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A Advocacia, o Segredo Profissional e as Escutas Telefónicas

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Sumário:

Impõe-se, mais do que nunca, reflectir sobre os limites das escutas telefónicas – ou outras – e
o exercício da advocacia.

Ora, se os casos em que se admitem escutas telefónicas a advogados se encontram, já,


contados na própria lei – “salvo se o juiz tiver fundadas razões para crer que elas constituem
objecto ou elemento do crime” – e se o segredo profissional é um dos mais consagrados
princípios deontológicos dos advogados, exigência elementar da justiça de qualquer Estado de
Direito e em função do qual o advogado poderá responder com responsabilidade disciplinar,
civil e penal, como se poderá considerar lícita – como muitos parecem pretender – a escuta
telefónica a advogados?

Há, pois, que defender o segredo profissional já que, com escutas telefónicas não há segredo,
e, sem segredo, não há advocacia…

A Advocacia, o Segredo Profissional e as Escutas Telefónicas

Neste tempo em que se ouve – e muito – falar em escutas telefónicas e nos seus limites, há,
também, que reflectir sobre as fronteiras dessas escutas e o exercício da advocacia.
Abordando-se este problema, põe-se, desde logo, a questão de se saber se é lícita a escuta
telefónica a um advogado e se a mesma é compatível – ou não - com a defesa do segredo
profissional do mesmo.

Decorre da lei, no artigo 187º do Código de Processo Penal, que a intercepção e gravação de
conversações ou comunicações telefónicas é um meio de obtenção de prova com carácter
excepcional, que, além de exigir a prévia autorização do juiz, é reservado a crimes cuja
gravidade o justifica. Quanto aos advogados, a lei vai ainda mais longe, proibindo, ela própria,
no n.º 3 do mesmo artigo, a escuta telefónica (ou outra) de comunicações entre arguido e seu
advogado, “salvo se o juiz tiver fundadas razões para crer que elas constituem objecto ou
elemento do crime”. O mesmo será dizer, portanto, que arguido e advogado terão, em
princípio, direito a comunicar reservadamente - na esteira, aliás, daquilo que variadíssimas
vezes a lei prevê (arts. 62º do Estatuto da Ordem dos Advogados, 114º da Lei de Organização
dos Tribunais Judiciais, 61º do Código de Processo Penal, entre outros).

O segredo profissional é, na verdade, um dos mais consagrados princípios deontológicos dos


advogados, correspondendo a uma exigência elementar de justiça de qualquer Estado de
Direito. De facto, ao advogado é imposto o “direito-dever” de segredo profissional, em nome
da confiança e lealdade para com o cliente, mas, e antes de mais, do interesse e natureza
pública da actividade que desempenha. O advogado exerce uma “função pública de
administração da justiça”, nas palavras do Prof. Figueiredo Dias, qualidade esta, aliás, que lhe
é constitucionalmente reconhecida – art. 208º Constituição da República Portuguesa. Assim, o
patrocínio forense só pode ser verdadeira e cabalmente exercido quando devidamente
protegido, proporcionando, concomitantemente, o desempenho da advocacia com a dignidade
que ela impõe. O advogado não é apenas um tecnocrata da justiça. Ele é, sobretudo, alguém
em quem o cliente confia toda a defesa dos seus interesses, acreditando que os compreende
plenamente e que zelará por eles de modo incondicional.
Muito embora a obrigação de segredo impenda fundamentalmente sobre o advogado, o
mesmo é uma exigência elementar da justiça, pelo que deve, e tem de ser, igualmente
respeitado pelos órgãos de polícia e de justiça. Só há justiça quando há defesa, e só há defesa
quando entre cliente e advogado há uma relação de segredo, que é, no fundo, a expressão
máxima da total e absoluta confiança e lealdade que entre ambos se cria e desenvolve. Essa é,
na verdade, a alma da própria advocacia!

