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Figuras de Linguagem

Prof. Jorge Alessandro

Pérolas absolutas Você pode não acreditar: mas houve um tempo em


Há, no seio de uma ostra, um movimento — ainda que os leiteiros deixavam as garrafinhas de leite do lado de
que imperceptível. Qualquer coisa imiscui-se pela fissura, fora das casas, seja ao pé da porta, seja na janela.
uma partícula qualquer, diminuta e invisível. Venceu as A gente ia de uniforme azul e branco para o grupo,
paredes lacradas, que se fecham como a boca que tem de manhãzinha, passava pelas casas e não ocorria que
medo de deixar escapar um segredo. Venceu. E agora alguém pudesse roubar aquilo.
penetra o núcleo da ostra, contaminando-lhe a própria Você pode não acreditar: mas houve um tempo em
substância. A ostra reage, imediatamente. E começa a que os padeiros deixavam o pão na soleira da porta ou na
secretar o nácar. É um mecanismo de defesa, uma janela que dava para a rua. A gente passava e via aquilo
tentativa de purificação contra a partícula invasora. Com como uma coisa normal.
uma paciência de fundo de mar, a ostra profanada continua Você pode não acreditar: mas houve um tempo em
seu trabalho incansável, secretando por anos a fio o nácar que você saía à noite para namorar e voltava andando
que aos poucos vai se solidificando. É dessa solidificação pelas ruas da cidade, caminhando displicentemente,
que nascem as pérolas. sentindo cheiro de jasmim e de alecrim, sem olhar para
As pérolas são, assim, o resultado de uma trás, sem temer as sombras.
contaminação. A arte por vezes também. A arte é quase Você pode não acreditar: houve um tempo em que
sempre a transformação da dor. [...] Escrever é preciso. É as pessoas se visitavam airosamente. Chegavam no meio
preciso continuar secretando o nácar, formar a pérola que da tarde ou à noite, contavam casos, tomavam café,
talvez seja imperfeita, que talvez jamais seja encontrada e falavam da saúde, tricotavam sobre a vida alheia e
viva para sempre encerrada no fundo do mar. Talvez estas, voltavam de bonde às suas casas.
as pérolas esquecidas, jamais achadas, as pérolas Você pode não acreditar: mas houve um tempo em
intocadas e por isso absolutas em si mesmas, guardem em que o namorado primeiro ficava andando com a moça
si uma parcela faiscante da eternidade. numa rua perto da casa dela, depois passava a namorar
SEIXAS, H. Uma ilha chamada livro. Rio de Janeiro: no portão, depois tinha ingresso na sala da família. Era
Record, 2009 (fragmento). sinal de que já estava praticamente noivo e seguro.
Houve um tempo em que havia tempo.
01. (Enem 2016) - Considerando os aspectos estéticos Houve um tempo.
e semânticos presentes no texto, a imagem da pérola SANT’ANNA, A. R. Estado de Minas, 5 maio 2013.
configura uma percepção que
A) reforça o valor do sofrimento e do esquecimento para o 02. (Enem 2016) - Nessa crônica, a repetição do trecho
processo criativo. “Você pode não acreditar: mas houve um tempo em
B) ilustra o conflito entre a procura do novo e a rejeição ao que...” configura-se como uma estratégia
elemento exótico. argumentativa que visa
C) concebe a criação literária como trabalho progressivo e A) surpreender o leitor com a descrição do que as pessoas
de autoconhecimento. faziam durante o seu tempo livre antigamente.
D) expressa a ideia de atividade poética como experiência B) sensibilizar o leitor sobre o modo como as pessoas se
anônima e involuntária. relacionavam entre si num tempo mais aprazível.
E) destaca o efeito introspectivo gerado pelo contato com C) advertir o leitor mais jovem sobre o mau uso que se faz
o inusitado e com o desconhecido. do tempo nos dias atuais.
D) incentivar o leitor a organizar melhor o seu tempo sem
Você pode não acreditar deixar de ser nostálgico.

