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P rojeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTAQÁO
DA EDIpÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propoe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
E_ vista cristáo a fim de que as dúvidas se
,. dissipem e a vivencia católica se fortalega
JJ" no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.


Pe. Estevao Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo.
A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaga
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
ANO XXXVI JULHO 1995 398

"Guarda o Depósito' (1Tm 6,20)

Quando foi Escrito o Evangelho Segundo Mateus?

"O Evangelho Perdido" (Burton L. Mack)

A Entrevista de Jacques Duquesne

Os Magos e Jesús

Tradicáo. Familia e Propriedade

O Caso "Jacques Gaillot"


r

Castra^áo de Meninos e Voz de Soprano


Publicacao Mensal NB 398

Diretor Reaponaável' SUMARIO


Estéváo Bettencourt OSB
Autor e Redator de toda a materia "Guarda o Depósito (ITm 6,20)!' 289
publicada neste periódico
Reviravolta no Mundo da Biblia?
Diretor-Administrador: Quando foi Escrito o Evangelho 291
D. Hildebrando P. Martins OSB Segundo Mateus?

AdministracSo e distribuicáo: O Livro de Q:


Edicóes 'Lumen Christi' *O Evangelho Perdido* por Burton L. Mack 295
Rúa Dom Gerardo, 40 - 5a andar - sala S01
Tel.: (021) 291-7122 Celeuma Sensacionalista:
Fax (021) 263-5679 A Entrevista de Jacquea Duquesne 304

Endereco para correspondencia: Que Houve?


Ed. "Lumen Christi' Os Magos e Je3us 308
Caixa Postal 2666
Cep 20001-970 - Rio de Janeiro - RJ jema Candente:
Tradicáo, Familia e Propriedade 316
ImpressSo e EncadernapSo

Um Bispo Transferido:
O Caso 'Jacques Gaillot' 327

"MARQUESSARAIVA" Na Historia e no Cinema:


GRÁFICOS E EDITORES Uda. CaatracSo de Meninos e Voz de Soprano 335
Te/í.. (021) 273-9498 / 273-9447 * V

NO PRÓXIMO NÚMERO:
"O Evangelho da Vida" (Joáo Paulo II). - ■Quem matou Jesús?" (VEJA). -O Domingo
Cristáo. - 'Os Ladróes de Jesús" (bis) por María Winowska. - Os Institutos Secula
res. - "Mensagens de María para o Mundo" (Annie Kirkwood).

COM APROVACÁO ECLESIÁSTICA

PARA RENOVACÁO OU NOVA ASSINATURA: R $ 18,00


NÚMERO AVULSO ..R$ 2,00

- O pagamento poderá ser á sua escolha:-


1. Enviar EM CARTA cheque nominal ao Mosteiro de SSo Bento do Rio de Janeiro, cruzado, ano
tando no verso: "VÁLIDO SOMENTE PARA DEPÓSITO NA CONTA DO FAVORECIDO' e,
onde consta "Cód. da Ag. e o N" da C\C, anotar: 0229 -02011469-5.

2. Depósito no BANCO DO BRASIL, Ag. 0435-9 Rio C/C 0031-304-1 do Mosteiro de S. Bento do
Rio de Janeiro, enviando, a seguir, xerox da guia de depósito para no3so controle.

3. VALE POSTAL pagável na Ag. Central 52004 - Cep 20001-970 - Rio.


Sendo novo Assfnante, é favor enviar carta com nome e endereco legiveis. ,
Sendo renovacáo, anotar no VP nome e endereco em que está recebendo a Revista. J
"GUARDA O DEPÓSITO!"

(1Tm6'20)
Sao Paulo exorta seu discípulo Timoteo a guardar intato o depóstio
da fé; cf. 1 Tm 6,20; 2Tm 1,14.- Nesta exortagáo há nítida referencia ás
leis greco-romanas concernentes aos depósitos. Com efeito; o depósi
to (parathéke) era um valor que alguém entregava a outrem para que o
guardasse e oportunamente o devolvesse. Selava-se entre o depositante
e o depositario um contrato baseado na confianga e na certeza da fide-
iidade. O depositario se obrigava a nao fazer uso da coisa depositada;
seria processado, se o fizesse. O depositario infiel incorria na ira dos
deuses. Os moralistas gregos eram muito severos, equiparando a nao
restituigáo do depósito ao adulterio ou á infidelidade conjugal; era mais
grave do que nao pagar urna divida, porque traía a confianga de um
amigo. Alguns depósitos se faziam nos templos, pois os guardas dos
templos inspiravam mais confianca do que os banqueiros.
Sao estas concepcóes que a palavra "depósito (parathéke)1 su-
póe nos textos paulinos. Com efeito; o Apostólo diz ter recebido de
Cristo o depósito da fé: "Nao recebi o Evangelho nem o aprendí de
algum homem, mas por revelacáo de Jesús Cristo"(GI. 1,12). A lei nao
permitía que o retocasse; cf. 1Tm 1,11; 2Tm 2,8.10; Cl 1, 25-29. Sao
Paulóse considera mero ministro ou servidor do Evangelho (1 Cor 4,1);
era apenas um delegado do Senhor Jesús, e nao um dono do depósito;
ele nao hayia criado a mensagem que apregoava e, por isto, nao havia
de a modificar; ao contrario, ele a quería transmitir intata: "Nao falsifica
mos a Palavra de Deus; muito pelo contrario, manifestando a verdade,
procuramos ganhar a confianga de todos os homens" (2Cor 4,2). Daí
poder o Apostólo dizer no fim da vida: "Combatí o bom combate, termi-
nei a minha carreira, guardei a fé" (2Tm 4, 7). Por isto também espera-
va ouvír a sentenga dirigida ao servo bom e fiel: "Desde já me está
reservada a coroa da justiga, que me dará o Senhor, Justo Juíz, naque-
le Dia"(2Tm 4, 8; cf. Mt 25, 23).
O depósito recebido de Jesús Cristo, o Apostólo o havia passado a
Timoteo (2Tm 1, 6.14), para que Timoteo o transmitisse a outros ho
mens fiéis, e estes a mais outros: "O que aprendeste de mím na pre-
senga de numerosas testemunhas, confia-o a homens fiéis, que, por
sua vez, seráo capazes de ensiná-lo a outros mais1 (2Tm 2,2).
Pois bem; a designagáo da mensagem do Evangelho como depó
sito enfatiza a intocabilidade das verdades da fé tais como nos foram
transmitidas pelos Apostólos (que as receberam de Jesús Cristo) atra-
vés de geragoes até hoje. A heresia ou deterioracáo do depósito da fé
é assemelhada á gangrena (2Tm 2, 7).
As advertencias do Apostólo conservan) seu pleno sentido em nos-
sos dias. A fé exige coeréncia; é sempre a adesáo a Deus, que nos fala
na penumbra da vida presente. O cristáo ou aceita este santo depósito
com toda a sua grandeza ou - o que Deus nao permita - o rejeita; nao
ouse, porém, retocá-lo ou deteriorá-lo!'
E.B.

289
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS"
ANO XXXVI - N9 398 — Julho 1995

Reviravolta no Mundo da Biblia?

QUANDO FOI ESCRITO O EVANGELHO


SEGUNDO MATEUS?

Em síntese: O Prof. Carsten Peter Thiede, de Paderborn (Alemanha),


¡utga ter identificado em 1994 tres fragmentos papiráceos de Mateus26, que
ele data de meados do secuto I. Para chegar a tal datacáo, o pesquisador se
serviu da paleografía: a escrita dos tres fragmentos é semelhante á de outros
manuscritos gregos da primeira metade do sáculo I; caiu em desuso pouco
depois do fim do governo de Póncio Pilatos em 36. A conclusáo do Prof. Thiede,
caso se/a verídica, vem confirmar que os Evangelhos fazem eco fíela prega-
gao de Jesús, pois foram redigidos a breve intervalo da Ascensáo do Senhor
(ao menos redigidos em parte). - O assunto despertou vivo debate entre os
estudiosos.

A revista Time, em sua edicáo de 23/01/95, pág. 41, dá noticia da deseo-


berta de tres fragmentos gregos do Evangelho segundo Mateus, que tém sus
citado debates, pois, como se diz, fazem recuar para mais perto de Jesús a
data de redacáo dos Evangelhos. Donde o título do artigo: "A Step Closer to
Jesús? An expert claims hard evidence that Matthev/s Gospel was written while
eyewitnesses to Christ were alive (Um Passo mais Perto de Jesús. Um perito
professa nítida evidencia de que o Evangelho de Mateus foi escrito enquanto
ainda viviam testemunhas oculares de Cristo)".

Ñas páginas subseqüentes vamos explanar o teor e o significado da


noticia.

1. A DESCOBERTA

1. Estáo em foco tres pequeños fragmentos, do tamanho de selos do


correio cada qual; apresentam dez linhas fragmentadas do capítulo 26 do Evan
gelho segundo S. Mateus. Foram descobertos pela primeira vez em Luxor (Egi-
to) no ano de 1901 pelo capeláo inglés que lá vivía, o Rev. Charles Huleatt.

290
QUANDO FOI ESCRITO O EVANGELHO SEGUNDO MATEUS? 3

Foram doados á biblioteca do Magdalen College de Oxford (Inglaterra). O Rev.


Huleatt morreu por ocasiáo do grande terremoto da Sicilia em 1908, sem ter
deixado informacóes sobre o paño de fundo de sua descoberta, que ele tam-
bém nao parece ter divulgado. O fato é que até 1953 nem sequer haviam sido
publicadas fotografías desses fragmentos. Na Espanha existem dois outros
fragmentos do mesmo documento, que , como se eré, contém seccóes de
Mateus cap. 3 e cap. 5.

Os fragmentos da biblioteca do Magdalen College foram inicialmente ti-


dos como oriundos no ano 200 aproximadamente, como alias 37 outros papiros
do Novo Testamento, existentes no comeco deste século, eram datados dos
séculos II e III1. Esta hipótese foi posta em xeque quando em 1994 o Prof.
Carsten Peter Thiede, Diretor do Instituto de Pesquisas Básicas Epistemológicas,
de Paderbom (Alemanha), visitou Oxford e examinou minuciosamente os tres
manuscritos da biblioteca do Magdalen College.

As conclusóes do Prof. Thiede datavam esses fragmentos do século I ou,


mais precisamente, do ano 70 ou até mesmo de anos anteriores a 70. O seu
argumento principal era deduzido do tipo de letra utilizada pelo escritor: trata
se de caracteres verticais, comuns aos manuscritos gregos da primeira meta-
de do século I; após os tempos de Cristo (27-30) tal tipo de letra comecou a cair
em desuso. Verdade é que o Prof. Thiede reconhece que a datacáo de manus
critos é coisa assaz difícil; o método do Carbono 14 nao pode ser aplicado no
caso, porque destruiría os pequeños fragmentos em vez de os identificar. Thiede
valeu-se entáo da paleografía comparativa, segundo a qual um manuscrito sem
data pode ser datado pelo confronto com outros manuscritos de data segura
(ou relativamente segura); no caso, o Prof. Thiede tomou como referenciais
alguns manuscritos gregos descobertos em Qumran junto ao Mar Morto, em
Pompeí e Herculano (Italia) e que foram reconhecidos recentemente como tex
tos do século I.

Segundo os principios de sua teoría, o Prof. Thiede poderia datar o Evan-


gelho segundo Mateus de poucos anos após o governo de Póncio Pilatos, que
terminou em 36. Preferiu, porém, urna data um pouco mais tardía. Até os nos-
sos días, pode-se dizer que um dos pontos cardeais para assinalar a data de
redacáo de Mateus era a tese de que o evangelista supóe o Templo de Jerusa-
lém destruido em 70 d. C; todavía essa datacáo mesma nao era unánime
mente professada pelos críticos; Donald Hagner, por exemplo, professor do
Fuller Seminan/, da California, tende a urna data anterior a 70 após ter levado
em conta exata todos os dizeres de Mateus relativos ao Templo.

' É de notar que existem cerca de 5.400 manuscritos antigos do Novo Tes
tamento - fato único no setor da paleografía. As outras obras da antiguida-
de tém base em poucos e tardíos manuscritos.

291
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 398/1995

As conclusóes do Prof. Thiede suscilaram surpresa e celeuma. Caso se-


jam verídicas, confirmam, a novo título, a tese que afirma a fidelidade histórica
dos Evangelhos; Mateus terá escrito quando ainda havia varias testemunhas
oculares da vida e da pregacáo de Jesús.

2. Os pesquisadores se dividiram frente á descoberta feita pelo Prof. Thiede.


Houve quem afirmasse ser ele "o homem que pode transformar nossa compre-
ensáo do Cristianismo" (assim o jornal TIMES de Londres). O Professor sueco
Harald Riesenfeld, especialista do Novo Testamento, recomendou o método de
trabalho do Prof. Thiede e exprimiu o receto de que os estudiosos da Biblia se
fechem á evidencia da descoberta por causa de suas premissas literarias,
filológicas e históricas. Um lingüista clássico, como o Prof. Ulrich Víctor, da
Humbold Universidade da Alemanha, observou com certa aspereza qué as
conclusóes de Thiede póem em questáo todo o sistema teológico existente:
This upsets the whole theological establishment". Os teólogos liberáis, acres-
centou U. Víctor, "puseram de lado, há muito tempo, todas as proposicóes que
contradígam aos seus principios, julgando serem tradicoes tardías, muito dis
tanciadas de Jesús".

Apesar do apoio de abalizados colegas, o Prof. Thiede tem encontrado


certo ceticismo da parte de varios outros. O Prof. Graham Stanton, do King's
College, de Londres, deciarou, com certo desdém, que o artigo de Thiede "nao
merece seria discussáo". O Prof. Paúl Achtemeier, americano, editor do Harper's
Bible Dictionnary, afirmou que "ficará muito surpreso se algum dia a hípótese
de Thiede vier a ser reconhecida como fidedigna".

3. Como se vé, o debate está aberto. Pode-se notar, porém, a evolucáo


que se vem produzindo nos estudos bíblicos: no sáculo XIX os críticos julga-
vam que os Evangelhos foram redigidos tardíamente até o sáculo II adentro.
Todayia o progresso da paleografía trouxe á tona fragmentos de papiros que
contribuiram para se diminuir o intervalo entre os evangelistas e Jesús; este
passou a ser calculado nao na base de premissas filosóficas, mas sim na base
da evidencia concreta do material escrito. Assim

a) Na década de 1930 o pesquisador inglés C. H. Roberts descobriu o


maís antigo dos manuscritos ate entáo conhecidos': era um pequeño fragmen
to de 8,9 cm por 5,8 cm; de aparéncia insignificante, foi comprado com outros
papiros no Egito em 1920; numa das faces desse fragmento se encontra o
texto de Jo 18,31-33, e na outra face o de Jo 18,37s. Está guardado no John
Rylands Library de Manchester. Os papirólogos atribuíram as letras desse frag
mento aos primeiros decenios do sáculo II, mais precisamente ao ano de 125.
As conseqüéncias deste achado foram de vasto alcance: o papiro fora encon-

' C.H. Roberts, An Unpublished Fragment of the Fourth Gospel in the


John Rylands Library. Manchester 1935.

292
QUANDO FOI ESCRITO O EVANGELHO SEGUNDO MATEUS? 5^

trado no Egito, a mais de 1.000 km da regiáo onde fora escrito o autógrafo de


Joáo; vé-se entáo que no Egito se lia o Evangelho de Joáo poucos decenios
após a morte do Apostólo. Conseqüentemente os Evangelhos de Mt, Me e Le,
anteriores ao de Joáo, foram reconhecidos, com novo vigor, como obras da
segunda metade do século I.

b) Em 1972 os estudos bíblicos foram sacudidos por nova descoberta: na


Gruta 7 de Qumran, a N. O. do Mar Morto, foram encontrados pelo Pe.
O'Callagliam S. J. papiros do Novo Testamento, entre os quais um fragmento
de Marcos (6,52-53), dito 7Q 5; este foi atribuido ao ano de 50, conforme cuida
dosos estudos do descubridor. Todavía esta conclusáo foi tida como precipita
da e inaceitável por outros especialistas.

c) O caso parecía encerrado pela crítica contestataria, quando em 1984 o


professor C. P. Thiede, de Berlim, retomou os estudos, debrucando-se sobre
os papiros origináis em Jerusalém; em conclusáo, confirmou a sentenca de
O'Callaghan; os resultados de suas pesquisas estáo expostos no livro Die álteste
Evangelien-Handschrift? Das Markus-Fragment von Qumran und die Anfánge
der schriftlíchen Ueberlieferung des Neuen Testaments (Wuppertal 1986);
na traducáo italiana dessa obra, p. 42, lé-se:

"Assim resumindo, foram aduzidas todas as provaspositivas em favor da


exatidáo da datagáo; além disto, foram eliminadas todas as possíveis obje-
góes. Na base das regras do trabalho paleográfico e da crítica do texto, é certo
que 705 éMc 6,52-53, o mais antigo fragmento conservado de um texto do
Novo Testamento, escrito por volta de 50, e certamente antes de 68".

d) Além destes precedentes, em 1994 entrou no cenário da discussáo


também o material descoberto pelo Prof. C. P. Thiede.