A suma importância destes valores foi amplamente reconhecida pela lei, que, em numerosos
artigos, assegura o eficaz cumprimento do patrocínio forense, garantindo as imunidades e
condições necessárias ao seu exercício, contando-se entre estas, claro está, o segredo
profissional. Através do Estatuto da Ordem dos Advogados e da alínea a) do n.º 3 do art. 114º
da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais encontra-se o advogado
vinculado ao segredo profissional, de que não se pode desvincular, nem mesmo por acção do
próprio cliente, já que - e essa é a razão central - é algo que não nasce de qualquer relação
contratual, mas antes do exercício da advocacia, autónomo, independente e prévio àquela
relação, na sua já referida “função pública de administração da justiça”.

De notar que a desvinculação a que se alude só se poderá dar em situações limites, deveras
excepcionais, exigindo-se para tal autorização prévia do Presidente do Conselho Distrital da
Ordem dos Advogados respectivo (com recurso para o Bastonário da Ordem dos Advogados) e
prova de que a dispensa do sigilo é “absolutamente necessária para a defesa da dignidade,
direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes”. Por
exemplo, indicado como testemunha, o advogado poderá obter a mencionada autorização ou,
não o fazendo, poderá/deverá invocar escusa – arts. 519º e 618º do Código de Processo Civil
e 135º do Código de Processo Penal -, competindo ao tribunal, depois de consultar a Ordem
dos Advogados, julgar da legitimidade dessa escusa.

Melhor se compreende a extraordinária relevância que a lei confere a este dever do advogado
pelo facto de esta proteger o segredo profissional, mas também por atacar – de modo severo -
a sua violação, através de responsabilidade disciplinar, penal e civil.

Ora, assim sendo, como harmonizar e tornar lícita, como alguns parecem pretender, a escuta
telefónica a advogado?

Afigura-se a mesma, na verdade, um contra-senso e um grave ataque ao exercício da


advocacia. Desde logo - a aceitarem-se tais escutas telefónicas a advogados – estaria aberta a
porta para, através de um mero expediente técnico, existir um verdadeiro meio de violação de
um dever/direito a que a lei não só confere a maior das relevâncias, como defende
acerrimamente. E, a ser assim, ou seja se advogado e cliente não estiverem resguardados e
protegidos nas suas comunicações, que aconteceria à ambicionada relação de confiança que
deve e tem de existir entre ambos?

Não há, com efeito, compatibilização possível. Não há como eleger algum dos valores em
concorrência porque, simplesmente, a questão não se pode colocar. Já que é óbvio que o
advogado não poderá exercer a sua profissão, a função pública que lhe é acometida, com a
dignidade que aquela merece, sem que lhe sejam asseguradas as condições e imunidades
necessárias. Tão pouco se poderá enveredar por caminhos em que a lei seja quebrada e a
advocacia ignorada.

A suma importância atribuída ao segredo profissional, com todas as cominações que a sua
violação envolve, não deve – nem pode – ser ocultada em nome de valores que a própria lei já
consagrou e harmonizou. Os contados casos de licitude de escutas telefónicas a advogados e
respectiva quebra do segredo profissional estão determinados na lei e pela lei – “salvo se o
juiz tiver fundadas razões para crer que elas constituem objecto ou elemento do crime". É
nesses casos – e só nesses – que será de admitir a escuta telefónica a advogados nas suas
relações com os seus clientes!

Há que preservar o segredo profissional, na mesma medida em que a lei o determinou. E,


nisso e por isso, simplesmente cumpri-la.

Sem sigilo profissional a advocacia não faz sentido. Aliás como o confirma a raiz etimológica da
palavra sigilo, vinda do latim sigillum, que significa selo e que corresponde a um diminutivo de
signum, que significa sinal, marca. O sigilo, o segredo profissional do advogado, é, neste
sentido, a marca do advogado, daquele que é chamado (do latim advocare) para actuar em
nome e no interesse do seu cliente.

Em resumo: - Com escutas telefónicas não há segredo profissional … e sem segredo


profissional não se cumpre a "função pública de administração da justiça" … e não havendo
esta não há advocacia! Perdem os cidadãos! Perde, também, o Estado!

Tito Arantes Fontes, Advogado

Assunção Magalhães e Menezes, Advogada – Estagiária

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