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Creche: Primeiras experiências


numa comunidade de aprendizagem

Liliana Videira* e Sónia Félix*

E sta é a história da procura de um caminho e de


uma identidade para a creche onde trabalha-
mos. Pretende ser uma partilha de um percurso re-
O meu sentir profissional

Esta não podia ser a resposta! Os meus dias eram


flexivo com avanços, recuos, poucas certezas e vazios. Eu achava que tinha que haver outra maneira
muitas dúvidas. É uma narrativa simples que de fazer as coisas mas sentia que não tinha capacidade
conta a profissão e retrata o percurso pessoal e para fazer mudanças. Estava muito sozinha e este iso-
profissional da equipa e dos grupos de bebés e lamento do profissional asfixia e não deixa avançar.
crianças que a protagonizam. Também tinha apenas um ano de serviço e não conhe-
cia nenhuma realidade, nem experiência em creche, que
fosse relevante. Entretanto conheci o MEM, mas, nessa
Quem somos? altura, fui trabalhar para o Pré-escolar. Quando regres-
sei à creche muito pouco tinha mudado, mas eu já não
O Centro Social de Azurva (CSA) existe era a mesma. As inquietações eram demasiadas para
desde 1981 e é uma IPSS (Instituição Particular de permitir que as coisas se mantivessem no mesmo registo.
Solidariedade Social) situada no concelho de Alguma coisa tinha de mudar!
Aveiro. Azurva teve características rurais e está in- Começámos a fazer as primeiras mudanças na or-
cluída numa freguesia rural. No entanto, tem ganização da creche e do pré-escolar, já formando gru-
pos heterogéneos nesta última valência. Em termos de
vindo a transformar-se numa zona dormitório da
rotinas e atividades começou a verificar-se uma colagem
cidade de Aveiro, pelo que se tem sentido, nos úl-
com o modelo do MEM para o pré-escolar, mais visível
timos anos, um crescimento populacional muito
na Sala de 2 anos, entretanto criada com a reorganiza-
elevado.
ção estrutural. No Berçário e Sala de 1 ano, o tipo de

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trabalho desenvolvido baseava-se em experiências sol-
Os primórdios da creche do CSA
tas e avulsas mas procurando sempre estar conectado
Em 1996 abre a creche do Centro Social de com os ideais do MEM. Estavam lançadas as sementes
Azurva com uma sala de Berçário e uma sala de 1 para se construir um projeto de creche essencialmente
ano. Com uma prática profundamente assisten- educativo! Estávamos no princípio do século XXI quando
cialista típica da época: filas de bacios nas salas; fui convidada para partilhar a minha prática no Con-
todos a fazer a mesma coisa ao mesmo tempo; gresso do MEM em Aveiro. No entanto, a instituição ti-
muitas mãos dos adultos nos “trabalhinhos “das nha um problema: a equipa pedagógica não trabalhava
paredes; as refeições feitas na sala; todo o dia en- segundo a mesma matriz e sempre que eu voltava para
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tre quatro paredes… o pré-escolar trazia todo o trabalho desenvolvido na cre-


che comigo…não havia continuidade. E foi assim até
2005, data em que houve renovação da equipa pedagó-
gica e a oportunidade de começarmos a construir um
percurso com sentido e continuidade educativa.
Sónia Félix
* Educação em Creche.

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No dia 15 de fevereiro de 2005, depois de cinco À procura da nossa identidade…