Estes dados váo corroborando a tese de que os Evangelhos foram redigi-


dos no século I. A redacáo nao terá sido realizada em poucos meses, como
ocorre com um livro moderno, mas haverá sido feita paulatinamente; devem ter
surgido primeramente "folhas volantes" que narravam parábolas, milagres, a
Paixáo de Jesús... Essas "folhas" teráo sido agrupados em seqüéncia lógica,
dando o livro que chamamos "Evangelhos".

2. A HISTORIA DO TEXTO DE S. MATEUS

Nos últimos decenios tornou-se comum a seguinte concepeáo relativa ao


texto de S. Mateus.

O primeiro evangelista a escrever terá sido Mateus, o cobrador de impos-


tos, acostumado a redigir e calcular, dispondo suas idéias em ordem lógica.
Terá escrito em aramaico na Palestina por volta de 50.

293
■PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 398/1995

O texto de Mateus tinha muita autoridade. Foi levado para fora da Pales
tina. Terá servido de modelo ao Evangelho de Marcos escrito em Roma na
década de 60, e Marcos, por sua vez, terá servido de referencial a Lucas, que
escreveu em Antioquia (?) na década de 70 (?).

O texto aramaico de Mateus teve de ser traduzido para o grego, pois esta
era a língua usual do Imperio greco-romano. É Papias quem, por volta de 130,
escreve:

"Mateus, porsua parte, pos em ordem os logia (dizeresf na língua hebraica,


e cada um depois os traduziu (ou interpretou) como pode" (ver Eusébio, Histo
ria da Igreja III39. 16).

O hebraico de que fala Papias, é, na realidade, o aramaico, língua corren-


te entre os judeus no tempo de Cristo. - Das varias traducóes de Mateus, urna
foi reconhecida como oficial e canónica. É a única que hoje temos, visto que as
demais traducóes se perderam. A data de origem do texto grego de Mateus
hoje existente é o ano de 80 aproximadamente; nao se trata de mera traducáo,
mas de um texto revisto e retocado para ficar mais claro do que o original.

Dentro desse esquema pergunta-se: onde colocar os tres fragmentos de


Mateus 26 identificados pelo Prof. Thiede? - É possivel que se trate de urna
das traducóes gregas do texto aramaico que foram sendo feitas entre 50 e 80.
Essa traducáo haverá sido realizada no Egito ou em outro ponto do Imperio
Romano? É difícil dizer algo com seguranca a tal propósito. Como quer que
seja, a descoberta do Prof. Thiede (sujeita a ser discutida) corrobora a tese de
que o Evangelho segundo Mateus, ao menos em muitas de suas passagens
mais antigás, vem a ser o eco primitivo da pregacáo dos Apostólos e, conse-
qüentemente, do Senhor Jesús.

(continuafáo dapág. 307)

Mesmo que a enanca consinta em sua castracáo, a operacáo fica sendo


ilícita, pois o menino só a pode aceitar por efeito de um processo persuasi
vo que equivale a verdadeira seducao do inocente para o mal.Na medida
em que individuos cristáos cederam á praxe da castracáo infantil, merecem
reprovacáo. Saiba, porém, o historiador distinguir entre aquilo que os cris
táos praticaram e praticam, de um lado, e aquilo que, de outro lado, a Igreja
oficialmente ensina e manda; os erros dos cristáos nao recaem sobre a
Igreja, que é a primeira a apontá-los aos seus filhos.

Estéváo Bettencourt O.S.B.

1 Há quem veja nessa coletánea de logia (dizeres) de Jesusatalfonte (Quelle)


perdida, de que fala o artigo seguinte deste fascículo.

294
O Livro de Q:

"O EVANGELHO PERDIDO"


por Burton L. Mack

Em síntese: Burton L Mackprocura reconstituir urna hipotética fonte dos


Evangelhos Sinóticos, que constaría apenas de sentengas de Jesús (sem refe
rencia a feitos e ao fim de vida de Cristo); é dita lonte Q" (de Queile, fonte, em
alemáo). Segundo essa fonte, recomposta a partir dos discursos de Jesús em
Mt, Me e Le, Jesús terá sido um Sócratesjudeu ou um mestre de bons costu-
mes, sem querer romper com o povo judeu. Os seus discípulos nem eram
cristáos, diz Mack.

Os seguidores desse Jesús teráo construido a imagem do Senhor Jesús


Cristo como se acha em Mt, Me e Le, assumindo mitos do paganismo. Assim
teve origem o Cristianismo, dizem os críticos que seguem Burton L. Mack.

A tese do livro em foco é extremamente frágil e hipotética, sem fundamen


to sólido no texto biblico e em textos extra-bíblicos, pois se baseia em precon-
ceitos nao provados. A leitura dos livrosmesmos do Novo Testamento permite
evidenciar a inconsistencia das hipóteses, como se depreende da leitura do
artigo que se segué.

Burton L. Mack é professor de S. Escritura do Novo Testamento, da Fa-


culdade de Teología de Claremont (U.S.A.) e autor do livro A Myth of Innocence
(Um Mito de Inocencia). Publicou a obra The Lost Gospel em 1993, obra
traduzida para o portugués por Sergio Alcides e publicada na colecáo Bereshit
da Editora Imago (Rio de Janeiro). É obra extremamente revolucionaria,
construida, porém, sobre hipóteses e preconceitos que Ihe tiram a seriedade
científica, como se poderá averiguar após atento estudo de seus dizeres.

1. O CONTEÚDO DO LIVRO

Vejamos, antes do mais,

1.1. Atesé do autor


r

O autor julga poder reconstituir jmn hipotecca fonte {Queile, em alemáo)


dos relatos de Mateus, Marcos e Lucas. Essa fonte ter-se-á perdido, mas os

29H
•PER6UNTE E RESPONDEREMOS" 398/1995

críticos, entre os quais Burton L. Mack, afirmam ter restaurado o seu conteúdo:
conteria apenas sentencas de Jesús, e nao dados biográficos. As conclusóes
de Burton L. Mack sao assim expressas na quarta capa do livro:

"O estudo de Q (=Quelle) revela que Jesús foimitificado como o Salvador


dos evangelhos do Novo Testamento com fins religiosos e até políticos. O Li
vro de Q nos conta enfáticamente que osprime/ros seguidores de Jesús nao o
consideravam filho de Deus nem acredHavam que ele tivesse mssuscitado depois
de morto. Em vez disso, eles o viam como um Sócratesjudeu -mestre e líder
contracultural.

As implicagóes do Livro de Q sao sensacionais e controversas:

Os seguidores de Q nao entendiam os ensinamentos de Jesús como urna


acusapáo aojudaismo. Eles nao achavam que Jesús fosse o Messias ou Cris
to, e muito menos um deus. Eles nao criaram um culto a Cristo. Na verdade,
eles nem eram cristáos".

Segundo B. L. Mack, o Cristianismo se originou porque ás idéias do


Sócrates judeu chamado Jesús foram associadas concepcóes pagas mitológi
cas, de modo que o Cristianismo é mitología sob a capa de historia. Entre
outras passagens, eis urna das mais significativas:

"Exp/osáo de imaginacáo coletiva é sinal de mudanga, e foijustamente


isso que oprimeiro secuto cristáo vivenciou. Essa explosáo manifesta o clima
de incerteza da época e registra a grande concentragáo de energía humana e
atividade intelectualnaprodupáo de mitos. Os cristáos nao eram o único grupo
que eslava criando novos mitos. A literatura da época é famosa por seus mun
dos fantásticos epela exptorapáo de figuras lendárias. Foram os cristáos, con-
tudo, que elaboraram a mitología que a cultura ocidental acabou aceitando
para siprópria...

O mito concentrava-se na importancia de Jesús como o fundador dos


movimentos, congregagoes e instituicóes que os cristáos estavam formando.
Assim a historia e o mito fundiam-se numa caracterizacáo única, e os mitos de
origem eram escritos e imaginados como se de fatq tivessem acontecido num
passado recente, num lugar específico. Os cristáos dos séculos II, III e IV
notaram com inquietagáo a semelhanpa entre seus mitos e as mitologías grega
e judaica. Eles só conseguirán? se afastar dessas outras culturas e distinguir
sua própria mitología enfatizando a recente conformacao histórica de seus mi
tos e a impressáo deixada pelos evangelhos narrativos de que esses mitos
realmente acontecerán!" (p. 199).

Examinemos agora alguns pormenores da tese:

296
"O EVANGELHO PERDIDO"

1.2. Considerando mais atentamente...

A h¡pótese de que existiu urna fonte (Quelle) donde Mateus, Marcos e


Lucas tiraram os dizeres de Jesús, se deve ao fato de que os tres evangelistas
tém em comum muitos sermóes de Jesús: o das bem-aventurancas, o da con
fianza em Deus, o do desapego dos bens materiais, parábolas... Ora afirmam
os críticos que esses dizeres de Jesús foram colhidos por Mateus, Marcos e
Lucas numa coletánea comum de sentencas do Mestre. Essa coletánea, tam-
bém chamada Quelle, ter-se-á perdido (daí "o Evangelho perdido"), mas as
suas sentencas foram transcritas por Mateus, Marcos e Lucas de modo que
pode ser reconstituido o "Evangelho perdido". Em conseqüéncia Burton L. Mack,
na Parte II do seu livro, julga poder apresentar o texto do "Evangelho Perdido";
terá passado por duas redacóes: o Livro de Q original e o Livro de Q completo,
redacóes que B. L. Mack distingue usando composicáo tipográfica diferente.
Eis um espécimen de Q original (grego traduzido para o portugués):

"Ele disse: 'A colheita é abundante, mas os trabalhadores sao poucos;


pegam entáo ao dono da colheita que envié mais trabalhadores para a sua
colheita. Vio. Mas, olhem, estou enviando voces como cordeiros no meio de
lobos.

Nao levem dinheiro, nem bolsa, nem sandalias. Enáo falem com ninguém
pelo caminho'(p. 75).

"Em suas oracoes rezem: Santificado se/a seu nome, pal Que se cumpra
o seu dominio. Dé-nos o pao de cada dia. Perdoe nossas dividas assim como
perdoamos nossos devedores. Enáo nosponha á prova (= em situagáo difícil)"
(P- 76).

"Ele disse: 'Como é o reino de Deus? A que poderla compará-lo? Ele é


como um grao de mostarda que um homem pegou e plantou no quintal. Ele
cresceu, tomou-se urna árvore e as aves do céu fizeram ninhos em seus ga-
Ihos'.

Ele disse aínda: 'O reino de Deus é como o fermento que urna mulher
pegou e misturou a tres medidas de farinha de modo que toda a massa fícasse
fermentada"' (p. 78).

Sao Paulo terá sido um dos grandes responsáveis pela introducáo de mi


tos pagaos na mensagem de Jesús. Assim "os movimentos de Jesús (=
Sócrates) tornaram-se as congregacóes de Cristo", a Igreja organizada, com
toda a mística que as epístolas paulinas sugerem; cf. p. 212.

0 livro de Q terá desaparecido, porque os Evangelhos de Mateus e Lucas


passaram a contar urna historia mais interessante, colocando Jesús na crista
dos acontecimentos; as instrucóes contidas em Q já nao bastavam para o tipo

297
'PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 398/1995

de pregacáo que os cristáos exerciam. "Q fo¡ relegado por mitologías posterio
res, que nao tinham espaco para seu enfoque particular sobre a autoridade de
Jesús" (p. 223).

Quanto ao Evangelho de Joáo, tem características gnósticas1, que o apro-


ximam do apócrifo Evangelho de Tomé. "Joáo retratou Jesús como a manifes-
tacáo do filho de Deus vindo dos dominios da luz, a própria expressáo de Deus
que criou o mundo, mas que repetidamente fracassou em obter reconhecimen-
to até o surgimento de Jesús" (p. 214).

Ditas estas coisas, o autor divaga aínda longamente sobre as possíveis


modalidades das sentencas originarias de Jesús, sobre os fatores que teráo pro
vocado a adocáo de concepcoes mitológicas entre os discípulos do Mestre, sobre
o papel dos bispos na formacao do catálogo bíblico,... jogando com hipóteses e
hipóteses que Burlón L Mack apresenta como se fossem proposicóes seguras.

A conclusáo do livro soa do seguinte modo:

"Se os cristáos reconhecerem seu evangelho como mito, outros povos


poderáo acharpossívelconversarconosco sobre isso. Enós, cristáos, podere-
mos acharpossivel fazer alguma contribuí'cao a urgente tarefa de critica cultu
ral onde ela parece mais importante: a compreensáo das conseqüéncias soci-
ais da mitología crista" (p. 246s).

Como se vé, o autor, reduzindo o Evangelho a mitos, julga que assim o


povo cristáo se póe em condicóes de dialogar com povos nao cristáos, tam-
bém criadores de mitos; o diálogo que daí resultará, poderá redundar em bene
ficio da sociedade.

A esta altura talvez alguém diga: pobre e magra conclusáo!

Pergunta-se agora:

2. QUE DIZER?

Quatro pontos nos parecem merecer especial atencáo.

2.1. Ahipótese Q

A hipótese de que os Evangelhos Sinóticos (Mt, Me e Le) dependem de


duas fontes, já data do século passado: urna dessas fontes sería urna coletá-

' O gnosticismo é urna corrente depensamento dualista, que opunha entre


si materia (má) e espirito (bom) ejulgava haver doutrinas secretas reserva
das aos iniciados.

298
•O EVANGELHO PERDIDO"

nea de sentencas de Jesús, chamada propriamente Quelle (= fonte em ale-


mao, donde Q); a outra seria um compendio de facanhas de Jesús, que alguns
identifican! com o núcleo inicial de S. Marcos. Todavia os críticos mais antigos
nao viam hiato entre a fonte Q e o texto canónico do Evangelho; nao viam por
que admitir na fonte Q um Jesús-Sócrates diferente do Jesus-Messias e Salva
dor encontrado nos Sinóticos. Ademáis é de notar que a existencia mesma da
fonte Q é hipotética; mais hipotético ainda é o seu caráter nao cristáo apreao-
ado por B. Mack.

Alias, a hípótese de que a coletánea Q só incluía sentencas de Jesús,


sem mencionar os feitos, a Paixáo e a Ressurreicáo do Senhor, nao quer dizer
que os supostos autores da colecao nao conhecessem o desfecho cruento da
pregacáo de Jesús. O propósito desses compiladores terá sido apenas o de
oferecer aos primeiros crístáos urna súmula de sentencas do Mestre, sem pre
tender entrar em traeos biográficos. - Existem obras semelhantes referentes a
autores modernos, entre as quais urna coletánea de dizeres de Gandhi (ed.
Cidade Nova, Sao Paulo), a qual nao significa em absoluto que Gandhi nao
tenha morrido assassinado. Antologías de autores clássicos (Alexandre Hercu-
lano, Eca de Queiroz, Machado de Assis, Goncalves Días...) sao usuais em
nossas escolas; contém apenas trechos seletos, sem pretender negar algo da
biografía dos respectivos autores.

2.2. O Progresso da Papirologia

A hipótese Q tem que ser revista á luz das descobertas recentes de


papiros, que mais e mais aproximam de Jesús a redacáo dos Evangelhos.
Como observamos as pp. 290-294 deste fascículo, a identificacáo de papi
ros muito antigos leva a crer que a redacáo dos Evangelhos, como hoje eles
sio, deve ter comecado quando ainda havia testemunhas oculares da vida
e dos feitos de Jesús. Á p.293 citam-se os papiros do Magdalen College e
os de Qumran como testemunhos de muito antiga redacáo dos Evangelhos.
Segundo Burton L. Mack, o livro de Q terá tido vigencia e exercido influencia
durante quarenta anos - o que significa:... até o ano de 70 aproximadamen
te1. Ora a papirologia vai levando os estudiosos a recuar sempre para mais
perto de Jesús a confeceáo dos Evangelhos (ou, ao menos, de parte dos
Evangelhos).

' Es o que se lé á p. 228 de Burton L Mack


"O livro de O vai questionara verseo das origens cristas oferecida pelo
Novo Testamento, propondo outra, mais plausível, acerca dos primeiros qua
renta anos. O movimento de Jesús é um grupo de pessoas mais verossímil do
que os discípulos eos primeiros cristáos retratados pelos evangelhos narrati
vos. O fomece urna documentagáo desse movimento que os evangelhos nar~
rativos náopodem fomecerpara a fiegáo congregacional que propóem".

