI e Ethernet. Disponível com RAM ECM-S1 é mais refinado e este jogo criado pela produtora da
ainda a estreia de novos efeitos de 4GB ou 8GB. Preços em sites destina-se a profissionais do som. entretanto interrompida série de jogos
produzidos por granadas. especializados começam em €69,99. Preços: a partir de €450. FIFA. Preço: a partir de €45,99.

E 79
DIÁRIO DE UM
PSIQUIATRA
POR JOSÉ GAMEIRO

A concertação social
O AMOR ESTÁ O amor e a vida em comum são coisas
NO AR completamente diferentes
Floral e frutada, a nova fragrância

C
feminina Coach é inspirada no aros leitores, o título pode fazê-los pensar que, já não indo para novo,
sentimento do amor e em todas mudei de ramo e passei a dedicar-me à atividade sindical ou patronal.
as formas de o expressar. Ainda que, por vezes, a minha área de trabalho pudesse dar uma ajuda,
Coach Love abre com uma como diz o poeta, não vou por aí. Uma pergunta frequente que me fazem, o que
nota de morango-silvestre é um casal feliz? De uma forma mais sofisticada, quais são os “ingredientes”
acentuada por rosa vermelha necessários para uma relação conjugal em que o nível de satisfação mútua seja bom
aveludada, terminando com ou mesmo muito bom? Não é uma daquelas perguntas para um milhão de dólares,
madeira de cedro. Esta eau longe disso, mas não tem uma resposta universal e fechada. Temos de pôr de lado
de parfum já está disponível as diversas culturas e cingirmo-nos à nossa e mesmo entre nós existem diversas
em 30, 50 e 90 ml. subculturas conjugais. A maior parte das investigações que existem foram feitas
nas classes médias, de diferentes amplitudes sociais e laborais. São sempre médias
de séries em que se observam algumas variáveis, tidas como boas analisadoras da
qualidade da relação conjugal.
Quando a pergunta surge não fujo à resposta, mas sirvo-me, sobretudo da
experiência clínica. Há casais sempre felizes, quase sempre felizes, com fases
de profunda infelicidade e sofrimento mútuos e casais sempre infelizes. Sei que
a “medição” da felicidade é subjetiva entre cada um de nós e mesmo diversa,
DESIGN consoante os estados de alma e os diferentes períodos da relação conjugal. Não
ITALIANO sei o que contribui exatamente para a felicidade, os casais felizes têm coisas mais
interessantes para fazer do que ir ao psiquiatra, mas penso saber o que faz um casal
Dolce&Gabbana e Smeg renovaram infeliz de modo a pôr em causa a sua relação. Imaginem-se a viver com alguém
a sua parceria com o lançamento que passa a vida a criticar-vos. Pelas mais variadas razões. Porque fez e porque
da coleção Blu Mediterraneo. Nesta não fez, porque pensa assim ou assado, porque está gordo ou magro. Facilmente
nova linha Smeg, as ondas são quando a crítica é constante se passa para um nível superior o do ataque à
protagonistas, juntamente com a personalidade. Tu não prestas, pode não ser dito, mas é que a outra pessoa sente.
vivacidade e a ilustração maiólica, Nestes casais utilizo sempre a imagem do cabaz de Natal. Todos casamos com
um padrão profundamente um cabaz de Natal. À frente tem o caviar, o paté, o champanhe, o Porto vintage,
enraizado no sul de Itália. A coleção mas lá atrás estão as latas de atum, de sardinha, os melocotones. A pouco e pouco
encontra-se destacada na Smeg vamos descobrindo os petiscos menos nobres, mas não os podemos eliminar do
Store, no 14 da R. António Maria cabaz. Acompanho esta imagem de um pedido de desculpas, mas explico que me
Cardoso, em Lisboa. parece clara, para dizer que decidimos viver com alguém que vamos descobrindo,
smeg.com com o tempo, que não tem só iguarias e que não vai mudar substancialmente. Se
com o tempo a rejeição da parte menos visível do cabaz continuar, a possibilidade
de um, ou os dois, decidirem arriscar “comprar” outra cesta aumenta… Alguns
AGORA JAZZ podem interrogar-se, mas o amor não é suficiente para resolver estes engulhos?
Como se diz em aviação, negativo. Cada coisa no seu lugar. O amor e a vida em
A partir da próxima semana, dia 12 e até dia 21 de outubro, o concelho do
comum, ainda que normalmente se sobreponham, são coisas completamente
Seixal recebe o Festival Internacional SeixalJazz. No programa deste ano estão
diferentes. Posso amar muito alguém e não conseguir viver junto. Posso ter uma
músicos cujas carreiras marcaram o jazz norte-americano nas últimas décadas,
relação de grande afeto e carinho e ter uma vivência comum estável.
como Christian McBride, William Parker, Andrew Cyrille e Enrico Rava, e outros
Claro que uma parte desta clivagem é artificial, mas para quem trabalha com
que a crítica considera dos mais talentosos de uma nova geração. Os concertos casais, só pode intervir na relação. O amor é um sentimento tão complexo e
decorrem no Auditório Municipal do Fórum Cultural do Seixal, no SeixalJazz individual que não deixa que um técnico entre. O máximo que pode fazer é ajudar
Clube e na Sociedade Filarmónica Democrática Timbre Seixalense. a pensar se a mágoa já atingiu o amor de uma forma irremediável, ou se ainda está
cm-seixal.pt na fase de o camuflar, com a possibilidade de o trazer novamente à superfície. Falar
destas coisas com alguém que não é da nossa área é muito produtivo e inovador. O
mesmo sistema de referência tende a saturar o pensamento, em círculos fechados.
Chegamos agora à explicação do título da crónica. O Pedro Mexia,
companheiro de escrita no Expresso, fez o favor de comentar um livro recente
meu. Na sua apresentação ao referir-se ao amor e à relação conjugal, definiu-a
como a “concertação social”. Uma imagem brilhante que nunca me tinha
ocorrido, mas que é completamente certeira. Ao longo da vida os casais felizes são
os que são capazes de negociar as suas diferenças, não só individuais, mas também
das suas redes familiares e de amizade. Sem esta concertação o caminho para a
“desgraça” é mais provável. Obrigado Pedro, a sua criatividade vai ajudar alguns
casais a perceberem o que devem fazer. b
josemanuelgameiro@sapo.pt
PASSAT E M POS
POR MARCOS CRUZ