meses de iniciar a minha carreira profissional, comecei a
trabalhar na creche do Centro Social de Azurva. Fiquei Apesar de termos percorrido diferentes cami-
responsável pelas três salas de creche, num total de 39 nhos e abraçado diferentes abordagens, o nosso
crianças e 7 adultos. modo de ver a educação sempre se norteou pelas
O facto de existir um único educador para tantas conceções construtivistas e socioconstrutivistas.
crianças numa creche decorria do pressuposto de que Estes percursos foram essenciais porque ajudaram
não era necessário um educador para cada sala e que a construirmo-nos enquanto profissionais reflexi-
até seria um desperdício, tendo em conta que a creche vos, críticos e, uma das características mais impor-
era somente um lugar para prestar cuidados, desvalori- tantes de um Educador, a ter uma mente aberta
zando-se o cariz educativo que bebés e crianças desta para reequacionar a sua prática e a reconstrui-la.
faixa etária necessitam. Este período da primeira infân- Foi a partir destes avanços e recuos que, em con-
cia é crítico e fundamental no desenvolvimento e constru- junto, definimos alguns princípios educativos e
ção da aprendizagem e portanto, só com profissionais de fundamentos da prática pedagógica de creche em
educação atentos e com formação adequada é que se que firmemente nos apoiávamos.
torna possível criar creches de qualidade e que façam a Víamos a Creche como uma instituição emi-
diferença na vida dos meninos e famílias. nentemente educativa, mas com uma especifici-
As expectativas eram muito altas. As minhas, en- dade que requer que não se reduza à reprodução
quanto profissional em desenvolvimento, e as da Dire- de modelos da educação pré-escolar; valorizáva-
ção, que já tinha percebido que era fundamental cons- mos o trabalho de proximidade com a família mas
truírem um referencial de boas práticas pedagógicas. também com a comunidade, fazendo da creche
Deparando-me com um cenário em que a maioria um contexto aberto ao exterior; tínhamos uma
das auxiliares tinha mais de dez anos de casa, um dos conceção da criança como sujeito competente e
primeiros desafios foi construir um sentimento de con- co-construtor da sua aprendizagem;
fiança e cooperação de modo a que elas também se sen- Nesta procura de um referencial sólido e con-
tissem parte deste projeto. O objetivo é que elas não fos- sistente que suportasse a nossa prática em creche,
sem meros passageiros, mas sim parte da tripulação surgiu entretanto a oportunidade de participar-
(Watkins, 2004). Enumero algumas estratégias que mos na Oficina de Creche, promovida pelo Nú-
contribuíram definitivamente para a construção de uma cleo Regional de Aveiro e dinamizada por Assun-
verdadeira equipa pedagógica: reuniões semanais de ção Folque e por Marta Bettencourt. Pretendíamos
planificação e avaliação, co-responsabilização da auxi- que esta ação de formação viesse clarificar a ma-
liar no desenvolvimento das atividades, clima de livre triz do MEM na sua especificidade para contextos
expressão, gestão positiva de conflitos de ideias e opi- de creche de modo a que não fosse uma réplica da
niões. educação pré-escolar e queríamos, por outro lado,
Nesta procura de referenciais pedagógicos para que a nossa prática não fosse um patchwork de mo-
creche tive contacto com a abordagem High Scope atra- delos e abordagens.
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vés do livro Educação de bebés e crianças pequenas Ao longo da ação de formação foram sendo
em infantários (Post et Hohmam, 2007) Este seria o abordados vários aspetos estruturantes para a re-
ponto de partida para a construção de um projeto peda- flexão e partilha do grupo de formandos e forma-
gógico de qualidade na creche e também para o cresci- dores:
mento como profissionais reflexivos em que, dialogando – Revitalização cultural e social da creche
e procurando alternativas, nos fomos construindo como – Creche como comunidade de aprendiza-
equipa. Foi um tempo de experimentar: nova organiza- gem
ção temporal, novos modelos de planificação, organiza- – Envolvimento da família e da comunidade
ção do grupo, tipos de atividades proporcionadas, papel – Organização dos tempos, espaços e mate-
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do educador. No entanto, a Sala dos 2 anos manteve riais


sempre uma estrutura mais próxima do MEM, imi- – Acompanhamento/regulação cooperada de
tando a organização do pré-escolar. processo de aprendizagem
Liliana Videira – Papel do educador

