Vocabulário psicótico

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Vocabulário psicótico

Em 19 de dezembro de 2019 / Artigos


Tags: 2019, Brasil, Brasil sem Medo, democracia, Ditadura
No estudo da linguagem humana, a distinção mais antiga e mais fundamental é
entre signo, significado e referente. Signo é um sinal, visual, sonoro ou
qualquer outro, que indica uma idéia, uma intenção, e a representa na esfera
mental. Significado é um conjunto de signos que expressa a intenção subjetiva
contida no signo. Referente é o objeto, a coisa, o elemento do mundo real —
objetivo ou subjetivo — a que o significado, e portanto também o signo, se
refere. Se um sujeito sabe de cor e salteado a definição de “vaca”, mas,
quando lhe mostramos uma vaca, ele não sabe distingui-la de um tatu, de uma
caixa de fósforos ou de um reator atômico, o signo que ele usou corresponde
apenas a um significado, a uma intenção subjetiva, mas a nenhum elemento da
realidade.
Na discussão política, e em geral na linguagem jornalística, o uso de
significados sem referentes é um hábito auto-hipnótico com que o emissor da
mensagem persuade a si mesmo, e ao seu público, de que está dizendo alguma
coisa quando não está dizendo absolutamente nada.
Se ele faz isso por ignorância ou malícia é indiferente, pois a malícia não passa
de uma ignorância fingida ou planejada.
Um dos exemplos mais característicos é o uso corrente, onipresente e
obsessivo, da expressão “instituições democráticas”. Entende-se por isso as
entidades e instituições fundadas em leis e constituições que instituem o
sistema representativo, bem como o império das leis que o controlam.
Entende-se que essa expressão define um treco chamado “democracia”,
diferenciando-o dos regimes ditatoriais, tirânicos ou autoritários, onde
governantes que não representam senão a si mesmos fazem o que bem
entendem e não estão submetidos à lei nenhuma. No Brasil, os defensores das
“instituições democráticas” apresentam-se como protetores da liberdade e do
povo, em oposição aos adeptos de uma “ditadura militar”, representados,
segundo se diz, pelo atual presidente da república, seus filhos, amigos e
adeptos.
Até aí, tudo está muito claro, mas com essa conversa não saímos do reino dos
significados verbais. Não tocamos no referente. Se agora buscamos os entes da
realidade que a linguagem corrente associa a esses termos, não os
encontramos em parte alguma. Em primeiro lugar, os adeptos da “ditadura”
que eles chamam também de “intervenção militar” ou mesmo de “intervenção
militar constitucional”, existem realmente mas são raros e não têm a menor
influência sobre a massa dos partidários do presidente, os quais se apresentam
como uma massa firmemente decidida a lutar pelos seus próprios objetivos,
apoiando o presidente, é certo, mas sem dele receber nem mesmo uma
instrução ou palavra de ordem, quanto mais uma voz de comando. Isso quer
dizer que, quando se apresentam como defensores da “democracia” contra o
perigo do “autoritarismo militar”, os adeptos das “instituições democráticas”
fingem lutar contra um inimigo imaginário para não ter de declarar qual o
inimigo real que estão combatendo e desejam destruir. Esse inimigo não é
nenhuma “ditadura”, mas a massa popular, a indignação populista que ocupa
as ruas e deseja impor a sua vontade soberana à minoria política, jornalística e
universitária dos “defensores da democracia”, bem como aos eventuais
apóstolos da “ditadura”.
Mas a democracia, salvo engano, não se define pela presença de tais ou quais
“instituições”, e sim por ser “o governo do povo, pelo povo e para o povo”, isto
é, o governo em que as instituições, quaisquer que sejam, estão sob o controle
do povo e não o povo sob o controle delas.
Quando se voltam contra a massa popular em nome das “instituições
democráticas”, os defensores destas últimas estão simplesmente invertendo o
sentido da democracia, fazendo dela o império absoluto de “instituições” sob as
quais o povo não tem e não pode ter nenhum poder nem meios de ação. Não
espanta que, ao sair da cadeia, o apóstolo máximo as “instituições
democráticas” e inimigo jurado do “autoritarismo fascista”, sr. Luiz Inácio Lula
da Silva, não encontre nenhum respaldo popular e busque, em vez dele, o
apoio da classe militar, personificação da “ditadura”.
A linguagem dos debates públicos brasileiros é um conjunto de inversões
psicóticas em que cada falante não trata senão de ludibriar-se a si mesmo para
melhor poder ludibriar os outros.

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