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E) convencer o leitor sobre a veracidade de fatos relativos 04. (Enem 2014) - Os meios de comunicação podem
à vida no passado. contribuir para a resolução de problemas sociais, entre
os quais o da violência sexual infantil. Nesse sentido,
a propaganda usa a metáfora do pesadelo para
A) informar crianças vítimas de abuso sexual sobre os
Aquarela perigos dessa prática, contribuindo para erradicá-la.
O corpo no cavalete B) denunciar ocorrências de abuso sexual contra meninas,
é um pássaro que agoniza com o objetivo de colocar criminosos na cadeia.
exausto do próprio grito. C) dar a devida dimensão do que é o abuso sexual para
As vísceras vasculhadas uma criança, enfatizando a importância da denúncia.
principiam a contagem D) destacar que a violência sexual infantil predomina
regressiva. durante a noite, o que requer maior cuidado dos
No assoalho o sangue responsáveis nesse período.
se decompõe em matizes E) chamar a atenção para o fato de o abuso infantil ocorrer
que a brisa beija e balança: durante o sono, sendo confundido por algumas crianças
o verde – de nossas matas com um pesadelo.
o amarelo – de nosso ouro
o azul – de nosso céu Capítulo LIV – A pêndula
o branco o negro o negro Saí dali a saborear o beijo. Não pude dormir;
CACASO. In: HOLLANDA, H. B (Org.). 26 poetas hoje. Rio de estirei-me na cama, é certo, mas foi o mesmo que nada.
Janeiro: Aeroplano, 2007. Ouvi as horas todas da noite. Usualmente, quando eu
perdia o sono, o bater da pêndula fazia-me muito mal; esse
03. (Enem 2015) - Situado na vigência do Regime Militar tique-taque soturno, vagaroso e seco parecia dizer a cada
que governou o Brasil, na década de 1970, o poema de golpe que eu ia ter um instante menos de vida. Imaginava
Cacaso edifica uma forma de resistência e protesto a então um velho diabo, sentado entre dois sacos, o da vida
esse período, metaforizando e o da morte, e a contá-las assim:
A) as artes plásticas, deturpadas pela repressão e censura. — Outra de menos…
B) a natureza brasileira, agonizante como um pássaro — Outra de menos…
enjaulado. — Outra de menos…
C) o nacionalismo romântico, silenciado pela perplexidade — Outra de menos…
com a Ditadura. O mais singular é que, se o relógio parava, eu
D) o emblema nacional, transfigurado pelas marcas do dava-lhe corda, para que ele não deixasse de bater nunca
medo e da violência. e eu pudesse contar todos os meus instantes perdidos.
E) as riquezas da terra, espoliadas durante o Invenções há, que se transformam ou acabam; as mesmas
aparelhamento do poder armado. instituições morrem; o relógio é definitivo e perpétuo. O
derradeiro homem, ao despedir-se do sol frio e gasto, há
de ter um relógio na algibeira, para saber a hora exata em
que morre.
Naquela noite não padeci essa triste sensação de
enfado, mas outra, e deleitosa. As fantasias tumultuavam-
me cá dentro, vinham umas sobre outras, à semelhança de
devotas que se abalroam para ver o anjo-cantor das
procissões. Não ouvia os instantes perdidos, mas os
minutos ganhados. ASSIS, M. Memórias póstumas de Brás Cubas.
05. (Enem 2013) - O capítulo apresenta o instante em
que Brás Cubas revive a sensação do beijo trocado
com Virgília, casada com Lobo Neves. Nesse contexto,
a metáfora do relógio desconstrói certos paradigmas
românticos, porque
A) o narrador e Virgília não têm percepção do tempo em
seus encontros adúlteros.
Disponível em: www.portaldapropaganda.com.br. Acesso em: 29 B) como “defunto autor”, Brás Cubas reconhece a
out. 2013 (adaptado). inutilidade de tentar acompanhar o fluxo do tempo.

