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No século V a.C.

, nasceu, em Halicarnasso, o historiador e geógrafo grego


Heródoto. Ele ficou conhecido por escrever a história da invasão persa na Grécia.
Apesar de falar das guerras persas, Heródoto foca sua narrativa no conflito entre
gregos e bárbaros, enquanto choque de sistemas culturais. Para conseguir tal fato,
ele usa recursos da história oral e entrevista tanto gregos quanto bárbaros,
buscando, por meio dos relatos narrados, reconstruir os fatos acontecidos.
Temos assim três elementos sendo apresentados. Heródoto buscou na sua ‘história’
a narrativa da guerra com os persas, sendo esse o fato histórico. Para escrevê-la,
ele usou como fontes de pesquisa os relatos e as narrativas dos personagens que
atuaram na guerra. Por fim, a metodologia utilizada foi a dos registros dos relatos
encontrados, o que se aproximaria hoje dos procedimentos da história oral.

O que distingue a atuação de Heródoto daquela dos historiadores do nosso tempo?


Talvez a busca de uma verdade? Qual metodologia deveria ser usada para alcançar
essa verdade?

Fato histórico

Se procurarmos nos antigos livros de história os fatos históricos estudados pelos


historiadores, será comum encontrarmos, neles narrados, os grandes
acontecimentos que tiveram lugar na história da humanidade, ou seja, aqueles
capazes de deixar seu registro no tempo. Por isso vemos uma sucessão de reinados,
invasões, guerras, revoluções, descobrimentos, entre tantos outros. Contudo,
desde o século XX até o momento atual, temos visto temas ou situações não tão
importantes tornarem-se objeto de estudo de historiadores.
O que mudou?
Mudou a questão do que deve ser considerado digno de estudo pela história. Os
fatos históricos são situações marcadas no tempo e no espaço, registros
significativos da presença humana, quando analisados em conjunto com outros
fatos históricos. Eles sempre se relacionam de alguma forma com outros fatos
semelhantes, seja no conceito que carregam, seja no tempo a que pertencem ou
ainda à região em que ocorreram.
Para que esses fatos sejam entendidos, registrados pelo historiador e
apresentados, é necessário que eles se tornem objetos de estudo. Os instrumentos
que possibilitarão o acesso do historiador ao fato acontecido são as fontes
históricas.

Fonte histórica

A historiadora francesa Marie-Paule Caire-Cabinet, ao escrever sobre a história da


historiografia francesa, lembra que com relação às fontes:
Desde a Idade Média, os historiadores se deparam com obstáculos de
acesso aos textos em razão do reduzido número de bibliotecas. Eles
procuram enriquecer sua documentação por meio de uma busca às
fontes; estão conscientes da importância da variedade de arquivos e de
livros e querem construir sua obra sobre essas bases sólidas. É assim que
eles procuram munir-se de documentos nos centros mais conhecidos [...].
(CAIRE-CABINET, 2003, p. 25)
Os historiadores utilizam as fontes para dar solidez às suas obras. São elas que
fornecerão os indícios em que os historiadores se basearão para buscar a verdade
histórica.
Quando a história se resumia à narrativa dos grandes feitos que marcaram a
humanidade, o historiador utilizava os registros oficiais para fundamentá-la. Esses
registros poderiam ser os tratados assinados entre as nações, os éditos reais, as
leis promulgadas, as declarações de guerra ou os armistícios, entre vários outros. O
que definia sua validade era o fato daquele reinado, ou daquele governo,
entendê-lo ou aceitá-lo como verdadeiro. Acontece que, da mesma forma que o
século XX definiu que outros fatos “menos importantes” poderiam ou deveriam ser
registrados, outras fontes também passaram a ser utilizadas.
Hoje entendemos que todo vestígio humano pode ser usado como fonte histórica. A
princípio, elas podem ser subdivididas em cinco categorias:

Fontes Fontes Fontes Fontes


Fontes orais
escritas visuais audiovisuais arqueológicas

As fontes ainda podem ser primárias ou secundárias. As primárias são aquelas que
remetem diretamente ao fato estudado, como um documento, uma fotografia, um
relato ou até mesmo um livro. As secundárias são aquelas que, de alguma forma,
foram intermediadas por um leitor ou agente.
Por exemplo:
Um livro escrito durante o Renascimento pode ser uma fonte primária para o
estudo do período. Mas um estudo do século XX sobre um livro escrito no
Renascimento nos traz informações do período, mediadas pela leitura do
historiador ou autor que se debruçou sobre o livro original.
Por que essa mudança com relação ao uso das fontes? Porque o pensamento
histórico, que conduz a análise histórica, mudou. Ou, de outra forma, o que os
historiadores entendem como sendo o pensamento, que norteia e/ou define a
escrita da história, foi alterado.
Quando os historiadores entendiam que a história seria o relato ou a narrativa dos
grandes acontecimentos do passado, era necessária a consulta das fontes capazes
de fornecer os elementos ou dos dados passíveis de auxiliar nos relatos desse fato
histórico específico. Se a história a ser contada era aquela dos reis, dos
governantes, dos nobres, enfim dos grandes eventos políticos, o historiador deveria
consultar as fontes que diriam a ele os dados necessários. Mas se os historiadores
entendem que a história de um homem do povo, de um comerciante ou de uma
professora foi significativa para o grupo a que eles pertenceram e pode, ainda,
ajudar a entender as relações estabelecidas ou fundadas a partir de sua ação,
serão necessários, talvez, outros tipos de fontes para fundamentarem essa
construção histórica.
Exemplo:
A escassez de testemunhos sobre o comportamento e as atitudes das
classes subalternas do passado é com certeza o primeiro – mas não o
único – obstáculo contra o qual as pesquisas históricas do gênero se
chocam. Porém, é uma regra que admite exceções. Este livro conta a
história de um moleiro friulano — Domenico Scandella, conhecido por
Menocchio — queimado por ordem do Santo Ofício, depois de uma
transcorrida em total anonimato. A documentação dos dois processos
abertos contra ele, distantes quinze anos um do outro, nos dá um quadro
rico de suas ideias e sentimentos, fantasias e aspirações. Outros
documentos nos fornecem indicações sobre suas atividades econômicas,
sobre a vida de seus filhos. Temos também algumas páginas escritas por
ele mesmo e uma lista parcial de suas leituras (sabia ler e escrever).
Gostaríamos, é claro, de saber muitas outras coisas sobre Menocchio. Mas
o que temos em mãos já nos permite reconstruir um fragmento do que se
costuma denominar “cultura das classes subalternas” ou ainda “cultura
popular”.
(GINZBURG, 2006, p. 11)
Diversos historiadores do século XX se debruçaram sobre fatos históricos medievais,
como a Inquisição, por exemplo, mas utilizando fontes que mostravam a atuação
da Igreja na vida do homem comum. Nesse caso, processos inquisitoriais podem
fornecer importantes e interessantes informações. Principalmente nos casos em
que eles trazem notícias da vida desses homens, capazes de permitir a
reconstrução do meio em que eles viviam, do ambiente no qual circulavam, das
ideias e pensamentos que defendiam, enfim, do espaço de vida em que se inseriam
os historiadores. A questão se altera quando, no lugar de buscar as fontes com o
intuito de que elas forneçam os elementos capazes de reconstituir a história, o
historiador passa a interrogá-las. Quando o pensamento histórico muda, além dos
fatos e das fontes, muda também a análise histórica, que se dá de diversas formas.
Contudo, duas têm sido recorrentes no campo da historiografia, a que implica no
processo de julgar e no de compreender.
A análise histórica pressupõe que o historiador se debruce sobre os fatos e fontes
com um determinado intuito. Na sucessão dos tempos, esse objetivo pode ser
traduzido pelo ato de julgar os fatos ocorridos ou de compreender esses mesmos
fatos.
O século XVIII ficou conhecido como o século da razão, em que os intelectuais e os
estudiosos estavam buscando o conhecimento crítico de seu mundo. É nesse século
que o pensamento histórico começou o processo que viria a transformá-lo em
ciência. Dialogando com a proposta iluminista, analisando o fazer histórico, José
Carlos Reis afirma que:
A história é um sujeito autônomo e poderoso que realiza o trabalho de
autoprodução. É um singular-coletivo que reúne todos os eventos em um
plano único. A história é um processo coerente, unificado e acelerado da
humanidade em direção ao futuro racional, à liberdade, à sociedade
moral, livre. A história está à disposição de um sujeito-singular-coletivo,
a humanidade universal, que se constrói, construindo-a. A história é a
marcha da humanidade em busca da liberdade, garantida pela razão que
governa o mundo.
(REIS, 2006, p. 35)
Composta por um princípio, ao mesmo tempo tão singular e tão coletivo, a
história, pensada pelos historiadores dos séculos XVIII e XIX, ensaiava uma
autonomia que se queria científica. Seguindo o caminho da sociologia, mais do que
narrativa, aspirava a ser ciência. Ocorre que, para adquirir o status de ciência, a
história precisava que seus elementos, como os fatos, as fontes e o conhecimento
construído, fossem abordados a partir de uma metodologia. O modelo
metodológico em curso naqueles anos era aquele tomado de empréstimo das
ciências naturais. Foram as ciências da natureza que forneceram, inicialmente, a
base metodológica com o que o fato histórico seria abordado.

