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DICIONÁRIO

DE
FILOSOFIA DO DIREITO

Coordenação
Vicente de Paulo Barretto

EDITORA UNISINOS EDITORA RENOVAR


São Leopoldo RS Rio de Janeiro RJ

2006
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tico, equivalente, neste ponto, a retificador, como curso que começou a ministrar a partir de 1829 na
também da afirmação expressa do filósofo, quando então recém-inaugurada Universidade de Londres,
diz que, nas transações voluntárias em que há um na qualidade de professor de Jurisprudência. Austin
equilíbrio entre a perda e o ganho, as cláusulas “são figura na história do pensamento jurídico como um
deixadas pela lei à vontade dos contratantes” (É. dos mais importantes representantes do positivismo
N., idem). legal. E a razão para isso pode ser buscada já na pri­
Por fim, na luta pela determinação da igualdade, a meira frase da primeira preleção de A província da
justiça precisa completar-se com outros preceitos jurisprudência determinada, em que Austin afirma
fundamentais, se se quer obter efetivamente pre­ que o objeto próprio da jurisprudência é a lei posi­
ceitos de direito justo. Entende-se, desse modo, a tiva, i.e., a lei colocada por uma autoridade política
importância da eqüidade, na clássica definição aris- para os indivíduos que estão submetidos a essa au­
totélica: “quando a lei dispõe de um modo geral e toridade. Por outro lado, a versão do positivismo
surge um caso particular, algo excepcional, vendo jurídico defendida por Austin é bastante diferente,
que o legislador se cala ou que se enganou por ter por exemplo, daquela defendida por Jeremy Ben-
falado em termos absolutos, é imprescindível cor­ tham ou Hans Kelsen, na medida em que Austin
rigir-lhe e suprir-lhe ó silêncio e falar em seu lugar, não nega que haja algo como leis naturais. O que
como o mesmo faria se estivesse presente, isto é, ele nega, de fato, é que as leis naturais constituam
fazendo a lei como ele poderia ter feito, se pudesse o objeto de que se ocupa a jurisprudência. As leis
ter ciência dos casos particulares de que trata” (E. naturais seriam, na verdade, objetos da ética, um
N. V, 14, 1137 b 19-23). âmbito de investigação não menos sistemático do
que o âmbito da jurisprudência, mas que, no en­
*■ Obras: Étiqtie à Nicomaque —trad. J. Tricot Vrin, Paris, 1959. tanto, não se confundiria com este último. Vejamos
- Nicomachean Ethics —trad. W. D. Ross, ed. The Great Books então de que maneira Austin distingue a lei positiva
da Britannica, 1952. - Politics - trad. Benjamin Jowett - ed. The
Great Books da Britannica, 1952. - Rhetoríc - trad. W. Rhys - o objeto da jurisprudência —de outros tipos de lei
Roberts - ed. The Great Books da Britannica, 1952. - Arte Retó­ que escapam à província da jurisprudência.
rica e Arte Poética - trad. Antônio Pinto de Carvalho - Difusão Logo no início de A província da jurisprudência
Européia do Livro, 1959. determinada, Austin define nos seguintes termos o
conceito de lei (law): “uma regra estabelecida para
>■ Platão: The Dialogues ofPlato —trad. Benjamin jowett - ed. Great
a conduta de um ser inteligente por um ser inteli­
Books da Britannica, 1958. - Ferraz Jr, Tercio Sampaio: Noção
aristotélica dejustiça em Estudos de Filosofia do Direito, São Pau­ gente tendo poder sobre ele”. Essa definição, no en­
lo, 2002. —Ross, W. D.: Aristote - trad. francesa, Payot, 1926. tanto, é muito geral, pois ela inclui em seu âmbito
regras que, por um lado, podem ser corretamente
T é r c io Sa m p a io Fe r r a z Jü n io r denominadas de lei, sem que, por outro lado, tais
regras possam ser consideradas objeto da jurispru­
5» Verbetes correlatos: Analogia; Finnis, John Mitchell; Hegel, Ge- dência. O principal objetivo de Austin é demarcar
org Wilhelm Friedrich; Lima Vaz, H. C.; Teoria da Justiça. o âmbito próprio da jurisprudência, de modo a ex­
cluir desse âmbito várias regras que, mesmo sendo
tipos de lei, não constituem a rigor o objeto do qual
a jurisprudência se ocupa. O objeto próprio da ju­
risprudência é, segundo Austin, a lei positiva.
