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Ficha 13 – O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago (12.º ano)

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Avaliação: Professor:

Lê o texto com atenção.

Agora que veio o tempo da Páscoa, o governo mandou distribuir por todo o país bodo geral, assim
reunindo a lembrança católica dos padecimentos e triunfos de Nosso Senhor às satisfações temporárias do
estômago protestativo. Os pobrezinhos fazem bicha nem sempre paciente às portas das juntas de freguesia e
das misericórdias, e já se fala que para os finais de maio se dará uma brilhante festa no campo do Jockey
5 Club a favor dos sinistrados das inundações do Ribatejo, esses infelizes que andam de fundilhos molhados há
tantos meses, formou-se a comissão patrocinadora com o que temos de melhor no high-life, senhoras e
senhores que são ornamento da nossa melhor sociedade, podemos avaliar pelos nomes, qual deles o mais
resplandecente em qualidades morais e bens de qualidade, Mayer Ulrich, Perestrello, Lavradio, Estarreja,
Daun e Lorena, Infante da Câmara, Alto Mearim, Mousinho de Albuquerque, Roque de Pinho, Costa Macedo,
10 Pina, Pombal, Seabra e Cunha, muita sorte vão ter os ribatejanos se conseguirem aguentar a fome até maio.
No entanto, os governos, por supremos que sejam, como este, perfeitíssimo, sofrem de males da vista
cansada, talvez da muita aplicação ao estudo, da pertinaz vigília e vigilância. É que, vivendo alto, só
enxergam bem o que está longe, e não reparam como tantas vezes a salvação se encontra, por assim dizer,
ao alcance da mão ou no anúncio do periódico, que é o caso presente, e se este não viram menos desculpa
15 têm, porque até traz desenho, uma senhora deitada, de combinação e alcinhas, entremostrando um magnífico
busto que talvez deva alguma coisa às manipulações de Madame Hélène Duroy, não obstante está um pouco
pálida a deliciosa criatura, um nadinha clorótica, ainda assim não tanto que venha a ser fatal esta sua doença,
tenhamos confiança no médico que está sentado à cabeceira, careca, de bigode e pera, e que lhe diz,
respeitosamente repreensivo, Bem se vê que O não conhece, se O tivesse tomado não estava assim, e
20 estende-lhe a insinuante salvação, um frasco de Bovril. Lesse o governo com atenção suficiente os jornais
sobre os quais todas as manhãs, tardes e madrugadas mandou passar zelosos olhares, peneirando outros
conselhos e opiniões, e veria quão fácil é resolver o problema da fome portuguesa, tanto a aguda como a
crónica, a solução está aqui, no Bovril, um frasco de Bovril a cada português, para as famílias numerosas o
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garrafão de cinco litros, prato único, alimento universal, pancresto remédio, se o tivéssemos tomado a tempo
25 e horas não estávamos na pele e no osso, Dona Clotilde.
Ricardo Reis vai-se informando, toma nota destas receitas úteis, não é como o governo, que insiste em
fatigar os olhos nas entrelinhas e nas adversativas, perdendo o certo pelo duvidoso. Se a manhã está
agradável sai de casa, um pouco soturna apesar dos cuidados e desvelos de Lídia, para ler os jornais à luz
clara do dia, sentado ao sol, sob o vulto protetor de Adamastor, já se viu que Luís de Camões exagerou muito,
30 este rosto carregado, a barba esquálida, os olhos encovados, a postura nem medonha nem má, é puro
sofrimento amoroso o que atormenta o estupendo gigante, quer ele lá saber se passam ou não passam o
cabo as portuguesas naus. Olhando o rio refulgente, Ricardo Reis lembra-se de dois versos duma antiga
quadra popular, Da janela do meu quarto vejo saltar a tainha, todas aquelas cintilações da onda são peixes
que saltam, irrequietos, embriagados de luz, é bem verdade que são belos todos os corpos que saem rápidos
35 ou vagarosos da água, a escorrer, como Lídia no outro dia, ao alcance das mãos, ou estes peixes que nem os
olhos veem.
José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Porto, Porto Editora, 2016, pp. 306-308
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1. Apelando ao teu conhecimento global da obra, refere a importância do “bodo” (linha1) para a imagem do
governo.

2. “É que, vivendo alto, só enxergam bem o que está longe, e não reparam como tantas vezes a salvação se
encontra, por assim dizer, ao alcance da mão” (linhas 12 a 13).

2.1. Com base neste comentário do narrador, apresenta um traço caracterizador do tempo histórico, justificando-o.

3. Seleciona a opção de resposta que completa o sentido da afirmação seguinte.

3.1. No segmento “mandou passar zelosos olhares, peneirando outros conselhos e opiniões” (linha 21),
encontra-se a , através da qual o narrador denuncia um poder opressivo e .

(A) enumeração … autoritário

(B) metáfora … subversivo

(C) comparação … datado

(D) antítese … repressivo

4. Explica o papel dos jornais na vida de Ricardo Reis, considerando o excerto transcrito e o teu conhecimento
global do romance.

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5. Indica a intencionalidade do narrador com a referência a Camões, no último parágrafo.

6. Relaciona a quadra popular, lembrada por Reis, com Lídia.


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12.º ano

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Ficha 13 – O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago


1. O “bodo” constitui um dos instrumentos da propaganda do governo português, para divulgar a imagem de que protegia os mais
necessitados.

2.1. Trata-se de um tempo marcado pela corrupção e hipocrisia governamental, que se reflete nas negligências para com as reais
necessidades do país, mascaradas com o recurso a “bodos” e à organização de eventos sociais de cariz humanitário.

3.1. (B)

4. É pelos jornais que Ricardo Reis toma conhecimento do que se passa no país e no mundo. No excerto transcrito, mais uma vez,
Reis procura atualizar-se, mas como médico, tomando nota de “receitas úteis” (l. 26), embora, no contexto em que surgem, se
revistam de um sentido irónico.

5. A intertextualidade com Os Lusíadas, de Camões, serve para estabelecer uma comparação entre um passado de glória e um
presente mergulhado na opressão. Neste contexto, a figura do “Adamastor” remete também para a relação amorosa de Reis,
antecipando a sua desilusão, tal como aconteceu com o gigante.

6. A quadra popular lembrada por Reis, aquando da sua contemplação, aponta para o seu relacionamento com Lídia, uma criada,
pertencente ao povo, como também sublinha a sua admiração (“são belos todos os corpos…”, l. 34).

MPAG12DP©

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