Assim, como Folque, Bettencourt e Ricardo


(2015) “compreendemos a creche como institui-

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ção eminentemente educativa onde a cultura a observação do que as crianças faziam, ainda tí-
constitui o centro da sua atividade, fazendo circu- nhamos dificuldade em interpretar autentica-
lar no seu quotidiano, as práticas e os instrumen- mente o que observávamos, retirando o seu ver-
tos que constituem o nosso processo de humani- dadeiro sentido social e cultural. Uma ilustração
zação” (p. 20). desta ideia é que as atividades se centravam muito
Esta perspetiva em creche pressupõe que as no currículo (experiências-chave High Scope), ou
crianças pequenas contactem com a sua comuni- seja, elas eram propostas ou ganhavam sentido
dade para construir o sentido de pertença ao terri- porque faziam parte do currículo e não porque
tório de que fazem parte. É na convivência em ati- eram manifestações culturais ou necessidades de
vidades culturais autênticas que enquadramos a crianças com histórias próprias e de comunidades
aprendizagem das crianças assim como a aprendi- vivas. Por outro lado assumíamos ainda a tradicio-
zagem de todos os outros que nelas participam. nal estimulação sensorial como atividade privile-
Parece-nos importante dar ênfase a este úl- giada para os bebés, parecendo esquecer as di-
timo conceito, atividades culturais autênticas, mensões comunicativas, afetivas e corporais com
uma vez que foi este princípio que provocou a que atribuímos significado ao mundo que os ro-
grande mudança: no papel e estilo do educador de deia.
creche, na organização do cenário educativo, na
forma como se encara a participação das famílias
e da comunidade e na planificação e avaliação do Mudanças no quotidiano educativo
processo de aprendizagem.
Compreendemos o processo de educação Este redirecionar de olhar, apoiado na refle-
como um processo de humanização em que, atra- xão conjunta que acontecia a partir da ação de for-
vés da interação com outros em atividades cultu- mação que frequentávamos, e no trabalho entre
rais, nos apropriamos da herança cultural e dos sessões, veio a dar origem a algumas mudanças na
seus instrumentos (Folque, Bettencourt & Ri- organização do quotidiano educativo.
cardo, 2015).
Temos assistido ao afastamento das institui- A organização dos grupos
ções escolares da vida e da cultura criando uma
cultura de escolarização muito própria (Niza, Tal como nos princípios para a educação pré-
1996; Folque, Bettencourt & Ricardo, 2015): “Isso escolar, o MEM para creche também prevê grupos
são coisas da escola” usa dizer-se... Como se a es- constituídos por crianças de várias idades de
cola não fosse vida ou tivesse uma cultura especí- modo a assegurar a “heterogeneidade social e cul-
fica distante e desligada daquilo que é a nossa he- tural” que enriquece a vida e o processo educa-
rança cultural e social. tivo. Na nossa realidade, embora os grupos ainda
Na creche, este afastamento é ainda mais fla- estejam organizados por idades, procuramos já
grante, assistindo-se a um estimular de sentidos colmatar esta limitação, promovendo encontros

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de modo desligado e a lições sobre conceitos. As- entre grupos de bebés e as crianças mais velhas, e
siste-se ainda a uma “colonização” de outros ní- com adultos da comunidade em momentos pré-
veis de ensino na tentativa de se mostrar “traba- estabelecidos do dia-a-dia. Estas situações de inte-
lho”, perdendo-se desta forma toda a complexi- ração passaram a fazer parte do quotidiano quer
dade humana, social e cultural da criança. na partilha de projetos, quer nas visitas de pais e
Tratamos as “coisas da escola” como “coisas amigos à sala ou em pequenos passeios ao exte-
da vida”, procurando compreender o significado e rior, quer ainda na participação nas atividades de
o motivo das ações humanas, em que a criança tradição cultural. Passou também a ser comum
participa à sua medida. Entendemos que tudo o que alguns meninos do jardim de infância viessem
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que acontece na creche são atividades humanas e passar a manhã às salas de creche, acompanhando
por isso marcadas pela cultura (Folque, Betten- todas as atividades.
court & Ricardo, 2015). Numa manhã, ao chegar à sala, o Guilherme
Também nós, há algum tempo, fomos aque- mostrou uma notícia escrita pela mãe, e ilustrada
las educadores que planeavam tempos e ativida- com fotografias, que dizia: “A massa já estava
des estruturadas e previsíveis para uma semana pronta, por isso começámos a partir o queijo e o
em que, embora o ponto de partida fosse sempre fiambre. Um pedaço para a taça e outro para a

