Nilo Batista - Critica Ao Conceito de Politica Criminal

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS


Faculdade de Direito

Nilo Batista

Notas para um Curso de Política Criminal

1
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
Faculdade de Direito

Primeira aula

Crítica metodológica do conceito corrente de política criminal

1. Para Beristain1, no que parece secundado por Delmas-Marty2, a Política


Criminal nasce com Feuerbach; já para Asúa3, ela teria nascido com
Beccaria. Sob certo aspecto, ambos têm razão; sob outro, mais largo,
nenhum deles tem razão.

2. Beccaria é sem dúvida o autor de um importante livro de política criminal, que


foi aliás a primeira obra citada por Feuerbach em seu Tratado, na nota de
rodapé dedicada à matéria4. (O primeiro levantamento bibliográfico
especialmente de política criminal foi publicado em 1816 por Bohemero.) A
propósito de sua ingênua construção teórica contratualista para deslegitimar a
pena de morte, Beccaria foi achincalhado por Kant na Metafísica dos
Costumes, três parágrafos antes do filósofo recomendar que o infanticídio não
fosse punido com a pena capital porque a criança nascida fora do matrimônio
é uma “criança fora da lei”, uma vida portanto menos valiosa.

1
Beristain Ipiña, Antonio, Hoy y mañana de la politica criminal protectora y promotora de los valores humanos, em
AA.VV., Política Criminal Comparada, Madri, 1999, ed. CGPJ, p. 14.
2
Delmas-Marty, Mireille, Modelos e Movimentos de Política Criminal, trad. E. Oliveira, Rio, 1992, ed. Revan, p.
24.
3
Asúa, Luís Jimenez de, La Política Criminal en las Legislaciones Europeas y Norteamericanas, Madri, 1918, ed.
L.G.V Suárez, pp. 15 ss.
4
§ 6º, nota 4.

2
3. Feuerbach, que encontrara na coatividade um elemento conceitual do direito,
viu na pena uma modalidade da coação juridicamente exercida; contudo, ele
deveria afastar-se da influência kantiana para atribuir-lhe um fim de
prevenção geral. Feuerbach é, talvez antes de tudo, alguém que se antecipou
a Fichte na separação cabal entre direito e moral. Este merecimento
compensa as limitações liberais de seu pensamento político-criminal.

4. Se ambos, Beccaria e Feuerbach, podem ser livremente escolhidos como


marcos referenciais da Política Criminal, é porque ambos representam muito
intensamente uma mesma conjuntura histórica, marcada pela ascensão mais
ou menos revolucionária da burguesia e por uma radical transformação nos
métodos de exercer o poder punitivo. A política criminal da burguesia e do
liberalismo está muito bem representada por Beccaria e Feuerbach. Aquele
foi um momento histórico precioso, porque a livre disposição do corpo do
acusado ou condenado pelo poder punitivo absolutista começou a sofrer
restrições. A estratégica importância das garantias processuais, dos hoje
princípios constitucionais irremovíveis que protegem os suspeitos e acusados
pode ser avaliada recentemente, pois Guantánamo e as prisões sem território
da comunidade global de torturadores restauraram aquela prerrogativa que o
direito penal moderno, instituído como contra-poder, pretendeu que não
ultrapassasse o antigo regime.

5. Porém, não teria havido política criminal antes de Beccaria e Feuerbach? A


Inquisição porventura não formulou uma política judiciária, minuciosamente
exposta em tantos manuais? Alguém suprimiria a reflexão política ao enlaçar
a colonização e a pena de degredo? A concentração de poder punitivo que
viabilizará a formação dos Estados nacionais europeus não foi um processo
político-criminal de longa duração? Os ensinamentos de jesuítas ou de

3
fazendeiros sobre como controlar e castigar escravos não representam uma
específica política criminal brasileira ?

6. É claro que podemos investigar poder punitivo na idade média e na


antiguidade, e podemos portanto procurar compreender nessas longitudes
práticas e mentalidades penais. Sem dúvida, houve poder punitivo muito
antes da invenção histórica da pena pública. Isto estaria, no entanto, dentro
do objeto da Política Criminal?