299
]2 'PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 398/1995

2.3. O testemunho de Sao Paulo

É de notar outrossim o testemunho das epístolas de Sao Paulo. Embora


á. p. 220 Burton L. Mack so reconheca (arbitrariamente) sete délas como genu-
ínas, é notorio que foram escritas entre 50/51 e 67. Ora esses documentos
evidenciam que, dois decenios após a Ascensáo do Senhor, os cristáos profes-
savam elevadas concepcóes cristológicas, reconhecendo Jesús como o Kyrios
(Senhor) ressuscitado, Cabeca do Corpo Místico da Igreja, Redentor dos ho-
mens por sua Paixáo gloriosa... Essas idéias brotaram ¡mediatamente da cons-
ciéncia dos Apostólos e discípulos que acompanharam Jesús antes e depois
da sua Páscoa final.

De modo particular, seja citado o texto de 1Cor 15,3-8:

3 Transmiti-vos, antes de tudo, aquilo que eu mesmo recebi, a saber,


que Cristo morreu por nossos pecados, conforme as Escrituras,

' e que foi sepultado


e que ressuscitou ao terceiro dia conforme as Escrituras

5 e que apareceu a Cefas, depois aos doze.

e Posteriormente apareceu de urna vez a mais de quinhentos irmáos, dos


quais a maiorparte vive até hoje, alguns, porém, já morreram.

' Depois apareceu a Tiago e, em seguida, a todos os Apostólos.

' Porfim, depois de todos, apareceu também a mim, como a um abortivo".

Estes dizeres sao de época muito antiga ou do sexto decenio do sáculo I


(56/57); pouco mais de vinte anos apenas os separam da Ascensáo de Jesús.
Referem-se á pregaclo que Sao Paulo realizou em Corinto entre os anos de 50
e 52; nessa época, o Apostólo entregou aos fiéis os ensinamentos que Ihe
haviam sido anteriormente entregues.

Alias, também em 1 Cor 11,23 afirma o Apostólo ter transmitido aos corintios
o que Ihe fora transmitido, a saber: a mensagem referente á Ceia do Senhor.

E quando recebeu Paulo tais ensinamentos?

Ou por ocasiáo da sua conversáo, que se deu aproximadamente no ano


de 35, ou no ensejo de sua visita a Jerusalém, que teve lugar em 38, ou, ao
mais tardar, por volta do ano de 40.

Observe-se agora o estilo do texto de 1Cor 15, 3-8: as frases sao curtas,
incisivas, dispostas segundo um paralelismo que Ihes comunica um ritmo notá-
vel. Abstracto feita dos w. 6 e 8, dir-se-ia que se trata de fórmulas esterotipicas,

300
•O EVANGELHO PERDIDO" 13

forjadas pelo ensinamento oral e destinadas a ser freqúentemente repetidas.


Nesses versículos encontram-se varias expressóes que nao ocorrem em ou-
tras cartas de Sao Paulo: assim "conforme as Escrituras", "no terceiro dia",
"aos doze", "apareceu" (expressáo que só ocorre sob a pena de Sao Paulo num
hiño citado pelo Apostólo em 1Tm 3, 16).

Estas indicacóes dáo a ver que Sao Paulo em 1Cor 15, 3-8 reproduz urna
fórmula de fé que ele mesmo recebeu já definitivamente redigida poucos anos
(dois, cinco, oito anos?) após a Ascensáo do Senhor Jesús. O v. 6, quebrando
o ritmo do conjunto, talvez tenha sido introduzido posteriormente; quanto ao v.
8, é por certo urna noticia pessoal que Sao Paulo acrescenta ao bloco.

Vé-se, pois, que desde os primeiros anos da pregacáo do Evangelho já


existia entre os fiéis urna profissáo de fé na ressurreicáo de Cristo formulada
em frases breves e pregnantes; tais frases eram transmitidas como expres
sóes exatas da mensagem dos Apostólos.

Ora essa fórmula de fé antiqüíssima professa a ressurreicáo corpórea de


Cristo como realidade histórica. Para a comprovar, havia testemunhas ocula
res, das quais, diz Sao Paulo, murtas ainda viviam vinte e poucos anos após a
ressurreicáo do Senhor.

Tal depoimento de primeira hora, concebido e transmitido pelos discípulos


¡mediatos do Senhor, já seria argumento suficiente para remover qualquer teo
ría tendente a desvirtuar a fé na ressurre¡9áo corporal de Cristo. Esta fé nao
surgiu tardíamente na historia das prímeiras comunidades cristas, mas é o eco
direto da missáo de Cristo acompanhada dia a dia pelos Apostólos.

Assim vemos como é erróneo admitir um hiato entre Jesús (tido como
mero "Sócrates judeu") e o Cristianismo; este, com toda a riqueza de seu pen-
samento e sua Mística, já se acha contido no ámago da consciéncia dos pri
meiros discípulos, convictos da grandeza de Jesús após a ressurreicáo do Mestre
e Pentecostés.

2.4. Mito e Logos

Ainda mais carece de fundamento a hipótese de que os discípulos de


Jesús tenham assumido mitos do paganismo para ilustrar a figura e a obra de
Jesús. Com efeito; sabemos que os judeus eram totalmente avessos aos pa
gaos, que eles consideravam ¡mundos e que os oprimiam politicamente desde
o século VI a. C, suscitando o odio dos judeus; o monoteísmo de Israel carac-
terizava esse povo, tornando-o um quisto quando disperso entre pagaos, e o
impermeabilizava á mitología paga. Quanto aos cristáos, sabe-se que morre-
ram mártires até 313 para nao trair sua fé em um só Deus e no Evangelho;
foram boicotados e perseguidos, mas guardaran intacta a mensagem religiosa
que professavam, avessaaos mitos. Em ccnseqüéncia, torna-se irreal a hipó
tese de adocáo de crencas pagas por parte dos discípulos de Jesús. Sao Paulo

301
H 'PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 398/1995

mesmo, em 1 Cor 1-2, faz a antítese entre a sabedoria deste mundo e a sabe-
doria do Evangelho, que é a da Cruz; em 2Cor 6,15s diz ainda o apostólo: "Que
acordó há entre Cristo e Beliar? Que relagáo entre o templo de Deus e os
ídolos?". Isto bem mostra que o Apostólo, escrevendo em 57, tinha nítida cons-
ciéncia de que o Cristianismo nada tem que ver com o paganismo.

Mais: os Apostólos, em suas cartas, distinguem ciosamente entre mythoi


(mitos) e lógos. Sabem que podia haver tentativas de introduzir mitos na pre-
gacáo crista, mas alertavam os fiéis contra os mesmos; nao eram simptórios a
ponto de equiparar a verdade e as "belas historias" dos mitos. Eis os textos em
que Sao Paulo acautela contra os mitos:

1Tm 1,3s:"... foi para admoestares alguns a nao ensinarem outra doutri-
na, nem se ocuparem com fábulas (mythois) e genealogías sem fim";

1Tm 4,7: "Rejeita as fábulas (mythous) impías, coisas de pessoas caducas".

2Tm 4,4: "Desviaráo seus ouvidos da verdade, orientando-os para as fá


bulas (mythous)".

Tt 1,14: "Nao déem ouvidos a fábulas (mythois) judaicas".

Ver também 2Pd 1,16: "Nao foi seguindo fábulas (mythous) sutis que vos
demos a conhecer o poder e a vinda de Nosso Senhor Jesús Cristo".

Em contraste, a palavra do Evangelho é dita logos..., como se depreende


dos seguintes textos:

-a Palavra (sem mais) em 1Ts 1.6; 1Pd 3,1; At 4,4; 11,19; Le 1.2;

- a Palavra de Deus: At 4.31;

-a Palavra da sua grapa: At 14,3;

-a Palavra da saivacáo: At 13,26;

- a Palavra... a Boa Nova da paz: At 10,36;

- a Palavra da verdade, o Evangelho da vossa saivacáo: Ef 1,13;

- a Palavra da verdade, o Evangelho: Cl 1,5.

Estes textos evidenciam suficientemente a consciéncia, dos Apostólos,


de que verdade e mito nao se identificam. Os pregadores do Evangelho faziam
questáo de dizer que partiam de fatos históricos realmente ocorridos e nao de
fiecóes. Sejam a propósito considerados os textos de

302
•O EVANGELHO PERDIDO"

1 Cor 11,23: "Eu mesmo recebi do Senhor o que vos transmití: na noite em
quefoi entregue..."

1Cor 15,3: "Transmiti-vos, em primeiro lugar, aquilo que eu mesmo rece-


bi: Cristo morreu por nossos pecados..."

Cl 2,6-8: "Assim como recebestes o Cristo Jesús, o Senhor, assim nele


andaí, arraigados nele, sobre ele edificados, e apoiados na fé, como aprendestes
e transbordando em acáo de gracas. Tomai cuidado para que ninguém vos
escravize por vas e engañosas especulares da filosofía, segundo a tradicáo
dos homens. segundo os elementos do mundo, e nao segundo Cristo".

Ver aínda 1Cor 11,2; 2Ts 2,14s; R 4,9; Gl 1, 8-12; 2,2s.

Passemos a breve

3. CONCLUSÁO

Burton L. Mack é movido por preconceitos e apresenta hipóteses frágeis e


artificiáis para estabelecer um corte entre o Jesús real e o Jesús concebido
pelos Evangelistas. É desmentido, porém, por urna leitura atenta dos própríos
textos do Novo Testamento, que nao somente nao dáo margem á sua hipótese
mas aínda Ihe contradizem,... desmentido também pela evidencia da pesquisa
empírica ou da papirología.

O livro pode causar ¡mpressáo, com suas 265 páginas e seu esforco de
construir hipóteses, mas nao merece o assentímento de quem estuda seria
mente o Novo Testamento.

* * *

A Grande Novidade que nos traz Feticidade, por Jean-Marie Onfroy.


Tradugáo de J. A. Ceschin - Ed. Loyola (Sao Paulo) e Ed. Loaos (Campiñas
SP), 1995, 140x210 mm, 283pp. yin.
Deste livro já foram vendidos mais de 515.000 exemplares na Franga.
Aparece muño oportunamente em tradugáo portuguesa. Vem a ser urna apre-
sentagáo da pessoa de Jesús Cristo, tal como se acha nos Evangelhos; os
ensinamentos e os feitos do Senhorsao narrados em estilo simples e fiel, com
fotografías e mapas da Térra Santa. Além disto, os demais livros do Novo Tes
tamento sao passados em revista, de modo a se ter urna nogáo introdutória
nesses escritos sagrados. No final, há valiosas páginas sobre a historicidade
dos Evangelhos e a autenticidade do texto bíblico copiado e recopiado através
dos sáculos. O livro se abre com breve demonstracáo da existencia de Deus,
que nos fala pela beleza do macrocosmos e do microcosmos e se revelou
plenamente mediante Jesús Cristo. - Desta maneira o livro pode ser tido como
um manual de apologética e catequética destinado ao grande público. Quem
deseja um primeiro contato ou informacoés sucintas e seguras sobre Jesús
Cristo e o Novo Testamento, encontra alas suas respostas.

303
Celeuma sensacionalista:

A ENTREVISTA DE JACQUES DUQUESNE

Em síntese: Jacques Duquesne deu urna entrevista á rede GLOBO, na


qual contestou varios pontos da exegese dos Evangelhos e da doutrina da fé,
embota se dissesse autor católico. Ora verificase que Duquesne repete obje-
cóesja levantadas e refutadas, relativas aos irmáos de Jesús, á data do nasci-
mento de Cristo, aos magos e á visita ao Menino... No artigo presente sao
reconsideradas duas das dificu/dades propostas por Duquesne: 1) os "irmáos
(adelphoi) de Jesús e o uso daspalavras gregas anépsios (primo) e syngenis
(párente) no texto grego da S. Escritura (LXXe Novo Testamento); 2) o silencio
do Evangelho sobre o pecado original. A questáo dos magos em Belém fica
para o artigo seguinte.

Urna atenta consideragáo dos dizeres de Duquesne revela o tom superfi


cial do autor, que nao conhecia as linguas semitas ñas quais foram escritos os
origináis do Antigo Testamento e das quais se serviram osprimeiros pregado-
res do Evangelho.

Aos 19/02/95 o programa FANTÁSTICO da TV GLOBO emitiu urna entre


vista dada pelo Sr. Jacques Duquesne, que se dizia católico e havia escrito um
livro sobre Jesús. O programa de televisáo foi precedido por duas páginas do
jornal O GLOBO, que propunha a mesma temática com alguns erras grossei-
ros. Estas duas transmissóes da rede GLOBO suscitaram alarde no público,
de mais a mais que Duquesne diz professar a fé católica.

Á guisa de esclarecimento, transcrevemos, a seguir, urna carta escrita ao


jornal O GLOBO e publicada por este aos 13/02/95; após o qué abordaremos
os temas atinentes aos "irmáos" de Jesús e ao pecado original. A questáo dos
magos em Belém será considerada no artigo seguinte.

1. A CARTA A "O GLOBO"

"O artigo publicado por esse jornal no último dia 03, as páginas 1 e 2 do
Segundo Caderno, sobre o livro de Jacques Duquesne causou surpresa nao
pela importancia das novidades que trazia, mas pela leviandade com que tra-
tou o assunto 'Jesús Cristo'.
Antes do mais, chamam a atencáo dois erros grossos: Jesús teria nascido
no século V ou VI a. C, quando na verdade se deveria dizer: no ano 6a ou 5*

304
A ENTREVISTA DE JACQUES OUQUESNE 17

antes do inicio da era crista; além disto, á página 2 está dito que Jesús poderia
ser o filho de Cristo, em vez de "Filho de Deus".

O artigo supóe que a Igreja 'guarde a sete chaves conclusóes de especi


alistas'; na verdade, porém, nenhum cientista liberal pede licenca á Igreja para
publicar os resultados de suas pesquisas. Na Igreja nada há de esotérico, ocul
to, 'reservado a urna casta de sabios".

O fato de Sao Paulo dizer que Jesús nasceu de urna mulher nao contradiz
á noticia da virgindade de Maria: parthénos (virgem) e gyné (mulher) em grego
nao se excluem mutuamente.

Ademáis as pretensas contradicóes dos Evangelhos sao explicadas pelos


estudiosos que se dio ao trabalho de reconstituir os géneros literarios dos
antigos. Em suma, poder-se-iam fazer outras ponderacóes, que nao caberiam
no espaco de urna carta". Pe. Estéváo Tavares Bettencourt (Rio).

2. ULTERIORES COMENTARIOS

Abordaremos dois dos pontos discutidos por Duquesne, visto que varios
deles já tém sido repetidamente esclarecidos em números anteriores de PR.

2.1. Os "irmáos" de Jesús

Jacques Duquesne nao podia deixar de tocar neste assunto. Já o temos


considerado em PR 358/1992, pp. 119-123; 370/1993, pp. 124s; 376/1993, pp.
414s. Ao que acrescentaremos os seguintes dados:

Os ditos "irmáos de Jesús" sao primos do Senhor, como já demonstrado,


ou seja, filhos de Cleofas ou Aifeu, irmáo de Sao José. - No caso, os primos
sao chamados "irmáos", porque o aramaico (língua em que foi primeiramente
pregado o Evangelho) é idioma pobre, no qual diversos tipos de parentesco
sao designados pelo vocábulo genérico "irmáo" fah). Eis, porém, que Duquesne
observa que, embora o aramaico nao tivesse a pluralidade de vocábulos ne-
cessária no caso, o grego (língua em que os evangelistas escreveram) tinha
essa pluralidade: para dizer primo, usava-se o vocábulo anépsios, e nao
adelphós (irmáo) e, para dizer párente, usava-se syngenís. Ora, se os
evangelistas nao recorreram a estes vocábulos existentes em grego, mas fala-
ram de adelphoí (irmáos), conclui Duquesne que Jesús tinha mesmo irmáos,
filhos do mesmo pai e da mesma máe.

A propósito observamos: urna atenta pesquisa do texto grego da Biblia


(Novo Testamento e traducáo grega do Antigo Testamento dita "dos Setenta")
revela que as palavras gregas anépsios e syngenís sao ai muito raras e nao
ocorrem onde deveiiam ocorrer segundo o bom uso da Ifngua. Assim, por exem-

308
18 'PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 398/1995

pío, só urna vez no Novo Testamento aparece o termo anépsios, e isto numa
carta de Sao Paulo, nao nos Evangelhos, onde só se lé adelphoí: com efeito,
Marcos é dito anépsios (primo) de Barnabé em Cl 4,10. O uso quase nulo de
anépsios e syngem's, no texto grego da Escritura, explica-se pelo fato de que
nenhum deste termos tem seu correspondente em hebraico ou em aramaico:
estas duas linguas semitas empregam "irmáo" e "irmá" para exprimir qualquer
tipo de parentesco próximo. Veja-se, por exemplo, o livro de Tobias: o original
aramaico perdeu-se, mas temos dele duas traducóes gregas feitas dois sécu-
los talvez antes da era crista. Verifica-se que

- segundo Tb 7,2, Ragúel em Ecbátana recebe Tobias (o filho) e diz á sua


esposa: "Como este jovem é parecido com meu irmáo Tobit (o pai)!° Na verda-
de, Tobit (pai) era primo de Ragüel. Ora urna das duas traducóes gregas expri-
me-o mediante o vocábulo anépsios e a outra mediante adelphós;
-a filha de Ragüel, Sara, que há de ser dada em casamento a Tobias, é
apresentada como irmá de Tobias doze vezes, como evidenciam as próprias
traducóes vernáculas; ver Tb 7,10.12; 8,4. 27... Este linguajar é táo caracterís
tico que a nota m a Tb 7,12 na TEB (Traducáo Ecuménica da Biblia) observa:

"Tobias emprega muito amplamente os termos irmáo e irmá para desig


naros correligionarios (1,3...), osparentes (6,19) e os esposos (5,22- 7,12 15-
8,4.21; 10,6.13).

