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Peters Da Jaula de Ferro A Roda Do Hamster
Peters Da Jaula de Ferro A Roda Do Hamster
Se o presente for pensado nesse sentido, conclui-se que a aceleração da mudança social
se expressa em uma “contração” ou diminuição dessas ilhas de “estabilidade”
existencial. Assim, por exemplo, é cada vez mais comum que uma habilidade adquirida
pelo indivíduo ao longo de anos, na expectativa de aumento do seu capital profissional,
sofra uma súbita desvalorização devido a uma transformação no mercado de trabalho
(p.ex., uma inovação tecnológica). A notável redução nos “prazos de validade” dos
saberes colhidos no passado, assim como das expectativas quanto ao futuro, encolhe a
vivência do presente e, por conseguinte, o próprio senso que o indivíduo tem de sua
autoidentidade (p.ex., estar em uma profissão vai se tornando muito mais comum do que
“ser” profissional nisto ou naquilo; estar em um relacionamento com Fulana/e/o torna-se
mais comum do que “ser” companheiro de Fulana/e/o; e assim por diante) .
A referência aos impactos existenciais da aceleração de mudanças sociais se desdobra,
pois, na terceira esfera tematizada por Rosa: a aceleração do ritmo da vida, evidenciada
nos tantos sintomas de uma extraordinária “escassez de tempo” vivida por indivíduos
imersos em engrenagens coletivas em transformação acelerada. Interpretado em conexão
com o desenvolvimento tecnológico, aquele agudo senso de falta de tempo não deixa de
ser uma ocorrência tristemente irônica, sobretudo frente às promessas de tempo
“liberado” feitas, pelo menos até ontem, pelos arautos e defensores da inovação
tecnológica (p.ex., com mais trabalhos sendo deixados às máquinas, seres humanos
poderiam dedicar mais tempo ao lazer e às atividades criativas…e assim por diante).
A teoria da aceleração social moderna delineada por Rosa explica o paradoxo acima como
resultado de um ciclo impremeditado de retroalimentação . O senso da escassez de tempo
entre os indivíduos gera uma demanda por dispositivos que o economizem. Tal demanda
é respondida por inovações técnicas e socioeconômicas que, mesmo se funcionam no
plano individual, contribuem sistemicamente para a dinamização coletiva de práticas e
formas de vida que havia gerado aquela demanda em primeiro lugar. Rosa dá concretude
a esta tese com o exemplo de Paciêncio, morador de Kairos, cidade do país Utêmpia:
graças à invenção do telefone, ele “ganhou” o tempo que gastaria se tivesse de ir a pé a
Chronos para mandar uma mensagem a Ephêmerus; graças às máquinas que possibilitam
a cópia de livros, ele “ganhou” o tempo que antes gastava no seu trabalho copiando-os à
mão; graças à máquina fotográfica digital, ele não precisa mais esperar horas a fio para
obter um retrato de si com seu gato, o qual antes era pintado pelo pintor Aeternus; e assim
por diante… Diante de tanto aparente “ganho de tempo”, por que Paciêncio se sente mais
e mais acossado pela sua escassez ? Porque, responde Rosa,
Tal relação circular entre indivíduos e sistemas encontra seu análogo em uma dinâmica
de pressão aceleratória mútua entre os diferentes sistemas que compõem sociedades
hipercomplexas: em processos que envolvem a sincronização entre sistemas diferentes, a
aceleração operacional de um deles (p.ex., o sistema econômico) exerce uma pressão pela
aceleração dos demais (p.ex., o sistema educacional). No mais, na medida em que cada
sistema funciona de modo autorreferencial (como ensinou Luhmann), ele considera
“perdido” o tempo despendido em outros sistemas (p.ex., o tempo passado brincando com
o filho é tempo perdido para o sistema que avalia a produtividade científica do sujeito, ao
passo que o tempo passado na escrita de artigos é tempo perdido para as demandas
afetivas do seu filho). Como resultado, o indivíduo é “sanduichado” pelas demandas
práticas de diferentes sistemas e obrigado, assim, a acelerar o tempo despendido em cada
uma delas (p.ex., preciso encurtar o jantar com o meu filho para escrever um projeto de
pesquisa para a Capes…e preciso escrevê-lo rapidamente para poder levar meu filho à
escola amanhã…e, aliás, preciso acelerar ambos os processos se quiser tempo para
renovar meu passaporte etc.).