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nino e mostrou como fazia a base: É como na plas-


ticina, temos de esticar a massa (usando o rolo). A
Carolina observava o Rodrigo enquanto levava
um pedaço de massa à boca: É bom! Ao ver a ati-
tude da Carolina, o Rodrigo disse: Não é para comer
ainda está cru! Depois acrescentou ao olhar para
um dos adultos: Ela é pequenina, não é? O meu mano
também põe massa na boca.
Os meninos observavam o Rodrigo com
atenção e imitavam os seus gestos. Quando apre-
sentava cada ingrediente, o Rodrigo incentivava
os meninos a provarem: “A mãe diz que temos de co-
Figura 1. O Guilherme e o mano Rodrigo mer de tudo. Por isso temos que provar.”
fizeram pizza! (Sala 1 - 1 ano) Esta atividade revelou-se um momento
muito significativo para todos porque teve origem
boca:)! Pincelámos a base da massa com polpa de numa experiência de casa e foi conduzida por um
tomate. Espalhámos os ingredientes e voltámos a par mais velho sem ser um adulto. O facto de es-
provar. Os cogumelos tinham um sabor estranho! tarmos juntos a confecionar um prato, atividade
Colocámos orégãos et voilá! Mamã e papá adora- que ainda não tinha sido proporcionada, também
ram!” foi um fator motivador para as crianças. Durante
À hora do almoço, cruzámo-nos com o Ro- todo o processo, enfatizamos as interações que se
drigo, o irmão mais velho que estava numa sala do estabeleceram entre os meninos e o Rodrigo: para
Pré-escolar, e convidámo-lo a vir à nossa sala, en- os meninos da Sala 1 isto foi importante porque o
sinar todos os meninos a fazer pizza. Rodrigo, como par mais experiente e competente,
os conduziu a um patamar de realização que sozi-
nhos não seriam capazes de alcançar; quanto ao
Rodrigo, esta atividade trouxe-lhe prestígio junto
dos seus pares e dos próprios meninos da Sala 1.
Os colegas da sala do Rodrigo também quiseram,
tal como ele, vir fazer e ensinar algo aos meninos
da Sala 1.

A organização dos tempos

A organização temporal dos grupos na creche


reestruturou-se tendo em conta a diferenciação e a
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simultaneidade de atividades. Isto quer dizer que


ao mesmo tempo podem estar a ocorrer várias ati-
Figura 2. Pizza 2 vidades diferentes (tempo de explorar, descobrir e
brincar em simultâneo com atividades e projetos e
ainda com momentos de repouso e higiene…).
Nesse mesmo dia informámos os pais através Exemplo: Sala 1
do Queremos/Fizemos que no dia seguinte o Ro- Um pequeno grupo está a pintar na mesa
drigo, irmão do Guilherme, nos viria ensinar a fa- com um adulto - Explorar, descobrir e brincar; ou-
zer pizza. Pedimos ainda a colaboração dos pais tro grupo está na área dos jogos com outro adulto;
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para que cada um oferecesse um ingrediente. uma das crianças transporta os bebés para a área
Na manhã do dia seguinte, fomos para o re- da biblioteca e deita-os nas almofadas. Outro
feitório fazer a pizza. Cada menino mostrou o grupo está a brincar na área do faz de conta. Um
que trouxe de casa. Enquanto mostravam, iam di- dos adultos está na zona da higiene a mudar a
zendo: Pizza do Gui! Nanás! (ananás) Sónia, queijo! fralda a uma criança.
O Rodrigo foi explicando e mostrando como Parece-nos importante salientar que toda a
se fazia. Deu um pedacinho de massa a cada me- dinâmica de uma sala de creche não se define em