No Cántico dos Cánticos 4,9, a noiva é dita irmá do no/Vo protagonista do


enredo".

É preciso levar em conta este costume lingüístico, que estava vivo nos
tempos de Jesús e na época em que a Boa-Nova comecou a ser anunciada em
aramaico. Caso nao considere este dado filológico, o intérprete há de supor no
texto sagrado categorías de expressáo ocidentaís e anacrónicas, o que leva a
conclusóes exegéticas erróneas.

2.2. Jesús e o Pecado Original

Duquesne alega que Jesús nao falou de pecado original. Por isto nao se
deve dar crédito á doutriña do pecado original como é ensinada pela Igreja.

A respeito observe-se o seguinte:

Nem tudo o que é de fé ou de Moral crista está contido explícitamente no


Evangelho. O próprio Sao Joáo termina seu Evangelho observando que, fora
do livro respectivo, ficou muito do que Jesús disse e fez; cf. Jo 20,30s e 21,25.
O raciocinio de Duquesne levaría a dizer que o homossexualismo é lícito, por
que Jesús nao o condenou; semelhantes conclusóes poderiam ser deduzidas

306
A ENTREVISTA DE JACQUES DUQUESNE 19

do silencio do Evangelho. Para entender devidamente a mensagem do Senhor,


é preciso levar em conta também a Tradicáo oral, que é anterior ao Evangelho
escrito e o acompanha até hoje na Igreja, a quem Jesús prometeu sua assis-
téncia infalível; cf. Mt 16.16-19; Le 22.31s; Jo 21,15-71.

Em Rm 5,12-14, segundo comentadores antigos e modernos, há urna


insinuacáo do pecado original. 0 texto é controvertido, mas, sem ser violenta
do, pode ser tomado como testemunho de urna doutrina que se tornou clara no
decorrer dos tempos.

Quanto á data do nascimentó de Jesús, ver PR 300/1987, pp. 204-211.0


assunto é relativamente secundario, pois nao afeta a mensagem do Evangelho.

(contínuagáo dapág. 336)

Hándel (1685-1759) aos de Gluck (t 1787) e Mozart (t 1791). Foi notável a sua
influencia na historia da ópera, para cuja decadencia concorreram, pois a cola-
boracáo de cantores castrados nao podia deixar de imprimir, cedo ou tarde, um
caráter de "virtuosismo" ou "preciosismo" as representacóes artísticas (a técni
ca e os meios passaram a ter maior importancia do que os fins da arte).

2. Como se compreende, as autoridades da Igreja nunca aprovaram a


castracáo de cantores. Em fins do século XVII, o tráfico de meninos castrados,
muitos dos quais nunca se tornaram sopranos de valor, tomou proporcóes ver-
gonhosas nos ambientes comerciáis e profanos. Conseqüentemente, em 1755
o Papa Bento XIV condenou explícitamente a castracáo de cantores. O fato,
porém, é que o costume chegou a ser aplicado até mesmo a participantes do
coro da Cápela Sixtina, onde as mais belas vozes eram muitas vezes devidas
a varóes castrados; o Papa Leáo XIII (1878-1903) interveio, proibindo de ma-
neira definitiva tal praxe no coro da Sixtina. Os últimos cantores castrados que
se exibiram em teatros profanos, foram Crescentini (t 1846) e Velluti (t 1861).
Precederam-nos, gozando de grande fama: Baldassare Ferri (1610-1680), cujas
represéntaseles foram disputadas por varios soberanos de corte á porfía;
Francesco Bernardi, dito Senesino (1680-1750), um dos artistas mais admira
dos no sequilo de Hándel; Gaetano Maiorano, chamado Caffarelli (1703-1780),
o qual tanto dinheiro ganhou que pleiteou a posse de um Ducado; Cario Broschi,
cognominado Farinelli, (1705-1782), cuja pureza de voz nao pode ser reproduzida
nem por outra voz humana nem por algum instrumento musical.Do ponto de
vista moral, a castracáo de meninos cantores constituí nao somente grave falta
contra a natureza, mas também clamorosa injustica, pois prejudica a evolucáo
psicossomática de enancas, tornando-as ineptas para a vida conjugal.
r

(continua na pág. 294)

307
Que houve?

OS MAGOS E JESÚS

Em síntese: O episodio de Mt2,1-12 suscita o descrédito de alguns críti


cos. O artigo abaixo mostra que foi vasado em estilo de midraxe. género litera
rio que aprésenla um núcleo realmente histórico redigido de modo que sepos-
sa perceber o seu conteúdo teológico. Além do qué, fica evidente a verossimi-
Ihanga do episodio dos magos se se considerara textos antigos que falam tanto
da expectativa de um Salvadorporparte depovos orientáis como da crueldade
do rei Herodes.

Em dois dos Evangelhos (Mt e Le) encontramos os episodios referentes á


origem de Jesús. Constituem os chamados "Evangelhos da infancia"- cf Mt 1-
2 e Le 1-2.

Ora, como reconhecem os exegetas, esses relatos tém tais característi


cas de estilo e redacáo que nao podem ser analisados e explicados como as
demais sec^óes do Evangelho; merecem ser tratados á parte, pois supóem um
género literario próprio e um aprofundamento teológico. Pode-se dizer que,
logo depois da Ascensáo de Jesús, os Apostólos e discípulos voltaram sua
atencao para o misterio de Páscoa e da Redencáo, ou seja, para a vida pública
e a consumacáo da obra do Senhor. Só depois se detiveram no misterio da
Encarnacáo, ou seja, ñas orígens do Senhor, considerando-o com um olhar
profundamente teológico, á luz do misterio de Páscoa.

0 género literario próprio de Mt 1-2 e Le 1-2 se depreende claramente de


urna de suas características: a énfase dada ao maravilhoso. - Note-se que
nos episodios da vida pública de Jesús os anjos nao intervertí, a nao ser na
tentacáo de Cristo (segundo S. Mateus 4,11 e S. Marcos1,13) e no horto das
Oliveiras (segundo S. Lucas 22,43). Nao há mencáo de sonhos pelos quais
Deus se manifesté. As cenas decorrem entre personagens humanos, se bem
que os milagres freqüentemente se déem. - Ao invés, ñas narrativas da infan
cia de Jesús, nao se registram propriamente milagres (derrogacoes as leis da
natureza), masfatos maravilhosos: Zacarías, José, María, os pastores, os magos
entram em comunicacáo com o mundo celeste por meio dos anjos. A historia
da infancia de Jesús é urna historia desta térra, mas o invisível nela se torna
continuamente visível de maneira extraordinaria; é urna historia real, cujos ato
res, porém, sao movidos pelo céu.

Estas observares de modo nenhum pretendem lancar descrédito sobre


os "Evangelhos da infancia" nem sobre a existencia dos anjos. Na conclusáo

308
OS MAGOS E JESÚS 21

deste artigo ver-se-á a mensagem que (segundo os exegetas modernos) tais


seccóes transmitem.

É á luz de tais observares gerais sobre os "Evangelhos da infancia" que


os estudiosos tém analisado o episodio dos magos em Mt 2.

1. HERODES, OS MAGOS E JESÚS (MT 2)

Os exegetas verificam que o episodio de Mt 2 parece ter sido redigido sob


o influxo das narrativas do Antigo Testamento e dos rabinos referentes á vida
de Moisés, principalmente ao nascimento e aos primeiros dias deste homem
de Deus. Isto, alias, nao surpreende, pois Mateus, em mais de urna página do
seu Evangelho, procura apresentar Jesús como novo Moisés.

Ora, no tocante ao nascimento de Moisés, os judeus narravam o seguinte:

a) Faraó, o monarca do Egito, teve certa noite um sonho estranho. Cha-


mou entáo quem Iho pudesse interpretar: Janes e Jimbres, segundo algumas
fontes literarias, ou um dos príncipes da corte, ou, segundo mais outras fontes,
Balaa, filho de Beor, ou um dos eunucos do rei. Os intérpretes disseram a
Faraó que tal sonho significava o nascimento de urna crianca israelita que des
truiría o Egito e tiraría Israel do cativeiro.

Outros escritos da tradicáo rabínica referem que foram os astrólogos que


revelaram a Faraó o nascimento do Salvador de Israel, sem, porém, poder
precisar se tal Salvador seria um israelita ou um egipcio.

Conforme Flávio José, historiador judaico do séc. I depois de Cristo, um


dos escribas sagrados da corte (sem mencáo de sonho) anunciou a Faraó o
nascimento do Libertador de Israel, o qual haveria de humilhar os egipcios e
libertar os israelitas. Do seu lado, Amram, o pai de Moisés, teve um sonho, que
Ihe anunciava a natividade e a missáo de seu filho; este haveria de libertar o
povo hebreu do cativeiro do Egito (cf. Antigüidades Judaicas II, IX 3.212.215s).

b) Os egipcios encheram-se de terror quando tiveram noticias de tais predicóes.

c) Faraó consultou a propósito seus sabios e astrólogos, resolvendo, em


conseqüéncia, mandar matar os meninos nascidos das familias dos hebreus.

d) Moisés, porém, escapou ao morticinio.

Estes diversos dados da tradicáo judaica sao evidentemente midrachim;


exploram e ampliam em estilo maravilhoso os episodios narrados em Ex 2-4 a
respeito de Moisés, a fim de mais incutir os designios de Deus concernentes
ao Legislador de Israel.

309
22 'PERPUNTE E RESPONDEREMOS' 398/1995

Quem compara os dizeres rabínicos referentes a Moisés com o texto de


Mt 2, verifica inegáveis semelhancas.

Mais ainda: entre o livro do Éxodo e Mt 2 registram-se pontos de contato.

Assim, em Ex 4, 19s, lé-se:

"O Senhor disse a Moisés em Madiá: 'Vai, volta ao Egito, porque todos
aqueles que atentavam contra a tua vida estáo morios'. Moisés tomou consigo
sua mulher e seus filhos, fé-los montar em jumentos e voltou para o Egito".

Compare-se com Mt 2, 19-21:

"Quando morreu Herodes, um anjo do Senhor apareceu em sonho a José,


no Egito, e I he disse: 'Levanta-te, toma o menino e sua máe e vai para a térra
de Israel, porque morreram os que atentavam contra o vida do menino'. Levan-
tou-se José, tomou o menino e sua máe e voltou para a térra de Israel".

Neste texto do S. Evangelho. chama a atencáo a forma de plural "morre


ram os que atentavam contra a vida do menino". Na verdade, como nota o
Evangelho pouco antes, Herodes é que atentava contra Jesús e morrera. Por
que entáo terá usado S. Mateus a forma de plural? - Nao se pode dizer que o
texto de Ex 4,19 (onde o plural é mais compreensível) influenciou diretamente
a redacáo da passagem de Mt 2,20?

Note-se também a afinidade entre Ex 2,15 e Mt 2,13.14.16:

Ex 2,15: "Faraó, sabendo do ocorrido, procurou matar Moisés, mas este


fugiu para longe de Faraó. Retirou-se entáo para a térra de Madiá, e sentou-se
junto de um poco".

Mt 2,13.14.16: "Apareceu em sonho a José o anjo do Senhor e Ihe disse:


"Levanta-te, toma o menino e sua máe e foge para o Egito; permanece lá até
que eu te avise, porque Herodes vai procurar o menino para o matar'. Levan-
tou-se José e, ainda sendo noite, tomou o menino e sua máe e retirou-se para
o Egito, onde permaneceu até a morte de Herodes... Percebendo Herodes que
tinha sido engañado pelos magos, ficou irrítadíssimo e mandou matar todos os
meninos que havia em Belém e ñas redondezas..."

Além destes pontos de afinidade entre Mt 2 e a tradicáo judaica, notam-


se as dissemelhancas entre um e outra:

a) O sonho de Faraó nao tem paralelo em Mt. É José, o esposo de María,


quem recebe em sonho a noticia nao do nascimento de Jesús, mas de que
Jesús havia de ser o Salvador do povo (cf. Mt 1,20s).

310
OS MAGOS E JESÚS 23

b) Os sabios da corte de Faraó, consultados ou nao pelo monarca, deram-


Ihe noticia do nascimento do menino, assim como sugestóes a fim de evitar a
ruina do Egito. - No Evangelho, Heredes convoca os escribas ou sabios da Lei
para que Ihe digam onde o Messias havia de nascer.

c) A ordem de Faraó para que fossem mortos todos os meninos dos ju-
deus aparece como algo de necessário ñas narrativas judaicas, já que o mo
narca nao teve ulteriores noticias a respeito do Salvador dos judeus (apenas
Ihe disseram que nascera ou estava para nascer). - Ao contrario, no Evange
lho Heredes só manda matar os pequeninos de Belém e arredores depois de
ter tramado um plano de morticinio direto: este plano fora frustrado por nao
terem os magos voitado a Jerusalém.

Ao ponderar as semelhancas e as dissemelhancas existentes entre as


narrativas judaicas e Mt 2, os estudiosos formulam a seguinte hipótese:

Antes da redacáo escrita do Evangelho de Mateus. formou-se na tradicáo


crista uma narrativa referente a Jesús, os magos. Heredes e os inocentes.
Essa narrativa referia-se a acontecimentos realmente ocorridos após o nasci
mento de Jesús; utilizou, porém, trapos dos midrachim judaicos concernentes
a Moisés. Recorrendo a esses trapos relativos a Moisés, os antigos cristáos
queriam significar que Jesús consumara a obra do primeiro Legislador e Liber
tador de Israel; em Cristo a figura de Moisés reaparecerá em toda a sua pleni
tud^. O evangelista, após decenios de tradicáo crista, recebeu essa narrativa e
déla fez uma das fontes do seu Evangelho da infancia; nao se pode determinar
a maneira exata como o evangelista utilizou tal tradicáo crista; os estudiosos
admitem que a tenha retocado, pois o Evangelho de Sao Mateus apresenta
estilo murto próprio ou muito marcado pela personalidade do seu autor.

Estas conjeturas explicam que o episodio dos magos em Mt 2 tenha seu


cunho de "maravilhoso" (sonhos, curso extraordinario da estrela...). A mensa-
gem desse trecho é principalmente teológica, a saber: Jesús = novo Moisés e
Consumador da libertacáo, reconhecido pelos gentios pagaos e rejeitado pelos
seus conacionais. Os pormenores do episodio nao devem ser considerados de
per si ou isoladamente, mas háo de ser interpretados em funcáo do conjunto,
pois a funcáo principal desses pormenores é realcar a afirmacáo teológica do
evangelista.

Nao será necessário repetir que estas considerares dos estudiosos de


modo nenhum significam que Mt 2 seja mito ou ficcáo. A substancia do texto
conserva seu valor histórico.

Ñas páginas seguintes examinaremos justamente alguns traeos da litera


tura e da historia antigás que concorrem para ilustrar o fundo histórico de Mt 2.

311
24 'PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 398/1995

2. O TESTEMUNHO DOS DOCUMENTOS PROFANOS

A quem quisesse negar a autenticidade histórica de Mt 2, nao bastaría


dizerque esse episodio nos foi transmitido com tragos aparentemente imagina
rios ou lendários. Deveria outrossim evidenciar que o episodio em sua substan
cia nao pode ter ocorrido na historia real do Oriente antigo.

Ora o estudo da historia fornece indicios de verossimilhanca da narrativa


dos magos, de sorte que quem conhece o ambiente do Oriente de outrora nao
julga ¡mpossível o acontecimento referido por Mt 2. Notem-se os seguintes
dados:

1) Herodes e a Judéia. Herodes era um tirano sanguinario.

Beduino de sangue misto (semi-judeu apenas), parecía comprazer-se na


crueldade. Por suas próprias máos, afogara o cunhado, o formoso Aristóbulo,
Sumo Sacerdote, aos 17 anos de idade, o qual se tornara muito popular. Su-
cessivamente mandou matar seu outro cunhado, José; Hircano II, rei octogenario
da dinastía dos hasmoneus; Mariamna I, sua esposa, neta de Hircano II;
Aristóbulo e Alexandre, seus próprios filhos... Ainda cinco dias antes de morrerl
mandou decapitar seu terceiro filho Antipáter... Todo o seu reinado (de 40 a 4)
foi assinalado por ondas de sangue. Nao recuou nem diante das execucóes em
massa: por terem derrubado a Águia de Ouro, ídolo desonroso que o tirano
quisera colocar na fachada do Templo, quarenta homens foram queimados
vivos. Já em sua frenética agonía, ordenou fossem assassinados todos os prin
cipáis personagens da comunidade judaica, a fim de que houvesse lágrimas
por ocasiáo dos funerais do rei.