Sem tempo
Círculos viciosos de aceleração retroalimentada também caracterizam a existência de
indivíduos que, para se manterem “competitivos”, se forçam a permanecer em “rodinhas
de hamster” que giram cada vez mais rapidamente. Para além das normatizações
uma marca durável sobre nossas personalidades. Nosso tempo é “perdido”, diz Rosa
retomando reflexões famosas de Benjamin, no sentido de que nossas vivências pregressas
não adquirem durabilidade ou cumulatividade, ou seja, não são integradas à totalidade da
nossa trajetória biográfica.
É possível pular fora da roda de hamster?
Uma questão já ventilada na fortuna crítica da obra de Rosa, assim como em discussões
mais gerais sobre a relação entre subjetividade e poder no novo capitalismo, diz
respeito aos graus em que a inserção dos indivíduos na configuração moderno-tardia é
motivada por uma vontade livre, por uma obrigação inescapável ou por dinâmicas
sociopsíquicas ambiguamente situadas entre uma e outra coisa.
O problema torna-se agudo quando Rosa enfrenta o paradoxo central de seu livro: o fato
de que as tecnologias aceleratórias nos domínios do transporte, da comunicação e da
produção não levaram a uma sensação de tempo liberado em abundância, mas, ao
contrário, de extraordinária escassez temporal. Os polos da vontade livre e da obrigação
imposta do exterior parecem corresponder respectivamente a duas vivências comuns na
contemporaneidade: o medo de perder oportunidades (frequentemente designado pelo
acrônimo FOMO: fear of missing out), de um lado; e a compulsão à adaptação, de outro
(2019: 268). No primeiro caso, a difusão cultural de um ideal de boa vida fundado
na riqueza e na variedade de vivências exerce uma pressão motivacional em prol da
aceleração daquelas vivências. O aumento no número de vivências (p.ex., livros lidos,
viagens feitas, mensagens trocadas) em um mesmo intervalo de tempo (p.ex., 80 anos de
vida) requer necessariamente uma aceleração do ritmo daquelas vivências, graças à qual
elas podem caber no período temporal em mira. Por exemplo, um potencial encontro de
duas horas com um amigo terá de ser substituído, conforme aquele ideal, por dois
encontros mais rápidos de uma hora com dois amigos diferentes. Um período de três horas
que poderia ser devotado à leitura de um ensaio ou a uma exposição no museu é dividido
entre ambos, o que significa que tanto a leitura quanto a visita ao museu têm de transcorrer
de modo mais rápido. E assim por diante…Sob esse aspecto, a aceleração é uma promessa
cultural de boa vida que leva os indivíduos a desejarem viver mais rápido.
Em contraste, como a própria expressão já torna evidente, a compulsão à adaptação se
apresenta como resultado, nas vidas individuais, dos imperativos sistêmicos oriundos da
aceleração da mudança social. Indivíduos são tomados pela consciência aguda, vivida
também na pele e nas vísceras, de que a aceleração do mundo social circundante ameaça
marido de Y, mas está morando junto com Y; ele não é de Munique e conservador,
mas está morando (pelos próximos anos) em Munique e tem votado pelos
conservadores” (2019: 296; grifos do autor).
No coração do livro de Rosa, encontre-se a tese de que as três modalidades de processo
aceleratório por ele identificadas estabeleceram, na modernidade, uma relação histórica
de retroalimentação circular, graças à qual a aceleração social, como megatendência
multidimensional, adquiriu um caráter autopropelido (2019: 302). O senso de que essa
interação circular entre as modalidades de aceleração não pode ser interrompida por
iniciativas individuais, juntamente com a consciência das desvantagens interpostas aos
projetos de desaceleração como iniciativa política (pelo menos por meios democráticos,
acrescenta ele), dá ao livro seu sabor de pessimismo crítico-germânico, como se a gaiola
de ferro ou “rija crosta de aço” (Weber) houvesse sido substituída por uma igualmente
inescapável roda de hamster ou esteira em declive.