AUSTIN, John, 1790-1859
Em seu sentido mais geral, o conceito de lei envol­
ve tanto as leis humanas quanto as leis de Deus.
Em 1825, Austin abandona a prática do Direito para Para Austin, apenas as leis de Deus poderiam ser
se dedicar à investigação de problemas teóricos rela­ propriamente denominadas leis naturais. Contudo,
tivos à natureza de alguns dos principais conceitos ele prefere evitar o uso dessa expressão (Lei N atu­
jurídicos, sobretudo o conceito de lei. Sua princi­ ral), por considerá-la equívoca e ambígua. Austin
pal obra, A província da jurisprudência determinada denomina então a lei de Deus simplesmente de
(1832), única obra publicada no perído em que viveu, lei divina (D ivine law). Quanto às leis humanas,
consiste de uma série de seis preleções (lectures) que elas são de dois tipos, freqüentemente confundi­
foram preparadas sobretudo entre os anos de 1827 dos: leis positivas e leis da moralidade positiva. As
e 1828, período em que Austin viveu em Bonn, na primeiras são estabelecidas por uma autoridade
Alemanha. Tais preleções constituem o essencial do política (political superiors), as segundas não. E do
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conjunto das leis positivas que se ocupa a juris­ razão em função das quais as supostas leis teriam
prudência. A moralidade positiva se distingue, por sido estabelecidas. Segundo Austin, é devido a esse
um lado, da lei positiva, na medida em que ela não uso equivocado da palavra lei que tradicionalmen­
é estabelecida por uma autoridade política. Ela diz te houve muita confusão tanto no âmbito da moral
respeito, antes, ao sentimento de aprovação ou de­ quanto no âmbito da jurisprudência. A palavrapo­
saprovação de uma determinada comunidade com sitiva na expressão moralidade positiva é necessária,
relação a certos tipos de comportamento. Por ou­ segundo Austin, para podermos demarcar, de um
tro lado, a moralidade positiva se distingue tam­ lado, a moralidade positiva, e, de outro lado, a lei
bém da lei divina (ou Lei Natural), na medida em divina. Se falássemos simplesmente em moralida­
que ela diz respeito a Um conjunto de regras efe­ de (ou moral) poderíamos ter em mente: (i) a mo­
tivamente adotadas por uma comunidade, inde­ ralidade tal como ela é, independentemente de seus
pendentemente do fato de essas regras estarem ou méritos; ou (ii) a moralidade tal como ela deveria
não de acordo com a lei divina. Segundo Austin, ser, i.e., considerada sob a perspectiva da vontade
as leis da moralidade positiva são denominadas de de Deus. Essa distinção entre a moralide tal como
leis no sentido impróprio deste termo. Trata-se de ela í (as it is) de fato, e a moralidade tal como ela
um sentido impróprio, pois falta às leis da mora­ seria (as it would be), se fosse conforme à lei divina
lidade positiva uma instância superior com o po­ (ou Lei Natural), torna Austin um representante
der de impor algum tipo de penalidade no caso da pouco comum da tradição do positivismo legal.
violação desse tipo de lei. A mera desaprovação da Com efeito, Austin não nega, como por exemplo
comunidade não constitui para Austin um tipo de Bentham ou Kelsen, que existam coisas como leis
penalidade. Evidentemente, as leis da moralidade naturais em função das quais poderíamos avaliar
positiva podem ser endossadas e impostas pelo moralmente quer sistemas jurídicos específicos,
poder de coerção do Estado. Quando isso ocorre, quer o conjunto das regras não institucionalizadas
elas se tornam então leis positivas. Como exem­ juridicamente de uma determinada comunidade.
plos de leis da moralidade positiva, e portanto leis O que Austin no entanto nega é que uma resposta
no sentido impróprio desse termo, Austin aduz a à pergunta sobre o que é a lei no sentido próprio
lei da honra (the law ofhonour), a lei ditada pela do termo —a pergunta de que se ocupa a jurispru­
moda {the law set by fashion ), e até mesmo o Di­ dência —tenha de envolver especulações sobre o
reito Internacional. Nesses casos, o que está em que é moralmente certo ou errado. No entanto,
questão é a mera opinião e sentimentos de um de­ ainda assim, ao longo das seis preleções de que se
terminado grupo de pessoas, e não o poder de co­ compõe sua principal obra, Austin se dedica siste­
erção de uma autoridade política. Cumpre ainda maticamente também a questões de ordem moral.