7. A política criminal moderna foi concebida por Feuerbach como “conjunto de


procedimentos repressivos através dos quais o Estado reage contra o crime”;
esta concepção, que reduz a política criminal à tarefa acrítica de aprimorar a
eficácia do sistema penal, generalizou-se. Para Delmas-Marty, “o conjunto
dos procedimentos através dos quais o corpo social organiza as respostas ao
fenômeno criminal”5; para Zipf, “obtenção e realização de critérios diretivos no
âmbito da justiça criminal”6; para Borja Jimenez, “aquele setor do
conhecimento que tem como objeto o estudo do conjunto de medidas,
critérios e argumentos que os poderes públicos empregam para prevenir e
reagir frente ao fenômeno criminal”7; para Bustos Ramírez e Hormazábal
Malarée, a política criminal é o “poder de definição de um conflito como delito”
exercido exclusivamente pelo Estado8; para Fernando Galvão, “o conjunto de
princípios e recomendações que orientam as ações da justiça criminal, seja
no momento da elaboração legislativa ou da aplicação e execução da
disposição normativa”9; por este caminho também andei10.

5
Op. cit., p. 24.
6
Zipf, Heinz, Introducción a la Política Criminal, trad. M.I.Macías-Picavea, Madri, 1979, ed. Edersa, p. 4.
7
Borja Jiménez, Emiliano, Curso de Política Criminal, Valência, 2003, ed. T. lo Blanch, p. 23.
8
Bustos Ramírez, J. e Hormazábal Malarée, H., Nuevo Sistema de Derecho Penal, Madri, 2004, ed. Trotta, p. 25.
9
Política Criminal, B. Horizonte, 2000, ed. Mandamentos, p. 23.
10
Batista, Nilo, Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, Rio, 1990, ed. Revan, p. 34.

4
8. Sem cerimônia, Marc Ancel afirmava que “a política criminal tem inicialmente
por objeto a repressão do crime”11; mais criativo, Asúa disse que ela
constituía um “direito penal dinâmico”12. No ambiente positivista esse
dinamismo tende a ser visto como evolução, e Asúa lembra um episódio bem
ilustrativo da concepção evolucionista pela qual a política criminal de hoje se
converte na legislação penal de amanhã. No prefácio da 20ª edição de seu
Lehrbuch (1914), von Liszt registrou que relutara em manter o § 15 de sua
obra, porque tal parágrafo deveria desaparecer quando o projeto
governamental de Código Penal (a cuja Comissão redatora, aliás, ele prestara
consultoria) fosse sancionado.

9. Essa perspectiva acabou por configurar uma Política Criminal quase


dogmática, na qual se tomava como a priori a suficiência de uma razão penal
(a legitimidade da pena), a racionalidade do legislador e os efeitos sociais
benéficos, diretos ou indiretos, retributivos, neutralizantes ou preventivos, da
aplicação e execução das penas. Injunções provenientes da classe social dos
infratores estavam sempre dissimuladas pela busca de eficiência punitiva,
para o bem ou para o mal. Por exemplo, entre o final do século XIX e o início
do XX, a Política Criminal devia ocupar-se do perigosismo (medidas de
segurança), decisivo para o controle e adestramento do lumpesinato e do
proletariado urbano; paralelamente, a questão elegante era a alternativa para
as penas privativas de liberdade de curta duração (reparação do dano,
repreensão, sursis), os dispositivos punitivos gentis para os não-perigosos.

10. Parece que, antes de mais nada, a Política Criminal tem que se encarregar
de conhecer o próprio sistema penal, e as funções – não só as manifestas,
mas principalmente as ocultas – que ele desempenha junto ao regime

11
Pour une etude systematique des problemes de politique criminelle, em Arch. de Pol. Criminelle, nº 1, Paris, 1975,
p. 16.
12
Op. cit., p. 9.

5
econômico e à organização social. Decisões políticas pela criminalização de
novas condutas ou pela descriminalização de outras, bem como decisões
sobre aspectos processuais e executórios, são apenas um pequeno pedaço
da Política Criminal.

11. O discurso técnico-jurídico é frequentemente encobridor. O positivismo de


Kelsen expurga a historicidade do Estado para reduzi-lo à validade do
ordenamento jurídico13: o melhor esconderijo para a realidade histórica dos
sistemas penais ainda é o antigo vestígio expiatório, de fundo religioso, que o
dogma da pena manteve. Em direito penal fala-se do legislador
predominantemente como se falaria de um marciano, que paira acima dos
conflitos e dos interesses; na política criminal, o legislador concreto constitui
objeto privilegiado de atenção.