Ciência humana: história e sua especificidade


A história é uma ciência que se insere no quadro das ciências humanas. O objeto
de estudo das ciências humanas é o homem naquilo que o faz distinto das outras
formas de vida na Terra, ou seja, o seu caráter de humanidade. Michel Foucault,
referindo-se ao objeto das ciências humanas, ou seja, ao homem, afirma que:
É como ser vivo que ele cresce, que tem funções e necessidades, que vê
abrir-se um espaço cujas coordenadas móveis ele articula em si mesmo;
de um modo geral, sua existência corporal fá-lo entrecruzar-se, de parte
a parte, com o ser vivo; produzindo objetos e utensílios, trocando aquilo
de que tem necessidade, organizando toda uma rede de circulação ao
longo da qual perpassa o que ele pode consumir e em que ele próprio se
acha definido como elemento de troca, aparece ele em sua existência
imediatamente imbricado com os outros; enfim, porque tem uma
linguagem, pode constituir para si todo um universo simbólico, em cujo
interior se relaciona com seu passado, com coisas, com outrem, a partir
do qual pode imediatamente construir alguma coisa com um saber
(particularmente esse saber que tem de si mesmo e do qual as ciências
humanas desenham uma das formas possíveis). Pode-se, portanto, fixar o
lugar das ciências do homem nas vizinhanças, nas fronteiras imediatas e
em toda a extensão dessas ciências em que se trata da vida, do trabalho
e da linguagem.
(FOUCAULT, 1999, p. 485-486)
É a partir dos pressupostos dessa ciência que estuda as ‘humanidades’ que a
história se constituirá enquanto ciência.
A história tem na sua trajetória uma relação fecunda com os registros do passado
em torno da ação humana e durante muito tempo acreditou-se que este seria o seu
objeto de estudo, o passado. Mas para ser ciência, esse passado deveria ser
abordado de forma objetiva por meio de uma metodologia científica.

Até que ponto seria possível abordar de forma objetiva o passado? Se ele não mais
existe, se somente pode ser acessado por intermédio de vestígios, é possível
alcançar seu significado lógico?
Para saber mais sobre consciência histórica assista ao programa Opinião Minas
(2011) em entrevista com o professor José Carlos Reis, parte 01 e parte 02.

Os que problematizam o conhecimento histórico – e são muitos – geralmente


colocam em dúvida a possibilidade de a história de fato alcançar o seu objeto.
José Carlos Reis (2006, p. 98-100) enumera algumas objeções à possibilidade da
história:

● O conhecimento histórico é um conhecimento indireto, uma vez que o passado


é acessado por meio de testemunhos, de intermediários.
● O discurso produzido pelo historiador é criado a partir de sua própria
linguagem, não existindo, portanto, uma linguagem específica, que
caracterizaria o conhecimento histórico e que impediria que o discurso histórico
sofresse os equívocos próprios da linguagem, capaz de reproduzir verdades e
mentiras.
● O conhecimento histórico não pode ser conhecido a priori, não permite uma
relação concreta de causalidade.
● É um conhecimento que lê o passado com os olhos do presente, ou seja, está
ligado à época de sua produção.

Com tantas objeções, e não citamos todas, como é possível a história se aproximar
da ciência? Acontece que essa aproximação se dá por intermédio da negação do
lendário, do falso e da ficção na busca da verdade e da realidade empírica.
E recordando ainda que a palavra ciência deriva do termo latino scientia que
significa “conhecimento” ou “saber”.
Vamos conhecer os quatro modelos propostos para que a história científica, ou o
conhecimento histórico, seja possível.

Modelo nomológico
É um modelo neopositivista, austríaco e inglês, elaborado entre os anos de
1930-1950, que defendia a unidade da ciência. Acreditavam que a história poderia
ter o mesmo padrão científico da física.
Um dos principais defensores dessa corrente é Karl Hempel, que, em 1942,
publicou um artigo intitulado A função das leis gerais em história. Os partidários
desse modelo acreditavam que mesmo que fosse possível uma compreensão dos
eventos históricos, sua abordagem estaria submetida a uma explicação causal. Por
isso, seu caráter compreensivo e narrativo eram negados, pois entendiam que todo
fato, fosse ele natural ou histórico, estaria sujeito às leis. No caso da história,
essas leis explicariam a causa da vida humana no tempo, sendo esse seu objetivo,
mais do que descrever ou narrar os fatos ou eventos do passado, pois ela se
ocuparia em encontrar as leis que haviam definido esses eventos. Para isso,
contaria com o auxílio das leis que compõem as várias ciências. De outra forma,
quais as leis biológicas, geográficas, climáticas, entre outras, que poderiam ter
influenciado para que tal evento acontecesse da forma como aconteceu?
No entanto, os cientistas, durante o século XX, começaram a questionar o quanto
de objetividade é possível encontrar, até mesmo nas ciências da natureza.
Entendendo a ciência como um diálogo entre o homem e a natureza, já que seu
objetivo é compreender uma realidade distinta daquela própria do homem, é
necessário admitir que esse diálogo será sempre fragmentado e condicionado pela
própria interação entre os elementos que o compõe. Essas mesmas questões
haviam sido levantadas pelos historiadores que, ainda no século XIX, se opuseram
ao modelo positivista defendido por aqueles que, num primeiro momento,
buscaram afirmar a história enquanto ciência. Por isso, para responder às lacunas
encontradas no modelo nomológico, foi proposto o modelo compreensivo.

Modelo compreensivo
Existem duas versões do modelo compreensivo: a intuitiva de Wilhelm Dilthey e a
racional de Max Weber. Elas partiam do pressuposto de que, enquanto as ciências
naturais buscavam uma generalização a partir da aplicação das leis, as ciências
humanas, ou do espírito, eram individualizantes e avaliadoras.
Dilthey acreditava que o método mais propício às ciências humanas teria a
compreensão e a interpretação como instrumentos. O conhecimento histórico
resultaria, assim, do diálogo entre o presente e o passado, e entre o historiador e
os homens que o antecederam. Reis (2006) explica que, para eles, o mundo
histórico é um “universo de significações compartilhadas, onde a comunicação
entre os homens se realiza”. Nisso está a objetividade do conhecimento histórico,
na interpretação e decodificação das relações estabelecidas entre os homens. A
compreensão é um processo complexo que vai do evento ocorrido às causas
possíveis para a ocorrência do evento. E, após terem sido feitas as relações que
trarão sentido ao evento, ocorre o retorno da compreensão, que se dá por
intermédio do reviver o evento.
Max Weber entende a compreensão de uma forma mais racional. Essa deve
constituir-se de uma operação lógica e, para isso, é necessário o domínio
intelectual do contexto em que a ação se insere. Inspirado em Kant, Weber
acredita que a construção de um tipo ideal pode ser útil para a compreensão, pois
permitiria, por meio dos desvios desse tipo ideal, medir os desvios irracionais ou as
alterações. O tipo ideal facilita a abordagem e a apreensão do real. Weber propõe,
portanto, uma sociologia compreensiva, capaz de afastar a história do
irracionalismo. Dessa forma, o conhecimento histórico, entendido por Weber, é
racionalmente conduzido por meio da compreensão e pelos conceitos em que se
fundamenta.

Modelo conceitual
A história proposta por Max Weber é uma história que entende ser necessária a
uma organização lógica do passado, que é irrecuperável, e, por isso, seu interesse
deve ser intelectual e sociológico. O discurso histórico é composto pelos conceitos
criados pelo historiador, uma vez que os homens de uma determinada época,
geralmente, não têm consciência da originalidade dos elementos que compõem o
seu tempo. Por outro lado, ele também é composto pelo conteúdo concreto dos
documentos, registros da experiência vivida pelos homens do passado, que são as
fontes históricas.
Paul Veyne também defendia uma história conceitual ligada às ciências sociais e é
nessa medida que ela se torna científica. Os conceitos permitem que a história
tenha uma inteligibilidade, para além da condição de narrar, compreender e trazer
à tona o passado. Essa inteligibilidade seria atingida por meio de uma comparação
conceitual, fundamentada racionalmente e teorizada, capaz de revelar
semelhanças e diferenças. Porém, Veyne não descarta a linguagem narrativa no
contexto do conhecimento histórico. Ele entende que, apesar de existir uma
linguagem histórica, essa se aproxima mais da cotidiana, portanto narrativa, do
que da científica. Por isso, depois de, num primeiro momento, afastar-se da
narrativa para garantir sua cientificidade, no final do século XX, a história buscou
um retorno a ela.

Modelo narrativo
Para os historiadores do século XIX e da primeira metade do século XX, aceitar a
associação da história com a narrativa seria equivalente a condenar a
cientificidade do conhecimento histórico. A narrativa, tradicionalmente vinculada
à literatura, era considerada superficial e ingênua, sendo a biografia, por sua vez,
sua forma mais comum. Narrar correspondia a mostrar o fato como ele havia
acontecido. No entanto, a simples narrativa não era capaz de suprir as
necessidades da história-problema, proposta no século XX. Se o historiador escolhe
e constrói seu objeto de estudo, se ele interroga o passado, como ele poderia
narrar os fatos pura e simplesmente? Para esses historiadores, o texto histórico
resulta de uma construção teórica e a construção teórica e narrativa eram
entendidos como elementos incompatíveis.
Percebeu-se, no entanto, que a forma conceitual da história-problema era
insatisfatória por não levar em conta o indivíduo e sua temporalidade. Paul Ricoeur
defende o caráter narrativo do conhecimento histórico. Reis cita Ricoeur em sua
tese sobre o tempo e a narrativa.
O tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado de
maneira narrativa. A narrativa é significativa na medida em que ela
desenha os traços da experiência temporal. Esta tese apresenta um
caráter circular. A circularidade entre temporalidade e narrativa não é
viciada, mas duas metades que se reforçam reciprocamente.
( RICOEUR, 2006, p. 137)
Existe uma correlação entre a atividade lógica da narração de uma história e o
caráter temporal da experiência humana. Quando o tempo é articulado de forma
narrativa, ele torna-se humano. Ao mesmo tempo, quando a narrativa se torna
condição da experiência temporal, ela ganha significado.
Reis recorda que, para os pré-socráticos, a arte tem mais valor do que a verdade,
uma vez que ela serve à vida, mais do que a ciência. Ela expressa as forças
fundamentais, os instintos e a vontade. Seria também no campo da arte que o ser
humano pode ser revelado em toda sua essência, já que ela não isola, não
fragmenta o ser humano, ao contrário, mostra-o em todas suas facetas e
fragilidades. É pensando nessa condição que Ricoeur e outros defendem o retorno
da narrativa à história.

A verdade, o real e sua construção, objetividade e


subjetividade no discurso e conhecimento histórico
Observamos que as discussões, em torno do caráter objetivo ou subjetivo da
história, perpassam toda a história do pensamento histórico e sua consequente
historiografia. Encontrar a verdade dos fatos é um dos fundamentos científicos. Ao
encontrá-la, que se quer única, torna-se possível a proposição de leis que
regulamentariam o conhecimento científico. Acontece que, no que diz respeito a
alguns conceitos trabalhados pela história, é necessário primeiro entender o que é
verdade e o que é real. E mais, se o conhecimento histórico pode fornecer a
verdade sobre seu objeto de estudo.

