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Antropologia, Cultura,

Educação e Educação Física

Jocimar Daolio
Faculdade de Educação Física da UNICAMP
<jocimar@fef.unicamp.br>
Objetivo

Discutir o conceito de Cultura (sob o ponto de


vista antropológico) e fazer algumas relações
com a Educação, com a Educação Física e com
a Educação Física Escolar.
COMIDA
(Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer, Sérgio Brito)

Bebida é água Bebida é água


Comida é pasto Comida é pasto
Você tem sede de que? Você tem sede de que?
Você tem fome de que? Você tem fome de que?

A gente não quer só comida A gente não quer só comer


A gente quer comida, diversão e arte A gente quer comer e quer fazer amor
A gente não quer só comida A gente não quer só comer
A gente quer saída para qualquer parte A gente quer prazer pra aliviar a dor
A gente não quer só comida A gente não quer só dinheiro
A gente quer bebida, diversão, balé A gente quer dinheiro e felicidade
A gente não quer só comida A gente não quer só dinheiro
A gente quer a vida como a vida quer A gente quer inteiro e não pela
metade

NECESSIDADE VONTADE DESEJO


O conceito de Cultura
Embora se aceite e se utilize a dimensão cultural na Educação
Física atualmente, ainda há muitos equívocos e compreensões
equivocadas em relação ao uso do termo Cultura.

- cultura e classe social


- cultura e bom gosto
- cultura e conhecimento formal
- cultura e artes
- quantificação da Cultura

De fato, falar ou pressupor a dimensão cultural não garante nem


unidade de pensamento e ações nem garante proposta de
intervenção progressista.
Antropologia Evolucionista

• O pensamento evolucionista, típico do século XIX, propiciou


características etnocêntricas à Antropologia.

• Os seres humanos encontrados eram classificados em


civilizados ou primitivos

• A diferença entre os seres humanos era considerada como


desigualdade

• O conceito de Cultura servia para excluir pessoas


consideradas como menos civilizadas
Antropologia Simbólica

• Ao longo do século XX, a questão dos significados se impõe


para a Antropologia. Os usos e costumes que eram
considerados primitivos passam a ser vistos como parte de um
conjunto de significações.

• Bronislaw Malinowski e Franz Boas

• Segundo Clifford Geertz, a cultura é pública porque o


significado é público, constituído nas relações sociais
cotidianamente. Vivemos num mundo de significados. O
conceito de Cultura, para Geertz, é, portanto, eminentemente
simbólico.
Definições de Cultura

Claude Lévi-Strauss:
“Pode ser considerada como um conjunto de sistemas simbólicos
na primeira fila dos quais se colocam a linguagem, as regras
matrimoniais, as relações econômicas, a arte, a ciência e a
religião.”

Marilena Chauí:
“É a maneira pela qual os humanos se humanizam por meio de
práticas que criam a existência social, econômica, política,
religiosa, intelectual e artística.”
Clifford Geertz:
“Acreditando que o homem é um animal amarrado a teias de
significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como
sendo essas teias.”

Eunice Durham:
“A cultura constitui um processo pelo qual os homens
orientam e dão significado às suas ações através de uma
manipulação simbólica que é atributo fundamental de toda
prática humana.”
Crítica à concepção estratigráfica (Geertz, 1989)

A dimensão cultural é superposta a outras dimensões


(biológica, psicológica, social), como um manto, um
complemento ou um verniz, mas o núcleo ainda é biológico.

Implicações: organiza e garante a especificidade de cada


matriz disciplinar, porém naturaliza e secundariza a
dimensão cultural à dimensão biológica.
CONCEPÇÃO ESTRATIGRÁFICA DE NATUREZA HUMANA
(Baseada em Clifford Geertz, 1989)

Cultural

Social

Psicológico

Biológico
Concepção Sintética (Geertz, 1989)

Os aspectos biológicos, psicológicos, sociais e culturais são


reconhecidos no ser humano porém são vistos como
variáveis em sistemas unitários de análise.

Implicações: visão de totalidade, buscando as relações entre


os vários aspectos do ser humano e entre as várias
disciplinas científicas. Não há predominância de um aspecto
sobre o outro.
CONCEPÇÃO SINTÉTICA DE NATUREZA HUMANA
(Baseada em Clifford Geertz, 1989)

Social

Psicológico

Biológico

Cultural
O conceito de Cultura e a Educação Formal
• falar de Escola e de Educação implica necessariamente falar
de Cultura, porque a educação escolarizada pressupõe a
preservação, transformação e transmissão da cultura
acumulada pelos seres humanos ao longo de sua história.

“[...] a cultura é o conteúdo substancial da educação, sua


fonte e sua justificação última: a educação não é nada fora
da cultura e sem ela. [...] educação e cultura aparecem como
duas faces, rigorosamente recíprocas e complementares de
uma mesma realidade: uma não pode ser pensada sem a
outra e toda a reflexão sobre uma desemboca imediatamente
na consideração da outra” (Forquin, 1993, p.14).
A Questão da Diversidade

Pode ser vista sob dois enfoques, sendo um deles o mais


explícito. Diz respeito à necessidade de um programa de
Educação ampliar e diversificar os conteúdos.