incluir no conjunto de leis da moralidade positiva Com efeito, até quase o final do século XIX, Austin
as leis consuetudinárias (customary laws). Enquanto foi muito mais lido como um pensador da moral
não são instituídas como as normas de um Estado, do que do Direito. Nesse contexto, foram sobre­
as leis consuetudinárias são, na verdade, apenas re­ tudo as preleções 2, 3 e 4, que constituíram o foco
gras (rules) da moralidade positiva. A força dessas central da atenção na discussão do pensamento de
leis decorre da desaprovação geral que recai sobre as Austin. São nessas preleções que sua teoria moral
pessoas que as transgridem. Como Austin afirma: é discutida de modo sistemático. As preleções 1, 5
“consideradas como regras da moralidade positiva, e 6, que contêm propriamente a teoria do Direi­
as leis consuetudinárias surgem do consentimento to de Austin, só começaram a ser lidas com mais
dos governados, e não da colocação (position) ou atenção a partir do final do século XIX (Rumble,
estabelecimento da autoridade política” (p. 36). 1991). Nas partes de sua obra em que se dedica à
Ainda que impróprio, o termo lei utilizado para se investigação de problemas morais, Austin se com­
referir às regras da moralidade positiva é bastante promete claramente com uma posição utilitarista.
análogo {closely analogous) ao uso do termo lei em Contudo, o que torna sua versão do utilitarismo
seu sentido próprio. Existe, no entanto, um uso bastante peculiar é o fato de Austin desenvolver
do termo lei que é inteiramente equivocado. Tal uma teoria moral utilitarista no contexto de uma
é o caso quando falamos das leis que regulam o discussão sobre a lei divina. Na segunda preleção
comportamento dos animais, das leis que regulam Austin distingue as leis de Deus reveladas das leis
o crescimento das plantas etc. Nesses casos, não de Deus não reveladas. Sua tese é que os princípios
podemos falar nem de uma vontade nem de uma do utilitarismo conteriam as leis de Deus que não
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nos foram reveladas. Como ele afirma: “A partir seja extremamente branda, basta que a sanção exis­
dos efeitos prováveis de nossas ações sobre a maior ta para que possamos falar em um comando.
felicidade de todos (...) podemos inferir as leis Austin procura então deixar claro que o conceito
que ele <sc. Deus> nos deu, mas não exprimiu ou de comando envolve o conceito de sanção, mas não
revelou”. envolve, por outro lado, o conceito de recompen­
Tendo desse modo especificado seu objetivo, a sa­ sa (reward), ao contrário do que sustentavam, por
ber, demarcar o âmbito próprio da jurisprudência, exemplo, Locke e Bentham. Com efeito, seria pos­
Austin procura então definir o que entende por sível alegar que, assim como um comando é imposto
lei no sentido mais geral desse termo, ou melhor (<enforced) pela ameaça da pena, da mesma forma
dizendo: lei no sentido mais geral próprio desse um comando seria imposto, também, pela perspec­
termo. Inicialmente, Austin explicita os elemen­ tiva do recebimento de algum tipo de recompensa.
tos constitutivos do conceito de lei, para então Contudo, sustenta Austin, não importa o quanto
os examinar separadamente. Em seu sentido mais alguém ofereça em termos de recompensa pela pres­
geral próprio, leis são antes de mais nada coman­ tação de um determinado serviço, aquele a quem
dos (commands). O que é próprio de um coman­ se dirige a recompensa não estará, unicamente pela
do é que ele envolve, por um lado, um “desejo” perspectiva de recebê-la, obrigado a realizar o servi­
(wish) por parte de quem realiza o comando, e, ço em questão. Com outras palavras, recompensas
por outro lado, ele envolve também uma sanção não geram deveres. Uma recompensa pode, no má­
(.sanction) sobre aquele que não se comporta em ximo, motivar-nos a agir em conformidade com um
conformidade com aquilo que o comando exige. determinado desejo, mas ela por si não é capaz de
Dessa forma, o que distingue um comando de ou­ transformar um desejo em um comando.