A verdade é única e absoluta ou ela é mutável e relativa?


Diversos pensadores, desde a antiguidade, debruçaram-se sobre a ideia da
verdade. A discussão, gerada em torno desse conceito, ocorre em dois níveis: o
ontológico e o epistemológico.
No nível ontológico, busca-se a verdade como aquilo que é, que não é afetado pela
mudança. No nível epistemológico, verdade é aquilo que o ser humano pode
formular em linguagem humana com uma relativa segurança sobre objetos
delimitados. Nesse sentido, ela é um conhecimento comunicável e controlável,
criado a partir da relação entre o sujeito e o objeto. O discurso em torno dela é
algo subjetivo, já que depende da relação que o sujeito, ou melhor, o ser humano
estabelece com o objeto sobre o qual a verdade está sendo construída.
Se a verdade e a realidade dependem da construção cognitiva feita pelo homem
em sua relação com o objeto observado, como pretender que seja possível um
conhecimento histórico objetivo fundamentado na verdade e no real? No século
XIX, os historiadores, envolvidos com a proposta de uma ciência histórica, sentiram
a necessidade de criar métodos e técnicas que permitissem ao homem controlar o
conhecimento. Eles também entendiam que seria necessário, para seu ofício,
estabelecer as bases epistemológicas sobre as quais o conhecimento histórico se
produziria. Contudo, não havia um consenso com relação a essas bases.
Alguns teóricos adotaram uma abordagem que entendia o real como sendo
universal e conhecível. Entre eles estão Ranke, Weber, Marx, Ricoeur e Marrou.
Para outros, contrários ao pensamento anterior, o conhecimento é sempre parcial
e discutível. São eles Foucault, De Certeau, Duby e Koselleck. Eles assumem o
relativismo, a historicidade do objeto e da presença do sujeito. Nesse sentido,
como afirma Reis, “o conhecimento histórico é uma construção de sujeitos
determinados, dominados por códigos linguísticos, por praticas especializadas, por
regimes de verdade, por poderes institucionais” (REIS, 2006, p. 156).
Várias questões foram levantadas em torno da verdade entre os séculos XIX e XX.
Ranke acreditava que o passado era real e que poderia ser restaurado por meio da
pesquisa histórica. Já Weber entendia que o real em si não poderia ser atingido,
mas que seria possível alcançá-lo em seus aspectos e relações com o sujeito. Marx,
por sua vez, defendia que a verdade seria conseguida quando as esferas cognitiva e
moral, dominadas pelo interesse social, fossem reintegradas pelo sujeito. Para
Ricoeur e Marrou, a verdade pode ser obtida quando o sujeito, assumindo um
comportamento ético e comunicativo, toma consciência do seu caráter de ser
universal. Finalmente, Foucault afirma que diversas linguagens, surgidas a partir
das diversas relações de poder, compõem o conjunto do que deve ser entendido
como verdade. Mas, e a relação da verdade com o conhecimento histórico?
O historiador, ao produzir o conhecimento histórico, estabelece relações com as
diversas concepções em torno da verdade e do real. É inquestionável o fato de que
a verdade e o real não são conceitos fechados, muito pelo contrário, são conceitos
construídos, definidos pelos interesses humanos no decorrer da história. São,
portanto, conceitos historicizados. Consequentemente, a relação estabelecida
entre a verdade e o conhecimento histórico produzirá resultados distintos em
função do pensamento e do conhecimento que os intelectuais, de cada época,
utilizam para fazer a análise histórica.
Michel de Certeau acredita que o discurso histórico surge de uma prática e deriva
de um lugar institucional e social. Porém, Georges Duby vai mais além e entende a
história como um discurso e uma prática que se mostra ao mesmo tempo social e
individual. Já Kosellech pensa que a verdade histórica resulta de uma atribuição de
sentido àquilo que foi vivido pelo homem no presente.
A questão é que não existe um enunciado único em torno da verdade e,
consequentemente, não se pode esperar um enunciado claro, simples e objetivo
em torno da verdade histórica e da construção do conhecimento histórico. Quando
o historiador busca todas as leituras possíveis em torno de um objeto de estudo,
ele se aproxima da verdade, mas não pode perder de vista que a verdade e o real
são conceitos historicamente construídos, passíveis, portanto, de serem alterados
em decorrência da passagem do tempo e dos elementos sociais, culturais, entre
outros, que contribuem para a sua constituição.
Em função desses questionamentos, entendemos mais claramente a necessidade da
teorização dos elementos da história. Quando a teoria, que embasa a construção
do conhecimento e da análise histórica, é definida de forma clara e concreta, ela
fornece as bases seguras que justificarão e explicarão as escolhas do historiador e
as posições a partir das quais ele escreve.

Perspectiva do tempo histórico como construção social

O historiador francês Marc Bloch refere-se ao tempo como “realidade concreta e


viva, submetida à irreversibilidade de seu impulso, o tempo da história [...] é o
próprio plasma em que se engastam os fenômenos e como o lugar de sua
inteligibilidade” (BLOCH, 2001, p. 55).
Bloch faz essa afirmação ao escrever sobre o ofício do historiador. Estava preso e,
pouco tempo depois, seria fuzilado pelos nazistas. Essa frase reflete o pensamento
do profissional que, impedido de exercer seu ofício, coloca-se a escrever sobre sua
própria prática. Neste sentido, ao falar sobre o tempo, ele quer primeiro chamar a
atenção para o fato de que o tempo é algo concreto, contínuo, impossível de se
tornar estanque. Em segundo lugar, recorda que é no meio temporal que os
fenômenos históricos se encontram e que, ao serem analisados nesse meio, esses
fenômenos podem ser entendidos.
Bloch tinha consciência de que, apesar de ser concreto, o tempo não é uma
categoria única, com um único significado e nem mesmo com uma única
possibilidade de entendimento. Por mais que a Física o entenda de forma quase
que matemática, esse entendimento não é comum a todas as sociedades da Terra.
A própria organização do tempo em dias, horas, minutos e segundos é uma
convenção construída para dar sentido e ordem a um modelo de organização
social.
Alguns autores vão se referir ao tempo classificando-o como tempo do relógio,
tempo de Deus e o tempo da história. Outros, como José Carlos Reis, o classificará
como tempo natural (ou da física), tempo da consciência (ou filosófico) e,
intermediando os dois, o tempo da história ou histórico. Sua classificação define-os
como:

Tempo da FísicaTempo da FilosofiaTempo da História


O tempo da física é o que reflete a sucessão dos movimentos naturais, ao mundo
exterior, por isso pode ser medido, abstraído, dimensionado e que nunca cessa,
uma vez que a renovação constante da natureza pressupõe que nunca haverá um
fim.
Refere-se aos movimentos naturais, a um tempo exterior supralunar,
imortal. Suas características são a medida, a quantidade, a abstração, a
reversibilidade, a homogeneidade, a extensão.
(REIS, 2006, p. 179)
Essa interferência humana vai se dar de algumas formas distintas. Paul Ricoeur fala
no tempo do calendário, que vai organizar a vida coletiva. O calendário marca um
ponto inicial e, a partir desse ponto, o tempo pode ser percorrido em duas
direções, o passado e o futuro. O calendário permite uma organização linear do
tempo, em que a sucessão dos atos humanos, os fatos históricos, encontra um
lugar inteligível entre a natureza e a consciência. Se os eventos são datados, uma
história se desdobra de modo efetivo, independentemente daquilo que o
historiador vier a propor ou a construir como interpretação.
Reinhardt Koselleck (2006) critica o tempo do calendário. Ele acredita que o tempo
histórico não se relaciona ao tempo da natureza, ao contrário, se relaciona aos
eventos sociais, àquilo de concreto que dá ao homem o caráter de humanidade.
Neste sentido, o tempo do calendário marca os eventos históricos, relacionando-os
com outros eventos históricos, mas, após essa delimitação, seria necessário para o
historiador adentrar no mundo do evento recortado, entender sua especificidade.

Essa orientação proposta por Koselleck (2006) cria um novo ponto de observação
para o historiador, ao mostrar que cada período histórico se relaciona de maneira
própria com os períodos que o antecederam. De outra forma, é na relação entre os
períodos históricos que cada período ganha sua identidade.
Já para os historiadores vinculados à Escola dos Annales, o tempo histórico passou
a ser entendido em duas dimensões. Marc Bloch (2001, p. 55) defende esse tempo
como sendo contínuo, mas estando em perpétua mudança. Inspirados pelas
ciências sociais, os historiadores dos Annales transportaram para o campo da
história o entendimento trazido pelos cientistas sociais com relação às estruturas
sociais. Era assim que o tempo era visto. Enfatizava, por isso, nem tanto as
mudanças qualitativas, mas buscava valorizar as transformações estruturais. Daí o
conceito de longa duração, o qual permitiria abordar os eventos históricos
entendendo que, da mesma forma que estes estão em mudança constante, alguns
elementos estruturais das sociedades humanas permanecem, independentemente
das mudanças observadas a princípio.

A importância da percepção de tempo


Fernand Braudel, em seu livro O Mediterrâneo e o mundo Mediterrâneo na Época
de Filipe II, apresenta as três durações com que é possível lidar com relação ao
tempo: a curta, a média e a longa duração. Dessas, a mais importante é a longa
duração, que se relaciona com as estruturas, com as mentalidades. Normalmente,
a transformação dessas estruturas e mentalidades é muito lenta, e como
geralmente não é percebida por aqueles que a estão vivenciando, fica a sensação
de que não se alteram.
Mas qual a importância dessa alteração na percepção do tempo?
Se antes, o tempo era entendido de forma linear, sucessiva, era nessa sucessão
que a história deveria estudar os eventos que tinham lugar nessa linha do tempo.
Quando os historiadores dos Annales propuseram a utilização do tempo, fizeram-no
a partir do presente.
É no tempo presente que o historiador se situa, e é a partir desse tempo que o
passado é lido. Essa mudança com relação ao tempo abre a possibilidade para que
o tempo presente seja também estudado, tornando-se um novo campo de pesquisa
para o historiador.