O Imperador César Augusto, a propósito de Herodes, usava de trocadilho


muito significativo: "Mais vale ser o porco (em grego, hys) de Herodes do que
ser o seu filho (hyiós)"!

Estes dados históricos insinuam que o morticinio dos santos inocentes


nao deve sertido como algo de exótico dentro do quadro do reinado de Herodes.

Além disto, observa-se que a aldeia de Belém (situada a 8 Km de Jerusa-


lém) e suas vizinhancas nao devia contar mais do que dois mil habitantes. Em
conseqüéncia, julga-se que o número de vitimas causadas por Herodes, se
gundo Mt 2,16. pode ser estimado em vinte e cinco criancas aproximadamente
(somente os meninos, e nao as meninas, foram condenados).

2) Os magos e o Messias. Varios testemunhos de autores pagaos ates-


tam que a expectativa de um Messias, própria do povo de Israel, encontrava
eco profundo em regióes afastadas da Judéia; foí, sem dúvida, levada para o

312
OS MAGOS E JESÚS 25

Oriente pelos judeus por ocasiáo do exilio (séc. VI a. C.) e após este (tenha-se
em vista que as historias bíblicas de Tobías e Ester se deram na Pérsia). Em
Alexandria (cidade fundada no séc. IV a. C.) estabeleceu-se próspera colonia
judaica que, por meio de escritos diversos, difundía a sua espiritualidade e as
suas crer^as religiosas.

É o que explica os seguintes textos e fatos antigos:

a) Aquarta écloga de Virgilio (t 19 d. C.) assim reza:


"Eis que vém os últimos lempos marcados pelo oráculo de Cumes:
A tonga serie dos sáculos recomeca,
Eis que volta a virgem, volta o reino de Saturno,
Eis que desee do céu urna raga nova.
Ao menino recém-nascido, que eliminará a geragáo de ferro
E suscitará por todo o mundo urna geragáo de ouro,
Dai acolhida..."

b) Tácito (t 120 d. C), por muito ufano que fosse de sua linhagem roma
na, escreveu:

"Os homens estavam gera/mente persuadidos, á luz da fé de antigás pro


fecías, de que o Oriente ia tomara vanguarda e, dentro em breve, se veriam
sair da Judéia aqueles que governariam o universo" (Hist. V. 23).

c) Zarathustra (séc. VI/VII a. C.) na Pérsia professava urna tradicáo, pro-


vavelmente de origem judaica, segundo a qual o principio do Bem triunfaría do
Mal gracas a um Aliado, "verdade encarnada", que devia nascer de urna "vir
gem que nenhum homem tivesse tocado".

d) Nao se pode esquecer que Balaáo, o adivinho pagáo impelido pelo


Senho'r, havia profetizado:

"Sai urna estrela de Jaco; de Israel ergue-se um cetro" (Nm 24,17).

Estes testemunhos da historia dáo a ver que no Oriente antigo havia sabi
os ou pensadores preparados para receber e compreender o aviso que, confor
me Mt 2, o Senhor Ihes quis dirigir por ocasiáo do nascimento de Jesús. - De
resto, para um historiador crístáo nao é absurdo admitir que a Providencia te-
nha, por um sinal celeste congruente, comunicado aos pagaos que se cumprira
a expectativa de um Salvador acalentada pelos judeus.

3) O uso dos textos do Antigo Testamento em Mt 2

Sabe-se que Mt 2 cita algumas pafssagens do Antigo Testamento para


ilustrar os episodios narrados. Assim

313
26 'PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 398/1995

em Mt 2,6 o evangelista se refere a Mq 5,1, em combinado com 2 Sm 5 2


e1Cr11,2;

em Mt2,15, é citado o texto de Os 11,1;

em Mt 2,18 ocorre Jr 31,15;

em Mt 2,23 a citacáo é vaga, envolvendo Is 11,1 e 53,2.

Ora os textos mencionados, por si mesmos, nao se relacionam com os


episodios descritos pelo evangelista, mas, sim, com fatos diversos. Assim as
criancas que Raquel pranteia, em Jr 31,15, sao os seus descendentes (os
israelitas) deportados para a Assíria no séc. VIII. O f ilho que Deus faz voltar do
Egito, em Os 11,1, é o povo de Israel. O texto de Mq 5,1 combinado com o de
2 Sm é citado por Mateus sob forma que difere tanto do original hebraico como
da famosa traducáo grega dos LXX...

Oestas observares se depreende que Mateus (de acordó, alias, com os


usos rabínicos da época) adaptou os textos da Biblia aos acontecimentos des
critos; nao forjou nem inventou acontecimentos para ilustrar a veracidade dos
textos do Antigo Testamento; ao contrario, viu-se diante de fatos, e procurou
colocar esses fatos dentro da perspectiva da historia da salvacáo descrita nos
livros sagrados de Israel.

Por conseguinte, as citacóes do Antigo Testamento em Mt 2 sao mais um


indicio deque esta seccáo do Evangelho nao é lenda imaginaria, mas historia
real, apresentada, porém, em perspectiva teológica, ou seja, em vista de um
ensinamento religioso.

Feitas estas ponderales, podemos passar a urna

3. CONCLUSÁO

O assunto abordado nestas páginas, quando proposto fora dos círculos


de especialistas, arrisca-se a provocar perplexidade. Esta se origina geralmen-
te do fato de se ampliar o alcance de certas afirmacóes ou de se dar a hipóte-
ses o valor de sentencas definitivas. Por conseguinte, a fim de que o leitor
possa avaliar serenamente a questáo, seja aqui resumido o ponto de vista da
sadia exegese católica contemporánea.

1) Os estudos modernos evidenciaram a existencia de traeos semelhan-


tes em Mt e ñas narrativas judaicas (bíblicas e extra-bíblicas) referentes a
Moisés.

314
OS MAGOS E JESÚS 27

2) Diante desta evidencia, é preciso evitar dois excessos:

a) de um lado, deduzir de tais semelhancas que a narrativa evangélica é


mera adaptacáo de textos judaicos pouco fidedignos.ou concluir que a seccáo
evangélica nao passa de mera fábula dependente da fantasía dos antigos;

b) de outro lado, outro excesso seria o de nao querer reconhecer a exis


tencia em Mt 2 de um género literario próprio, um tanto livre, dito midrache,
género que os judeus usavam em suas escolas de maneira honesta e com
finalidade didática.

3) Distanciando-se destes dois extremos, o fiel católico pode dizero seguirte:

Em Mt 2 há um núcleo histórico, a saber: os magos do Oriente, admoes-


tados por Deus. foram adorar Jesús recém-nascido em Belém, o que deu ori-
gem a cruel morticinio da parte de Herodes irado por saber que nascera o novo
"Rei dos judeus"; Jesús escapou incólume, fugindo para o exilio. Este núcleo
histórico, porém, é ornamentado com artificios ou tragos maravilhosos familia
res aos israelitas, a fim de se por em realce o sentido teológico do fato históri
co.

4) Torna-se muito difícil estabelecer os limites precisos entre o fato real e


os pormenores que Ihe foram acrescentados na tradicáo catequética dos cris-
táos. Pergunta-se, por exemplo: o espanto de toda a cidade de Jerusalém ao
saber que o Messias havia de nascer (ou nascera) em Belém terá sido fato real
ou, antes, a copia do espanto que acometeu os egipcios ao saberem que um
Libertador dos judeus estava para nascer (ou nascera)?

5) Além de narrar fatos históricos, Mt encerra profunda mensagem teoló


gica, justamente realcada pelo estilo da seccáo:

a) Jesús é o novo Moisés por excelencia;

b) O Messias foi reconhecido pelos gentios (representados pelos magos),


mas rejeitado pelo seu próprio povo (representado por Herodes).

Estas duas teses, alias, dominam todo o Evangelho de Sao Mateus.

6) De resto, para ilustrar os artificios de Mt 2. pode-se citar o episodio das


tentacóes de Jesús, em Mt 4, 1-11. Nesta passagem, o evangelista coloca
Jesús no quadro do Deuteronómio, apresentando-O a reviver o que Israel vive
ra no deserto. Além disto, usa de traeos "midráxicos", como seria a apresenta-
cáo de todos os reinos do mundo a Jesús colocado sobre urna alta montanha...

A fé nao se opóe a que se aceitem tais proposites da moderna exegese de Mt 2.

315
Tema candente:

TRADIQÁO, FAMÍLIA E PROPRIEDADE (TFP)

Em síntese: Tradigáo Familia e Propriedade" é urna sociedade que se


diz católica, mas faz restricóes ao Concilio do Vaticano II eá Igreja pós-conci-
liar. O seu fundador é o Dr. Plínio Correa de Oiiveira, que em Sao Paulo reuniu,
na década de 1950, um grupo de congregados marianos para desenvolverem
piedade e apostolado. Todavía a estima e a veneragáo do mestre-fundador tem
degenerado, segundo o testemunho de egressos da Sociedade, tornándose
urna quase servidáo ao Dr. Plinio. Também o culto á falecida máe do Dr. Plínio
- Da Lucilia - tem tomado pmporcSes que exorbitam os parámetros da praxe
católica. Ao lado dos defensores da TFP, quepropugna o combate ao comunis
mo, há os que acusam a sociedade de estar manipulando seus adeptos em
nome de urna piedade que já nao é puramente católica. - O artigo que se
segué, sebaseia no livro de um egresso da Sociedade, o Sr. Giulio Folena, que
professa estarreferíndo fatos auténticos.

Existe no Brasil urna Sociedade, com quatorze ramificares no estrangei-


ro, chamada "Sociedade Brasileira de Defesa da Tradicáo, Familia e Proprie
dade" (TFP). Distingue-se por suas campanhas públicas, seus trajes, seus es
tandartes, seu jornal CATOLICISMO e outras publicacdes. Suscita, porém,
indagacóes no plano religioso. Passamos a analisá-la na base do depoimento
de Giulio Folena, que de 1957 a 1964 foi membro atuante da TFP e voltou a ter
contato com a Sociedade em 1978, após a ter deixado. Este cidadáo conhe-
ceu, por experiencia e por pesquisas realizadas junto a testemunhas no Brasil,
em Madri e em Roma, o Regulamento, os objetivos e o fundador-presidente da
TFP. Indignado com o que presenciou e ouviu, escreveu o livro "Escravos do
Profeta", EMW Editores 1987, Sao Paulo (SP). A documentacáo e as noticias
aduzidas parecem fidedignas, embora apresentadas em tom passional. A TFP
nao respondeu as alegacóes de G. Folena, como havia respondido a ataques
anteriores. - Nao conhecemos obra táo completa publicada em data posterior.
É possível que de 1987 aos nossos dias algo tenha evoluído na TFP; como
quer que seja, o livro de G. Folena retrata bem a mentalidade e as práticas
básicas da TFP.

1. ORIGEM E HISTÓRICO DA TFP

O fundador da TFP é o Prof. Plínio Correa de Oliveira (PCO), em nossos


dias octogenario, deputado á Constituinte em 1934. Era congregado mañano

316
TRADIQÁO. FAMILIA E PñOPRIEDADE (TFP)

militante, diretor do jornal O LEGIONARIO, da Federacáo das Congregacóes


Marianas em Sao Paulo.

O Sr. Arcebispo de Sao Paulo, D. Carlos Carmelo Motta, desejou dar á


sua arquidiocese um jornal mais moderno e, por isto, fundou O SAO PAULO,
ao mesmo tempo que afastou o Dr. Plínio Correa de Oliveira da direcáo dos
Servicos de Comunicacáo da arquidiocese. Este resolveu entao fundar o Gru
po Joseph de Maistre1, com dez congregados marianos. Nascia assim a Soci-
edade que um dia tomaría o nome de TFP. Esta tinha duas faces: era, por suas
origens mesmas e por sua profissáo de fé, urna entidade religiosa católica,
mas em 1960 foi registrada em cartório como "Sociedade cívico-cultural e filan
trópica". Tinha em mira combater o progressismo dentro da Igreja Católica,
chegando a opor-se ao clero e considerando a Judeo-maconaria como sua
adversaria mais ferrenha, responsável por todos os males que afetam a Igreja
e a sociedade civil. Essa pretensa defesa da religiáo católica tinha aspectos de
anormalidade.

Com efeito. PCO desde cedo se revelou urna personalidade estranha.


Concebeu horror á sexualidade e, indiretamente, aversáo ao sexo feminino
(com excecáo de sua máe, D9 Lucília, como se dirá adiante). Em compensa-
cao, era dado a um falso misticismo, julgando ter dons de clarividencia e profe
cía, em virtude dos quais, posteriormente, afirmou ser maior do que o profeta
Elias ou do que todos os profetas, quase equiparado ao próprio Deus. Os mem-
bros do Grupo eram dirigidos por Plínio Correa de Oliveira com autoritarismo;
os que nao o agüentaram, deixaram a Sociedade, ao passo que os remanes-
centes conceberam dependencia subserviente em relacáo a Dominus Plinius.

Com o tempo, as tendencias de PCO foram-se revelando sempre mais


dominadoras. Um dos principáis redutos da Sociedade é o Ermo de Sao Bento,
situado no Jardim Sao Bento, zona Norte de Sao Paulo. Cedido a PCO, o
predio antigo, com a ajuda de dólares norte-americanos, tornou-se urna fortale
za medieval, na qual se guardam documentos que os náo-iniciados nunca po-
deráo conhecer. Lá vivem dezenas de homens, de varias idades, sob regime
claustral severo, em celibato, obedecendo a um Ordo ou Regra de Vida; esta
tem em mira ensinar a imitar o tipo de vida e os hábitos de PCO, que, sendo
idoso e enfermo, é dependente de varios remedios, mas passa por homem
carismático. A guisa de exemplo, seja citado o seguinte tópico do Ordo: é pre
ciso dormir de barriga para cima, nunca se virar para os lados; deixar perma
nentemente os bracos fora das cobertas, urna das máos pousada no peito ou
sob o travesseiro; dormir de calca e camisa; colocar um retrato de PCO ou de
sua máe D* Lucília ao lado da cama... Há normas minuciosas para o despir-se
e o vestir-se, para tomar banho, para usar as privadas... Quem nao se adapta
a estas prescribes, incorre em "pecado mortal", como diz o Ordo; pode ser

1 Joseph de Maistre (f1821) foi um pensador francés, ardoroso defensor da


autorídade do Papa

317
30 -PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 398/1995

punido com um jejum de 24 horas a pao e agua, ou caminhadas quilométricas


ou quatro horas ininterruptas de audicáo de fitas gravadas dentro da TFP ou
ainda a recitacáo de oracóes durante quatro horas consecutivas.

Eis outras penitencias: andar de quatro, andar com o travesseiro ñas cos
tas, andar com roupas pelo avesso, colocar creme de barbear no rosto até
secar, ficar com o rosto voltado para a parede durante certo tempo.

O Ermo de Sao Bento é o bastiáo donde partirá a direcáo do embate final


(chamado Bagarre), em que as torcas do bem sobrepujaráo o mundo pecador
-sensual, ateu e materialista -, cuja Vitoria momentánea (lei do divorcio, refor
ma agraria, movimentos pró-aborto...) se deve á tibieza da Igreja, chefiada por
agentes de Satanás.

No predio do Ermo há um corredor chamado "Galería das Vingancas"; ai


os "eremitas" realizam caminhadas marciais ao longo de seus 50 metros de
extensáo; a disciplina é rígida e recorre ao "passo-de-ganso".

Na comunidade desses eremitas nao sao admitidos nem judeus, nem


negros nem eslavos, contra os quais há severos preconceitos.

Muitos outros episodios se poderiam relatar para caracterizar a vida inter


na da TFP. O que está dito, seja suficiente para despertar a pergunta: qual a
filosofia subjacente a tais práticas?

2. A FILOSOFÍA RELIGIOSA DA TFP

A "Biblia" da TFP é o livro intitulado "Revolucáo e Contra-revolucáo", da


autoría de PCO.

Para o autor, a época ideal da historia é a Idade Media, á qual é preciso


retornar. Tal periodo foi abalado por tres revolucóes: a da Renascenca (século
XV), a Revolucáo Francesa (1789) e a Russa (1917). A Idade Media é o mode
lo, pois havia entáo classes bem definidas: a nobreza e o povo; nao se andava
á busca de liberdade nem igualdade de classes, mas se almejava um fim mais
elevado: o Reino de Deus.

A Renascenca substituiu o teocentrismo pelo arítropocentrismo; os valo


res sobrenaturais foram removidos em favor da cultura antiga paga (humanismo).
A Companhia de Jesús, fundada para combater essas tendencias, nao atingiu
o seu objetivo.