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C) na contagem das horas, o narrador metaforiza o desejo 07. (Enem 2012) - O efeito de sentido da charge é
de triunfar e acumular riquezas. provocado pela combinação de informações visuais e
D) o relógio representa a materialização do tempo e recursos linguísticos. No contexto da ilustração, a
redireciona o comportamento idealista de Brás Cubas. frase proferida recorre a
E) o narrador compara a duração do sabor do beijo à A) polissemia, ou seja, aos múltiplos sentidos da expressão
perpetuidade do relógio. “rede social” para transmitir a ideia que pretende veicular.
B) ironia para conferir um novo significado ao termo “outra
Logia e mitologia coisa”.
Meu coração C) homonímia para opor, a partir do advérbio de lugar, o
de mil e novecentos e setenta e dois espaço da população pobre e o espaço da população rica.
já não palpita fagueiro D) personificação para opor o mundo real pobre ao mundo
sabe que há morcegos de pesadas olheiras virtual rico.
que há cabras malignas que há E) antonímia para comparar a rede mundial de
cardumes de hienas infiltradas computadores com a rede caseira de descanso da família.
no vão da unha na alma
um porco belicoso de radar Aquele bêbado
e que sangra e ri — Juro nunca mais beber — e fez o sinal da cruz com os
e que sangra e ri indicadores. Acrescentou: — Álcool.
a vida anoitece provisória O mais, ele achou que podia beber. Bebia paisagens,
centuriões sentinelas músicas de Tom Jobim, versos de Mário Quintana. Tomou
do Oiapoque ao Chuí. um pileque de Segall. Nos fins de semana embebedava-se
CACASO. Lero-lero. Rio de Janeiro: 7Letras; São Paulo: Cosac & de Índia Reclinada, de Celso Antônio.
Naify, 2002. — Curou-se 100% do vício — comentavam os amigos.
Só ele sabia que andava bêbado que um gamba. Morreu
06. (Enem 2012) - O título do poema explora a de etilismo abstrato, no meio de uma carraspana de pôr de
expressividade de termos que representam o conflito sol no Leblon, e seu féretro ostentava inúmeras coroas de
do momento histórico vivido pelo poeta na década de ex-alcoólatras anônimos.
1970. Nesse contexto, é correto afirmar que ANDRADE, C. D. Contos plausíveis. Rio de Janeiro: Record,1991.
A) o poeta utiliza uma série de metáforas zoológicas com
significado impreciso. 08. (Enem 2012) - A causa mortis do personagem,
B) “morcegos”, “cabras” e “hienas” metaforizam as vítimas expressa no último parágrafo, adquire um efeito
do regime militar vigente. irônico no texto porque, ao longo da narrativa, ocorre
C) o “porco”, animal difícil de domesticar, representa os uma
movimentos de resistência. A) metaforizarão do sentido literal do verbo “beber”.
D) o poeta caracteriza o momento de opressão através de B) aproximação exagerada da estética abstracionista.
alegorias de forte poder de impacto. C) apresentação gradativa da coloquialidade da
E) “centuriões” e “sentinelas” simbolizam os agentes que linguagem.
garantem a paz social experimentada. D) exploração hiperbólica da expressão “inúmeras coroas”.
E) citação aleatória de nomes de diferentes artistas.

Oximoro, ou paradoxismo, é uma figura de retórica em que


se combinam palavras de sentido oposto que parecem
excluirse mutuamente, mas que, no contexto, reforçam a
expressão.
Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa.

09. (Enem 2009) - Considerando a definição


apresentada, o fragmento poético da obra Cantares, de
Hilda Hilst, publicada em 2004, em que pode ser
encontrada a referida figura de retórica é:
A “Dos dois contemplo
Disponível em: www.ivancabral.com. Acesso em: 27 fev. 2012. rigor e fixidez.
Passado e sentimento
me contemplam” (p. 91).

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B “De sol e lua “Vou mandar levantar outra parede...”
De fogo e vento Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
Te enlaço” (p. 101). E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
C “Areia, vou sorvendo Circularmente sobre a minha rede!
A água do teu rio” (p. 93).
D “Ritualiza a matança Pego de um pau. Esforços faço. Chego
de quem só te deu vida. A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
E me deixa viver Que ventre produziu tão feio parto?!
nessa que morre” (p. 62).
E “O bisturi e o verso. A Consciência Humana é este morcego!
Dois instrumentos Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
entre as minhas mãos” (p. 95). Imperceptivelmente em nosso quarto!
ANJOS, A. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1994.
Metáfora
Gilberto Gil Texto 2
O lugar-comum em que se converteu a imagem de um
Uma lata existe para conter algo poeta doentio, com o gosto do macabro e do horroroso,
Mas quando o poeta diz: "Lata" dificulta que se veja, na obra de Augusto dos Anjos, o olhar
Pode estar querendo dizer o incontível clínico, o comportamento analítico, até mesmo certa frieza,
Uma meta existe para ser um alvo certa impessoalidade científica.
Mas quando o poeta diz: "Meta" CUNHA, F. Romantismo e modernidade na poesia. Rio de Janeiro:
Pode estar querendo dizer o inatingível Cátedra, 1988 (adaptado).
Por isso, não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata 11. (Enem 2009 - cancelada) - Em consonância com os
Na lata do poeta tudo-nada cabe comentários do texto 2 acerca da poética de Augusto
Pois ao poeta cabe fazer dos Anjos, o poema O morcego apresenta-se,
Com que na lata venha caber enquanto percepção do mundo, como forma estética
O incabível capaz de
Deixe a meta do poeta, não discuta A) reencantar a vida pelo mistério com que os fatos banais
Deixe a sua meta fora da disputa são revestidos na poesia.
Meta dentro e fora, lata absoluta B) expressar o caráter doentio da sociedade moderna por
Deixe-a simplesmente metáfora meio do gosto pelo macabro.
Disponível em: http://www.letras.terra.com.br. Acesso em: 5 fev. C) representar realisticamente as dificuldades do cotidiano
sem associá-lo a reflexões de cunho existencial.
10. (Enem 2009 - cancelada) - A metáfora é a figura de D) abordar dilemas humanos universais a partir de um
linguagem identificada pela comparação subjetiva, ponto de vista distanciado e analítico acerca do cotidiano.
pela semelhança ou analogia entre elementos. O texto E) conseguir a atenção do leitor pela inclusão de elementos
de Gilberto Gil brinca com a linguagem remetendo-nos das histórias de horror e suspense na estrutura lírica da
a essa conhecida figura. O trecho em que se identifica poesia.
a metáfora é:
A) “Uma lata existe para conter algo”. Morro da Babilônia
B) “Mas quando o poeta diz: ’Lata’”. À noite, do morro
C) “Uma meta existe para ser um alvo”. descem vozes que criam o terror
D) “Por isso não se meta a exigir do poeta”. (terror urbano, cinquenta por cento de cinema,
E) “Que determine o conteúdo em sua lata”. e o resto que veio de Luanda ou se perdeu na língua
Geral).
Texto I Quando houve revolução, os soldados
O Morcego espalharam no morro,
Meia-noite. Ao meu quarto me recolho. o quartel pegou fogo, eles não voltaram.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede: Alguns, chumbados, morreram.
Na bruta ardência orgânica da sede, O morro ficou mais encantado.
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho. Mas as vozes do morro
não são propriamente lúgubres.
Há mesmo um cavaquinho bem afinado