No entanto, vimos que, para a filosofia, o conceito de tempo é entendido de forma


distinta do modo de interpretação da abordagem histórica, assim como para a
física. É interessante partir, então, para os entendimentos das diversas áreas do
conhecimento, uma vez que a história, ao estudar as ações do homem no tempo,
dialoga com as outras áreas do conhecimento que também estudam as criações ou
ações humanas. Este é o tema da próxima aula: a interdisciplinaridade e os campos
do saber.

Interdisciplinaridades e campos do saber


As disciplinas que tratam do conhecimento científico são normalmente divididas
entre ciências naturais e ciências humanas, sendo:

CIENCIAS NATURAIS
As ciências naturais são aquelas que se dedicam ao estudo da natureza. Tratam dos
aspectos objetivos da realidade e podem ser organizados em torno de cinco
grandes núcleos: a biologia, a física, a química, a geologia e a astronomia.
CIÊNCIAS HUMANAS

Essa prática da divisão das áreas do conhecimento remonta a modelos da


Antiguidade, em que, geralmente, os conhecimentos que se mostravam mais úteis
à formação dos homens livres eram organizados para a prática educacional. Na
idade média, seguindo o modelo da Antiguidade, instituiu-se o trivium (composto
pela lógica, gramática e retórica) e o quadrivium (composto pela aritmética,
música, geometria e astronomia), que compunham as artes liberais, estudos para
os homens livres, em oposição às artes mecânicas próprias aos servos e escravos.
Todo esse conhecimento era, porém, durante o período medieval na Europa,
norteado pelo conhecimento religioso proveniente da Igreja Católica. Foi a partir
do Renascimento que o estudo e a educação aos poucos se desvincularam da
religião e, gradativamente, foram sendo desenvolvidos os conceitos que
norteariam a produção do conhecimento no mundo moderno, como o humanismo,
o racionalismo, o naturalismo e o cientificismo.

Durante o Renascimento houve, ao mesmo tempo, um resgate e uma renovação do


conhecimento da Antiguidade greco-romana. Textos desconhecidos dos europeus
começaram a chegar na Europa, provenientes do mundo árabe e, a partir de outros
textos já conhecidos, mas traduzidos diretamente do grego, obras já conhecidas
passaram por um processo de revisão e reedição com comentários atualizados
pelos novos conhecimentos. Foi por intermédio desses textos que os humanistas
aprofundaram seus estudos referentes à Antiguidade e abriram as portas para que
a natureza fosse estudada, com o passar do tempo, pelos critérios do racionalismo
e do cientificismo.
É necessário lembrar que, nesse momento, no Renascimento, ainda não havia se
estabelecido a ideia da fragmentação do saber. Ao contrário, o que se pretendia
do homem renascentista era alcançar o estatuto do homem universal, cujo modelo
mais conhecido é o de Leonardo da Vinci, que atuou como pintor, desenhista,
cientista, engenheiro, entre tantas outras funções.

Ciências humanas
As ciências humanas correspondem ao estudo científico do conhecimento
produzido a partir das ações humanas, em suas diversas dimensões. Elas têm como
objeto de pesquisa aquilo que o homem tem de humano. Essa ideia remonta a
outros tempos. Os renascentistas já procuravam por meio dos estudos da
Antiguidade resgatar e desenvolver esse caráter de humanidade dos seres
humanos. Inspirados nos estudos de Cícero, político, orador, escritor e filósofo
romano do séc. I a.C., os intelectuais do Renascimento buscaram organizar seus
estudos. Cícero, partindo dos estudos gregos, escreveu sobre gramática, retórica,
poesia, história e moral filosófica. Os intelectuais do Renascimento, ou
humanistas, buscaram resgatar esses conhecimentos antigos para o enriquecimento
do homem e descortinaram, com isso, todo um panorama de possibilidades, ao
abrirem o pensamento para a grandiosidade de possibilidades de ação humana no
mundo. É assim que começa o caminho que levará ao desenvolvimento das
chamadas ciências humanas.
O século XVIII, com as leituras racionais da humanidade feitas pelos pensadores do
iluminismo, trouxe novamente à cena a proposta de uma história universal,
distinta, porém, do modelo que havia sido tão cultivado durante os anos da idade
média. Naquele contexto, a história do mundo era perpassada pela tradição cristã.
No século XVIII, veio atrelada aos ideais do racionalismo e tinha a intenção de levar
à sociedade a moral universal.
Era o momento da filosofia da história, em que os filósofos buscavam o lugar da
história dentro do novo contexto da sociedade, norteada pelos princípios adotados
então. Não mais o foco estava no passado ou no presente, mas no futuro, como
possibilidade de salvação, tendo a história como meio para alcançá-la
Sobre a transição entre o modelo de filosofia da história para o de história
conhecimento, ainda em construção, José Carlos Reis afirma o seguinte:

A história é um processo coerente, unificado e acelerado da humanidade


em direção ao futuro racional, à liberdade, à sociedade moral, livre. A
história está à disposição de um sujeito-singular-coletivo, a humanidade
universal, que se constrói, construindo-a. a história é a marcha da
humanidade em busca da liberdade, garantida pela Razão que governa o
mundo.
(REIS, 2006, p. 35)

Crédito: Boris15 / Shutterstock.com


O século XIX também assistiu ao nascimento de outro campo científico, a
sociologia. August Comte, filósofo francês, cunhou o termo “sociologia” para
designar a ciência que estudaria as associações e relações entre os grupos
humanos. O surgimento dessa ciência está profundamente vinculado às alterações
sociais provocadas pelas revoluções francesa e industrial, as quais mudaram
significativamente o panorama social do mundo europeu. Seu nascimento
relaciona-se diretamente com a consolidação do capitalismo. Este provocou sérias
mudanças nos modelos tradicionais de organização das sociedades a partir do
século XVIII e no XIX. É para responder e explicar essas mudanças que a sociologia
surge.
August Comte também é o fundador do positivismo, corrente filosófica do século
XIX que influenciou a organização do pensamento científico de então, já que, no
lugar de buscar as causas dos fenômenos, a filosofia positivista busca as leis que
regem esses fenômenos. Seus métodos são a observação, a experimentação, a
comparação e a classificação. É neste modelo, o do positivismo, que os
historiadores do século XIX vão se basear para buscar a cientificidade da história,
abandonando o modelo da filosofia da história, no qual as causas e os fins seriam
os elementos mais importantes.
A história, enquanto conhecimento, buscava se emancipar da filosofia da história
e, para atingir esse fim, se amparava na ideia de que somente uma abordagem
metodológica amparada na busca do real, da objetividade, do empirismo, poderia
permitir esse novo modelo, o da ciência histórica.

A partir do que foi visto até agora, como você acha que esses primeiros cientistas
historiadores do século XIX articulavam esse pensamento histórico em construção
com a questão do tempo?
Para aprofundar seu conhecimento sobre as ciências humanas e a
interdisciplinaridade, estude o artigo: Sobre o conceito de interdisciplinaridade.

Construção da disciplina História


Na segunda aula da unidade 1, você viu algumas questões em torno da
especificidade da história como ciência humana. Entre essas questões, foram
analisadas algumas objeções feitas por estudiosos contrários à possibilidade de o
conhecimento histórico ser abordado de forma científica e foram vistos alguns
modelos ou métodos utilizados para se alcançar a cientificidade do conhecimento
histórico.
Nesta aula, vamos juntar os pontos trabalhados nas aulas anteriores desta e da
unidade 1 para chegarmos à construção da disciplina história.

Na mitologia grega, a história é representada como uma das nove musas. Clio é o
seu nome e, no friso acima, é a primeira da esquerda para a direita. É
representada com uma pena e um livro ou rolo de pergaminho. As musas são filhas
de Zeus e Mnemósine (a memória), presidem as artes e as ciências e os seus dons
são utilizados para auxiliar os governantes e trazer a paz aos homens.
Como a história pode auxiliar os governantes e trazer a paz aos
homens?

Sobre a História
O termo “história” sempre foi utilizado tanto para se referir aos acontecimentos
do passado quanto para dizer da narrativa ou conhecimento construído a partir
desse passado. Isso explica o porquê de a história, até o século XIX, ser vista
simplesmente como a escrita ou narrativa do acontecido. Essa escrita ou narrativa
não era nem inocente, nem neutra, sempre se prestava a alguma ideologia que
norteava os interesses dos grupos para quem se dirigia. Foi assim com a história
dos santos e dos padres da Igreja, com a escrita da história que serviria de
fundamento para a identidade das nações que surgiam, com a memória que se
queria preservar dos reinados.
Foi somente no século XIX que a história passou por um processo de reflexão e
construção da sua prática pensada a partir dos conceitos e preceitos defendidos
pelo iluminismo. A busca da razão, da luz, contrária às trevas do antigo regime, à
ignorância que se queria abolir, atingiu as diversas áreas do conhecimento da
época. E esses intelectuais, imbuídos desses ideais, pretenderam fornecer também
as bases para uma história que se prestasse aos novos ideais. Eles não
desconheciam o fato de que a verdade e o real podem ser manipulados para
atender aos objetivos de pequenos grupos que dominam muitas vezes nações
inteiras. Porém, tinham o ideal de chegar a uma verdade plena, pura, absoluta.
Como, porém, chegar a essa verdade?
Como alcançar, com o mínimo de falhas, a escrita real sobre o
acontecido?
Os historiadores do século XIX chegaram à conclusão de que o melhor caminho para
se alcançar essa regularidade em torno do conhecimento produzido pela história
seria aplicar aos fatos a serem estudados um método capaz de garantir a
regularidade necessária para a percepção das leis que regeriam os fenômenos, os
fatos. Esse método, tomado de empréstimo das ciências naturais, modelo que
existia àquela época, buscou uma regularidade por meio de uma padronização das
fontes a serem utilizadas e de um afastamento da narrativa e da ficção.
Falamos um pouco atrás que a história no século XIX foi pensada de forma distinta
da ocorrida até a época, e que esse processo se deu com a influência do
pensamento iluminista do século XVIII. Alguns filósofos deste século, por motivos
diversos, pensaram sobre a história e sua utilidade.