12. Von Liszt acomodaria, positivisticamente, direito penal, criminologia e


política criminal. Sua política criminal tinha a dupla pretensão teórica de
empreender a avaliação crítica do direito vigente (die kritische Würdigung des
geltenden Rechts) e constituir-se como programa para uma legislação do
futuro (einer Gesetzgebung der Zukunft)14. No Programa de Marburgo (1882),
um trabalho que levou para o terreno penalístico a finalidade e o darwinismo
que Ihering introduzira no pensamento jurídico, a classe operária era
apresentada como “manifestação patológica da sociedade”15. Liszt mencionou
a tensão garantista entre esta política criminal, cuja tarefa é afiar os punhais
punitivos, e o direito penal, visto assim como controle garantístico do poder
punitivo habilitado pelas leis (“Carta Magna do delinquente”, “barreira
infranqueável”).

13
Bonavides, Paulo, Ciência Política, S. Paulo, 1998, ed. Malheiros, p. 42.
14
Lehrbuch des Deutschen Strafrechts, Berlim, 1915, ed. W. de Gruyter, p. 13.
15
Von Liszt, La teoria dello scopo nel diritto penale, trad. A.A. Calvi, Milão, 1962, ed. Giuffrè, p. 54.

6
13. Ninguém mais do que Roxin deu-se conta das possibilidades teóricas
abertas pela acomodação categorial de von Liszt16, postulando
expressamente que as opções político-criminais se exprimam nos campos da
teoria do delito e da teoria da pena. Sua criação do requisito da necessidade
preventiva, ao lado e depois da culpabilidade para a responsabilização do
sujeito, é uma prova de sua coerência17. Essa coerência não impede que se
lastime incidir ela sobre um ato de fé, que é precisamente o fundamento
(legitimante da pena) preventivo-especial. As taxas da reincidência
penitenciária demonstram que “a harmônica integração social do condenado”
constitui uma espécie de missão impossível atribuída à execução penal (art.
1º, lei nº 7.210, de 11.jul.84). Observando a falta de cerimônia com a qual a
Política Criminal passou a frequentar os salões penalísticos, onde perduram
muitos preconceitos contra a Criminologia, escrevi certa ocasião que “no
sistema de Roxin, se as trocas com a política criminal receberam um enorme
impulso, a criminologia foi deixada no vestíbulo: era uma convidada algo
inconveniente, cujos maus modos poderiam perturbar o encontro, explodindo
numa gargalhada quando alguém falasse de ressocialização através da
privação de liberdade”18.

14. As relações entre Criminologia e Política Criminal não parecem ser tão
difíceis e complexas, mesmo quando tratadas por autores sem maiores
simpatias pela primeira19. Ver na Política Criminal uma Criminologia Aplicada,
ou qualquer outro dos tantos paralelismos propostos (transformar / interpretar;
crítica / estética; etc) não tornam confusas as fronteiras acadêmicas, sempre
convencionais, entre ambas as disciplinas. A Política Criminal tem por objeto
imediato o poder punitivo e as agências governamentais encarregadas de sua
16
Roxin, Claus, Política Criminal e Sistema Jurídico-penal, trad. L. Greco, Rio, 2000, ed. Renovar.
17
Roxin, Claus, Derecho Penal, trad. D.M.Luzón Peña et al., Madri, 1997, ed. Civitas, pp. 791 ss.
18
Novas Tendências do Direito Penal, Rio, 2004, ed. Revan, p. 20.
19
Schüller-Springorum, Horst, Cuestiones Básicas y Estrategias de la Política Criminal, trad. C.A. Elbert, B. Aires,
1989, ed. Depalma, pp. 7 ss.

7
distribuição social (o sistema penal). Se a Ciência Política se ocupa do poder
e de sua institucionalização governamental, a Política Criminal pretende
privilegiar o exame de certa parte do poder, precisamente do poder punitivo20.
Portanto, a Política Criminal já poderia estar girada metodologicamente
enquanto a criminologia positivista ainda se arrastava no lamaçal etiológico
atrás do homem delinquente. A Política Criminal deveria, desde o primeiro
dia, ter olhado para a reação social concretamente formalizada. Como disse
Louk Hulsman, “uma das condições necessárias para a eficiente discussão
sobre política criminal é problematizar as noções de crime e de criminoso”21:
para a Política Criminal da tradição legitimante, dependente conceitual da
criminalização primária, essa problematização está proibida. Assim, o
horizonte da Política Criminal estaria dependentemente demarcado pela
programação criminalizante (pela lei penal): essa dependência existiu para a
Criminologia positivista e funcionalista, sendo rompida pela Criminologia
Crítica. Só a força de certas interdições do pensamento dogmático, como
aquela que da regra da proibição de negação extrai que a pena – este fato
antes de mais nada político, e rudemente político – não pode ser negada,
explica que os penalistas interessados em Política Criminal só quisessem
ampliar e melhorar a eficiência do escandaloso fracasso da pena de prisão,
só soubessem propor more of the same.

