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É Próspero. É Pacífico. É o Nosso Lar.

Como se já não bastasse assistir os mesmos


vídeos de conduta do trabalho toda vez que me chamam a atenção, todos eles têm mesmo que
começar e terminar com o lema da cidade? É a terceira vez nesta semana, da próxima vez me
falaram que é rua! Não é como se eu estivesse roubando do mercado, mas o gerente fez
parecer que tinha cometido um crime gravíssimo e na frente de todo mundo, o que um pouco
de poder não faz com um ser humano.
Ele não devia ter falado daquele jeito com o Johnny. Ele nem sequer pediu comida.
Na verdade ele nunca disse nada. Nem mesmo o seu nome, o chamo de Johnny porque
sempre que lhe ofereci as sobras do dia, ou sanduíches que estavam próximos de expirar a
validade ele sempre escolhia o mesmo. O sanduíche de frango desfiado com requeijão Johnny
Jay’s, feito com frango quase de verdade - mas ele parecia adorar. O encontrei a pouco tempo
pela rua atrás do mercado, sempre solitário e com algum tipo de machucado pelo corpo, cujo
eu nunca tive coragem de perguntar de onde veio. Não é como se ele fosse me responder
também.
Mesmo não falando, ele sempre fazia questão de agradecer. Abaixava a cabeça e
fechava os olhos com força, como fazemos quando sorrimos - porém sem o sorriso. Acho que
Johnny também nunca aprendeu como sorrir. Dependendo do movimento do mercado eu
prolongo meu encontro com Johnny. Um encontro silencioso, acompanhado do som da
chuva, ambulâncias e um ocasional tiroteio. Toda vez, porém, ele apontava para cima, para
me mostrar luzes radiantes que cortam o céu e os admirava de boca aberta, como se fossem
estrelas cadentes. Nunca tive coragem de lhe dizer que são apenas as muitas linhas de trem
que passam por cima da cidade.
“Eu já não te disse para não alimentar esses ratos?!”, por um momento me esqueci
que ainda trabalho nesse mercado e levantei em um pulo, tamanho o susto. “Quantas vezes
vou ter que te falar que não se deve dar comida para esse tipo de gente? Você ajuda uma vez
e quando vê eles voltam em bando querendo mais e mais! Isso aqui vai virar uma infestação!
Nós temos uma reputação a zelar!”, eu queria estar imaginando quando o vi com uma barra
de ferro na mão indo pra cima de Johnny, o xingando de tantos nomes que não gosto nem de
lembrar.
Meu pedido foi atendido, porque com o barulho das explosões, a gritaria súbita e as
rachaduras subindo pela estrutura do estabelecimento me fez esquecer de tudo. Corri em
direção da porta afoito, tão nervoso que tinha dificuldade para abrir uma porta que nem
sequer estava trancada. Um instante de vacilação foi o suficiente para outra explosão ser
desencadeada e com ela trazer um pedaço enorme de teto que me jogou contra o chão duro,
me forçando a ser espectador do inferno de chamas que se formava em minha volta. O horror
impedia meus olhos de se fechar, mesmo querendo os fechar ao ver o fogo engolindo cada
uma das pessoas. E o maior horror é que logo será a minha vez.
Choro sem saber o motivo. Se por causa do medo, da dor, da fumaça que me agride os
olhos ou por não ter feito nada por Johnny. A dor lancinante em meu peito ameniza
abruptamente e penso que é um sinal de que meu encontro com o Milagre está próximo.
Tinha aceitado que meu destino é morrer, por isso meu cérebro demorou para aceitar que não
havia o feito e não apenas isso, mas que Johnny estava me erguendo em seus braços e me
tirando daquele pesadelo incandescente! Seu corpo ainda carregava os mesmos machucados,
mas nenhuma queimadura, mesmo pisando entre os destroços quentes e se jogando contra as
labaredas para me proteger.
Mais surpreendente, todavia, foi quando finalmente saímos do mercado. Johnny não
havia resgatado apenas a mim, como também inúmeros outros funcionários e clientes que
foram pegos em meio a este ato vil de destruição. Alguns ainda inconscientes, porém muitos
vibrando de felicidade ao ver o rapaz trazer mais um inocente em seus braços. O exaltando,
agradecendo ao Milagre pela sua existência, se jogando de joelhos ao chão e erguendo a mão
aos céus por estarem salvos. Todos, sem exceção.
Ainda era cedo para comemorar, o fogo ainda não havia atingido a cozinha e quando
o fez, uma explosão arrebatadora engoliu por completo o mercado, subindo e transformando
a noite em dia naquele distrito. O estrondo avassalador nos levou a audição e o clarão intenso
daquele incêndio nos paralisou, mas não nos levou. Em frente aos nossos olhos uma cortina
de fogo se formou, esfomeada e descontrolada querendo nos devorar, mas incapacitada de
vir, lutando para se libertar. Lutando com Johnny que de alguma forma era capaz controlar
esta explosão indomável e se colocar de frente ao perigo mais uma vez, para nos salvar. A
chama obedeceu a ele e em um redemoinho feroz deu voltas e se recolheu em seu peito.
O tempo rodou em um instante, todos estavam incrédulos. Não só a explosão foi
dominada, mas como todo o incêndio desapareceu e em meio ao braseiro que se tornou os
destroços levantou Johnny, cujo próprio corpo parecia ser feito de brasa. Seus machucados
eram como rachaduras em sua pele que exalavam fumos negros. Da nuca surgia mais uma
cabeça, idêntica a sua, mas com uma carranca de fúria indômita. Completamente diferente da
sua expressão gentil, quando finalmente se virou para nós e finalmente suspirou aliviado.
Fechou os olhos e abaixou a cabeça, agradecendo por todos estarem vivos e bem.
Por estar de olhos fechados não viu quem o arremessou a primeira pedra. Mas viu a
segunda, a terceira e logo perdeu a conta. Pois toda a cidade havia se voltado contra ele.
“Ele é uma aberração!”, "Blasfêmia contra o Milagre!”, “Chamem os Cavaleiros
Cintilantes!”, “Eu preferia ter morrido!”, “Ele encostou em mim, eu vou ser abandonado pelo
Milagre!”, “Some da nossa frente!”, “Maldito daeva!”, o coro incessante se inflamou e
parecia mais aterrorizante que o próprio incêndio, formando uma onda de repulsa contra
aquele que havia sido o seu salvador. E mais uma vez, nada pude fazer.
As pedras e a sujeira não pareciam afetar o seu físico, mas eu pude ver que as
lágrimas de Johnny descendo pelo seu rosto queimado, apenas por um breve momento antes
de ferverem e tornarem-se vapor. A cabeça atrás da sua nuca se rebatia como querendo
derramar a sua cólera sobre aquelas pessoas. E, assim como controlou a explosão domou a ira
da sua contraparte antes de emanar chamas por todas as rachaduras de seu corpo, afastando os
revoltados e cobrindo todo o seu corpo antes de subir aos céus com uma explosão controlada
que o propulsionou para cima. Desaparecendo por entre o breu da noite até se tornar apenas
uma luz radiante, cortando o céu feito uma estrela cadente.
E para esta estrela cadente faço meu mais ardente pedido:
“Que você encontre o seu verdadeiro lar.”

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