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RESENHAS 157

que a psicanálise acumulou ao longo de DA SUBVERSÃO DO GÊNERO À


sua história e que nos convida à sua REINVENÇÃO DA POLÍTICA
problematização e potencialização. Problemas de gênero: feminismo e
subversão da identidade. Judith
Recebida em 31/3/04. Butler. Rio de Janeiro: Civilização
Aprovada em 23/4/04. Brasileira, 2003.

Regina Neri
reginaneri@uol.com.br
Simone Perelson
Psicanalista, doutora em psicopatologia
fundamental e psicanálise pela Université
Paris 7

Em seu livro Problemas de gênero: feminismo e


subversão da identidade, Judith Butler em-
preende, em primeiro lugar, uma genea-
logia crítica, fortemente fundamentada
no pensamento de Foucault, das cate-
gorias de gênero estabelecidas como
uma relação binária homem-mulher. Irá de-
monstrar que o binarismo é um produ-
to reificado de práticas discursivas múl-
tiplas e difusas que funcionam como re-
gimes de poder, sendo o falocentrismo
e a heterossexualidade compulsória apon-
tados como os elementos definidores
desta produção/construção.
A genealogia crítica do binarismo dos
gêneros conduzirá a autora à crítica da
distinção sexo-gênero, à idéia de um sexo na-
tural ou pré-discursivo, por um lado, e
um gênero culturalmente construído,
por outro. A construção do caráter natural
do sexo, a produção da natureza sexuada
como anterior à cultura é, de fato, uma
maneira de assegurar a manutenção da
estrutura binária dos gêneros. Vale obser-
var, como nota Butler, que o discurso que
opõe o sexo natural ao gênero cultural
concebe de modo habitual que a nature-
za é feminina e precisa ser subordinada
pela cultura, invariavelmente concebida
como masculina. A crítica de Butler à idéia
de um sexo natural fundamenta-se na crí-
tica de Foucault à concepção da cultura
como efeito de uma lei repressiva, na qual

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encontraríamos, de um lado, uma sexua- rais, não deve ser compreendida como a
lidade subversiva ou emancipatória, li- afirmação de seu caráter ilusório ou ar-
vre da lei, do discurso e do poder (po- tificial — compreensão resultante da
dendo esta ser feminina ou não) e, de postulação de um binário que opõe real
outro lado, a lei repressora. a autêntico. Mas sobretudo o que deve
Pelo contrário, sexualidade e poder ser considerada é a possibilidade de que
são co-extensivos e a concepção de um a enunciação de um sexo ou de uma se-
desejo como original ou recalcado é um xualidade anterior ao próprio enuncia-
efeito da própria lei coercitiva. É neste do contradiga performativamente a si mes-
sentido que Foucault afirmará que a lei é ma, gerando alternativas em seu lugar,
produtiva: ela produz a ilusão da distin- isto é, criando de maneira inadvertida
ção entre predisposições primárias natu- as condições de sua própria substitui-
rais e livres e disposições secundárias le- ção cultural.
gitimadas pela lei. Como efeito destas três Antes de explicitar o modo segundo
críticas, será a própria noção de uma iden- o qual é possível, neste contexto, a pro-
tidade como fundamentada na divisão do dução de práticas efetivas de subversão,
gênero e, mais ainda, como fundamento Judith Butler propõe uma análise crítica
do gênero que será colocada em causa. de algumas formulações teóricas nas
Segundo Butler, o eu de gênero per- quais uma estratégia de subversão do
manente define-se por um estilo, por atos gênero estaria em ação, de modo a indi-
repetidos que constroem a ficção de uma car os limites de cada uma delas. Para em-
identidade substancial. Neste sentido, preender esta tarefa, a autora abordará
não há identidade de gênero por trás das sobretudo algumas formulações de Lévi-
expressões do gênero; os atributos do Strauss, Lacan, Freud, Foucault, Kristeva
gênero não são expressivos mas performá- e Monique Wittig.
ticos, isto é, constituintes da identidade Das formulações de Lévi-Strauss,
que pretensamente revelam. Butler critica a oposição natureza-cultura
Mas, face à inexistência de toda e qual- o que o levaria a “ontologizar” o sexo.
quer exterioridade com relação ao gêne- Embora “desontologize” o “ser” do gê-
ro construído, como é possível subvertê- nero e/ou sexo, Lacan mostra-se ideolo-
lo? Como é possível subverter a lei? Esta gicamente suspeito quando, ao invés de
é a questão que interessa de fato à autora, radicalizar a dimensão cômica da ontolo-
pois o livro de Butler é antes de tudo um gia sexual por ele apontada, desenvolve
projeto político, e mais ainda um projeto uma idealização religiosa do fracasso.
de formulação de estratégias sustentadas, Freud, por sua vez, amplia a noção de
e não ideais, de subversão do gênero. predisposições libidinais primárias, sen-
Em primeiro lugar, a autora mostrará do quem de fato produz a ficção lingüís-
que não se deve compreender a hegemo- tica do desejo recalcado e a idéia de que
nia do poder como o fracasso da possibi- a entrada no campo cultural desvia o de-
lidade de subversão, pois operar no in- sejo do seu significado original. Kristeva,
terior da matriz do poder não é o mesmo embora estabeleça uma produção cultu-
que reproduzir acriticamente as relações ral — a poesia — como o campo de sub-
de dominação. Além disso, a afirmação versão da lei paterna, ao conceber esta
de que a sexualidade, assim como a iden- subversão como a manifestação no dis-
tidade e o gênero, são construções cultu- curso poético da multiplicidade e do caos