É obrigação da Escola ampliar, criticar e transformar os


conhecimentos. Para fazer a mesma coisa que os alunos já
conhecem, para que Escola?
Consideração da Diversidade como condição do
processo escolar
Lidar com Educação implica lidar com diferentes alunos, cujas
identidades são constituídas por diferenças de gênero, etnia,
crença religiosa, habilidade, opção sexual, interesse, experiência,
motivação, contexto cultural etc.

A Escola (e a sociedade), tradicionalmente, pensou a Diferença


como DES-IGUALDADE. Como consequência, para se alcançar a
Igualdade, se postulou o fim das diferenças.

Diferença não é o contrário de Igualdade. O contrário de


Igualdade é a Des-igualdade. A diferença é companheira da
Igualdade.
Igualdade de oportunidades, direitos, cidadania, liberdade; e,
ao mesmo tempo, garantia de identidades diferentes, línguas
diferentes, sotaques, tempo, ritmo, cultura etc.

Igualdade não significa todos fazerem a mesma coisa do


mesmo jeito. Isso é uniformidade. Igualdade quer dizer,
sendo diferentes e respeitando-se as diferenças, fazermos
juntos, produzirmos coletivamente.
A Escola sonha com a igualdade como homogeneidade, com a
pasteurização dos alunos. Todos os alunos devem entender do
mesmo jeito, perguntar as mesmas coisas, elaborar as mesmas
respostas, caminhar juntos no processo de aprendizagem, fazer as
mesmas coisas e ficar quietos.

É preciso denunciar uma certa visão de “inclusão escolar” que não


reconhece as diferenças dos alunos.

Ou uma certa visão de “pluralidade cultural” ou um uso do


“multiculturalismo” que transmite uma ideia estanque de
consideração da diversidade (Dia do Negro, Dia do Índio, Dia da
Diversidade Sexual).
Alteridade

A alteridade como processo não só para considerar as


diferenças mas para tensionar essas diferenças, como um
espaço permanente de enfrentamento denso, tenso e
intenso; também como espaço de complementariedade.

Um grupo de diferentes, no qual as diferenças possam se


manifestar é mais rico, mais criativo, porque contém mais
variedades e mais possibilidades de ação e movimento no
seu interior.
“A alteridade revela-se no fato de que o que eu sou e o outro é
não se faz de modo linear e único, porém constitui um jogo de
imagens múltiplo e diverso” (GUSMÃO, 2003).

Quando me defronto com o Outro, diferente de mim, tenho que


me perguntar “quem sou?”. O Outro é, ao mesmo tempo, o Outro
de mim enquanto eu sou o Outro do Outro.

“Como conviver com as diferenças e estabelecer relações


solidárias e de equidade entre sujeitos diferentes? Esses são os
desafios permanentes da educação e da escola” (GUSMÃO, 2003).

Considerar a diferença pode fazer a diferença.


“Temos o direito de ser iguais
quando a diferença nos inferioriza,
temos o direito de ser diferentes quando a
igualdade nos descaracteriza”.

(Boaventura de Sousa Santos)


Implicações para a Educação Física
Cultura como o principal conceito e a principal categoria para a
Educação Física Escolar, porque todas as manifestações
corporais humanas são geradas na dinâmica cultural e a Escola
deve tratar desse dinâmica cultural.
Como o conceito de Cultura ganhou relevância na Educação
Física Brasileira?
• contexto político de redemocratização
• importância da década de 1980 na EF brasileira
• suporte teórico das Ciências Humanas e Sociais
• pós-graduação em Educação Física
• “a Educação Física se humanizou”
Ampliação da noção de Corpo

A perspectiva biológica não explica o corpo na sua


totalidade, tornando-se necessária também a perspectiva
oriunda das Ciências Humanas.

A partir da perspectiva cultural, o corpo deixa de ser apenas


um conjunto de ossos, músculos e articulações para se tornar
sede de signos sociais.

Corpo como linguagem e comunicação, ao invés de somente


expressão física.
Ampliação da noção de Técnica

Marcel Mauss , antropólogo francês (1872-1950), cunha a


expressão “técnica corporal” para expressar os vários usos que
os seres humanos fazem de seu corpo.

Os gestos devem ser pensados como técnicos porque possuem


tradição e eficácia simbólica. Amplia-se a visão mecânica de
movimento corporal eficiente para a dimensão dos
significados culturais.
A relação entre Cultura e Educação Física Escolar
• se a Escola trabalha com a Cultura e se a Educação Física é uma
disciplina escolar, logo a Educação Física também deve trabalhar
com a Cultura, especificamente com a parte dela relacionada às
questões corporais.

• atuar com ou sobre o corpo implica atuar na sociedade que dá


sentido a esse corpo, implica atuar na cultura, enfim, fazer
história.