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torno das idas à casa de banho, necessidades de O acompanhamento e regulação cooperada


alimentação e repouso. Não menosprezando estes da aprendizagem
momentos de resposta a necessidades biológicas,
organizamo-nos de modo a que naturalmente, tal De acordo com Folque, Bettencourt e Ricardo
como na vida, se enquadrem no quotidiano de to- (2015), “[o] planeamento das atividades em creche
das as vivências de uma sala. Isto é, o grupo não decorre de diversos pontos de partida podendo es-
vai todo à casa de banho porque nem todos têm tes confluir em propostas carregadas de signifi-
essa necessidade. A própria gestão da equipa edu- cado” (p.26). Os diversos pontos de partida in-
cativa da sala permite que se apoie individual- cluem: os interesses e escolhas das crianças, as ne-
mente cada criança quando necessita de comer, cessidades das crianças, as dificuldades das
descansar ou trocar a fralda. Isto permite que a famílias e dos/as educadores/as, a vida na creche,
vida de uma sala flua sem ter paragens desneces- em casa ou na comunidade, e o contacto com o
sárias. Por outro lado, ao atender cada criança, in- património natural e cultural.
dividualmente, é possível dar-lhe atenção e estar Durante este processo formativo que temos
só para ela, num momento que se quer breve, mas vindo a relatar, fomos compreendendo melhor a
de qualidade. importância das famílias na construção de uma
Outra questão que fez parte da nossa refle- creche como um espaço de cultura e de diálogo.
xão e mudança foi o equilíbrio entre tempos cole- Assim sendo, a educadora assume um papel de
mediador entre as crianças e famílias valorizando
tivos e tempos de pequenos grupos. Partindo do
a diferença e, simultaneamente, promovendo a
pressuposto de que tempos coletivos extensos
construção de uma comunidade de aprendizagem
não privilegiam as interações mais atentas e foca-
com uma identidade comum.
das e de que é penoso manter crianças sentadas
Isto implicou uma maior e mais autêntica
por um longo período de tempo, foi nossa opção
proximidade com as famílias com as quais se
reduzir os tempos coletivos ao mínimo. No en-
construiu um clima de compreensão tendo em
tanto, e porque se estão a descobrir como seres
conta qual o universo cultural e especificidade de
sociais, alguns tempos em grande grupo existem
cada família. O protagonismo que é dado à famí-
naturalmente, pois as crianças estão a construir o
lia no processo educativo dos seus filhos faz com
sentido de pertença e de identidade bem como o
que o que dizem e o que trazem seja o motor da
da construção cooperada da cultura e o significado
dinâmica do quotidiano da sala. E é isto que é vi-
social da aprendizagem em partilha. O tempo de sível na planificação das atividades e na dinâmica
acolhimento/comunicações da manhã, o conto de do dia a dia da creche.
uma história ou teatro e a visita de familiares ou Ao nível da planificação, a nossa atenção pas-
pessoas da comunidade são os momentos coleti- sou a centrar-se muito mais no que se faz e não no
vos que normalmente privilegiamos, mantendo que se está a aprender. Em vez de fragmentar e es-
sempre a flexibilidade e a abertura para que algu- partilhar o currículo pelas áreas de desenvolvi-

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mas crianças abandonem o grupo em certos mo- mento, destituindo-as de sentido e de conexão
mentos. com a vida, importa agora valorizar as experiên-
Esta gestão da dinâmica de uma sala de cre- cias, as interações e as relações que se constroem
che só é possível quando as auxiliares são mem- quando todos participam em atividades culturais
bros efetivos da equipa pedagógica. Há já algum autênticas em comunidade de aprendizagem, par-
tempo que realizamos sessões de formação in- tindo da certeza de que as crianças estão e, na ver-
terna com as auxiliares. Nestes encontros discuti- dade, todos estamos sempre a aprender.
mos e refletimos sobre problemas e dúvidas con- Antes (Experiência sensorial) - A Educadora
cretas da prática. Este processo permitiu construir trazia beterraba para os meninos exploraram em
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gradualmente uma identidade pedagógica e um tempo de pequenos grupos (2007);