tros tipos de expressão de desejos não é o modo Dessa forma, Austin, na elucidação do conceito de
como o comando é expresso, mas, antes de mais lei, chega ao seguinte resultado: o conceito de lei
nada, o poder de sanção daquele que estabelece o envolve o conceito de comando. O conceito de co­
comando. Para aquele a quem o comando se diri­ mando, por sua vez, envolve o conceito de sanção,
ge, e que está portanto submetido a uma sanção e o conceito de sanção envolve o conceito de dever
no caso da não-obediência ao comando, surge (ou obrigação). O conceito de comando, por outro
então o dever (duty) ou obrigação (obligation) de lado, não envolve o conceito de recompensa, ainda
obedecer. Segundo Austin, os conceitos de dever e que a recompensa possa ser um estímulo ao cumpri­
de comando são correlatos: o significado de um en­ mento do dever. Cada um desses termos —comando,
volve o significado do outro. Onde quer que haja sanção, e dever —denota, segundo Austin, umaparte
um comando, alguém tem o dever de obedecê-lo; de uma mesma noção, a saber: a noção de lei.
e onde quer que haja um dever, há alguém que es­ Tendo elucidado o conceito de lei em suas partes
tabeleceu o comando correspondente. Em alguns constitutivas, Austin busca em seguida elucidar
contextos, Austin chega mesmo a afirmar que os melhor algumas dessas partes constitutivas, come­
termos comando e dever são expressões equivalentes. çando, novamente, pelo conceito de comando. O
O não-cumprimento do dever, portanto, envolve a conceito de comando, afirma, é de duas espécies
imposição de um tipo específico de conseqüência diferentes. A primeira espécie são leis (laws) ou
negativa (evil), que nada mais é do que a sanção as­ regras (rules). Austin não faz uma distinção rígida
sociada ao não-cumprimento desse dever. A sanção entre esses dois termos. Quanto à segunda espécie,
também costuma ser denominada de punição (pu- não há, segundo Austin, um vocabulário específico
nishmení). Contudo, segundo Austin, o conceito aqui. Ele se refere a ela, à falta de termo melhor,
de sanção é mais amplo do que o conceito de pu­ como comandos ocasionais ou particulares. Com re­
nição. Embora haja uma relação entre a intensida­ lação ao primeiro tipo de comandos, o que está em
de da sanção e a probabilidade de que o comando questão é a exortação à realização de uma determi­
correspondente seja obedecido, foge ao âmbito da nada classe de ações (por exemplo: salvar pessoas
jurisprudência, segundo Austin, o exame da mag­ em perigo) ou, conforme o caso, à omissão de uma
nitude da conseqüência negativa que recai sobre determinada classe de ações (por exemplo: matar
aquele que infringe seu dever. Dessa forma, é ir­ pessoas indefesas). Quando dizemos que a lei exige
relevante para a jurisprudência a questão sobre se que salvemos pessoas em perigo, ou que nos abste-
a magnitude da sanção é suficiente para mover as nhamos de matar outras pessoas, o que temos em
pessoas a cumprirem a lei. Mesmo que a sanção mente não é, portanto, a realização (ou omissão,
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conforme o caso) de um ato particular (salvar esta que, enquanto os primeiros se dirigem a uma úni­
pessoa; ou não matar aquela pessoa), mas uma clas­ ca pessoa, os segundos se dirigem a um grupo ou
se de atos em geral. Quando um comando visa à re­ comunidade de pessoas. Austin tenta mostrar que
alização de um ato específico, então esse comando é essa distinção é equivocada, alegando, em primeiro
do segundo tipo reconhecido por Austin. A tese de lugar, que nem sempre um comando que se dirige a
Austin é que uma lei, no sentido próprio, consiste um grupo de indivíduos pode ser considerado uma
em um comando que determina a realização (ou lei ou regra. Seu ponto é que a generalidade da re­
proibição) de um deteminado tipo de ato, tomado gra diz respeito à generalidade de ações a que ela se
de modo geral. Um comando particular ou ocasio­ refere, i.e., as ações tomadas como pertencentes a
nal não é uma lei no sentido estrito do termo. O um determinado gênero. A generalidade, dessa for­
exemplo que Austin considera aqui é o seguinte: se ma, não diria respeito às pessoas às quais a lei se re­
o parlamento determinar a proibição da exporta­ fere. Em segundo lugar, Austin alega ainda que um
ção de milho —seja por um período específico de comando que se dirige a uma única pessoa pode ser
tempo ou indefinidamente —, então esse comando considerado, em algumas cicunstâncias, uma lei. O
pode ser considerado uma lei, pois diz respeito à parlamento, por exemplo, pode deliberar quanto
proibição de um tipo ou sorte (kind or sort) de ato. ao estabelecimento de uma lei que regule os atos
Mas se, por alguma razão, o parlamento decidir de uma única pessoa, a saber, o primeiro-ministro.