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que domina os ruídos da pedra e da folhagem esta vida é uma viagem
e desce até nós, modesto e recreativo, pena eu estar
como uma gentileza do morro. só de passagem
(Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do mundo. São (Paulo Leminski, La vie em close. 5a ed. S.Paulo: Brasiliense,
Paulo: Companhia das Letras, 2012, p.19.) 2000, p.134)

12. No poema “Morro da Babilônia”, de Carlos 14. No poema de apenas três versos, o poeta lamenta-
Drummond de Andrade, se
A) a menção à cidade do Rio de Janeiro é feita de modo A) da fugacidade da vida.
indireto, metonimicamente, pela referência ao Morro da B) demonstra preferir a vida espiritual à terrena.
Babilônia. C) revolta-se contra o seu destino.
B) o sentimento do mundo é representado pela percepção D) sugere que a vida não tem sentido.
particular sobre a cidade do Rio de Janeiro, aludida pela E) abomina a agitação da vida.
metáfora do Morro da Babilônia.
C) o tratamento dado ao Morro da Babilônia assemelha-se “Encostei-me a ti, sabendo bem que eras somente onda.
ao que é dado a uma pessoa, o que caracteriza a figura de Sabendo bem que eras nuvem, depus a minha vida em ti.
estilo denominada paronomásia. Como sabia bem tudo isso, e dei-me ao teu destino frágil,
D) a referência ao Morro da Babilônia produz, no percurso Fiquei sem poder chorar, quando caí.”
figurativo do poema, um oxímoro: a relação entre terror e
gentileza no espaço urbano. 15. (VUNESP) - Nesse poema, a fim de caracterizar a
transitoriedade dos sentimentos, dos afetos, o eu lírico
POÇAS D’ÁGUA se vale de
As poças d´água são um mundo mágico A) hipérbole, intensificando, por meio de expressões
Um céu quebrado no chão exageradas, o relacionamento amoroso.
Onde em vez de tristes estrelas B) eufemismo, empregando termos como encostei-me e
Brilham os letreiros de gás Néon. depus para amenizar a desilusão amorosa.
(Mario Quintana, Preparativos de viagem, São Paulo, Globo, C) antítese, apresentando expressões de sentido oposto,
1994.) como Sabendo bem e sem poder chorar, a fim de realçar
os sentimentos do eu lírico.
13. Levando-se em conta o texto como um todo, é D) metáfora, empregando palavras com sentido que não
correto afirmar que a metáfora presente no primeiro lhes é comum, para mostrar a fragilidade dos sentimentos
verso se justifica porque as poças da pessoa amada.
A) estimulam a imaginação. E) pleonasmo, intensificando o sentimento amoroso do ser
B) permitem ver as estrelas. amado por meio da redundância.
C) são iluminadas pelo Néon.
D) se opõem à tristeza das estrelas.
E) revelam a realidade como espelhos.

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