A Revolucáo Francesa apregoou "Liberdade. Igualdade e Fraternidade"


ou a destruicáo dos privilegios da nobreza e do clero. Isto implicou um golpe
mortal no Reino de Deus e a segunda Vitoria do demonio. PCO pretende ter

318
TRAD1CÁO, FAMÍUAE PROPRIEDADE (TFP)

origem nobre; por isto declara que a nobreza é a obra-prima da criacáo. A


instituicáo da república, que toma o lugar da monarquía, é outro golpe desferido
pela Revolucáo Francesa contra a civilizacáo crista; a única rima possível para
a república, segundo PCO, é a mulher pública, que ele repudia.

A Revolucáo Russa em 1917 foi o total destronamento de Deus. Pregan


do a igualdade de todos os homens numa sociedade sem classes, o bolchevismo
disseminou a erva daninha que sufoca os valores da já combalida civilizacáo
crista. Desprezando os valores tradicionais, a sociedade se apega aos modis
mos: jeans, coca-cola, rock, conjuntos habitacionais...; Brasilia, com sua pa-
dronizacáo arquitetónica, é cidade abominada pela TFP; a escola acessível a
todos é inaceitável, pois acabará destruindo a hierarquia.

Por isto também PCO condena o Papa, que procura aproximar-se do povo,
viajando pelo mundo inteiro e fomentando o igualitarismo. A mesma reprova-
cáo merece a Liturgia renovada, pois ela "empobrece" a grandiosidade da Igre-
ja. Nem Mons. Lefébvre nem Gustavo Corcáo suscitan) a simpatía de PCO,
que os tem na qualidade de falsos dirertistas. Somente a TFP está a salvo de
desvíos. Pois a ela toca urna missio superior á dos Apostólos; estes tiveram
que cristianizar o mundo, ao passo que a TFP o deve recristianizar - o que é
muito mais difícil, por causa das mazelas acumuladas e do igualitarismo. Aos
jovens membros da Sociedade é prometida a elevacáo á condicáo de anjo, tal
a grandeza da missáo que Ihes é confiada; quem acredita nisto, nao mede
sacrificios, chegando a aceitar a plena submissáo ao profeta. Quanto a este, é
tido como o maior de todos os doutores da Igreja; donde a "honra" de Ihe ser
subserviente. A "Oracáo do Resto", composta pelo Prof. Plínio em 1975 dizia:
"Eu sou a grandeza! Eu tenho a forca dos confessores, a coragem dos márti
res, a obediencia de S. Inácio, a grandeza de S. Gregorio Magno, a pobreza de
S. Francisco de Assis!".

Além de "Revolu9áo e Contra-Revolucáo", a TFP tem, para exclusivo uso


dos seus membros, a obra "Manifestacáo", de caráter secreto. Este livro exalta
muito especialmente os "carismas" de PCO; este é tido como a alma do Reino
de Maria ou, melhor, é María. As reunióes em que Plínio se manifesta aos
discípulos, abordam questoes relativas as virtudes, á inerrancia, á imortalida-
de... de Plínio.

3. O PROFETA

Os ex-seguidores do Dr. Plínio referem fatos muito estranhos a respeito


do mestre e de seu relacionamento com os discípulos. É possível que essas
narrativas sejam inspiradas por certa dose de paixáo unilateral, tendente ao
facciosismo. Todavía existem declaracoes registradas em cartório nos termos
utilizados pelo declarante. A título de informacáo, seja aquí transcrita a seguin-
te peca, extraída do citado livro de Giulio Folena, pp. 173-175:

319
32 'PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 398/1995

DECLARACÁO

"Luís Felipe de Freitas Guimaráes Ablas, RG 3.706.587, SP, solteiro, resi


dente em Curitiba, á Av. Manoel Ribas n8 418 (Mercés), declara para bem da
verdade que: quando pertencia á TFP, Sociedade Brasileira de Defesa da Tra-
dicáo, da Familia e Propriedade, em 1967, entrou para urna sociedade secreta
existente no seio da entidade e que se intitulava "Sagrada Escravidáo", conhe-
cida também por seus membros como "Sempreviva".

Os membros dessa sociedade se consagravam como escravos a Dr. Plínio


Correa de Oliveira no mesmo sentido em que S. Luiz G. de Montfort recomen-
da que se faga consagrado a Nossa Senhora. Para a consagracáo como es-
cravo ao Dr. Plínio usava-se o mesmo texto de S. Luiz para a consagracáo a
Nossa Senhora, com ligeiras adaptacóes. Fazia-se isto porque se considerava que
Dr. Plínio tinha de tal maneira a mentalkJade de Nossa Senhora que ele era um só
com o Coracáo Imaculado e Sapiencial de María. Os membros da sociedade reza-
vam diariamente a oracáo da Sagrada Escravidáo composta por Dr. Plinio.

"Ó Coracáo Imaculado e Sapiencial de María, nesse ambiente de nossos


dias em que todos sao homens livres, ebrios de liberdade, sei que mefiz vosso
escravo para ser como o último dos homens de quem Meu Senhor (Dr. Plínio)
pode dispor como o mísero objeto sem vontade própria.

Nesse ambiente de nossos dias em que tudo fala de naturalismo, sei que
minha vida é toda sobrenatural. Nao sou eu quem vive, mas é Meu Senhor (Dr.
Plínio) que vive em mim. Dele me vém todas as grasas, o espirito dele me
habita e posso fazer, nessa uniáo de escravo, tudo quanto ele mesmo pode.

Nesse ambiente de nossos dias, sem grandeza, sem horizontes, de oti-


mismo e de vidinha, sei que nossa época trará acontecimentos grandiosos,
com horizontes grandiosos, dentro dos quais deverei viver como herói a própria
grandeza de Meu Senhor.

Olhando para dentro de mim mesmo e vendo tanta microlice, sei que a fé
em tudo quanto acabo de dizer me dará participacáo na própria grandeza de
Meu Senhor (Dr. Plínio) e fará de mim um perfeito Apostólo dos Últimos Tem-
pos, segundo a oracáo profética de S. Luiz Maria Grignon de Montfort.

Em tudo isto eu creio, mas óh Meu Senhor (Dr. Plínio) ajudai a minha
incredulidade".

Rezava-se também urna parodia da Ave-María para ele que reunia o


profetismo de S. Luiz, de santo Elias e dele mesmo:

"Ave Luiz Plínio Elias (nome oficial do Dr. Plínio na Sagrada Escravidáo),
cheio de amor e de odio, a Ssma. Virgem é convosco, bendito sois vos entre os
fiéis, e bendito é o fruto do vosso amor e odio -, a Contra-Revolucáo.

320
TñADIgÁO. FAMILIA E PROPRIEDADE (TFP) 33

Ó sacral Luiz Plínio Elias, pai admirável e catolicíssimo da Contra-Revolu-


9áo e do Reino de Maria, rogai por nos. capengas e pecadores, agora e na hora
de nossa morte. Amém".

Rezavam-se tercos em conjunto com essa Ave-María. As reunióes come-


cavam rezando essa "Ave-María", a oracáo da Sagrada Escravidáo e as
jaculatorias: Ave Plínio Elias filho bem amado da Ssma. Virgem; Ave Luiz Plínío
Elias, pai admirável e catolicíssimo da Contra-Revolucáo e do Reino de Marina;
Ave Luiz Plínio Elias escravo fídelíssimo do Imaculado e Sapiencial Coracáo dé
Maria.

Havia também urna ladaínha para ele que se dizia ter sido composta por
Marcos Ribeiro Dantas (escravo Plínio Paulo). Urna das jaculatorias era
"Precusor de Elias, rogai por nos".

Dr. Plínio dava a béncáo aos seus escravos. As vezes eles a recebiam
deitados no chao, com o rosto voltado para cima, e entáo Dr. Plínio punha o
seu pé direito sobre o rosto deles e dava a béncáo dizendo: "Benedictio Matris
et Mediatricis descendat super te et maneat semper".

Era costume os escravos do Dr. Plínio se confessarem com ele. contan


do-Ihe faltas e mesmo pecados. Finda a acusacáo, se o escravo pedisse urna
penitencia, era costume que o Dr. Plínio desse entáo tres bofetadas no rosto do
escravo. A seguir ele dava a béncáo.

A ¡ntroducáo na "Sempreviva" se fazia por meio de urna cerimónia que


durava horas, no 2a andar da rúa Alagoas e as vezes em outros locáis. Dr.
Plínio f¡cava sentado num troneto com o hábito e manto da Ordem Terceira do
Carmo. Os assistentes usavam o hábito sem capa. A pessoa que ia ser
introduzida na sociedade simulava estar morta, prostrada no chao diante de Dr.
Plínio. Depois recebia a ordem de se levantar para urna nova vida quando o Dr.
Plínio dizia: "Exsurge". Isto simbolizava que a pessoa havia morrido e havia
nascido um novo homem, um escravo do profeta, um apostólo dos últimos
tempos.

A pessoa fazia entáo a consagracáo como escravo ao Dr. Plínio,


entregrando-lhe todo seu ser e seus bens materiais e espirituais, por meio da
entrega de objetos simbólicos. Desse modo o escravo ficava dele, na qualida-
de de objeto. Dr. Plínio tinha direito absoluto sobre o escravo como no direito
romano, exceto á vida. Daí chamarem-no "Dominus Plinius".

A cerimónia prosseguia pelo ósculo dos pés e das máos do profeta por
parte do escravo. A seguir, o Dr. Plínio deixava o trono e nele entronizava seu
novo escravo. pois este era entáo um novo Plínio. Dr. Plínio beijava entáo os
pés e as máos do seu novo escravo. Gracas á uniáo transformante que se
dava entre eles, um vivía no outro. O escravo era um novo Plínio. Por isto

321
34 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 398/1995

adotava o nome de Plínio, mais o de um padroeiro e um título de Nossa Senho


ra. Eu, por exemplo, tomei o nome de Plínio Bernardes Dimas Longinos de
Nossa Senhora Rainha Sagrada dos Apostólos dos Últimos Tempos. Eu era
conhecido como Plínio Dimas. Nao se podia comunicar aos demais membros
da TFP a existencia da "sagrada escravidáo", como é obvio por se tratar de
urna sociedade secreta...

Falando de seu poder e de seus escravos, Dr. Plínio perguntava: 'O que é
ser papa em comparacáo com isto?"

Dizia-se entre os escravos que o "Segredo de María' de que fala S. Luiz de


Montfort seria provavelmente a ¡nstituicáo da Sagrada Escravidáo ao Dr. Plínio.

Dr. Plínio passou a ser designado pelo codinome de 'María'. Por isto es-
cravo de María era escravo de Plínio.

Era costume que os escravos se ajoelhassem diante de Dr. Plínio pedin-


do-lhe gracas. Por exemplo, Cosme Becar Varella Hijo, na sua consagracáo
pediu a 'Meu Senhor', a graca de ficar viúvo.

Quero declarar também que eu pessoalmente fiz urna consagracáo como


filho da D3 Lucília de joelhos no túmulo déla na presenca de Dr. Plínio Correa
de Oliveira e de seus guardas.

Curitiba, 24 de agosto de 1984.

Luiz Felipe de Freitas Guimaráes Ablas

Testemunhas deste depoimento:

Orlando Fedeli Giulio Folena

1.433.401 2.481.149"

Este documento parece auténtico, pois a TFP Ihe respondeu sem contes
tar as denuncias contidas no mesmo, mas tentando apenas dar-lhes urna justi
ficativa baseada na doutrina da escravídáo marial de S. Luís María Grignion de
Montfort.

Tal documento fundamenta a observacáo de G. Folena segundo a qual


PCO poderá ser um novo Jim Jones, que, abusando de autoridade, provocou a
morte de seus seguidores por autoenvenénamento. Pode-se desculpar a con-
duta de PCO atribuindo-lhe paranoia ou demencia, mas nao se podem tolerar
os males que decorrem da prepotencia megalomaníaca do mentor da TFP.

322
TRADIgÁO, FAMILIA E PROPRIEDADE (TFP)

4. A FIGURA DE Da LUCÍLIA

Lucília Ribeiro dos Santos Correa de Oliveira era urna senhora da socie-
dade paulisla bem educada e sorridente, mas um tanto arredia ao fervor religi
oso. Fez sua primeira confissáo sacramental aos trinta anos de idade. quando
se preparava para o casamento. Sua vida era correta, mas nao se caracteriza-
va por especial cultivo da santidade. Todavía entre Lucília e seu filho Plinto
sempre houve profundo relacionamento afetivo. Ele a chamava "Lu" e ela o
tratava como "Manguinha".

Após a morte de Dfl Lucilia (1969), o Dr. Plinio houve por bem devotar-lhe
um culto de veneracáo que só cabe aos Santos ou que excede mesmo a cos-
tumeira veneracáo dos Santos. O túmulo passou a ser guardado pelos militan
tes; em cada sede da TFP comecou a haver escalacáo para visita, a ponto que
esta se tornou obrigatória para alguns teefepistas. Por ocasiáo da exumacáo
dos restos moríais, acreditava o Dr. Plinio que se encontrassem ainda incólu
mes - o que nao se deu, para decepcáo do mestre e de seus discípulos. Em
alguns núcleos da TFP sao distribuidos bombons "mandados pelo além"; junto
aos bombons vem sempre um bilhetinho carinhoso assinado por a tua Lu com
letra semelhante á da falecida; as mensagens dizem geralmente: "Vocé preci
sa de ser mais obediente", "Vocé precisa de se aplicar mais", "Vocé precisa de
rezar mais o terco, mais jaculatorias...".

Existe mesmo urna "Ladainha de Da Lucília". em que a falecida é invocada


como "Máe do Inefável, Máe dos sáculos futuros. Fonte da Luz, Medianeira de
todas as Gracas, Vaso de Lógica, Vaso de Metafísica...". O Sr. Bispo de Cam
pos falecido, D. Antonio de Castro Mayer (infelizmente adepto do cisma de D.
Lefébvre), desaprovou formalmente esse tipo de prece "como absolutamente
condenável e a ser terminantemente... proibida para quem pretende ser verda-
deiro fiel no Povo de Deus" (cf. G. Folena, ob. cit. p. 162). Alias, D. Castro
Mayer, a principio colaborador de PCO, separou-se dele e desligou-se de qual-
quer eventual vinculo com a TFP.

5. O VOCABULARIO DA TFP

A TFP possui seu jargáo específico, sendo que alguns termos do mesmo
só podem ser entendidos pelos iniciados. Eis alguns exemplos:

O Dr. Plinio é o "profeta", inerrante e ¡mortal; é o "pai" de todos os militan


tes. É "senhor" de tudo e de todos na seita. Por isto os mais convictos adeptos
se consagram a Plinio como escravos; e tomam o preñóme de "Plinio" (assim
"escravo Plinio Maria, escravo Plinio Eduardo, escravo Plínio Luiz. escravo
Plinio Fernando..."). Na linguagem da TFP percebe-se a ambigüidade das ex-
pressóes "nosso senhor" e "nosso pai"' pois se podem referir tanto a Deus
como a Plínio Correa de Oliveira.

323
36 'PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 398/1995

Urna das expressóes mais utilizadas é "bom espirito": significa "devocáo,


submissáo, sujeicáo". O discípulo deve pautar seu modo de pensar e suas
inclinacóes segundo os de PCO. Assim se Plínio segura os copos somente
com a máo esquerda, o "bom espirito" manda que o discípulo facá o mesmo.
Se PCO nao gosta de caqui, o "bom espirito" sugere a execracáo dessa fruta
como sendo "revolucionaria"...

Existe também o "mau espirito", que é a discordancia em relacáo ao pro


feta. Assim nao se pode admitir a mínima crítica a PCO e á sua máe.

"Efluvio" é outra palavra-chave do jargáo da TFP, juntamente com o vocá-


bulo "imponderáveis"; estes dois termos constituem o que se chama a "aerología"
ou a tónica geral de um ambiente. O Dr. Plínio exime-se da obrigacáo de definir
esses vocábulos, embora freqüentemente se refira a eles. Ademáis ele se julga
capaz, com um simples olhar, de dizer se urna pessoa ou um grupo de pessoas
possui boa ou má "aerología", isto é, bons ou maus "efluvios", bons ou maus
"imponderáveis". Todos na TFP se maravilham por perceberam tanto "profetismo"
e tanta "santidade". Plínio se diz capaz de conhecer a aerología ou os episodios
do dia-a-dia de cada país, mesmo sem ler os jomáis e sem ouvir os noticiarios.

'Transesfera" designa urna esfera superior, na qual as forcas do bem e do mal


estáo em luta permanente, luta que repercute nos acontecimentos da esfera terrestre^

"Bagarre" é a luta final, da qual resultará o Reino de Maria após a vitória


das forcas do bem.