que um determinado carregamento de milho no Dessa forma, Austin torna mais precisa sua defi­
porto não pode ser exportado, então o comando nição de lei afirmando o seguinte: “Uma lei i um
aqui em questão, ainda que tendo sua origem em comando que obriga uma pessoa ou pessoas".
uma autoridade política, não pode ser considerado Austin reconhece que sua teoria da lei como co­
uma lei. O problema, Austin reconhece, é que, no mando suscita algumas dificuldades. Mas ele tenta
uso ordinário da linguagem, esse tipo de coman­ também mostrar, por outro lado, que várias dessas
do é freqüentemente descrito, também, como um dificuldades são apenas aparentes. Seria possível
tipo de lei, ainda que, conceitualmente, se distin- alegar, por exemplo, que há leis que não são im ­
gua claramente do que Austin denomina lei em seu perativos., i.e., não envolveriam um comando. Um
sentido próprio, i.e., um comando relativo à rea­ dos casos examinados por Austin nesse sentido diz
lização ou proibição de um determinado tipo de respeito às leis que, supostamente, apenas criariam
ato. Austin procura ilustrar ainda a distinção entre direitos. Essas leis, na medida em que não esta­
comandos gerais, que são leis no sentido próprio, e belecem deveres, não seriam tipos de imperativos.
comandos particulares (ou ocasionais) por meio do A tese de Austin, contudo, é que não existem, leis
exemplo de decisões judiciais {judicial commands), desse tipo, i.e., leis que apenas criam direitos. Exis­
que são comandos ocasionais e, portanto, não são tem, de fato, leis que apenas criam deveres. Leis
leis no sentido próprio, ainda que tais comandos desse tipo poderiam ser denomidadas absolutas por
visem ao enforcement de uma determinada lei, i.e., não envolverem um direito correspondente. As leis
um comando geral. Com relação a isso Austin con­ que estabelecem direitos estabelecem também de­
sidera o seguinte exemplo: “o legislador determina veres correlatos, pois à violação do direito de uma
(commands) que os ladrões serão enforcados. Dado pessoa deve se seguir uma sanção para aquele que
um ladrão específico, o juiz determina que o ladrão violou o direito em questão. Mas, na medida em
seja enforcado, de acordo com o comando do legis­ que direitos podem sempre ser reinterpretados em
lador Nesse caso, como se pode ver, é importan­ termos de deveres correlatos, não seria preciso, se­
te que seja preservada a distinção entre comando gundo Austin, incluir o conceito de direito na pro­
particular e comando geral, pois, do contrário, se­ víncia da jurisprudência. Com efeito, Austin nega
riamos forçados a admitir que o comando particu­ que seja necessário, na tentativa de determinação
lar de um juiz seria a própria lei. A figura do juiz, do âmbito próprio da jurisprudência, um exame
nesse caso, portanto, se confundiria com a figura minucioso do conceito de direito. Nesse sentido, a
do próprio legislador. Austin considera então uma teoria do Direito de Austin não é, de fato, um exa­
possível objeção à distinção que faz entre coman­ me acerca do conceito de direito, no sentido estrito
dos particulares e comandos gerais (ou leis). Para, do termo direito, mas, antes, do conceito de lei.
por exemplo, William Blackstone, um dos mais Por fim, o que torna Austin um dos mais importan­
importantes teóricos da common law na Inglaterra, tes representantes do positivismo legal é sua tentati­
a distinção entre comandos particulares e gerais é va sistemática de articular um âmbito específico de
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investigação —a jurisprudência —em que a pergun­ AUTONOMIA


ta sobre o que é a lei seja examinada independente­
mente do fato de as leis serem boas ou más (without
regard to their goodness or badness). Diferentemen­ Autonomia, enquanto o direito de se determinar in­
te de toda uma tradição do pensamento jurídico, dependentemente de outro poder, é a categoria po­
mais especificamente a tradição do Direito Natu­ lítica central da Grécia antiga desde o século V a. C.
ral, para a qual a lei, no sentido próprio, deveria Heródoto (Histórias, ca. 460 a.C.), ao tratar da luta
envolver noções normativas como, por exemplo, a dos Medos com os Assírios, define autonomia, em
idéia de justiça, Austin procura mostrar que uma sentido amplo, como liberdade interna (ao contrário
lei é lei, no sentido próprio, antes de mais nada da tirania) e externa (ao contrário da dependência de
por ser a expressão de um comando, quaisquer que um dominador estrangeiro). JáTucídides (História da
sejam as motivações daquele que realiza o coman­ guerra do Peloponeso, ca. 404 a.C.), ao discorrer sobre
do. Por outro lado, ao contrário de outros impor­ o tratado de paz entre Atenas e Lacedemônia, especi­
tantes representantes do positivismo legal, Austin fica o sentido de autonomia como legislação própria,
não nega que existam leis naturais. As leis naturais distinguindo-a de um sistema próprio judiciário e de
existem de fato para Austin, quer sob a forma de finanças. Tal era o uso predominante do termo na An­
leis divinas, quer sob a forma de princípios morais tigüidade, quando a legislação própria não implicava
utilitaristas. O ponto sobre o qual Austin insiste, um sistema judiciário e de finanças independente.