MONTESQUIEU
Montesquieu estudou as origens da civilização utilizando, para isso, a história dos
sistemas jurídicos.
VOLTAIRE
DIDEROT E D’ALEMBERT
Esses filósofos do século XVIII buscavam na história os conhecimentos necessários
para garantir que a humanidade alcançasse o progresso a que estava destinada. A
história das civilizações ajudaria a compreender a sua própria época. Foi daí que
surgiu a ideia da história como conhecimento para se entender o presente e
preparar ou planejar o futuro. Acontece que, a partir do século XIX, a concepção
metafísica perdeu o espaço diante do avanço positivista nas ciências.
É esse modelo metafísico que o positivismo de Comte vai combater. Os estudiosos
passam a entender que o modelo metafísico não é mais capaz de responder às
questões propostas pelo homem, somente o que é percebido pelos sentidos poderia
ser comprovado, poderia ser considerado real. E é o positivismo que vai fornecer
as bases para o desenvolvimento das ciências durante o século XIX. Sobre esse
assunto, o conhecimento positivo, Reis cita Lefebvre quando este afirma que
competia a esse conhecimento, o positivista, “observar os fatos, constatar suas
relações, servir-se delas para a ciência aplicada”. (REIS, 2011, p. 13). Daí a
preocupação com a utilização das fontes para se alcançar a cientificidade do
conhecimento construído, mesmo que o conhecimento ainda deva se constituir em
torno dos grandes fatos, aqueles significativos para a história da humanidade ou da
nação. E, nesses casos, os documentos oficiais ainda eram os mais confiáveis para
a história que se queria escrever.
Outro elemento importante para se alcançar esse caráter científico relacionava-se
à necessidade da narrativa. Isso significava, no século XIX, afastar-se da narrativa.
A narrativa era entendida como elemento da literatura, como característica de um
modelo de escrita da história que precisava ser revisto. A literatura não era
conhecida por sua adesão à verdade, e a busca da verdade deveria ser a primeira
preocupação do historiador. Uma verdade que se pretendia absoluta, capaz de ser
comprovada pelas fontes consultadas por meio de um método seguro, neutro o
suficiente para que o historiador pudesse ser alçado à condição de cientista.

Até que o ponto a história conseguiu se manter independente da filosofia da


história? A utilização de uma metodologia científica garantiu que o historiador
estivesse isento de qualquer expectativa a priori, sem ideias filosóficas que
interferissem nas suas escolhas?
Para aprofundar seu conhecimento sobre a construção da disciplina história, leia
o artigo: O lugar da teoria-metodologia na cultura histórica.

Historicismo, materialismo histórico e teoria positivista na


história
No século XIX, a maior preocupação por parte dos historiadores relacionava-se à
necessidade de demonstrar e comprovar que o conhecimento histórico era possível
enquanto conhecimento científico. O entendimento do conhecimento histórico
enquanto conhecimento científico garantia à história a credibilidade que a
disciplina, em período de formação, aspirava. Para alcançar essa credibilidade, os
historiadores se organizaram em torno de modelos historiográficos que foram
pensados para atingir essa cientificidade. Esses modelos foram o positivismo
histórico, o historicismo e o materialismo histórico. Os três trouxeram importantes
contribuições para a construção do conhecimento histórico, e algumas dessas
contribuições influenciam a escrita da história até os dias atuais.

Positivismo histórico

O positivismo histórico é herdeiro direto do positivismo de August Comte e se


desenvolveu principalmente na França do século XIX. Na segunda aula da Unidade
2, foi estudada a relação entre o positivismo de Comte e as filosofias da história.
Para Comte, a realidade é o que se pode conhecer mediante a percepção dos
sentidos. Essa percepção é a que pode ser alcançada por meio do método
científico. No campo científico, a principal questão levantada refere-se ao fato de
o positivismo buscar as leis que regem os fenômenos, no lugar de buscar as suas
causas. A metodologia utilizada pressupunha a observação, a experimentação, a
comparação e a classificação.
Essa vertente historiográfica, a positivista, é também conhecida como história
tradicional. A aspiração dos historiadores positivistas era construir uma história
universal, comum a todos os homens. Para esses historiadores, a história traz o
fato propriamente dito e é construída a partir de documentos. Se não existe
documento, não existe história, já que não existe a possibilidade de comprovar os
fatos.
Essa metodologia, perfeitamente aplicável às ciências da natureza, foi, por alguns
estudiosos, experimentada com relação ao conhecimento histórico. Esperava-se
que o historiador fosse, tal qual o cientista das ciências da natureza, imparcial
diante do seu objeto de pesquisa e objetivo na condução da sua pesquisa. No
entanto, como o objeto de estudo das ciências humanas é distinto em diversos
aspectos daquele das ciências da natureza, a aplicação dessa metodologia foi
questionada muito cedo, dentro do próprio século XIX.
Os positivistas franceses do século XIX influenciaram a chamada “escola metódica”
na França, responsáveis pela criação da revista Revue Historique a partir de 1876.
Mantiveram a preocupação em buscar e garantir o caráter científico da história,
mas não compartilhavam de forma tão radical os conceitos de objetividade e
imparcialidade dos primeiros historiadores positivistas. Os historiadores da escola
metódica estavam a meio caminho entre os primeiros positivistas e os historicistas
alemães.

O historicismo

O historicismo é uma corrente historiográfica que se consolidou no século XIX na


Alemanha, mas que não ficou restrito nem a esse século nem a esse país. Veremos
posteriormente que as proposições historicistas são extremamente atuais em pleno
século XX.
Os historiadores que primeiro se opuseram ao modelo positivista acreditavam que,
na história, nada estava realmente pronto e acabado. Ao contrário, sendo o
homem um ser múltiplo e inacabado, uma vez que está em constante
transformação, a história escrita sobre ele não pode ser fechada.

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O primeiro dos historicistas é o alemão Leopold von Ranke. Nascido em 1795 e
falecido em 1886, Ranke se preocupou com o uso maciço de fontes e em narrar os
fatos como eles realmente tinham acontecido. Foi um dos maiores historiadores
alemães do século XIX. Para ele, foi criada a cátedra de história na Universidade
de Berlim. Por sua atuação na renovação dos estudos históricos em seu tempo, é
considerado o pai do historicismo.
Segundo Bentivoglio e Lopes (2013):
Pode-se dizer que o parâmetro rankeano inclui pelo menos três grandes
princípios: o rigor metódico para estabelecer a qualidade da informação
extraída das fontes; a amplitude, a articulação e a complementaridade
entre os campos de conhecimento (teologia, filologia, antiguidade
greco-romana, direito etc.); a recusa de qualquer forma de pensamento
dogmático, transcendente ou dualista.
Ranke acreditava que somente por meio do conhecimento histórico seria atingida a
compreensão total da vida.
Os historicistas se opuseram veementemente ao modelo sugerido pelo positivismo
histórico, pois não acreditavam na possibilidade de o historiador agir de forma
imparcial. Muito pelo contrário, estando ele mesmo inserido em um contexto
histórico, sua posição seria sempre a de um pesquisador engajado.
Consequentemente, esse horizonte de expectativa que o historiador trazia de sua
vivência fazia com que o conhecimento histórico produzido fosse um conhecimento
subjetivo. A objetividade que se esperava das ciências humanas, e que os
positivistas acreditavam ser possível também encontrar nas ciências humanas em
desenvolvimento, esbarrava na complexidade do ser humano, objeto imediato do
estudo dessas ciências. Daí a expectativa de um conhecimento subjetivo. Por fim,
defendiam que, para as ciências humanas, deveria ser criado um método
específico, distinto daquele aplicado às ciências naturais.
A principal contribuição do historicismo relaciona-se à autonomia das ciências
humanas. A principal discussão dos historiadores vinculados a essa corrente no
século XIX dizia respeito à especificidade do conhecimento histórico, e sua
preocupação era demarcar o território do campo de conhecimento das ciências
humanas.
José Carlos Reis propõe uma periodização do historicismo que remonta ao século
XVIII e estende seus braços ao século XX.
[...] no final do século XVIII, ele seria romântico e filosófico, por fazer
uma divisão ontológica entre natureza e história; em meados do século
XIX, seria uma epistemologia com contaminações filosóficas, por
diferenciar o método das ciências humanas do das ciências naturais, mas
no contexto de uma filosofia da vida; no século XX, tornou-se uma
epistemologia científica, livre de tais influências filosóficas.
(REIS, 2006, p. 220)
Esse historicismo do século XVIII tem seu início com a tese proposta por
Giambattista Vico, anticartesiana, na qual esse filósofo defendia que a física —
principal objeto de estudo das ciências naturais àquela época — era um
conhecimento limitado da natureza. Uma vez que não foi o homem quem criou a
natureza, ele somente poderia ter um conhecimento parcial dela. Com a história,
ocorre o contrário, já que ela reflete e estuda as criações humanas, essas, sim,
passíveis de serem conhecidas e estudadas pelo homem, seu criador. Reis,
analisando a tese de Vico, reforça que “o homem nada é por natureza e recebe
forma e conteúdo na história” (2006, p. 221). Dessa forma, o conhecimento mais
completo seria, por sua essência, o conhecimento histórico.
Leopold von Ranke e outros, seguindo as trilhas abertas pelo pensamento de Vico,
vão propor, ao longo do século XIX, uma estruturação do conhecimento histórico
partindo exatamente dessa diferenciação clara existente entre as ciências naturais
e as humanas ou do espírito. Contudo esse modelo e o do positivismo não são os
únicos que tiveram lugar no século XIX. O materialismo histórico veio com uma
proposta distinta.

Com base no que foi visto até aqui, seria possível pensar em um outro modelo de
escrita da história durante o século XIX além daqueles que se relacionavam ao
modelo das ciências naturais e aquele proposto pelos historicistas?