"Sabugo" é o militante frió e sem entusiasmo. A imagem é tirada do sabugo


do milho, que já nao presta para coisa alguma.

"Fumaca" é todo aquele que se opóe a PCO em qualquer assunto. O


termo faz eco á alusáo de Paulo VI á fumaga do demonio na Igreja.

"Fassur(a)" designa a pessoa que leva urna vida considerada imoral pelos
seguidores do profeta.

"Bucha" éa Judeo-maconaria, inimiga mortal de TFP.

"Estrutura" designa o clero, considerado como revolucionario e apóstata.

"Por gelo, gelar" quer dizer "¡solar um militante" mediante a indiferenca


dos colegas.

S.A. = sabugos e apóstatas.

Além destes vocábulos, existem na TFP letras de cancóes que tém senti
do duplo e tendem discretamente a exaltar as pessoas de PCO e de sua máe;
a maior parte desses textos foi redigida originariamente em francés.

324
TRADICÁO, FAMÍLIA E PROPRIEDADE (TFP)

6. CONCLUSÁO

Nao é necessário descer a outros pormenores para dar urna idéia do que
seja a TFP. Aínda que alguns tópicos do livro de G. Folena estejam ultrapassa-
dos ou se ressintam de exageras, pode-se afirmar que tal obra e o resumo da
mesma aqui apresentados reproduzem fielmente o "espirito" ou a mente da
TFP. Giulio Folena adverte com certa razáo: "Se os responsáveis por este país
nao se derem conta das monstruosidades do Ermo Sao Bento, teremos logo a
repeticáo do episodio da Guiana. O Jim Jones está mais do que desenliado".

Esta apreciacáo final é corroborada por urna Declaracáo da Conferencia


Nacional dos Bispos do Brasil emitida em 18/04/1985 e assim concebida:

"É notoria a falta de comunháo da TFP (Sociedade Brasileira de Defesa


da Tradigáo, Familia e Propriedade) com a Igreja no Brasil, sua Hierarquia e
com o Santo Padre.

O seu caráter esotérico, o fanatismo religioso, o culto prestado á persona-


lidade de seu chefe e progenitura, a utilizacáo abusiva do nome de María
Santíssima, conforme noticias veicuiadas, náopodem de forma aiguma mere
cer a aprovagáo da Igreja.

Lamentamos os inconvenientes decorrentes de urna sociedade civil que


se manifesta como entidade religiosa católica, sem ligagao com os legítimos
pastores.

Sendo assim, os Bispos do Brasil exortam os cató/icos a nao se inscreve-


rem na TFP e nao colaboraren! com ela.

Itaici, 18 de abril de 1985

BISPOS DO BRASIL
reunidos na 23a Assembléia Nacional da CNBB".

APÉNDICE

Tem-se espalhado amplamente urna bela imagem de Nossa Senhora, de


semblante tristonho; já terá chorado quatorze vezes milagrosamente em suas
aparicóes. Trata-se da chamada "Imagem Peregrina de Nossa Senhora de
Fátima". Juntamente com a estampa, está sendo propagada a Campanha "Vinde,
Nossa Senhora de Fátima, nao tardéis!", para a qual se pede urna contribuicáo
financeira. A promotora da Campanha é,a TFP, cujo endereco é indicado no
próprio impresso de divulgacáo. Mais: á guisa de valorizacáo da Campanha, é
apresentada urna carta do Cardeal Silvio Oddi ao Cónego José Luiz Villac,

32S
38 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 398/1995

carta que apoia e abencoa a Campanha, "cujos objetivos sao altamente provei-
tosos para as almas católicas" (carta datada de 17/03/94).

Que dizer a propósito?

- A estampa é muito bela e merece ser guardada com estima. A afirma-


cao de que Nossa Senhora já chorou quatorze vezes em aparicóes aos ho-
mens, é do foro das revelacóes particulares, ás quais cada fiel católico está
livre para dar seu assentimento ou nao, enquanto o magisterio da Igreja nio se
pronuncia a respeito. É, sem dúvida, muito louvável a atitude de penitencia e
desagravo que a devocáo a Nossa Senhora de Fátima vem suscitando, abstra-
cáo feita da credibilidade desta ou daquela revelacáo.

Todavía o fato de ser a TFP a promotora da Campanha suscita reservas


frente á mesma, visto que tal sociedade nao comunga devidamente com o
pensamento da Igreja, como foi demonstrado ñas páginas anteriores. É oportu
no que os fiéis rezem pela correcáo dos males moráis que afligem este mundo
e que facam obras de reparacáo; só se pode aplaudir este tipo de piedade - o
que todavía nao implica que se apoie urna Campanha patrocinada por quem
nao está plenamente em sintonía com a Santa Máe Igreja. A devocáo pode ser
praticada independentemente da referida Campanha.

Para lera Historia da Igreja. Vol. II: Do sáculo XVao secuto XX, porJena
Comby. Traducáo de María Stela Gongalves e Adail V. Sobral. - Ed. Loyola,
Sao Paulo 1994, 210x210mm, 242pp.
Jean Comby é professor da Faculdade Católica de ¿yon (Franca). Escre-
veu urna historia da Igreja em dois volumes, dos quais o primeiro vai até o
secuto XIV. O trabalho tem suas características origináis, que o tornam valioso.
Com efeito, além de colocar a historia da Igreja em estreita relacáo com a
historia geral da humanidade, o autor póe o leitor em contato com as fontes
escritas. Aprésenla, sim, demaneira sucinta a trama dos acontecimentosprin
cipáis, que constituem a espinha dorsal da historia da Igreja, e dedica grande
parte do seu trabalho á transcrigáo de textos dos personagens e das institui-
cóesque desempeharam papel importante em cada época dopassado. Assim
o leitorpoderá tomarconhecimento de trechos de E/asmo de Rotterdam, Lutero,
Caivino, Thomas More, Sao Francisco Xavier, Jean-Jacques Rousseau, Pió
VI... Paulo VI... Tratase de escritos inacessiveis a muitos estudiosos, que as
sim se tornam presentes ao leitor.
A obra se volta, com especialinteresse, para os acontecimentos da Igreja
na Franga, sem perder a sua visáo panorámica ou universal, apresentada de
maneira imparcial e objetiva.
Pode-se crer que os dois volumes de Jean Comby sao aptos a prestar
bons servicos. Vieram preencher urna ¡acuna importante. Apenas seria para
desejar um complemento de bibliografía brasileira.

326
Um Bispo transferido:

O CASO "JACQUES GAILLOT

Em síntese: Mons. Jacques Gaillot, na qualidade de Bispo de Evreux


(Franga), falava e agia em dissonáncia do magisterio oficial da Igreja e em
desacordó com os demais Bispos da Franga. Durante mais de dezanos tomou
atitudes pessoais que iangavam confusáo na mente do povo de Deus; entre
outras coisas, defendía a pilula abortiva. As freqüentes admoestagóes a que
repensasse seu procedimento nada obtiveram. Em conseqüéncia, o S. Padre
Joño Paulo II houvepor bem dispensá-lo de seus encargos episcopais, visan
do assim a salvaguardar o Povo de Deus abalado por idéias e propostas desto
antes do comum ensinamento dos Bispos. O S. Padre nao somente tinha o
direito, mas cabia-lhe o dever, de tomar tal resolugáo, encarregado que é do
bem de toda a S. Igreja.

O presente artigo reproduz declaragóes da Santa Sé e do episcopado


francés que ajudam a compreender o caso.

A opiniáo pública, principalmente na Europa, se deixou impressionar pelo


fato de que o Bispo de Evreux (Franca), Mons. Jacques Gaillot, foi transferido
para a diocese titular de Parténia aos 13/01/95. Isto significa que o prelado fica
dispensado das atividades de pastoreio diocesano, pois diocese titular é diocese
outrora existente, mas hoje extinta por efeito de invasáo dos muculmanos no
século Vil.

Em vista de noticias pouco exatas sobre as causas da transferencia, a


Santa Sé, mediante a Congregarlo para os Bispos, houve por bem emitir urna
Nota. O episcopado francés também se manifestou a propósito, como se verá
abaixo.

1.FALAASANTASÉ

A Congregacáo para os Bispos emitiu a seguirte Nota datada de 13/02/95:

"O Santo Padre e diversos órgáos da Santa Sé receberam numerosas


cartas a propósito da medida tomada, por mandato do Papa, a respeito de
Mons. Jacques Gaillot, ex-Bispo de Evreux.
t

Algumas dessas missivas exprimem urna inquietacáo real, seja por causa
do próprio Bispo em questáo, seja por causa do ministerio que ele tencionava

327
40 'PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 398/1995

exercer a respeito das pessoas mais afastadas da Igreja ou mesmo avessas á


Igreja. Essas cartas traduzem, por vezes, um sofrimento verdadeiro e urna
auténtica inquietacáo.

As pessoas e aos grupos signatarios das mesmas, apresentamos aqui


alguns elementos de resposta:

a) Compreendemos e apreciamos o interesse de tais missivistas pelo


empenho daqueles e daquelas que se esforcam por fazer chegar a mensagem
de Cristo e da Igreja ás pessoas e aos meios mais diversos, inclusive os meios
de común icacáo social.

b) A medida tomada a propósito de Mons. Gaiilot em nada é motivada por


esse tipo de empenho, nem pelo fato de se fazer uso dos meios de comunica-
cáo social no caso.

c) Os motivos da decisáo que foi necessário tomar a contra-gosto, sao de


ordem completamente diversa; estáo relacionados com um aspecto constitutivo
da missáo de um Bispo, encarregado de urna porcáo do povo de Deus. Com
efeito; trata-se da comunháo, na fé da Igreja, com seus irmáos no episcopado
e, em primeiro lugar, com o sucessor de Pedro. É a isto que cada Bispo se
compromete quando é ordenado.

d) Ora Mons. Gaiilot exprimía freqüentemente as suas divergencias em


re lacao aos ensinamentos oficiáis da Igreja, ou mesmo tomava direcáo
diametralmente oposta, especialmente em materia de Moral. Nesta área, o
Bispo nao pode tomar a liberdade de fazer prevalecer suas próprias concep
tees sobre aquelas professadas pelo conjunto do Colegio episcopal, do qual o
Papa é a cabeca (a respeito da colegialidade, freqüentemente invocada, será
necessário reler o que precisamente disse o Concilio do Vaticano II, em parti
cular na Constituicáo Lumen Gentium sobre a Igreja, capítulo III).

e) Nao é exato afirmar que nao tenha havido diálogo com o interessado
antes que a medida fosse tomada. Ao contrario, o diálogo se proiongou durante
dez anos, no espirito que recomendam o Evangelho e Sao paulo (cf. Mt 18.15-
17 e 1Cor 1,10-13). Ele se realizou tanto com aSanta Séquantocom numero
sos Bispos e com o Presidente da Conferencia dos Bispos da Franca, como
atesta a Declaracáo comum do Cardeal Decourtray e de Mons. Gaiilot publicada
a 15 de fevereiro de 1989. Desta Declaracáo está anexada urna copia ao pre
sente documento. Além disto, como precisou o comunicado á imprensa de 13
de Janeiro último, o próprío Santo Padre se entreteve a respeito com Mons.
Gaillot, quando de sua visita ad limina. Está, pois, claro que foram empregados
os recursos para se chegar a um acordó harmonioso. Infelizmente esses esfor-
cos nao obtiveram resultado.

328
O CASO "JACQUES GAILLOT'

Um Bispo é Bispo para sempre, mesmo sem diocese. Mons. Gaillot con
tinua sendo Bispo com todos os direitos, mas também com os deveres de um
sucessor dos Apostólos, dos quais o primeiro é o seryico da comunháo na
unidade da verdade".

2. FALA O EPISCOPADO FRANCÉS COMO TAL

O Conselho Permanente do Episcopado Francés, por sua vez, emiliu a


seguinte Declaracáo, publicada aos 16/02/95:

"A decisáo, tomada pelo Santo Padre, de dispensar Mons. Gaillot da res
ponsabilidade da diocese de Evreux suscitou em toda parte vivas reacoes.

A decisáo surpreendeu. Muitos nao a compreenderam. Ela provocou ati-


tudes de rejeicáo. Em muitos lugares, ela até mesmo abalou a coesáo da co-
munidade católica e pos á prova a dedicacáo ao sucessor de Pedro.

A fraternidade no episcopado e a amizade nos levam a dar grande aten-


cáo á incerteza da missáo futura de Mons. Gaillot. Nossa responsabilidade de
Bispos impóe-nos também o dever de transmitir algumas explicacóes sobre a
decisáo e suas motivacóes, como acaba de fazer a Santa Sé.

Mons. Gaillot nao está sob suspeita quanto á sua fidelidade a Cristo, nem
quanto aos seus esforcos de presenca ativa junto aos excluidos. Ele continua
Bispo da Igreja Católica. É o que manifesta o fato de Ihe ter sido dado o título
de Bispo de Parténia. Na Igreja Católica, todo Bispo é Bispo de um lugar. Aos
que nao estáo encarregados de urna diocese, como é, por exemplo, o caso dos
Bispos Auxiliares, dá-se o título de Bispo de urna cidade antiga que tenha sido
outrora o centro de urna diocese.

Mons. Gaillot foi dispensado de sua responsabilidade de Bispo da diocese


de Evreux. Urna decisáo dessa natureza é rara. Ela nao pode deixar indiferente
o povo cristáo e, principalmente, o da diocese interessada. Mas nao se pode de
forma alguma dizer que ela nao é conforme aos ensinamentos do Concilio do
Vaticano II ou ao Direito da Igreja.

Um Bispo nao pode receber a responsabilidade de urna diocese senáo


por nomeacáo do Soberano Pontífice. Este, por sua vez, em virtude do seu
encargo, pode transferir um Bispo de urna diocese para outra. Ele pode tam
bém suspender um Bispo da sua responsabilidade quanto á diocese que Ihe
tenha sido previamente confiada. Poispbem; urna tal decisáo nao é tomada
senáo por urna razáo muito grave, ou seja, por exemplo, quando a unidade no
seio do colegio episcopal encabegado pelo Papa está ameacada.

329
£2 'PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 398/1995

O comunicado publicado pela Santa Sé a 13 de Janeiro justifica a decisáo


relativa a Mons. Gaillot, dizendo que 'o prelado nao se mostrou apto a exercer
o ministerio da unidade, que é o primeiro dever de um Bispo'.

O que está em causa, é a distancia crescente colocada por Mons. Gaillot


entre ele e os Bispos, entre ele e o Papa.

Freqüentemente a Mons. Gaillot foi solicitado que respeitasse a respon-


sabilidade de cada Bispo em sua diocese, na Franca como no estrangeiro. Um
bom número de suas visitas e intervencóes menosprezava a situacáo local e
colocava em situacáo insegura o Bispo local.

Muitas vezes os Bispos se lamentaram por ver Mons. Gaillot táo alheio á
Conferencia Episcopal e aos trabalhos desta. O convite para aderir á prática da
colegialidade Ihe foi dirigido muitas vezes, sempre de maneira fraternal, embo-
ra com insistencia. Cabe aqui lembrar a Declaracáo comum do Presidente da
Conferencia dos Bispos da Franca, que era outrora o Cardeal Decourtray, e de
Mons. Gaillot, publicada a 15 de fevereiro de 1989. Apesar dessa Declaracáo,
Mons. Gaillot evidenciou estar distante de varios pontos de disciplina e de Mo
ral que nao deixam de ter implicacóes teológicas.

Por certo, nem todos os textos publicados pelo Papa gozam da mesma
autoridade. Mas o Concilio pede aos fiéis 'o reconhecimento respeitoso do su
premo magisterio do Papa e a adesáo sincera as suas sentencas, sempre de
acordó com a mente e a vontade do Sumo Pontífice. Esta mente e vontade
constam principalmente ou da índole dos documentos ou da freqüente proposi-
cao de urna mesma doutrina ou de sua maneira de falar" (Constituicáo Lumen
Gentium n° 25). Como um Bispo, cuja missáo é a de ajudar o Povo de Deus a
vrver na comunháo da fé católica, se poderá subtrair a esta regra de conduta?

A decisáo tornada pública a 13 de Janeiro último foi precedida por encon-


tros com o Cardeal Gantin, de 1987 a 1992, por um encontró com o Papa em
Janeiro de 1992, e por muitas advertencias por parte do Nuncio Apostólico. Os
Bispos franceses freqüentemente convidaran) Mons. Gaillot a ter urna atitude
menos distante em relacáo a eles e á Santa Sé. Oeve-se reconhecer que o
diálogo se tornou muito difícil ao longo dos últimos meses. Parece que as difi-
culdades nao podiam ser resolvidas somente pelo episcopado francés. O Papa
assumiu as conseqúéncias.