no entanto, é que a ética e a jurisprudência consti­ No entanto, as cidades-estado gregas passam a exigir
tuem dois âmbitos de investigações distintos, ainda diante de Atenas não apenas uma legislação, mas tam­
que, como atesta uma porção considerável de sua bém uma administração própria. O termo também é
principal obra, possamos avaliar moralmente, e de usado em sentido ético (por Sófocles, sobre a condu­
modo sistemático, as leis positivas sob as quais efe­ ta de Antígona, em Antígona, ca. 440 a.C.) e estético
tivamente vivemos. (por Himerius, em Orationes). Em Roma, Cícero usa
o termo grego para designar a autodeterminação po­
*- Obras: Lectures onJurisprudence or the Philosophy ofPositive Law. lítica (Epistulae adAtticum, ca. 65-44 a.C.), à qual os
Glashutten ia Tanus: Auvermann, 1972. —The Province of Juris­
prudence Determined. Cambridge: Cambridge University Press, demais escritores romanos se referiam antes com ex­
1995. pressões como potestas vivendi suis legibus (Tito Lívio)
epotestas utendi suis legibus (César).
>■ Austin, J. The Province of Jurisprudence Determined (1832), Na Idade Média, o conceito de autonomia é uma
Cambridge, Cambridge University Press, 1995. - _____ . Lec­ categoria central na discussão confessional sobre
tures on Jurisprudence or the Philosophy of Positive Law (1861-3),
(org.) R. Campbell, Londres, John Murray, 1885. - King, Peter
a interpretação da paz de Augsburg (1555). Fran-
J. UtilitarianJurisprudence in America: The Influence ofBentham ciscus Burgcardus acusa a exigência protestante de
andAustin on American L egal Thought in the Nineteenth Century, liberdade de crença de ter conotação não apenas re­
Nova York /Londres, Garland, 1986. - Lõwenhaupt, Wilfried. ligiosa, mas política, por ser contra a ordem e a lei;
Politischer Utilitarismus und hürgeliches Rechtsdenken:John Austin
und die “Philosophie des positiven Rechts”, Duncker & Humblot,
designa então tal exigência, depreciativamente, com
1972. - Morison, W. L. John Austin, Londres, Edward Arnold, o conceito grego de autonomia, já que tal expressão
1982. - Rumble, W. E. The Thought ofjohn Austin: Jurispruden­ tem conotação política, enquanto que as expressões
ce, Colonial Reform, and the British Constitution, Londres, Athlo- latinas libertas ou licentia credendi têm conotação
ne Press, 1985. - ______. “Nineteenth-century perception of
John Austin: Utilitarianism and the reviews of The Province of
sobretudo religiosa {De Autonomia, das ist von
Jurisprudence Determined', in Utilitas, v. 3, 1991, p. 199-216. Freystellung mehrerlay Religion und Glauben, 1586).
—Schwarz, Andreas B. “John Austin and the German jurispru­ Nesse mesmo sentido, a Igreja Católica chama de
dence of his time”, in Politica, v. 1, 1934, p. 179-99. - Willia­ cláusula autonomia a reserva eclesiástica {reservatum
ms, Glanville. “The controversy concerning the word ‘law’”,
ecclesiasticum) pela qual príncipes eclesiásticos que
in (org.) Peter Laslett, Philosophy Politics and Society, Oxford,
Blackwell, 1963. se convertem ao protestantismo perdem seus privi­
légios, cargos públicos e posses. É só depois da Paz
Ma r cel o d e Ar a ú jo de Westphalia (1648) que autonomia como liberda­
de de crença e de consciência passa a ser considera­
»- Verbetes correlatos: Bentham, Jeremy; Direito Natural; Kelsen,
da uma conquista positiva.
Hans; Positivismo Jurídico. H. v. Cocceji define autonomia como liberdade
política exterior: autonomia sua, id est libertas pa-

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