modo de fazer em sintonia. Cada adulto na sala Neste fim de semana o Diogo foi à casa da
sabe que papel desempenha e como deve atuar e avó Bela e trouxe vários legumes. Mostrou-os de
o porquê. A valorização da auxiliar, como par pe- manhã quando chegou à sala. Escrevemos no
dagógico, é uma mais-valia no trabalho que se de- Queremos/Fizemos que queríamos fazer uma
senvolve em qualquer contexto educativo. sopa e para isso teríamos de trazer mais legumes.
Escrevemos um recado para as famílias. No dia se-

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O exemplo 1 reflete um modo de fazer cen-


trado na dita exploração sensorial e no plano do
educador. No exemplo 2 integra-se a atividade
num referencial cultural que é cozinhar sopa
tendo como ponto de partida uma vivência de
uma criança.
A grande mudança relativamente à questão
da regulação cooperada das aprendizagens na cre-
che centra-se no facto de ser um contexto marca-
damente cultural que, por diversos circuitos de co-
municação, contribui e potencia o processo de hu-
manização de cada criança. Numa creche com
Figura 3. Atualmente (Fazer sopa! esta perspetiva, o papel do educador não pode ser
- Sala 2 /2017) aquele que planeia ficticiamente atividades
“muito boas para os meninos”, mas sim o de um
guinte partilhámos o que trouxemos e fizemos a profissional que está atento e valoriza a cultura
sopa que comemos ao almoço. das famílias e da comunidade bem como os inte-
As crianças chegaram pela manhã com os resses e escolhas da criança. Como mediador de
seus legumes e todos queriam mostrá-los. O cultura, o educador pretende que a creche se cons-
Afonso trouxe cenouras e disse: Eu trouxe cenouras. trua como uma comunidade de aprendizagem em
A mãe disse que fazem bem aos olhos. A Matilde diálogo e cooperação com a vida quotidiana dos
trouxe courgette e contou-nos que as comprou na contextos de origem das crianças.
praça. O Guilherme trouxe alface do quintal da
avó.
Os adultos descascaram os legumes e os me- Trabalho com as famílias e abertura
ninos cortaram-nos com facas de mesa. Enquanto à comunidade
isso, alguns foram provando:
Hum! É boa! - disse a Carolina a provar uma Ao longo do texto já muito se falou acerca da
cenoura. parceria com as famílias, nomeadamente nos cir-
Isso não é para comer, isso é para a sopa. -acres- cuitos de comunicação que se estabelecem, na va-
centou o Diogo M. lorização das suas experiências, na construção de
É duro Sónia! Ajuda! - pediu o Diogo C. en- relações de confiança entre a creche e as famílias.
quanto tentava cortar o nabo. Desde o começo deste processo de aproximação
Depois de cortar, um pequeno grupo lavou os com as famílias afirmamos seguramente que, ape-
legumes na cozinha. Normalmente a cozinha é sar dos progressos, é uma tarefa difícil, exigente e
um lugar interdito às crianças e restantes colabora- em contínua construção. É absolutamente neces-
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dores que não pertençam a esse setor, daí que se sário uma certa maturidade profissional e pessoal
tenha tornado uma excelente oportunidade de co- para gerir todas as relações num ambiente de fle-
nhecer este espaço e contactar com as pessoas que xibilidade e sem confusão. É por esta razão que a
lá trabalham. organização que defendemos no Movimento da
Finalmente colocámos os legumes na panela Escola Moderna permite desenvolver esta maturi-
e o Diogo disse: Agora a Cânina (Cândida) toma dade porque não estamos sós, uma vez que o pro-
conta! fissional se constrói em diálogo com outros profis-
À hora do almoço apreciámos a nossa sopa. A sionais.
nossa sopa está muito boa! - disse o Pedro. Relativamente aos circuitos de comunicação
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Relativamente ao impacto que esta atividade com as famílias, enumeramos algumas estratégias
teve nas famílias, salientamos a sua enorme satis- que costumamos utilizar para nos “encontrar-
fação quando viram expostas as fotografias e o re- mos”. Os grupos fechados do facebook, onde publi-
gisto descritivo do processo: porque se tratava de camos atividades, recados, artigos; as exposições
um alimento saudável, porque se vê a participa- sobre o trabalho desenvolvido nas salas (nas pare-
ção efetiva das crianças e porque também elas des das salas, corredores, hall da instituição); o
próprias foram chamadas a participar. instrumento de planificação e avaliação (Fize-