15. Seria completamente estranho se não estivessem dentro da Política


Criminal as temperaturas mais elevadas do debate acadêmico – que, na
verdade, estará refletindo o debate político. No Colóquio de Madri, realizado
em 1977 pela AIDP, tal como Gimbernat Ordeig registrou em seu relatório, as
dissidências com origem na disputa política foram verbalizadas com clareza

20
“A esfera de análise da política criminal abarca, mais além das sanções penais stricto sensu, todas as formas de
controle social” – Bricola, Franco, Política criminal y derecho penal, trad. J.A. Vega Veja, em Revue
Internationale de Droit Penal, 49º ano, nº 1, 1978, ed. AIDP, p. 108.
21
Penas Perdidas, trad. M.L. Karam, Niterói, 1993, ed. Luam, p. 156.

8
pela primeira vez: “como a política criminal é uma parte da política geral, (...)
é impossível que se estabeleçam acordos entre pessoas que partem de
distintas e mesmo contraditórias concepções do mundo e da sociedade”22.

16. Textos acadêmicos formulam sobre Política Criminal, trate-se de uma


reforma estrutural – a exemplo da proposta de Hassemer do “direito de
intervenção”23 – ou trate-se de uma reforma conjuntural, que busque um
reequilíbrio de poder entre agências24. Congressos e seminários constituem
um prato cheio,como Rosa del Olmo nos ensinou; quando o congresso
enfrenta temas de política criminal, é ouro sobre azul, como naquela
Conferência Judiciária-policial de 1917, realizada no Rio, na Biblioteca
Nacional, que representa uma síntese das políticas de vigilância e repressão
sobre o proletariado e outros alvos do sistema penal da República Velha25. As
exposições de motivos26, bem como os debates parlamentares e os vetos
presidenciais, constituem fontes igualmente importantes. Embora um
mapeamento das mentalidades punitivas pertença mais à Criminologia,
quando essas mentalidades propõem sobre a realidade, intentando
transformar os sistemas penais, a Política Criminal está legitimada para
considerá-las. Os meios de comunicação constituem hoje talvez um dos
maiores problemas da Política Criminal, especialmente por às vezes
assumirem funções de agências executivas (jornalismo investigativo,
campanhas contra réus etc) e por terem em suas mãos a seletividade: a cada
dia mais claramente, a imprensa determina o quê e quem deve ser
investigado. Os “especialistas” e as “vítimas” são personagem muito especiais
deste capítulo político-criminal. Aquela tentativa de golpe na Venezuela
22
Gimbernat Ordeig, Enrique, Relación General, em Revue, cit., p. XXXVI.
23
Hassemer, Winfried, Persona, Mundo y Responsabilidad, trad. F.M.Conde at al., Valência, 1999, ed. T. lo Blanch,
pp. 67 ss.
24
Por exemplo, meu texto Alguns princípios para a reforma da Justiça Criminal, em Novas Tendências, cit., pp. 79
ss.
25
Sobre ela, o artigo do Pedro Tórtima, em DS-CDS, ano 1, nº 2, Rio, 1996, ed. ICC, pp. 241 ss.
26
Leiamos os itens nº 66 e 67 da Exposição de Motivos do CP 1940.

9
poderia ter nos ensinado, atualizando Carl Schmitt, que soberano, na
verdade, é quem decide sobre a manchete do tele-jornal.

17. Quem sai à procura do poder punitivo saiu à procura da pena, nas várias
expressões de que ela se revestiu historicamente. Uma questão
particularmente atraente reside nas máscaras discursivas de que a pena se
valeu para despolitizar-se, para colocar o sofrimento punitivo disfarçado de
religião – eis a mais antiga máscara –, de medicina, de moral, de pedagogia
etc. Iniciaremos essa procura na próxima aula.

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