(Embora este não seja meu tema aqui, deixe-me ressaltar rapidinho que os trabalhos
subsequentes de Rosa buscam remediar esse pessimismo mediante uma teoria da
“ressonância” ).
Assim como outros autores enfatizam que o aumento nos índices de depressão tem de
ser interpretado como um efeito sistêmico das exigências que o novo capitalismo faz
às mentes e corpos dos indivíduos, Rosa contribui para uma contundente apreensão das
fontes sistêmicas da vivência crônica e amplamente difundida de falta de
tempo. Fundamentalmente, não é “o desperdício individual ou institucional de tempo”,
muito menos “a indolência”, o que explica “o sentimento ubíquo de estar sempre atrasado
diante de um mundo ‘sempre em fuga’”. A chave da questão é a “incongruência
estrutural”, nos termos de Hans Blumenberg, entre o “tempo do mundo” e o “tempo da
vida” (2019: 311).
A depressão do eu
As considerações de Rosa sobre a identidade “situacional” poderiam se desdobrar em um
exercício detalhado de sociologia existencial , voltado às implicações psíquicas daquele
modo de identidade. No que toca à relação com o próprio passado, o caráter situacional
da identidade obsta, na autoconsciência do indivíduo, uma compreensão de sua trajetória
pessoal como uma história inteligível de progresso ou desenvolvimento. Na medida em
que nossa memória de vivências passadas é fortemente dependente de suportes materiais
e interpessoais (p.ex., casas longamente habitadas, objetos de uso pessoal que
“Em primeiro lugar, é consenso atualmente que ela [a depressão] pode ser uma
consequência de situações reiteradas de estresse, ou seja, de pressão temporal
indesejada, mas também de altos índices de transformação e de insegurança. Em
segundo,…ela representa uma reação psíquica identificada pela sensação de um tempo
viscoso e paralisado, e de uma ausência de futuro ” (2019: 499-500).
É uma pena que Rosa não se expresse de modo mais preciso nessas passagens. Suas ideias
a respeito da depressão ganham mais nitidez, entretanto, quando ele cita autores que falam
de “uma interrupção na passagem entre passado e futuro”, em função da qual o
“congelamento” ou “aprisionamento” do indivíduo em uma condição estacionária é
vivenciado menos como um eterno presente do que como um “salto” ou “expulsão” do
movimento temporal: “a sensação de cair para fora de um mundo no qual a incessante
transformação de futuro em presente e de presente em passado é autoevidente” (Baier,
apud Rosa, 2019: 500). Trata-se de uma vivência já discutida na fenomenologia da
depressão, com o apoio imprescindível de escritoras geniais como Sylvia Plath.
Nesse entroncamento de sua análise, Rosa vai ao encontro de autores que,
sem romantizarem os sofrimentos inerentes à condição depressiva, percebem nela um
componente paradoxal de autoproteção . De modo inconsciente e patológico, a condição
depressiva representaria uma reação autoprotetora frente a exigências sociais de atividade
acelerada que se tornaram insuportáveis. Alain Ehrenberg, pioneiro na leitura sociológica
da depressão como sintoma social, resumiu essa ideia ao assinalar que a depressão “não
é apenas a miséria” da “pessoa desnorteada”, mas também o seu “corrimão” (apud Rosa,
2019: 501). Uma vez mais sem que seja preciso idealizar uma condição terrivelmente
sofrida, poder-se-ia enxergar mesmo certo “realismo” envolvido na atitude do sujeito
depressivo quando ele, consciente em algum nível de que todos os seus esforços no
presente estão destinados à rápida obsolescência, desiste do engajamento em atividades
cujos produtos futuros serão, já sabe ele de antemão, velozmente condenados ao passado
pela sociedade que o circunda.
No mais, a sensação de “esvaziamento” existencial de si vivenciada em certos casos
depressivos como que radicaliza, no plano da vivência da mais do que naquele da
consciência teórica, o senso do caráter situacional da identidade: já que qualquer
identidade que o “eu” assuma está condenada a ser efêmera e transitória, o indivíduo é
tomado, no fim das contas, pela sensação desnorteante de que não possui qualquer “eu”
Referência
ROSA, Hartmut. Aceleração: a transformação das estruturas temporais na
modernidade . São Paulo: Unesp, 2019.