Sudoku Fácil Palavras cruzadas nº 2484

1 2 8
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
4 5 9
6 8 7 1
9 2 5 8 6
2
8 9 6 3
2 3 1 8 5 3
5 9 7
4
8 3 2
8 7 3 5

Sudoku Muito Difícil 6


1 8
7
9 5
3 4 7 8
2 8 3
9
3 5 9 4
7 5 3 10
6 7 8
9 6 11
2 4
Horizontais Verticais Soluções nº 2483
1. Acompanham o flamenco 2. O 1. Não deu o nó 2. São os melhores. HORIZONTAIS
Soluções lado direito da embarcação 3. Sem Sem rodeios 3. Dinastia inglesa. 1. catacumbas 2. Úrano;
Fácil Muito Difícil roupa. Altos conferem um sentimento Princípio de itinerário 4. Meia tina. Aires 3. Babu; imo
4. igualdade 5. Coa;
9 5 3 4 7 8 2 6 1 9 4 7 2 1 6 8 3 5
de superioridade 4. Nome próprio Ordem de arquitetura 5. A maioria
Úrsula 6. undécimo; li
6 2 1 9 5 3 7 8 4 8 2 6 3 5 4 1 7 9
da bailarina que morreu enrolada na que falhou na Madeira 6. O górdio
7. leão; ao; PIB 8. OS; lad;
8 4 7 2 6 1 9 3 5 1 3 5 8 7 9 2 6 4
5 8 9 1 3 2 4 7 6 6 9 2 4 3 1 5 8 7 própria echarpe. Deslocavam-se foi cortado por Alexandre Magno.
urbe 9. silenciar 10. focas;
3 6 2 7 4 9 5 1 8 7 1 4 9 8 5 3 2 6 5. Primas dos pombos. Poderosa Separa países. Acrescente 7. Abrevia
lobo 11. velas; raras
1 7 4 6 8 5 3 2 9 3 5 8 6 2 7 4 9 1 agência norte-americana 6. Pensa a hora. Metem medo 8. Cantada na 9ª
7 1 8 3 9 4 6 5 2 2 7 9 1 4 3 6 5 8
primeiro nos outros 7. No meio da Sinfonia de Beethoven. Pega fogo VERTICAIS
retina. O maior banco privado brasileiro. 9. Raciocínio coerente. Hora canónica 1. cubículos 2. aragonês;
2 9 6 5 1 7 8 4 3 5 8 1 7 6 2 9 4 3