Materialismo histórico

O materialismo histórico surgiu a partir das proposições de Karl Marx e Friedrich


Engels.
Ao contrário dos modelos positivista e historicista, os quais possuíam uma clara
vinculação com a filosofia, o modelo proposto por Marx e Engels dialogava
diretamente com a sociologia. É um modelo que traz a proposta de uma história
crítica, em que a ação do homem no meio em que se insere é o objeto de estudo.
O diálogo com a sociologia se torna claro nesse sentido ao buscar o entendimento
das relações que o homem estabelece com outros homens, em outros grupos.
Eric Hobsbawm (2013) recorda que a crítica feita por Marx e Engels à filosofia e à
ideologia alemãs dirigia-se essencialmente à crença de que a consciência, o
pensamento, as ideias e os conceitos determinariam as ações humanas na vida real
e, consequentemente, suas condições materiais. Eles defendiam que a vida
prática, real, material, é que determinaria a consciência humana.
Por esse motivo, Marx e Engels propõem, ao escrever A ideologia alemã, que a
leitura da história pensada por eles tem base:
[...] na exposição do processo real de produção — começando da
produção material da vida em si mesma — e abrangendo a forma de
relações associadas com e criadas por esse modo de produção, isto é, a
sociedade civil em suas várias etapas, enquanto base de toda história
[...].
(MARX; ENGELS apud HOBSBAWM, 2013, p, 225)
Marx e Engels acreditavam que a sociedade se organizou no decorrer do tempo em
função dos elementos econômicos que a norteavam. Conceitos como classe,
mais-valia, luta de classe e modos de produção foram propostos exatamente para
facilitar o entendimento de como as relações de produção estiveram na base da
organização dos povos. O modelo proposto por eles visava ao entendimento dessa
organização social, que definiria todas as outras instâncias da existência humana.

As teorias oriundas da escola dos Annales e suas gerações


Enquanto na Alemanha as pesquisas de história se voltaram em grande parte para o
modelo oriundo do historicismo e, na Inglaterra, os historiadores em grande
medida abraçaram a proposta de Marx e Engels, no início do século XX, a França
permanecia fundamentalmente ligada ao modelo positivista. O cenário francês
ainda mantinha o mesmo modelo de fins do século XIX.
Em 1929, dois historiadores franceses, Lucien Febvre e Marc Bloch, fundaram uma
revista, a qual deram o nome de Anais de História Econômica e Social (Annales
d’histoire économique et sociale), com o objetivo de divulgar as pesquisas
históricas que eles e o grupo a eles associado desenvolviam. Sua proposta era ver a
história de forma distinta à que era vista no panorama estabelecido até então,
expandindo as fronteiras dos estudos históricos e rompendo com os limites da
história positivista. O grupo que se reuniu em torno da revista criou uma corrente
historiográfica que ficou conhecida pelo nome de escola dos Annales.
As principais características desse grupo de pesquisadores, o da escola dos
Annales, era, segundo Marczal (2016, p. 48), a negação da história tradicional
positivista por meio da oposição ao imperativo do político e à perspectiva de uma
história-narração. Para Marc Bloch e Lucien Febvre, a história deveria ser escrita a
partir do abandono do modelo tradicional positivista, o qual se caracterizava por
um pensamento histórico ligado à história política personalista e factual e à
narrativa imparcial, pura e simples dos eventos.
Marc Bloch e Lucien Febvre propuseram, em contrapartida, uma história que se
basearia na resolução de um problema, de uma questão que norteasse os estudos
do historiador. Para isso, esses historiadores sugeriram que, para que a
história-problema fosse desenvolvida da melhor forma possível, um proveitoso
diálogo com as outras áreas de conhecimento das ciências sociais deveria ser
estabelecido. Assim, o objeto de estudo ou os eventos pesquisados seriam
abordados em sua totalidade, abrangendo o maior número de leituras possível.
A proposta metodológica dos Annales era uma diversificação das fontes históricas a
serem utilizadas: documentos, cartas, mapas, obras de arte etc.

Com essa diversificação, percebeu-se a necessidade de contar com outras áreas do


conhecimento, as quais poderiam colaborar para o entendimento do tratamento
que essas fontes deveriam receber.
A produção historiográfica em torno da escola dos Annales é dividida em três
gerações. Vamos nos deter, nesta aula, na primeira e na segunda gerações.

A primeira geração
A primeira corresponde ao período em que Lucien Febvre esteve dirigindo a
revista, de 1929 até sua morte, em 1956. Esse período se caracteriza pela ênfase
em uma produção histórica de base interdisciplinar, não factual. A proximidade
com as ciências sociais e a geografia é clara, e os pesquisadores ligados à escola
nesse momento se afastaram deliberadamente da história política, que privilegiava
os grandes homens e os grandes fatos ou guerras, prática comum entre os
historiadores positivistas.
José Carlos Reis apresenta as diferenças e semelhanças entre Lucien Febvre e Marc
Bloch, ao descrever as principais características das três gerações dos Annales.
Febvre preferia tratar de sincronias, de estruturas fechadas, de uma
história imóvel, e não de uma história linear, progressiva e
emancipacionista, como era a iluminista. [...] Bloch também não era
plenamente iluminista: neodurkheimiano, também já percebia estruturas,
o inconsciente repetitivo, as durações longas, os limites à ação, e já era
crítico em relação a teleologias. Ambos procuraram superar
dialeticamente o evento, isto é, negá-lo, integrando-o em uma longa
duração. Mas ambos ainda guardavam da tradição iluminista o otimismo
em relação ao futuro, o humanismo, e faziam ainda de certa forma uma
história do sujeito e da consciência.
(REIS, 2006, p. 79, grifos do autor)

Para Reis, é na atuação dos dois fundadores que a primeira geração apresenta
uma relação dos Annales com o iluminismo, guardando o devido distanciamento
relativo da atuação dos dois com relação à proposta iluminista, como citado
acima.

O que esses dois historiadores buscavam era uma história mais abrangente, que
incluísse, além dos diálogos com as ciências sociais, reflexões acerca da psicologia
e da linguística. Buscaram, ainda, libertar-se da história que pressupunha o uso
exclusivo da documentação histórica e a preocupação cronológica dos fatos,
antecipando, em parte, discussões que seriam mais aprofundadas pelos estudiosos
da segunda e terceira gerações.

A segunda geração – Fernand Braudel


A chamada segunda geração da escola dos Annales corresponde ao período em que
a direção da revista esteve sob a responsabilidade de Fernand Braudel, entre 1956
e 1968. O diálogo interdisciplinar continuou, mas ampliaram-se as investigações
sobre os estudos de história econômica, estendendo os braços à recém-criada
história demográfica e a algumas áreas da história social. É também desse período
a aproximação mais clara e concreta com a psicologia, por meio dos estudos em
torno das mentalidades.
Percebe-se, nesse momento, a aproximação da mudança estruturalista.
Entretanto, mesmo assim, Fernand Braudel ainda lutava por uma história global. A
mudança proposta pelos estruturalistas viria fornecer novos elementos de leitura e
abordagem dos fatos históricos a serem estudados.
Fernand Braudel foi um dos professores fundadores da Universidade de São Paulo
–USP. Convidado para integrar a equipe que coordenaria a fundação da
universidade, permaneceu no Brasil até o ano de 1937, quando retornou a Paris.
Em 1938, tomou contato com a proposta metodológica dos Annales de Lucien
Febvre, com quem começou a trabalhar. Foi enquanto esteve preso durante a
Segunda Guerra Mundial que Braudel começou a trabalhar em sua tese O
Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II. Após a morte de
Lucien Febvre, dirigiu a revista, tornando-se o principal expoente dela nos anos de
1950 e 1960.

De novo o tempo
Quando Fernand Braudel escreve O Mediterrâneo, ele apresenta uma conceituação
em torno do tempo, a qual será tema de um estudo intitulado A longa duração,
publicado em 1965, no número 62 da Revista de História.
Nesse artigo, Braudel (1965) defende que a história decompõe o tempo passado,
escolhendo uma dentre as suas diversas realidades cronológicas. Contudo,
referindo-se às abordagens possíveis, esse autor também defende que campos de
conhecimento distintos promovem abordagens distintas com relação ao tempo.
O tempo breve ou curto é o tempo do indivíduo, dos acontecimentos. Esse era o
tempo tratado pela historiografia tradicional. O tempo lento seria o que se
enquadra no objeto de estudo das ciências sociais e econômicas, em que os ciclos
sobre os quais oscilam os eventos duram, às vezes, 10, 20, 50 anos ou mais. A
história referente a esse tempo seria aquela que estuda as estruturas criadas pela
civilização: o tempo da longa duração. Existe, ainda, um tempo que é
praticamente imóvel: o tempo dos homens e do ambiente.
É na longa duração que Fernand Braudel dialoga com o estruturalismo de Claude
Lévi-Strauss.

A nova história e a micro-história

Fernand Braudel dirigiu a revista dos Annales de 1956, ano da morte de Lucien
Febvre, até 1968. Apesar de não ter atuado nesse campo, foi durante sua gestão
que alguns pesquisadores ligados à escola começaram a desenvolver as pesquisas
que ficaram conhecidas como pertencentes ao campo da história das
mentalidades.

A história das mentalidades

A história das mentalidades busca nos seus estudos o modo de pensar e o modo de
agir dos grupos sociais. Dialogando diretamente com a psicologia, buscou temas
pouco convencionais. Importantes historiadores da segunda metade do século XX
fazem parte desse grupo. Robert Mandrou estudou a persistência dos modos de
sentir que incentivaram a prática da feitiçaria e sua repressão. Jean Delumeau
estudou o medo em complexos que permitiram, com a superação desses medos, a
passagem para o mundo moderno. Philippe Ariès e Michel Vovelle estudaram os
sentimentos humanos diante da morte (BARROS, 2005).
Porém esses estudos somente foram possíveis devido à utilização de alguns
elementos metodológicos próprios a esse campo: a abordagem serial, o recorte
temporal e a abordagem extensiva de fontes diversas.
Barros explica a necessidade dessa metodologia. Para falar da abordagem serial
extensiva de fontes diversas, usa o exemplo de Michel Vovelle nos estudos relativos
à morte.
[...] Vovelle examinou com precisão e método milhares de testamentos
provençais — sempre de forma maciça e procurando enxergar serialmente
padrões e deslocamentos de padrões que denunciassem as variações das
atitudes diante da morte na longa duração escolhida por ele. Quando
examina fontes iconográficas, afasta-se da abordagem qualitativa livre
para avaliar topicamente a recorrência e a ruptura de certos modos de
representar, às vezes medindo espaços no interior da representação
iconográfica e quantificando elementos figurativos. Se vai às fontes da
cultura material, à arquitetura funerária por exemplo, faz medições das
distâncias que separam túmulos e altares. Sua abordagem é, portanto,
sistemática, cuidadosamente preocupada com a homogeneidade das
fontes e com o seu lugar preciso dentro da série.
(BARROS, 2005, p. 41)
Esses estudos envolvidos na proposta da história das mentalidades abriram as
portas para outras abordagens. A partir de 1968, evidenciou-se cada vez mais a
identidade própria, apesar de ainda em construção, do grupo da terceira geração.
A proposta trazida por eles ficou conhecida genericamente como a da nouvelle
histoire, ou “nova história”.