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libidinal próprios ao relacionamento pri- não o interior recalcado ou a base oculta


mário com o corpo materno, naturaliza o da cultura, mas sobretudo uma outra ver-
corpo e faz do ato subversivo a manifes- são dela própria, versão que surge quan-
tação de uma realidade pré-cultural. do a cultura se vira contra si mesma e gera
O Foucault que Butler critica é aque- metamorfoses inesperadas. Enfim, para
le que, em sua introdução ao diário do que haja uma ação política não é neces-
hermafrodita Herculine, contradiria a si sário supormos a existência prévia de uma
mesmo ao demonstrar, através da sua com- identidade, sede dos interesses políticos
preensão do suposto desaparecimento do pelos quais se luta. Pelo contrário, o eu
sexo de Herculine como o lugar de um constrói-se performativamente através de
limbo feliz de uma não-identidade, um sua ação; ele é uma prática, e sobretudo
deleite sentimental e um ideal emancipa- uma prática discursiva.
tório difícil de manter. Embora, enfim, a Nestes tempos do “fim da política”,
literatura de Wittig, ao seguir uma traje- Butler nos oferece não apenas um livro de
tória narrativa de desintegração, revele a extremo rigor teórico, indicando de modo
contingência do gênero, a autora man- preciso de que modo são naturalizadas e
tém a pressuposição da condição univer- reificadas noções construídas culturalmen-
sal do sujeito, sustentando que este tem te, como também aponta uma nova dire-
uma integridade pré-social e anterior a ção, renovando o ânimo que tem nos fal-
seus traços de gênero. tado, para retornarmos ao campo hoje tão
A partir da explicitação dos limites desprezado da ação política.
de cada uma destas estratégias subversi-
vas, Butler pode, enfim, esclarecer no que Recebida em 3/5/04.
consiste o que ela considera uma estraté- Aprovada em 20/5/04.
gia política capaz de subverter as noções
naturalizadas do gênero e a ilusão da iden-
tidade fundadora. Em primeiro lugar, Simone Perelson
muito mais do que manifestar um repú- Rua Humberto de Campos 974/1602
dio radical de uma sexualidade construí- 22430190 Rio de Janeiro RJ
da, as práticas efetivamente subversivas Telefax (21) 32041696
são aquelas que, ao produzirem uma perelbell@aol.com
descontinuidade e uma dissonância sub-
versiva entre sexo, gênero e desejo,
questionam suas supostas relações e nos
permitem desconstruir a aparência subs-
tantiva do gênero e da identidade. Em se-
gundo lugar, o meio eficaz para esta
desconstrução se encontra nas deforma-
ções ou repetições parodísticas — nas
performances dissonantes e desnaturalizadas
que revelam que o original nada mais é
do que uma paródia da idéia do original
e do natural. Em terceiro lugar, os atos
políticos são atos que subvertem a partir
de dentro dos termos da lei, revelando,

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