fé 3. tabuada; sol
4 3 5 8 2 6 1 9 7 4 6 3 5 9 8 7 1 2
Metade de oito 8. A tia de Loulé. (de baixo para cima) 10. Três vogais.
Não está doente. Meio gaga 9. Na Mesmo ao contrário deve separar-se 4. anua; eólica 5. co;
estrada sempre a direito. Fazes como do joio 11. A lei de D. Fernando luc; alas 6. dríades
o imã 10. Faculdade feita de algoritmos que visava impedir o despovoamento 7. marasmo 8. bi; duo;
Palavras Cruzadas Premiados do nº 2482 UCLA 9. Ariel; prior
(iniciais). O de sangue salva vidas rural
“Um Amor Feliz”, de David Mourão-Ferreira, para 10. sem; AliBaba
11. O do território está a cargo do
Aníbal Bandeirinha, de Chaves; “A Hipótese 11. som; iberos
de Gaia”, de Jorge Reis-Sá, para João Medeiros, ministro do Ambiente
de Coimbra; “Meteorologia — Contos...”, de Mário
T. Cabral, para Domingos Novais, de Gondomar. Participe no passatempo das Palavras Cruzadas enviando as soluções por correio para
Rua Calvet de Magalhães, 242, 2770-022 Paço de Arcos ou por e-mail para passatempos@expresso.impresa.pt

E 81
ESTRANHO OFÍCIO

JOÃO FAZENDA
Q
TG LOGO SE V
EM VEZ DE PORTELA MAIS UM, A SOLUÇÃO ÓBVIA É UM MENOS PORTELA.
DEITAR ABAIXO A PORTELA CUMPRIA MAIS RÁPIDA E FACILMENTE
O OBJECTIVO DE TER O AEROPORTO NUM SÍTIO MAIS DESAFOGADO

uando se fala do problema da Mas Portugal recorre a outras técnicas para fingir que se avança não
produtividade da economia saindo do sítio. Por exemplo, Camarate foi acidente ou atentado?
portuguesa esquecemos sempre Fizeram-se 10 comissões parlamentares de inquérito, que se inclinaram
aquilo que Portugal é o melhor do no início para a tese de acidente e acabaram convencidas da existência
mundo a fazer: ronha. É uma pena de um atentado. Entretanto, o caso prescreveu. A 10ª comissão já não se
não ser um bem transaccionável, chamava “de inquérito ao acidente” mas sim “de inquérito à tragédia”.
porque faríamos uma fortuna em Conseguimos concordar que a queda de um avião que causa a morte de
exportações. Podemos ter uma todos os ocupantes é uma tragédia. Já é bem bom. Outro exemplo: a TAP
maioria de católicos, mas o país deve ser pública ou privada? Havendo dificuldade em decidir, opta-se
em si é um monge budista. Preza por uma solução mista. É privada nos anos pares e pública nos anos
acima de tudo o valor da quietude. ímpares. Neste momento é pública, mas em princípio será privada para o
Recordo com saudade o debate ano. Em vez de uma solução, acabamos por ter todas as soluções. E ainda
(inevitavelmente alargado) sobre nos queixamos. É esta insatisfação que teremos de resolver. Como é que
o TGV, que era tão importante. As conseguimos obter uma sociedade em que o facto de nenhum problema
vantagens seriam extraordinárias, se resolver não incomoda ninguém? Evidentemente, nomeamos uma
mas infelizmente, após o lançamento da obra, verificou-se que não comissão que faça um estudo. Eu tenho tempo livre, posso dedicar-
havia dinheiro. Portugal não tem os milhares de milhões que custam me a isso durante 10 anos. E concluir que não tenho conclusões para
os grandes projectos, mas tem as centenas de milhões que custam apresentar. b
investimentos mais baratos, tais como os estudos para preparar os
grandes projectos e as indemnizações por quebra de contratos celebrados Ricardo Araújo Pereira escreve de acordo com a antiga ortografia
para realizar grandes projectos que no final não avançam.
Do novo aeroporto, cuja localização evitamos decidir há décadas,
continua a não haver grandes notícias. O que é óptimo. No processo de
decisão do novo local corremos o risco de fazer a escolha errada. Não
escolher acaba por ser a solução mais segura. A minha única sugestão
é que possamos aprender de uma vez por todas que o processo é
fatalmente este: identificação de um problema, elaboração de estudos
para o resolver, indecisão, inacção. No caso do novo aeroporto, o
problema teria sido fácil de resolver. Concordamos todos que não é
bom termos um aeroporto no meio da cidade. Devíamos ter admitido
há muito que não vamos conseguir chegar a acordo sobre uma nova
localização. Portanto, para não termos um aeroporto no meio da cidade,
o melhor é demolir a cidade em torno do aeroporto. O dinheiro já gasto
em estudos e projectos podia ter sido investido nas indemnizações aos
moradores cujos prédios teriam de ser terraplenados. Em vez de Portela / RICARDO
mais um, a solução óbvia é um menos Portela. Deitar abaixo a Portela
cumpria mais rápida e facilmente o objectivo de ter o aeroporto
ARAÚJO
num sítio mais desafogado. PEREIRA

E 82
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