A nova história

Existe uma divergência entre alguns autores no que se refere à continuidade ou


ruptura desse grupo da terceira geração, do qual fazem parte Jacques Le Goff,
Robert Mandrou, Emmanuel Le Roy Ladurie, Marc Ferro, entre outros.
Peter Burke, em A escrita da história, defende a continuidade do programa dos
Annales nas três gerações, uma vez que, segundo ele, a ruptura com o modelo da
historiografia tradicional ainda era um elemento vital. Além disso, pela leitura que
ele faz das pesquisas desenvolvidas no período, foi exatamente a partir desse
momento que a historiografia teria rompido por completo com o modelo
tradicional positivista, apesar de apresentar de forma revista e sob nova roupagem
a história política.
François Dosse, no entanto, em seu livro A história em migalhas, afirma que a
nova história teria fragmentado a tal ponto a história que aquela proposta de
Lucien Febvre, Marc Bloch e Fernand Braudel de uma história total teria se perdido
nesse emaranhado de métodos e abordagens.
A novidade nos tópicos ou temas a serem abordados é uma constante nessa
terceira geração. Encontramos aí os relacionados ao que ficou conhecido como
história vista de baixo — contrariando o ponto de observação anteriormente
adotado, ou seja, o das elites — e as novas abordagens da história política. Peter
Burke (2011), ao tratar das novas perspectivas da história nesse contexto, reúne
uma série de artigos de historiadores renomados no século XX, em que cada um vai
abordar um campo temático específico. Encontram-se, em seu livro: a história
vista de baixo, a história das mulheres, a história de além-mar, a história oral, a
da leitura, a das imagens, a do pensamento político, a do corpo e a dos
acontecimentos. É importante ressaltar que, nesse contexto, voltam à cena as
discussões em torno do uso da narrativa pelos historiadores. Outro campo também
explorado, mas que trataremos aqui em separado, é o da micro-história. Surgida
no mesmo contexto dos outros estudos desenvolvidos pelos partidários da nova
história, a micro-história, no entanto, ganha maior fôlego na Itália, com os estudos
de dois historiadores, Giovanni Levi e Carlo Ginzburg.

A micro-história

Durante a década de 1980, dois historiadores italianos, Giovanni Levi e Carlo


Ginzburg, dirigiram uma coleção intitulada Microstoria. Essa coleção reunia
pesquisas que tinham como ponto comum uma abordagem metodológica
desenvolvida em artigos e pesquisas publicados durante a década de 1970.
Segundo Giovanni Levi (apud BURKE, 2011, p. 135), a micro-história é definida,
antes de mais nada, como uma prática historiográfica de referências teóricas
variadas, cujo método relaciona-se aos procedimentos reais detalhados que
constituem o trabalho, e não necessariamente às microdimensões do tema
estudado.
Como entender, então, a microdimensão dessa modalidade historiográfica?
Giovanni Levi diz que:
Embora a escala como uma característica inerente da realidade
certamente não seja um elemento estranho, no debate da micro-história
ela é, sem dúvida, tangencial; porque o problema real está na decisão de
reduzir a escala de observação para propósitos experimentais. O princípio
unificador de toda pesquisa micro-histórica é a crença em que a
observação microscópica revelará fatores previamente não observados.
(LEVI apud BURKE, 2011, p. 141)
É dessa forma que Carlo Ginzburg vai buscar, no estudo de dois processos
referentes a um simples moleiro perseguido pela inquisição, os reflexos ou notícias
referentes ao modo como a cultura das classes subalternas e das classes
dominantes dialogavam no século XVI.

No prefácio de O queijo e os vermes, Ginzburg explica a aproximação com o


objeto e o propósito da pesquisa.
Passei parte do verão de 1962 em Udine. [...] Pesquisei os julgamentos de
uma estranha seita de Friuli, cujos membros os juízes identificaram como
bruxas e curandeiros. [...] Uma das acusações feitas a um réu era a de
que ele sustentava que o mundo tinha sua origem na putrefação. [...] Em
1970 resolvi tentar entender o que aquela declaração poderia ter
significado para a pessoa que a formulara. Durante esse tempo todo a
única coisa que sabia a seu respeito era o seu nome: Domenico,
Scandella, dito Menocchio.
Passei parte do verão de 1962 em Udine. [...] Pesquisei os julgamentos de
uma estranha seita de Friuli, cujos membros os juízes identificaram como
bruxas e curandeiros. [...] Uma das acusações feitas a um réu era a de
que ele sustentava que o mundo tinha sua origem na putrefação. [...] Em
1970 resolvi tentar entender o que aquela declaração poderia ter
significado para a pessoa que a formulara. Durante esse tempo todo a
única coisa que sabia a seu respeito era o seu nome: Domenico,
Scandella, dito Menocchio.
Mas é também um homem muito diferente de nós. A reconstrução
analítica dessa diferença tornou-se necessária, a fim de podermos
reconstruir a fisionomia, parcialmente obscurecida, de sua cultura e
contexto social no qual ela se moldou.
(GINZBURG, 2006, p. 9)
Levi faz algo semelhante em A herança imaterial.
A história de Chiesa foi não apenas o objeto da narrativa, mas também o
pretexto para a reconstituição do ambiente social e cultural da cidade.
Ele assumiu conotações que envolveram o funcionamento concreto, em
uma realidade específica, de leis gerais que permitem a identificação de
elementos constantes e a elaboração de comparações. Os próprios
documentos mudaram de sentido, perderam sua obviedade e mostraram
como seu uso imediato e literal distorce os significados [...].
(LEVI, 2000, p. 47)

Esta era a proposta da micro-história: diminuir a escala de observação para


conseguir explorar ao máximo as possibilidades de leitura.

Diálogo de Dilthey com os contemporâneos (Kant e


Annales)
O século XX, como você pôde perceber na última unidade, apresentou diversas
alterações no que se entendia como escrita da história. Os paradigmas que vinham
sendo apresentados desde o século XIX, referentes ao positivismo histórico, ao
materialismo histórico e ao historicismo, foram, durante o século XX,
profundamente discutidos, debatidos e revisitados. A história econômica, partindo
muitas vezes das propostas apresentadas por Marx e Engels, discutiu e reviu
diversos fatos e eventos ligados às questões econômicas. Por sua vez, a história
política se reabilitou, abordando outros pontos além daqueles provenientes da
descrição dos grandes fatos e guerras, que eram seu objeto de estudo no século
XIX. O mesmo se deu em diversas áreas. A possibilidade de se estudar a história,
enquanto ciência do passado, foi novamente pensada e diversos autores foram
outra vez estudados, sendo que um deles, Wilhelm Dilthey, mereceu singular
atenção por parte dos historiadores atuais.

Wilhelm Dilthey

Dilthey foi um filósofo, psicólogo, historiador, sociólogo e pedagogo alemão. O que


caracterizou profundamente sua obra foi sua relação com Kant. Esse fato motivou
sua defesa em torno da sistematização das ciências do espírito.
José Carlos Reis apresenta-o da seguinte forma:
Dilthey nasceu em 1833, em Biebrich, na Alemanha, e morreu
subitamente em 1911. Filho de pastor calvinista, teve uma formação
basicamente teológica. Tornou-se pastor, mas logo abandonou essa
atividade. “Logo depois da primeira homilia”, afirmam seus biógrafos. E
passou a se dedicar à atividade de professor universitário de filosofia.
Para exercer o ensino de filosofia na universidade, fez uma tese de
doutorado sobre o pensamento escolástico medieval. Como filósofo,
conhecia Kant desde os 16 anos. A vida de professor universitário, na
Alemanha do século XIX, era nobre. Podia-se viver com bons recursos e
muito prestígio. Ele ensinou em várias universidades: Bâle, Kiel, Breslau e
Berlim. Seus biógrafos afirmam que trabalhava de 12 a 14 horas por dia! E
é provável, levando-se em consideração seu modo discreto de viver.
(REIS, 2006, p. 227-228)
Sua obra é imensa e, às vezes, de difícil leitura e interpretação. Contudo, traz
conceitos e propostas que se apresentam extremamente atuais, segundo os nossos
padrões.

O pensamento de Dilthey

Dilthey combateu o hegelianismo e sua concepção da história foi inspirada nos


escritos de Giambattista Vico. Ele entendia a história como “experiência vivida” e,
para que ela se concretizasse enquanto escrita, Dilthey defendia o estudo do
contexto histórico, que era local e finito em oposição à visão universalista de
Hegel.
Dilthey acreditava que a história não deveria ser escrita para oferecer lições de
moral, nem tampouco que se prestasse à política. A militância política deveria se
ater apenas às questões do presente. Porém, com relação ao passado, ele deveria
ser estudado cientificamente. O que diferia, portanto, era a abordagem científica
defendida por ele.
Inspirado na Crítica da razão pura, de Kant, Dilthey propôs uma teorização sobre o
que ele definiu como sendo as ciências do espírito em contraposição às ciências da
razão, estudadas por Kant.
O que o interessa em Kant é seu ponto de partida interno para o
conhecimento da natureza, isto é, seu ponto de vista transcendental. A
ciência é construída a partir do sujeito. Para Kant, não se pode ir além do
sujeito e de suas categorias. O sujeito transcendental é posto
copernicamente no centro do universo. E, com isso, a metafísica teria
sido superada. (REIS, 2006, p. 235)
Dilthey não acreditava na possibilidade da existência de leis que pudessem reger os
fenômenos das ciências do espírito. Ao contrário, ele acreditava que a
compreensão antecedia a criação ou o conhecimento dessas leis, as quais eram
estabelecidas no modelo explicativo oferecido às “ciências da razão” ou ciências
naturais.
Para Dilthey, o sujeito das ciências do espírito era a vida e a história. Ou seja, ele
era histórico, portador de uma experiência interna e não apenas racional. As
questões subjetivas eram portadoras de significados e elas traduziam-se nas
vontades, paixões e intencionalidades com que o sujeito constrói sua vida, ao criar
e seguir valores particulares. Por isso, a vida, entendida por ele enquanto sujeito,
era ao mesmo tempo histórica e psicológica.
Dilthey inspirou-se em Kant para depois abandoná-lo. Seu sujeito não era
intelectual, pois partia do conceito de que o sujeito do conhecimento era o homem
em sua vida no tempo e em sua historicidade. Foi nesse momento, que ele se
aproximou do pensamento dos historiadores da escola dos Annales, ao entender a
necessidade de estudar o homem em seu tempo, da mesma forma que Marc Bloch
defendeu que a história deveria ser a ciência do homem no tempo.