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mos/Queremos fazer); o painel de partilha do cor- em que as atividades se desenvolvem no exterior.


redor principal onde se sugerem propostas cultu- Quando vamos lá fora, por vezes, levamos so-
rais, leituras, recados importantes, e que se pre- mente um pequeno grupo para que possamos dar
tende que seja bilateral (creche-família e família- mais atenção a cada criança e ao que está a fazer.
creche); os momentos presenciais de acolhimento As atividades que decorrem no exterior são dife-
e despedida onde há sempre oportunidade de diá- rentes das que acontecem na sala. No entanto a
logo sobre os acontecimentos diários, e os cader- conexão entre interior e exterior é inevitável.
nos vaivém onde se relatam as conquistas e as ex- Quanto ao papel dos adultos, pretende-se
periências de cada criança. que se constituam como observadores atentos,
mas não intrusivos ao ponto de manipular e de
guiar o jogo e as interações entre as crianças.
Sair das quatro paredes

Ainda na continuidade das mudanças que fi- Para finalizar


zemos na creche, temos de abordar a nossa pers-
petiva face aos espaços exteriores como potencia- Recordando a matriz inclusiva do modelo pe-
dores de aprendizagem e bem-estar nos bebés e dagógico do MEM, a creche é um lugar acolhedor
crianças pequenas. Fruto de um projeto de forma- de todos na sua diferença. Diferença essa que nos
ção em contexto sobre esta temática “Brincar sem acrescenta e nos valoriza. A creche que temos
teto”, requalificamos os nossos espaços exteriores vindo a construir tem a sua génese numa visão
de modo a promover a continuidade dos espaços profundamente educativa, onde a cultura consti-
ao interiores com o objetivo de abrirmos as portas tui o centro da sua atividade. Educar bebés e crian-
das salas para contactarmos com os outros espa- ças é um processo de humanização em que, atra-
ços, as outras pessoas que compartilham con- vés da interação com outros em atividades cultu-
nosco a sua cultura e as suas experiências. rais significativas, nos apropriamos da herança
De facto, as exigências profissionais das fa- cultural e nos construímos como cidadãos.
mílias obrigam a que as crianças permaneçam Esta é um pouco da história do nosso per-
muito tempo na creche, mais até do que seria de- curso. Gostamos de pensar que esta partilha po-
sejável. Por isso, torna-se absolutamente necessá- derá constituir um ponto de partida para a refle-
xão e para a mudança de práticas e motivar outros
educadores a escreverem sobre o que fazem nas
creches, de forma a valorizar quer a profissão quer
esta etapa fundamental da educação.

Referências bibliográficas:

N.º 5• 6.ª série • 2017


Folque, M. A. Bettencourt, M. & Ricardo, M.
(2015). A prática educativa na creche e o mo-
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Figura 4. Foto do exterior.
gens. (3.ª ed.).Lisboa: Fundação Calouste Gul-
rio que se crie um ambiente de bem-estar emocio- benkian.
ESCOLA MODERNA

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está isolado dentro de quatro paredes sempre com pré-escolar da Escola Moderna Portuguesa. In
as mesmas pessoas. Neste sentido, os espaços ex- J. Oliveira-Formosinho et. al (Ed.). Modelos
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Todos os dias os meninos têm oportunidade Watkins, C. (2004). Classrooms as learning com-
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