• a Educação Física Escolar não atua sobre o corpo, o movimento,


o esporte, o jogo, a dança em si. Ela atua com a parte da cultura
relacionada às questões corporais.
• É nesse sentido que chegamos ao conceito de Cultura
Corporal, ou Cultura de Movimento, ou Cultura Corporal de
Movimento. É nesse sentido também que se fala em Cultura
Esportiva ao invés de Esporte, Cultura Lúdica ao invés de Jogo,
Cultura Gímnica ao invés de Ginástica etc.

• Dessa forma, a Educação Física preocupa-se com as formas


simbólicas de linguagem e comunicação humanas. Trata de um
conhecimento que não se restringe apenas à dimensão
vivencial, mas às suas relações com o mundo dos alunos.

• Os conteúdos clássicos da Educação Física Escolar (Jogo,


Ginástica, Dança, Esporte, Luta) são definidos como
conhecimentos históricos criados pelos seres humanos e que
devem ser garantidos aos alunos.
Implicações para a Organização Curricular em Educação Física

Há problemas históricos na organização curricular em Educação


Física. Alguns deles:

- falta de diversificação do conteúdo (ex: futebol)


- repetição de conteúdos e de estratégias
- falta pensar os conteúdos da Educação Física Escolar
como conhecimentos a serem vivenciados, relacionados,
refletidos e transformados
- no Ensino Médio, a situação é dramática, porque no
plano físico os alunos já estão “prontos”.

O que fazer? Como fazer?


Currículo de Educação Física do Estado de São Paulo para o
segundo ciclo do Ensino Fundamento e Ensino Médio de 2008.

Autores: Jocimar Daolio, Mauro Betti, Luciana Venancio, Luiz


Sanches Neto, Sergio Silveira e Adalberto dos Santos Souza.

Texto básico sobre a visão de área adotada e 28 volumes dos


Cadernos do Professor (por bimestre e por série), com sugestão
de distribuição dos conteúdos ao longo dos anos escolares e
sugestões de situações de aprendizagem.

Em 2009, Cadernos do Aluno.


Ensino Fundamental
(a partir da 5º série/6º ano)
Ensino Médio
http://www.rededosaber.sp.gov.br/portais/Porta
ls/18/arquivos/Prop_EDF_COMP_red_md_20_03.
pdf
Objetivos da EF escolar:
“[...] partir do variado repertório de conhecimentos que os alunos
já possuem sobre diferentes manifestações corporais e de
movimento, e buscar ampliá-los, aprofundá-los e qualificá-los
criticamente. Desse modo, espera-se levar o aluno, ao longo de sua
escolarização e após, a melhores oportunidades de participação e
usufruto no jogo, esporte, ginástica, luta e atividades rítmicas,
assim como a possibilidades concretas de intervenção e
transformação desse patrimônio humano relacionado à dimensão
corporal e ao movimentar-se – o qual tem sido denominado ‘cultura
de movimento’” (São Paulo, 2008, p.42).
REDE DE INTER-RELAÇÕES

JOGO ESPORTE ATIVIDADE GINÁSTICA LUTA


RÍTMICA

CORPO,
SAÚDE e
BELEZA

MÍDIAS

CONTEMPO-
RANEIDADE

LAZER e
TRABALHO
A título de conclusão

1. Devemos evitar uma concepção de Organização Curricular


que engesse algo que, por definição, é dinâmico.

2. Devemos considerar que a Educação Física possui


especificidades que a tornam diferente de outras
disciplinas, gerando organizações diferentes na Escola.

3. A visão cultural da disciplina impõe, por definição, a


consideração da dinâmica cultural dos alunos, gerando
organizações curriculares diferentes.
Em relação aos currículos de graduação em
Educação Física:

- Defender uma concepção sintética e não estratigráfica,


rompendo a dicotomia entre ciências humanas e
ciências naturais.

- Maior integração e diálogo entre as disciplinas do


currículo.

- Disciplina de Estágio como eixo do currículo.

- Dimensão cultural como um pressuposto do currículo,


uma vez que qualquer intervenção na área se dá sempre
com sujeitos inseridos em contextos socioculturais.
Referências Bibliográficas
DAOLIO, Jocimar. Da cultura do corpo. Campinas, Papirus, 1995.
DAOLIO, Jocimar. A antropologia social e a educação física:
possibilidades de encontro. In: CARVALHO, Yara M. de; RUBIO, Katia.
Educação física e ciências humanas. São Paulo: Hucitec, 2001, p.27-38.
FORQUIN, Jean-Claude. Escola e cultura: as bases sociais e
epistemológicas do conhecimento escolar. Porto Alegre, ARTMED, 1993.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro,
Guanabara Koogan, 1989.
GUSMÃO, Neusa M. M. de. Diversidade, cultura e educação. São Paulo,
Biruta, 2003
LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo, Brasiliense,
1988.
MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo, Cosac & Naify,
2003.

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