Fim das metanarrativas e a encruzilhada da história por


intermédio do pensamento de Fukuyama e Sader
No processo que teve lugar nas duas últimas décadas do século XX, referente à
escrita da história, um elemento, que foi duramente criticado e teve seu fim
apregoado, foram as metanarrativas.
O que são as metanarrativas?
Metanarrativa é um termo literário e filosófico que significa a narrativa para além
da própria narrativa. Na filosofia, ela tem o sentido de uma grande narrativa, tão
superior que a torna capaz de explicar todo o conhecimento existente ou uma
verdade absoluta. A Bíblia e o Alcorão são exemplos de metanarrativas religiosas.
Outros exemplos são as ideologias iluministas e marxistas.

Qual o problema das metanarrativas?


Para entender esse problema, é necessário apresentar um dos principais expoentes
da pós-modernidade, o francês Jean-François Lyotard.
Lyotard foi um filósofo francês que nasceu em 1924 e morreu em 1998. Autor de
diversos livros, interessa-nos mais profundamente sua obra A condição
pós-moderna, na qual ele fala da fragmentação e multiplicação dos centros, assim
como da complexidade das relações sociais entre os homens. Explica ainda que o
estado ou condição pós-moderna seria aquele que tomou forma na cultura em
geral, depois de transformações súbitas nas regras que definiam o funcionamento
das ciências, da literatura e das artes, a partir do século XIX.
...considera-se ‘pós-moderna’ a incredulidade em relação aos
‘metarrelatos’. É, sem dúvida, um efeito do progresso das ciências, mas
este progresso, por sua vez, a supõe. Ao desuso do dispositivo
metanarrativo de legitimação corresponde sobretudo a crise da filosofia
metafísica e a da instituição universitária que dela dependia.
(LYOTARD, 1993, p. 3)
As metanarrativas foram de fundamental importância na produção e no
conhecimento histórico como um todo. Se recordarmos que as ideologias
iluministas e marxistas são metanarrativas, elas, enquanto filosofias da história,
contribuíram para a consolidação do conhecimento histórico ainda no século XIX.

Vale recordar que nos séculos XVIII e XIX, a narrativa histórica, vinculada aos
modelos utilizados para construir a história das nações, era defendida por diversos
iluministas. E foi percorrendo inicialmente esses caminhos que o conhecimento
histórico foi gradativamente sendo alçado à condição de conhecimento científico.
Lyotard, ao apresentar sua incredulidade com relação às metanarrativas,
exprimiu seu “descrédito a qualquer teoria com aspirações de totalidade sobre
o mundo e as experiências humanas” (MARCZAL, 2016, p. 196). Ele partiu do
pressuposto de que a mudança no estatuto do saber acompanhava o ingresso das
sociedades em uma era pós-industrial e a cultura em um período de
pós-modernidade. Esse período caracterizou-se pela reconstrução e pela
reorganização do pós-guerra, assim como pelo surgimento de novos problemas e
desafios, essenciais na reorganização dos saberes e das maneiras de se entender
a realidade (MARCZAL, 2016, p. 195-196).

A terceira geração da escola dos Annales já havia demonstrado quão fragmentada


se mostrava a realidade humana. O que ainda não havia acontecido, ou seja, o
desmoronamento dos grandes modelos políticos, apresentou-se apenas nos últimos
anos do século XX. Emir Sader e Francis Fukuyama fizeram algumas considerações
importantes que se identificam com esse movimento da condição pós-moderna,
proposto por Lyotard.
A produção dos dois autores vem fazer eco ao entendimento de que os modelos
que existiam, até a primeira metade do século XX, haviam atingido uma espécie de
esgotamento, mostrando-se ineficazes, segundo a proposta a qual se vinculavam.
E, em meio a tantas dúvidas, permanece o questionamento. Qual ou quais os
caminhos que se podem apresentar à história em meio à decadência dos grandes
modelos? Será que se pode esperar ainda alguma coisa, alguma novidade, alguma
proposta para o estudo que o homem faz do próprio homem, como queria Dilthey?
Ou o que se pode esperar deste tempo em que o homem atualmente está inserido?
A história realmente chegou ao seu fim?

Novos e velhos caminhos, a disputa pela história e o olhar


de Mészáros
Diante dos problemas apresentados na última aula, havíamos deixado a seguinte
questão:

Qual ou quais os caminhos que se podem


apresentar à história em meio à decadência
dos grandes modelos? A história realmente
chegou ao seu fim?
O filósofo marxista Istvan Mészáros escreveu um livro que se intitula O desafio e o
fardo do tempo histórico. Nele, ele afirma que:
Indivíduo nenhum e nenhuma forma concebível de sociedade hoje ou no
futuro podem evitar as determinações objetivas e o correspondente fardo
do tempo histórico, bem como a responsabilidade que necessariamente
emerge de ambos. Em termos gerais, talvez a maior acusação contra
nossa ordem social dada é que ela degrada o fardo inescapável do tempo
histórico significativo — o tempo de vida tanto dos indivíduos como da
humanidade — à tirania do imperativo do tempo reificado do capital, sem
levar em conta as consequências.
(MÉSZÁROS, 2007, p. 33)
Se pensarmos nas colocações feitas na última aula com relação ao fim das
metanarrativas, Mészáros propôs uma outra chave de leitura. Ele chamou a
atenção para o fato de que o tempo histórico, o nosso tempo de vida, seja do
indivíduo, seja da humanidade como um todo, estava sendo degradado pelas
condições promovidas pela ordem social vigente. Ele ainda defendeu em seu livro a
ideia de que as esferas institucionais ou parlamentares eram incapazes de
promover a destruição do sistema de domínio social do capital, cujo processo seria
necessário para colocar um freio à lógica destrutiva que se vincula a esse sistema.
O mundo, enquanto organismo vivo, estava em crise. O fim da história, o último
homem e o fim das metanarrativas eram, assim, construções mentais, literárias e
intelectuais que refletiam exatamente a crise do mundo. Dessa forma, Mészáros
acreditava que somente um movimento de massas, amplo e radical, poderia,
talvez, ter a força de se interpor diante desse sistema de domínio social.
Acontece que, em algumas situações, antes de começar tudo do zero, vale a pena
dar uma olhada nos escombros e reavaliar a situação. Foi isso, de certa forma, que
Mészáros fez em Para além do capital. Nesse livro, o autor trabalhou a distinção
entre capital e capitalismo, às vezes entendidos como sendo uma e a mesma coisa.
Ao propor um novo estudo sobre a proposta de Karl Marx e Friedrich Engels, ele se
debruçou sobre a metanarrativa marxista, buscando não mais os modelos
explicativos aplicáveis aos diversos momentos da história, mas os elementos que
poderiam ainda persistir ou serem ressignificados.
Essa era proposta do neo-revisionismo. E ele não foi o único. Paralelo a esse
período de crítica pós-moderna, diversos autores ergueram a voz para defender
novos usos de antigos projetos. A narrativa voltou a ser pensada para a escrita da
história, assim como os modelos biográficos. Até as metanarrativas estavam sendo
revisitadas, porém, não mais sob a ótica eurocêntrica, mas pensando-se nas
possibilidades do que Frederick Gomes Alves chamou de “discurso emancipador de
todas as culturas históricas, cujo elemento comum seria um conceito de
humanidade” (2014, p. 1).
Nesse contexto do final do século XX e início do século XXI, a história, após ter
observado o seu fim decretado, passou a ser vista como em constante construção.
Por isso, pode-se entender o caráter de reescrita permanente do conhecimento
histórico, mesmo que isso signifique uma prática constante de significação e
ressignificação.
O paradigma pós-moderno traz alguns elementos muito significativos para a escrita
da história, sendo alguns deles já presentes nas discussões que tiveram lugar
quando do surgimento da nova história e da micro-história. As narrativas de
caráter universal foram gradativamente abandonadas e em seu lugar viu-se o
crescimento da defesa dos contextos locais.
A história se viu com múltiplas formas de apresentação e de realização da sua
prática, e todas elas coexistindo entre si. Contrariamente aos caracteres perenes e
contínuos que eram vinculados àquilo que se entendia como digno de ser
recordado, os fatos efêmeros ou descontínuos foram vistos enquanto portadores de
significado, passíveis de serem agraciados pela memória. E, apesar do fim das
metanarrativas, os diversos sentidos da interpretação foram ouvidos.

A pós-modernidade dialoga intimamente com o movimento de globalização que nos


cerca. Esse movimento permitiu uma série de alterações no campo econômico,
como também um diálogo e um conhecimento maior das diversas realidades
existentes no mundo.
Talvez esse seja o legado tanto da globalização quanto de sua aliada, a
pós-modernidade, ou seja, de mostrar que o mundo pode ser lido de forma distinta
daquela proposta e seguida por tantos séculos, no qual a Europa era o centro do
mundo. Permitir, assim, que outras culturas tenham voz e vez e que teorias
antigas possam ser revistas e ressignificadas diante dos novos conhecimentos e
acontecimentos. Por fim, entender e aceitar que a escrita da história pode ser
muito mais rica do que pensávamos até então.

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