Dito isto, a decisáo concernente a Mons. Gaillot suscitou questóes que


prendem nossa atencáo. Alguns pontos podem ser anotados desde já:

1) Muitos dos católicos, homens e mulheres, tém urna responsabilidade


na Igreja. Eles a exercem em relacáo estreita uns com os outros. A decisáo
concernente a Mons. Gaillot os sensibilizou no tocante ao exercício da autori
dade na Igreja. Manifestaram seu receio de que o funcionamento eclesial tenha

330
O CASO -JACQUSS GAILLOT' 43

desdenhado o diálogo e o respeito em relacáo aos que exercem urna tarefa de


responsabilidade... Os encargos assumidos pelos leigos nao sao urna conces-
sáo. É em virtude do Batismo que os leigos participam da missáo que Deus
confiou á sua Igreja.

Dirigimos, pois, um apelo aos leigos, aos Religiosos e Religiosas, bem


como aos ministros ordenados, para que todos tenham a solicitude de respeitar
as responsabilidades de cada um, para evitar que se estabeleca urna
indiferenciacáo entre os papéis de uns e de outros. Há diversidade de funcóes
no único Corpo de Cristo, diz-nos o Apostólo Paulo.

2) As tensóes que se manifestaran^ fizeram, ñas nossas Igrejas


diocesanas, aparecer as diferencas ou mesmo os contrastes entre as sensibi
lidades, as opcóes, as diversas maneiras de conceber a missáo da Igreja e o
papel de cada um de seus membros.

Recomecaram as conversares a propósito de temas que pareciam ter


sido superados. Urna releitura comum dos textos do Concilio do Vaticano II
faria que os interesses encontrassem convergencia recíproca no servico da
evangelizacáo.

As práticas de sinodalidade ñas dioceses já favoreceram a aceitacáo das


diferencas e a comunháo no respeito de urna legitima diversidade. Mas em
toda parte esses esforcos de acolhida, de diálogo e de escuta estáo por se
desenvolver entre os presbíteros, os ministros ordenados e os leigos. entre
Bispos e diocesanos.

Enormes progressos aínda estáo por ser feitos a fim de ultrapassarmos a


polida tolerancia e a fim de entrarmos nos debates necessários sem segundas
intencóes. Nos devemos ir além do simples respeito das diferencas e chegar a
um encontró mutuo na fé da Igreja, fundamento da nossa unidade.

3) A atencáo aos mais pobres faz parte de nossa vida eclesial. Ela é urna
parte essencial e primordial da mesma. O fato de que Mons. Gaillot se tenha
tornado urna figura emblemática nos diz quanto a sociedade conta com a Igreja
para participar desse esforco em favor dos pobres. Seria urna injuria as múlti
plas associacóes católicas e á multidáo que trabalham pela soiidariedade nao
mencionar a labuta discreta e eficaz desses grupos. Todas as dioceses tém
desenvolvido e aínda desenvolvem um imenso esforco no tocante á questáo
social. Disto fizemos um bataneo numa Assembléia plenáría extraordinaria dos
Bispos da Franca em abril de 1994 em París.

Vivemos numa sociedade ferida pelas situacóes de exclusáo ou de preca-


riedade. Mais: varias pessoas, que nao estáo forcosamente em condicóes de
carencia, vivem também em situaedes difíceis: instabilidade de emprego, difi-
culdades para conseguir trabalho, problemas de saúde, de vida conjugal e fa-

331
44 TERGUNTE E RESPONDEREMOS' 398/1995

miliar, filhos privados de ambiente afetivo normal. E, mais que tudo. verifica
mos a falta de um parámetro espiritual para responder á questio: 'Por que é
que eu vivo?'

A dureza de nossa época nos convida a manifestar no mais alto grau a


nossa atencáo benévola, a compaixáo, a misericordia e o amor.

4) Enfim, urna vez mais, averiguamos o papel preponderante dos meios


de común ¡cacao social em nossa sociedade. Eles sao as pracas públicas dos
tempos modernos. Moidam nossa cultura e nossa linguagem. Sao um desafio
para a Igreja. Saberá ela superá-lo, para proclamar a mensagem de Cristo na
plenitude da sua verdade?

Verificamos com pesar que os homens e as mulheres se deixaram levar


pela dúvida quanto á Igreja. Reafirmamos aqueles e áquelas que tenham seus
compromissos missionários, especialmente no atendimento aos mais pobres,
que eles estáo na verdade. Nos os acompanhamos em seus esforcos apostó
licos.

Possamos perceber nesses acontecimentos um apelo a ir mais longe na


nossa vontade de viver como membros do Corpo de Cristo, felizes e unidos
para o servico de todos".

3. PRONUNCIAMENTOS PESSOAIS

3.1. Mons. Georges Gilson, Bispo de Mans

'Todo Bispo assume compromisso no inicio da celebracáo de sua ordena-


gao episcopal. Responde a perguntas que sao apelos para viver o Evangelho
de modo particular. Reli algumas dessas perguntas:

'Queres trabalhar na construcáo do Corpo de Cristo, que é a Igreja, e


permanecer na unidade da mesma com o colegiado dos Bispos sob a autorida-
de do sucessor de Pedro?

Sim; quero.

Queres obedecer fielmente ao sucessor de Pedro?

Sim; quero.

Queres, com teus companheiros de servico, os sacerdotes e os diáconos,


dedicar-te, como um pai, ao Povo de Deus, e dirigi-lo pelo caminho da salvacao?

332
O CASO MACQUES GAILLOf

Sim; quero.

Queres, em nome do Senhor, acolhercom amor os pobres, os viandantes


e todos aqueles que sofrem necessidades?

Sim; quero'.

Obedecer nao é coisa simples. Nao é algo que sempre se compreenda.


Mas, para nos, é o único caminho, o que preserva a unidade e constrói o futuro.
Caminho da Cruz, evidentemente".

3.2. Mons. Duval, Presidente da Conferencia dos Bispos da Franca

"Quaisquer que sejam as reacoes da opiniáo pública, a decisáo do Papa é


legítima do ponto de vista dos deveres e dos direitos que ele assume em seu
encargo relativo á Igreja inteira. A organizacáo da Igreja Católica confere ao
Papa urna competencia particular em vista da conservacáo da unidade do cor-
po episcopal. Como sucessor do Apostólo Pedro, diz o Concilio do Vaticano II,
ele é o principio perene e visivel e o fundamento da unidade que liga entre si os
Bispos e a multidáo dos fiéis. Todos os Bispos compartilham com o Papa esse
servico da unidade e manifestam-lhe solidariedade irrestrita".

3. Cardeal Jean-Marie Lustiger, Arcebispo de París

"Isso foi urna licáo para nos. Nenhum de nos é dono da Igreja, nem os
Bispos nem algum outro cristáo.

A nenhum de nos é lícito exercer sua missáo a seu bel-prazer. Cada qual
deverá dar contas a Deus. Um Bispo nao pode ser um servidor da Igreja de
Cristo em detrimento desta. Sei que Mons. Gaillot é um homem de oraclo.
Peco a Deus que essa provacáo se torne, para ele, um renovado apelo a seguir
o Cristo, como alias ele mesmo decidiu livremente ñas anteriores etapas de
sua vida".

4. CONCLUSÁO

Os depoimentos até aqui reproduzidos contribuem certamente para es


clarecer o caso de Mons. Gaillot. Este falava e agía com Bispo em dissonáncia
do magisterio oficial da Igreja e em desacordó com os demais Bispos da Fran
ca. Durante dez anos, deste 1984, tomou atitudes pessoais que lancavam con-
fusáo na mente dos fiéis; defendía, por exemplo, a pílula abortiva e o uso de
preservativos (o que quer dizer que recontiecia o relacionamento sexual fora
do casamento)... Em todos esses anos foi freqüentemente admoestado a re-

333
46 'PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 396/1995

pensar seu procedimento singular. Já que as razóes aduzidas nada obtinham,


o S. Padre Joáo Paulo II houve por bem dispensar Mons. Gaillot de seus encar
gos episcopais, visando assim a salvaguardar o povo de Deus abalado por
idéias e propostas destoantes do comum ensinamento dos Bispos. O Santo
Padre nao somente tinha o direito, mas também incumbia-lhe o dever, de o
fazer, encarregado que é do bem de toda a Igreja. Foi certamente com pesar
que Joáo Paulo II assim procedeu; fé-lo, porém, por fidelidade á sua missáo.

Resta pedir ao Senhor Deus que ilumine Mons. Gaillot e o reconduza ao


caminho da unidade.

Jesús, Epifanía do Amor do Pal, por Octavio Luiz Arenas. Tradugáo de


Orlando Soares Moreira. Colegio de Textos Básicos para Seminarios Latino
americanos n8 3 - Ed. Loyola, Sao Paulo (SP), 140x210mm, 431 pp.
O Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM) está promovendo a
publicagáo, em espanhol, de manuais de estudo teológico para os Seminarios
da América Latina em geral - o que nao excluí sejam utilizados também por
leigos. O presente volume conesponde ao tratado de Teología Fundamental.
Considera a Revelacáo de Deus aos homens no Antigo Testamento e em Je
sús Cristo; aborda a questáo da fé como resposta do homem á Revelacáo. A
seguir, trata da transmissáo da Revelacáo, que se faz através da Igreja e de
seu magisterio ordinario e extraordinario (Tradigáo, defínígóes dogmáticas...)
assistido pelo Espirito Santo (cf. Jo 14, 16s; 16,13s). Passa, depois, a estudar
a S. Escritura como canal da Revelacáo (inspiragáo e inerrancia bíblicas e
interpretagáo da S. Escritura vém ao caso). Por último, o autor trata da
credibilidade de Jesús Cristo - o que Ihe dá a ocasiáo de tocar em alguns
pontos importantes: a distingáo e a identidade entre o "Jesús da Historia" e o
Jesús da Fé, a consciéncia que Jesús, como homem, tinha de sua missáo, os
mi/agres de Jesús (sua realidade histórica e seu valor de sinais) e a ressurrei-
gáo corporal do Senhor.
A obra está redigida de modo apreparar o estudo dos tratados teológicos,
pois firma as credenciais das verdades reveladas. Diz o autor em sua Introdu-
gáo: "A finalidade das páginas que se seguem, é precisamente ajudar a ref/e-
xáo sobre essa realidade primeira e fundamental de nossa fé: Deus se mani-
festou em Jesús Cristo e é nele que descubrimos quem é Deus, qual é seu
designio de amor e qualé a grandeza da nossa dignidade"(p. 12). Tal estudo é
de particular interesse para os fiéis católicos em geral, pois necessitam, mais
do que nunca, de saberpor que créem..., por que créem em Jesús Cristo e nao
em Maomé ou Kardec... Além deste volume nB3, recomendam-se os de ns2 e
1 da mesma colegáo: "Ele é a nossa Salvagáo", por Carlos Ignacio González
SJ, e "María, Evangelizada e Evangelizados, pelo mesmo autor, traduzidos
para o portugués pela Loyola.

334
Na historia e no cinema:

CASTRAQÁO DE MENINOS E VOZ DE SOPRANO

Em síntese: O filme Farinellido cineasta belga Gérard Corbiau aprésenla


um dos mais famosos cantores que eram castrados no secuto XVIII para que
conservassem voz de soprano. A noticia do JORNAL DO BRASIL de 6/3/95
insinúa que a Igreja era conivente com talprática. No presente artigo afirmase
a re/eipáo dessa prática porparte da Moral Católica; se teve entrada em ambi
entes católicos, isto se deu á revelia da autorídade suprema da Igreja, cu/os
Papas Bento XIV e Leño XIII condenaran} explícitamente esse tipodemutilagáo.

O cineasta belga Gérard Corbiau lancou o filme Farinelli, que apresenta o


caso dos meninos outrora castrados para que se Ihes conservasse a voz de
soprano. O filme tem sido milito elogiado e vem despertando grande interesse
pelo seu teor, que póe ante os olhos do espectador urna prática hoje em dia
ultrapassada. Os noticiarios dáo a crer que a Igreja era conivente com a muti-
lacao em vista do cultivo da arte musical. - Ñas páginas que se seguem, apresen-
taremos alguns traeos da historia de tal prática e mostraremos que ela contraría os
principios da Moral católica, tendo sido explícitamente condenada pordois Papas
(que nao faziam senáo reforpar a palavra dos moralistas e teólogos da Igreja).

1.HISTORIA: O PAÑO DE FUNDO

1. Já na era pré-cristá conheciam-se os efeitos da castracáo (ou seja, da


destruicáo dos órgáos genitais). A puberdade acarreta naturalmente alteracóes
da voz do menino, tornando-a típicamente varonil; verificou-se, porém, que a
castracáo possibilita a colaboracáo de um tipo de laringe de enanca com tórax
e pulmóes de varáo, o que produz a beleza e o vigor da voz de soprano infantil
no adulto.

Em conseqüéncia, a mutilacáo sexual de meninos em vista de fins musi-


cais e artísticos era praticada desde os tempos anteriores a Cristo.

2. A Moral crista e, por conseguinte, a legíslacáo da Igreja sempre repro-


varam a castracáo, fosse qual fosse o seu motivo, pois tal operacáo implica
grave retoque infligido ás leis da natureza, ou seja, intervencáo do homem em
setor que nao é do seu alcance.

No decorrer da historia, houve, porexemplo, ascetas cristáos que se cas-


traram voluntariamente a fím de se ¡sentarem das tentacóes da carne e, por-

335
48 'PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 398/1995

tanto, do pecado de incesto. Aplicavam literalmente a si as palavras do Senhor


em Mt 19,12: "Há eunucos que se castram por causa do reino dos céus", pala
vras que, como se depreende do contexto, visam apenas inculcar a vida celiba-
tária e a conseqüente pureza de pensamentos e afetos. A Igreja reprovou esse
tipo de "violentado piedosa", vedando aos que o praticavam o acesso ás or-
dens sacerdotais: "Se alguém se castrar, desejando reprimir as concupiscenci
as da carne nao pela disciplina da religiáo e da abstinencia, mas pela mutilacáo
do corpo que Deus criou, nao poderá, por determinacáo nossa, ser admitido a
exercer alguma funcao clerical" (can. 21 dito "de S. Martinho de Braga" [t 580],
que reproduzia o can. 1S do concilio ecuménico de Nicéia ([325]).

Houve quem praticasse a castracáo por motivos menos elevados, como


sejam os de eugenia e racismo. Também a esses se fez ouvir a palavra da
Igreja, que vai aqui interpretada por S. S. o Papa Pió XII:

"Nosso predecessor Pió XI e Nos mesmos fomos levados a declarar con


traria á leí natural... a esterilizacáo direta de um inocente, se/a definitiva, sejs
temporaria, se/a do sexo masculino, se/a do sexo feminino. A nossa oposigáo á
esterilizacáo era e permanece firme, pois, embora o racismo tenha perdido a
sua atualidade, os homens nao deixam de procurar suprimir pela esterilidade
qualquer possibilidade de descendencia carregada de doengas hereditarias"
(Pió XII, Directives... 1230).

"Nem mesmo a autoridade pública, sob qualquerpretexto que se/a, tem o


direito depermitir ou, muito menos ainda, deprescreverou de mandar executar
a esterilizacáo em detrimento de inocentes"(Pío XII, Directives... 1130).

2. OS MOTIVOS MUSICAIS

1. A castracáo também foi pratlcada entre cristáos por motivos artísticos,


como no caso dos cantores com voz de soprano (que os documentos da época
moderna designam como "eunucos", eunuchi). Foi principalmente o Renasci-
mento do séc. XVI, com seu espirito naturalista e mais ou menos paganizante,
que deu voga a esse costume; a praxe se alastrou largamente pelo século XVII
até meados do século XVIII, nao somente pela Italia, mas também ñas grandes
cortes e nos teatros da Europa em geral, atingindo tanto a música profana
como a música religiosa (tenha-se em vista, como exemplo frisante, a cápela
da corte da Baviera); podia acontecer que os mesmos artistas executassem
nos teatros as óperas clássicas e ñas igrejas certas pecas religiosas.

O público muilu estimava os cantores eunucos, pois, como se entende, só


era castrado quem possuisse boas credenciais para se tornar cantor de escol;
além disto, o tirocinio praticado desde a infancia com assiduidade muito con
coma para que tais artistas desempenhassem de maneira esme rada as suas
funcóes. O período de maior popularídade dos eunucos vai dos tempos de
(continua napág. 307)

336
r

€M COMUNHñO
Revista bimestral (5 números: margo a dezembro)
Editada pelo Mosteiro de S. Bento do Rio de Janeiro, desde
1976 (já publicados 107 números), destina-se a Oblatos
beneditinos e pessoas interessadas em assuntos de
espiritualidade bíblica e monástica. - Além de artigos, contém
traducoes e comentarios bíblicos e monásticos, e, ainda a
crónica do Mosteiro.

1995, assinatura ou renovacáo, R$ 12,00


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Vaticano II: de um lado clérigos e religiosos que os promovem; do ou-
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nháo:

1. Durante a Missa; Fora da Missa,


sem Sacerdote (rito solene e rito
simples).

2. Em casa do enfermo (solene e


simples).

3. Sob a forma de Viático.

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